José Sarney

Morte e Vida de Deus

 

“Nosso tempo só pode ser interpretado à luz da Sexta-Feira Santa. Estamos mergulhados num imenso vazio, entre a morte de Deus e a esperança de Sua ressurreição”. Estas são palavras do poeta Pierre Emmanuel, da Academia Francesa.

  1. Paulo já doutrinava que, sem a ressurreição, não existe cristianismo, e João Paulo II (S. João Paulo II) repetiu muitas vezes, inclusive no Brasil, na imagem de que muitos queriam Cristo sem a cruz e outros, a cruz sem Cristo, na análise das cobranças entre o espiritual e o temporal na missão da Igreja.

A grande revelação do cristianismo está contida na ressurreição. O homem vendo finalmente a face de Deus e, na vida, liberto da angústia, da lei do “olho por olho e dente por dente”, vivendo a bondade, perdoando a todos e a tudo, sem ódio e sem medo, o homem bom, cristão, encontraria a essência da vida: a paz interior.

Dois mil anos depois, o cristianismo não alcançou transformar o homem, ainda prisioneiro da violência, do pecado, como síntese de toda a escravidão, do corpo e da alma.

O autor mais lido da Humanidade é o Cristo. Um homem que não escreveu nada, ao que se sabe, apenas algumas palavras na areia. Contudo, a força de sua doutrina desencadeou uma revolução na História do mundo pela palavra. Ele revelou, num tempo de escravos e senhores, de uma sociedade perdida pela divisão de castas, condições e submissões, uma verdade simples: a de que todos somos irmãos, todos iguais, todos filhos de Deus e todos destinados à salvação. Ele nos ensinou a buscar a Paz interior. Não a ausência da guerra, mas a presença da Paz dentro de nós mesmos, sem nada a cobrar, sem ressentimentos, sem a desgraça que não passa, corroendo o corpo e a alma pela escravidão da maldade.

Cristo nos ensinou a perdoar e nos assegurou o caminho da salvação: encontrar a felicidade na certeza de que o homem tem um destino transcendental. “O fim sem fim do começo de tudo”, como afirmava o padre Vieira.

A Igreja tem buscado, ao longo dos séculos, acrescentar caminhos, descobrir outras mensagens na Mensagem primeira do cristianismo. Tudo é necessário, mas a força maior que chegou até nós, e se prolongará até o século dos séculos, é aquela que nasceu na Igreja das catacumbas: a revelação do próprio Cristo.

A missão social da Igreja passou a preocupar a própria Igreja a partir da Revolução Francesa, quando surgiu a expressão democracia cristã. A identidade católica devia ser a base de uma sociedade democrática.

As pressões amadureceram e tomaram corpo na doutrina, com o correr dos tempos, na Rerum Novarum. A Graves Communi limitava a visão social, terreno da caridade (1901). Muitas outras encíclicas vieram. Mater et Magister (1961), Pacem in Terris (1963), os documentos do Concílio Vaticano 2º (1965), a Populorum Progressio (1967), Evangelii Nuntiandi (1975) de Paulo 6º, passando pela Laborem Exercens até a carta de João Paulo II à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a excelente Laudato Si’, de Francisco, sobre meio ambiente, hoje no seu aniversário de dez anos. A CNBB deflagrou a Campanha da Fraternidade neste ano optando pelo tema “Fraternidade e Ecologia Integral”, invocando o Livro dos Gênesis para lembrar que, quando fez a Terra, “Deus viu que tudo era muito bom”.

Hoje se discute a relação entre Igreja e partidos políticos. Seria a doutrina social cristã a terceira linha entre socialismo e capitalismo? E, com o desmoronamento do socialismo de Estado, há uma convergência entre democracia cristã e social-democracia. Como a Igreja deve se comportar neste instante em que as estatísticas apontam o crescimento do ateísmo, a invasão das seitas e a onda do materialismo científico, que volta ao tema da morte de Deus?

