Pe. Claudio Pighin

Deus do meu louvor, não fique calado!


O salmo 108 das Sagradas Escrituras é “o salmo-maldição”, “uma ladainha de imprecações”, “um poema mais estranho e discutido do Saltério” e se diz também “que seria melhor tira-lo do Saltério”. É um salmo debatido pelos exegetas cristãos, estudiosos das Sagradas Escrituras. Também o Concilio Vaticano II cancelou este salmo da lista do Saltério Litúrgico. Parece um salmo não tão fácil para se entender. Leia atentamente:

“Ó Deus de meu louvor, não fiqueis insensível, porque contra mim se abriu boca ímpia e pérfida. Falaram-me com palavras mentirosas, com discursos odiosos me envolveram; e sem motivo me atacaram. Em resposta ao meu afeto me acusaram. Eu, porém, orava. Pagaram-me o bem com o mal, e o amor com o ódio. Suscitai contra ele um ímpio, levante-se à sua direita um acusador. Quando o julgarem, saia condenado, e sem efeito o seu recurso. Sejam abreviados os seus dias, tome outro o seu encargo. Fiquem órfãos os seus filhos, e viúva a sua esposa. Andem errantes e mendigos os seus filhos, expulsos de suas casas devastadas. Arrebate o credor todos os seus bens, estrangeiros pilhem o fruto de seu trabalho. Ninguém lhes tenha misericórdia, nem haja quem se condoa de seus órfãos. Exterminada seja a sua descendência, extinga-se o seu nome desde a segunda geração. Conserve o Senhor a lembrança da culpa de seus pais, jamais se apague o pecado de sua mãe. Deus os tenha sempre presentes na memória, e risque-se da terra a sua lembrança, porque jamais pensou em ter misericórdia, mas perseguiu o pobre e desvalido e teve ódio mortal ao homem de coração abatido. Amou a maldição: que ela caia sobre ele! Recusou a bênção: que ela o abandone! Seja coberto de maldição como de um manto, que ela penetre em suas entranhas como água e se infiltre em seus ossos como óleo. Seja-lhe como a veste que o cobre, como um cinto que o cinja para sempre. Esta, a paga do Senhor àqueles que me acusam e que só dizem mal de mim. Mas vós, Senhor Deus, tratai-me segundo a honra de vosso nome. Salvai-me em nome de vossa benigna misericórdia, porque sou pobre e miserável; trago, dentro de mim, um coração ferido. Vou-me extinguindo como a sombra da tarde que declina, sou levado para longe como o gafanhoto. Vacilam-me os joelhos à força de jejuar, e meu corpo se definha de magreza. Fizeram-me objeto de escárnio, abanam a cabeça ao me ver. Ajudai-me, Senhor, meu Deus. Salvai-me segundo a vossa misericórdia. Que reconheçam aqui a vossa mão, e saibam que fostes vós que assim fizestes. Enquanto amaldiçoam, abençoai-me. Sejam confundidos os que se insurgem contra mim, e que vosso servo seja cumulado de alegria. Cubram-se de ignomínia meus detratores, e envolvam-se de vergonha como de um manto. Celebrarei altamente o Senhor, e o louvarei em meio à multidão, porque ele se pôs à direita do pobre, para o salvar dos que o condenam.”

Este salmo é, na verdade, o testemunho da encarnação da palavra de Deus nas vibrações e emoções humanas dos conflitos e ações de desespero. Aqui é descrita uma forte lamentação de um fiel inocente perante ao tribunal supremo de Deus, no Templo, porque é perseguido e caluniado. Nesta intercessão, manifesta-se a maldição que se preenche de vinte imprecações. Em que consiste tudo isso? O acusado pede a Deus para que essas calúnias e perseguições recaiam todas sobre os seus adversários de modo que possa resplandecer a sua inocência. Um salmo carregado de vingança e de humores primitivos. Perante a constatação que parece um Deus mudo e de outro lado os maus que ameaçam a vida dos justos, a reação do autor dessa oração é confiar em Deus que os condene severamente.

Para compreender esse tipo de salmo bem ‘vingativo’ é necessário recorrer à estrutura do estilo semita que é ligada à exasperação dos sentimentos e da mesma linguagem simbólica. Não se deve ignorar que as maldições, como se encontram nos rituais mesopotâmicos, pertencem a estereótipos rituais e de cultos ligados, entre tantos, a juízos de Deus. A palavra aqui se torna força de reclamação e também confiança na intervenção de Deus. Além do mais, por trás dos inimigos se esconde uma personificação do mal na sociedade.

Assim sendo, a imprecação contra o mal é uma maneira de participar da luta contra o mal até no fim dos tempos. Vale a pena acrescentar aqui também aquela teoria retribuída que é vista como uma forma de justiça distribuída a todos. E enfim se deve ainda considerar a encarnação da palavra de Deus na vida histórica e cultural do ser humano para transforma-lo e enriquece-lo. Portanto, somos convidados a discernir nessa progressão escatológica da Revelação que nos leva para o eterno e a paz.