Dom Pedro Conti

As feridas


Um homem morreu e chegou às portas do céu. O anjo encarregado da acolhida lhe disse:
– Me apresente as suas feridas. Espantado o homem respondeu:
– Quais feridas? Eu não tenho nenhuma ferida. E o anjo falou:
– Nunca pensou que tivesse alguma coisa na vida para a qual valesse a pena lutar?
No Segundo Domingo da Páscoa, sempre encontramos a página do evangelho de João que fala de duas aparições do Senhor ressuscitado aos discípulos. A primeira, “ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana” (20,19) e a segunda “oito dias depois” (20,26). Em ambas as aparições, a saudação de Jesus é: “A paz esteja convosco” e, logo em seguida, ele apresenta “as mãos e o lado”, de maneira toda especial para Tomé, que não estava presente na primeira vez. É bastante fácil entender que o evangelista João quer nos ajudar a ter fé naquele Jesus crucificado e, agora, ressuscitado no qual nós também devemos crer, mas, sem o “terem visto” (20,29).

Feridas e paz, são duas coisas que parecem opostas. Como é possível ter feridas e estar em paz? Que paz é essa? A paz que Jesus deseja aos discípulos não é a da morte, do silêncio e da escuridão do túmulo, onde acabam todas as batalhas de todos os seres humanos. É aquela que, com a ressurreição, torna-se o grande anúncio pascal de vitória e de vida nova. Isso é possível porque as feridas de Jesus não são só as consequências dramáticas de uma morte terrível, de um sofrimento desumano, lá na cruz, no meio dos insultos e zombarias dos que passavam. Elas são os sinais daquela luta que Jesus travou, ao longo de toda a sua vida, contra todo tipo de mal e de pecado que nos afastam de Deus, Pai amoroso, e, com isso, impedem-nos de sermos o que todos deveríamos ser: imagem e semelhança dele.

No evangelho de João essa “luta” do bem contra o mal é apresentada de muitas formas. São as trevas que não querem acolher a luz (Jo 1,5). É a cegueira de quem não quer ver por que pensa que já sabe tudo (Jo 9,41). É a frieza de uma lei que julga cruelmente e é aplicada sem compaixão e misericórdia (Jo 8,11). É a recusa da verdade por parte de quem segue o “pai da mentira” (Jo 8,44). São os “ladrões e assaltantes” que as ovelhas não escutam ou os “mercenários” que fogem quando deveriam defendê-las dos lobos (Jo 10,8.12). É a inveja que sela o “pacto da morte” (Jo 12,10-11). É a frieza e a corrupção do traidor (Jo 18,2). Tomé sabia o valor das feridas do Crucificado. Tinha acompanhado Jesus nos caminhos da Galileia, nas disputas com os doutores da Lei, nos desafios com os f ariseus, quando tinha curado em dia de sábado, no escândalo com os sacerdotes, quando tinha expulsado os vendilhões do Templo. Tudo, porém, tinha sido em vão. Aquelas feridas, aquela morte, foram, afinal, uma grande derrota. Tomé não confiou nos outros companheiros, talvez porque já tinha desistido de crer e esperar.

É a ele, como a nós, sempre incrédulos, desconfiados e cheios de perguntas, que Jesus oferece a sua paz e apresenta as suas feridas. A luta não foi em vão, algo novo e surpreendente aconteceu, uma vida nova e diferente começou. A vitória já começa quando começamos a lutar, quando não desistimos da verdade, do bem e do amor, quando reconhecemos que o caminho é longo, cansativo e que somos tentados de desistir. Contudo, não abandonamos o campo da batalha porque não tem outro planeta mais cômodo e outra humanidade mais tranquila. É aqui, no dia a dia, que decidimos de que lado jogamos, quem e o que defendemos, para que estamos dispostos a ficar feridos e até a doar a vida. Estamos dispostos a enormes sacrifícios e renúncias para ganhar mais dinheiro e prestígio. Entregamos a nossa liberdade, a nossa capacidade crítica e até a nossa c onsciência. Calamos para não ser cobrados, lavamos as mãos para não ser incomodados. A paz de Jesus é para quem tem feridas. As feridas de quem luta pela vida, seguindo Jesus “o profeta de todas as causas justas”.