Hegel falou, em 1802, numa “Sexta-feira Santa especulativa”, anunciando a descoberta da morte de Deus. Nietszche assumiu a autoria desse assassinato: “Deus morreu. Nós o matamos.” Assim também pensaram Marx e Freud. Mas nunca esteve tão vivo e nós precisando tanto Dele.

Está vivo! A Sexta-Feira Santa é não o dia da Sua morte, porque Deus não morre: é o Dia da Ressurreição.

Esta Sexta Santa de hoje nos convida a meditar e ouvir os exemplos da Paixão. É Cristo amando os homens até o fim, como afirma S. João e, neste Amor Maior, a Eternidade que se começa a ver pelos olhos daquelas Marias — Maria Madalena, Maria Salomé e Maria de Cléofas —, que de madrugada olhavam o Santo Sepulcro: estava vazio.

O Anjo lhes disse: Non est hic. Ibi est. (Não está aqui. Está LÁ = no Céu)

 

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O carvalho e a couve

 

Nós, brasileiros, temos o hábito de cultivar o pessimismo em relação ao nosso País. O nosso olhar é um pouco o de ver a árvore, e não a floresta, como no apólogo que Rui Barbosa invocou quando discutia uma lei de anistia: ele citou a diferença entre plantar couve e plantar carvalhos e concluiu: nós gostamos sempre de olhar a couve sem ver os carvalhos.

Quero fazer uma reflexão sobre a satisfação e a alegria de ser brasileiro, alegria de termos construído uma sociedade de convivência sem problemas de fronteira, que o Barão do Rio Branco resolveu no princípio do século; de religião, pois temos no Brasil liberdade de consciência e, sobretudo, convivência entre crenças e convicções; de raça, pois aprendemos a não ter preconceitos raciais e a conviver com alegria. De tal sorte que dizia Gilberto Amado ser a expressão carinhosa que usamos em relação a uma mulher de qualquer cor “ó, minha neguinha” uma referência a uma mulher linda e inteligente, por quem temos admiração, afeto, carinho e amor.

Agora quando estamos comemorando 40 anos de Democracia, é necessário deixar de ver somente a couve.

Estou escrevendo sobre esse assunto porque li que um membro da esquerda radical, do Grupo dos Autênticos, que era muito atuante no tempo em que iniciamos a Redemocratização do País, disse que a posição da esquerda radical era a de que a Transição fora inconclusa. Essa opinião estava baseada na percepção deles de que a transição fora um pacto das elites, porque absorvera os militares.

A couve, nessa visão, seria a Transição por negociação e pelo diálogo entre todas as correntes, e não pela outra fórmula. Nosso objetivo era a Democracia e, com ela, a liberdade, a saída do regime autoritário. Eles pensavam numa revolta dentro das Forças Armadas, tomando os militares a iniciativa de entregar o poder. A outra era uma guerra civil, o que implicaria no derramamento de sangue. Nunca em nossa História fizemos essa opção.

Nossa transição foi considerada a mais exitosa de todas, justamente porque abrangeu os militares, que voltaram aos quartéis e tinham, em grande parte, a visão de que chegara a hora de transmitir o poder aos civis.

Uma vez em conversa com Ulysses Guimarães, ele me pedia que punisse, como um sinal, um chefe militar. Eu lhe respondi: Ulysses, não ganhamos pelas armas, mas, sim, por um processo de engenharia política conduzida por você, Tancredo e por mim, com a participação do Aureliano, Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Petronio Portela, Leonidas Pires Gonçalves e muitos outros. Por uma vitória armada, não teríamos jamais a volta da Democracia. A única tentativa que tivemos nessa direção foi a Guerrilha do Araguaia, que deu argumento aos militares de que estavam prontos a destruir, pela luta armada, qualquer enfrentamento ao regime.

Entre os momentos mais difíceis, e talvez o mais importante, no processo de negociação da Transição Democrática, há 40 anos, foi a negociação da anistia com a área militar e com os políticos da ultraesquerda, que se fixavam mais na extinção do Colégio Eleitoral.

Aos pessimistas, que estão muito presentes, tenho a pedir-lhes que examinem os carvalhos que foram plantados, porque as couves têm um período muito curto de vida.

