José Sarney

Carnaval neles


O Brasil é o país do Carnaval! É a maneira de simplificar um julgamento maldoso sobre o país. Não sei se no conceito de festa ou no de bagunça.

O mundo globalizado passou a ser uma máquina de nivelamento de valores, em geral, de valores materiais. A cultura, que Houaiss chamava de canônica, erudita, dos países não incluídos no rol dos ricos é invadida e tende a desaparecer na concorrência com os enlatados, os best sellers, as misturas de sexo, violência, temperos de exóticas passagens históricas, sucesso, ritmos alucinantes, teatro, dança e todas as manifestações culturais mundializadas. São obras produzidas, e não criadas. O talento individual cede às empresas impessoalizadas que vendem arte e literatura acopladas às engrenagens do oligopólio da propaganda e daqueles que comandam a opinião na imprensa, na televisão, na Internet. Nesse terreno, não é difícil identificar uma relação estreita entre negócio e cultura.

Como fugir? Como sair desse universo sugador de identidades? Não é fácil. As elites são logo absorvidas e cooptadas. A única área que resiste à globalização é a da cultura popular. Esta, como não tem acesso maciço aos instrumentos que fazem usufruir o gosto dos enlatados, defende-se como pode com o escudo dos seus valores.

O Carnaval, como cultura popular, faz parte de uma identidade nacional que nos afirma. Preserva valores, costumes, folclore, dança, história, música e passa a ser fonte de inspiração para a criatividade e o talento nacionais. É uma das mais importantes vertentes da identidade do Brasil e dá sustentação a uma maneira particular de ser brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda falou do brasileiro cordial; eu acrescento o brasileiro alegre, a cultura da alegria, do sorrir, de exaltar e desfrutar a graça da vida.

Quando visitei Cabo Verde, em companhia de Jorge Amado, vi na ilha de São Vicente uma multidão cantando e dançando, em ritmos vivos, com cores alegres, gingados corporais e sensuais, explorando a liberdade do corpo. Ao ver essa demonstração popular, disse: “Jorge, olha de onde veio a alegria do povo brasileiro: da África”. O forte sangue negro mesclou-se ao do índio e ao do branco, mas dominou a todos. Criou, na mestiçagem, não uma nova raça, mas um povo com essa identidade. A força da alegria invadiu e converteu os mais sombrios e tristes europeus que aqui se misturaram. Até os que chegam na circunstância de alguns dias de Carnaval entram no clima e, desengonçados, caricaturam o que é esse jeito brasileiro.

A cultura da alegria é, assim, um grande patrimônio do país que se comunica, também, com a cultura do futebol, da praia, do botequim, do sincretismo religioso. Fala-se muito no custo Brasil como impeditivo da concorrência globalizada.

Galbraith dizia que o que deve valer para o ser humano não é a quantidade de seus bens, mas a qualidade de sua vida.

E, no Carnaval, o povo brasileiro liberta-se de todos os seus problemas e desníveis, mergulhado numa pura alegria de viver. Não há raça nem religião nem status social, todos vivem a utopia da igualdade na folia e no jeito Brasil. Até mesmo nas lágrimas de despedida ao som do zé-pereira na noite de terça-feira.
Em tempo de globalização, Carnaval neles!