Dom Pedro Conti

Muitas leis, nenhuma lei


A classe política está pagando pela sua falta de atenção na elaboração das leis que pretendem regulamentar o processo eleitoral. Assim, ao longo dos anos já fizemos dois Códigos Eleitorais, que ninguém cumpre e estão no rol daquelas leis de que os brasileiros dizem que “não pegou”, e milhares de dispositivos modificando-os. Resoluções, súmulas, portarias, jurisprudência se modificam mutuamente, criando um verdadeiro caos jurídico.

Começamos por ter para cada eleição uma resolução geral do TSE, que introduz dispositivos novos e novos procedimentos, impedindo que se consolidem na pratica e o exercício, em cada pleito, de normas estáveis. Quem mais lucra com isso são os “comentadores” desses dispositivos, que imediatamente publicam livros para explicar o que devia estar explicado pela lei.

Numa democracia constitucional, isto é, aquelas cujos direito e deveres estão expressos numa Carta Magna, o que primeiro devíamos buscar era a estabilidade das leis. Mas o que ocorre é outra coisa, sua instabilidade. Para dar um exemplo dessa febre legiferanda, basta citar que só resoluções do TSE (pasmem!) existem mais de 23 mil — para ser exato 23.527 é o último número que encontro — o que certamente levaria um candidato a passar a vida inteira lendo essas resoluções, deixando para concorrer a uma eleição qualquer que se realizasse no inferno.

Vivemos todo dia essas dificuldades. Nossa Constituição já tem 106 Emendas, que, com seus artigos, têm uma extensão superior à dos artigos da própria Constituição original. O que mais se pede e mais se exige são “reformas”, que têm sido demasiadas na área constitucional. E o que ocorre no mundo da legislação infraconstitucional?

Ninguém sabe por que ninguém é capaz de lê-las em sua totalidade. Quando presidente do Senado, cargo que ocupei quatro vezes, certa vez reclamei de uma Medida Provisória cuja ementa (a síntese que encabeça toda lei) ocupava toda a primeira página do avulso (publicação da matéria durante sua tramitação) e era toda dedicada as alterações que se fazia em leis anteriores. Mais ou menos assim: Ementa “Esta lei modifica o art. 5º da Lei no 5.567, que modifica o art. 3º § 3º, inciso IV, da Lei no 8.320, que por sua vez altera o art. 5º da Lei no…” e assim por diante, uma lei modificando outra, que modifica outra, que altera outras, o que impossibilita qualquer pessoa, mesmo que seja advogado ou jurista, de pesquisar só as leis que foram citadas na ementa e mesmo de saber o que verdadeiramente se deseja legislar. A verdade é que nossa legislação é totalmente casuísta.

Para que ninguém pense que estou só especulando, vou transcrever o caput do artigo 8º do Código Eleitoral como está reproduzido no site do Palácio do Planalto: “Art. 8º O Brasileiro nato que não se alistar até os 19 anos ou o naturalizado que não se alistar até um ano depois de adquirida a nacionalidade brasileira, (sic) incorrerá em multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o valor do salário-mínimo da região, imposta pelo juiz e cobrada no ato da inscrição eleitoral através de selo federal inutilizado no próprio requerimento. (Redação dada pela Lei no 4.961, de 1966) (Vide Lei no 5.337, 1967) (Vide Lei no 5.780, de 1972) (Vide Lei no 6.018, de 1974) (Vide Lei no 6.139, de 1976) (Vide Lei no 7.373, de 1985).” O site do TSE acrescenta resoluções, outras leis, portarias…

Mas meu testemunho é que os chamados “penduricalhos”, “jabutis”, “cacos” que são descobertos quando a lei é aplicada mostram apenas que ninguém lê a lei. Passa no Congresso sem a devida atenção. Muitas vezes reclamei disso e clamei da necessidade de se acabar com isso.

O que resulta é o que estamos vendo neste caso do julgamento do Lula. Os que defenderam uma lei que passou por cima de muitos direitos individuais, inclusive a coisa julgada, estão agora desdizendo o que disseram. É como dizem na França, parece que citando Montesquieu: “Beaucoup de lois, pas de loi.” Muitas leis, lei nenhuma.