José Sarney

Uma tarde de tédio


Em 1957, a “Tribuna da Imprensa”, depois da sessão da Câmara dos Deputados, era o lugar em que nos reuníamos para saber as maldades que o jornal soltaria no dia seguinte contra Juscelino. Odylo Costa, filho, o grande renovador da imprensa brasileira, era o secretário. Carlos Castelo Branco, articulista, já incorporara o título de mestre. Carlos Lacerda era dono e ícone, o santo guerreiro para uns, o demônio, a fera do Lavradio, o Corvo, e tudo o mais para aqueles que eram alvo de sua pena de fogo.

Carlos Lacerda chegava à redação e, nos seus dias “inspirados”, quase não cumprimentava ninguém. Com espalhafatosa força batia o teclado da máquina de escrever, que, resistente, sobrevivia ao seu talento.

Era o velho panfletário que sabia descobrir nos fatos conspirações difíceis de desvendar e que ele, na sua genialidade, transformava em denúncias. Ninguém tão sedutor quando, de bom humor, queria agradar, e ninguém mais perigoso, violento, agressivo, intolerante quando possuído da ira santa da agressão. A UDN tinha com ele uma cumplicidade medrosa. Era o ídolo e o verdugo. A história passava pelos homens, tinha contorções e remexia as entranhas do Brasil.

Foi num dia desses que, para nossa perplexidade, Carlos Lacerda anunciou: “Vou escrever, hoje, sobre a Sociedade Protetora dos Animais”. Entreolhamo-nos intrigados. Ele completou: “A situação está tão confusa e eu tão desolado que não tenho outro assunto senão os animais”. E, no dia seguinte, os udenistas atônitos leram a “Tribuna da Imprensa”. No lugar do artigo furioso do Carlos Lacerda encontraram uma dissertação amena sobre a nossa obrigação de defender os bichos. As interpretações foram as mais disparatadas. Uns viam uma sátira e buscavam carapuças; outros, uma mensagem cifrada aos golpistas que pululavam na cena política. Nada além do que uma tarde de tédio do grande jornalista. Um interlúdio para fazer pensar.

Recordo o fato e descubro, no redemoinho de tantos assuntos, como deixamos escapar, em certos instantes, o gosto de falar de coisas tão simbólicas como, agora, a chuva de estrelas, esses restos da Criação que estão fazendo brilhar o céu de nossas noites, legados do cometa Tempel-Tuttle, que, sonolento, cumpre sua órbita de 33 em 33 anos, raspando nossa atmosfera. E pensar que os antigos não sabiam disso e eram mais felizes do que nós, porque viam nas estrelas bons augúrios dos deuses e maravilhas dos mistérios.

Nós, envolvidos na tragédia do desemprego, na miséria das desigualdades sociais, não pensamos na bobagem de Robinson Crusoé, querendo sair daquela ilha do Pacífico, com Sexta-Feira e tudo, esperando navios que não chegavam. Ele não sabia que ali estava o tesouro que Francis Drake enterrou. Como todos os piratas ingleses, Drake tornou-se sir, um dia saqueou Cartagena de Índias e derrubou com um tiro de canhão a torre da igreja, para ser lembrado.

Felizmente há, hoje, boas notícias. Na mesma Inglaterra da Terceira Via, proibiram-se experiências científicas de uso de colírio nos olhos dos ratos e de cremes de beleza no focinho dos porcos.