Dom Pedro Conti

A alma e o corpo


O príncipe Tavir colocou como vigias do seu belíssimo pomar um cego e um coxo. O cego, com o seu ouvido apurado, devia gritar ao mais leve rumor. O coxo devia sempre estar vigilante para surpreender qualquer intruso. Os dois deviam guardar, com todo cuidado, os frutos preciosos de uma ameixeira. O príncipe pensava: – Não serei roubado. O cego não pode ver os frutos maduros e o coxo não os poderá alcançar.

Durante as horas de vigília, porém, o coxo descreveu a delícia dos frutos maduros e se queixava de não poder apanhá-los. Logo, o cego encontrou a solução. Disse ao coxo para se arrastar até subir nas suas costas e, guiado por ele, colocou-se aos pés da árvore. Juntos, comeram muitas frutas. O príncipe não demorou a descobrir o roubo, mas os dois, cada um apresentando a própria deficiência, declararam-se inocentes. Intrigado, o príncipe não desistiu e resolveu fazer um teste: mandou dois guardas colocar o coxo nas cost as do cego e desmascarou o truque dos ladrões. De imediato, ordenou que fosse dada uma surra nos dois, juntos, pois haviam agido dessa maneira.

Assim, no Dia do Juízo, a alma dirá para justificar os seus erros: “Só o corpo é culpado; só ele cometeu o pecado. Quando nasci, voava puríssima como um pássaro”. O corpo, também, com medo do castigo dirá: “Senhor! Só a alma é culpada; nada fiz. Como eu poderia cair no erro se a alma não me animasse para isso?”. E Deus, supremo juiz, colocará de novo a alma dentro do corpo e dirá: “Eis como haveis pecado. E assim também será feita justiça”.

O que vale para o mal, vale, igualmente, para o bem. Na festa de Todos os Santos e Santas lembramos seus exemplos, assim como reavivamos o chamado de todos nós, batizados, à santidade. É muito importante entender que também os que a Igreja nos propõe como modelos de santidade, foram seres humanos como nós, não foram “anjos”, puros espíritos ou almas desencarnadas. Foram pessoas bem concretas e viveram numa época bem precisa. Fizeram tantas coisas boas dentro das condições e limitações humanas, no tempo que passaram neste mund o terreno e material. Tiveram fome e sede, precisaram descansar, adoeceram e morreram, como todos. Lutaram e venceram tentações. Tiveram fraquezas, momentos de desânimo, decepções e dúvidas. Para todos, o caminho da santidade foi trilhado aos poucos. Nas quedas, levantaram. Nos sucessos, continuaram humildes. Nunca desistiram, foram fieis até o fim. Todos tiveram “defeitos”. Alguns tiveram mesmo deficiências físicas, corporais. Também questões psicológicas e temperamentais devem ser levadas em conta. Tudo isso, porém, não foi empecilho para a santidade. Ao contrário, muitos se santificaram apesar desses defeitos ou na superação dessas limitações. Para alguns, o corpo foi “o irmão asno”, uma prisão da qual, às vezes, pediam para serem libertos. Para outros, apesar de tudo, foi o instrumento indispens&aa cute;vel para abrir novos caminhos na missão evangelizadora, no saber, na busca da verdade, para irem ao encontro de quem ainda não conhecia Jesus Cristo. Para todos, a vida foi material e espiritual ao mesmo tempo. Uma vida só. Bem-aventurados, alegres, felizes, por servir a Deus e aos pobres.

É muito bom perceber os Santos e as Santas mais parecidos conosco para acreditar que a santidade é possível. Do jeito que viemos ao mundo, no momento histórico, no pais, no meio das transformações de uma época, sem medo de viver o mesmo Evangelho dos primeiros chamados, dos mártires, dos Santos e Santas, grandes e pequenos, homens e mulheres, casados e solteiros, virgens, pais e mães. Não existe um modelo pré-determinado de santidade. Cada um deve encontrar o seu caminho seguindo os passos de Jesus do Natal até a Páscoa, olhando a Maria Santíssima, aprendendo com os que nos precederam. Desculpas? Só para quem acha inútil fazer o bem, ser bons, perdoar, amar. Mas, nesse caso, é o sentido da vida que está em jogo, não somente a santidade.