Somos uma Democracia de massa, a sétima economia do mundo, o que por si só afirma a grandeza do nosso País. Instalamos um Estado Social de Direito em que o lado social obteve muitas conquistas, como a liberdade sindical, com a anistia que concedi a todos os líderes que estavam na clandestinidade e chegamos aos 100 anos da República com um operário Presidente, motivo de orgulho e uma marca histórica por ter vindo justamente da classe de trabalhadores, o que mostra a força das instituições brasileiras e seu amadurecimento.

O Brasil é um País de oportunidades, aberto a todas as classes, que podem ascender em qualquer segmento da sociedade.

Não devemos, assim, nos fixar nos aspectos negativos e olhar os positivos, que ultrapassam os negativos. Os erros serão corrigidos, e o que ocorre em nossas vidas é fruto do processo de desenvolvimento e da rotina de todas as nações do mundo.

Vamos olhar o carvalho. Deixar a couve para o almoço.

 

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OAB celebra trajetória de José Sarney

 

Com informações da assessoria

 

Ao reconhecer o papel histórico de José Sarney na redemocratização do país, o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, entregou ao advogado e ex-presidente da República a Medalha Raymundo Faoro, dedicada a quem tem o compromisso com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais da cidadania. A homenagem ocorreu durante a sessão ordinária do Conselho Pleno, nesta segunda-feira (7/4), na OAB-DF.

 

“No marco dos 40 anos do mais longo período democrático da República, esta homenagem celebra quem inaugurou esse novo ciclo na história nacional. Ao homenageá-lo, a OAB presta um tributo a quem liderou o Brasil em um dos momentos mais sensíveis de sua vida republicana”, disse Simonetti.

 

O presidente da entidade explicou que a concessão da comenda expressa, ao mesmo tempo, reconhecimento e memória. “Reconhecimento por sua liderança na reconstrução democrática do Brasil. Memória, porque sua presença é indissociável da narrativa constitucional do país”, pontuou, lembrando aos presentes que coube ao presidente Sarney conduzir a transição democrática, convocar a Assembleia Nacional Constituinte e garantir, “com coragem e equilíbrio”, a promulgação da Constituição de 1988.

 

Na ocasião, Beto Simonetti lembrou da atuação de Sarney marcada pela escuta, pela moderação e pelo compromisso com as instituições. “Uma liderança que compreendeu o papel do Direito na reconstrução da República e o valor da estabilidade institucional como pilar da liberdade e do avanço social. Ao longo de décadas, demonstrou profundo respeito à advocacia, com reconhecimento efetivo do papel da classe na consolidação do Estado Democrático de Direito”, destacou Simonetti.

 

Natureza constitucional

Às vésperas de completar 95 anos, Sarney, que também é advogado, afirmou que a OAB tem mantido sua tradição, coragem, bravura e a sua importância no cenário nacional. “E hoje, de maneira singular, talvez seja no mundo a única sociedade que tenha o status de natureza constitucional”, apontou o homenageado.

 

Sarney afirmou que Beto Simonetti tem a mesma grandeza dos ex-presidentes da entidade Raymundo Faoro, que dá nome à comenda, e Marcus Vinicius Furtado Coêlho, a quem exaltou. “No STF [Supremo Tribunal Federal], no STJ [Superior Tribunal de Justiça], e em todos os eventos que nos encontramos, Simonetti tem mantido a independência e a coragem de Rui Barbosa, dizendo as coisas que devem ser ditas”, elogiou.

 

Prerrogativas da advocacia

O procurador constitucional, presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais e membro honorário vitalício da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, iniciou a homenagem destacando que Sarney é uma das mais emblemáticas figuras da vida política institucional brasileira. “José Sarney é um homem que se confunde com a história recente do Brasil. Parlamentar de vocação rara, intelectual de pena refinada, homem público de espírito democrático, coube a ele a complexa missão de liderar o país em um dos momentos mais delicados e determinantes de nossa história, a transição da ditadura para democracia. Naquela quadra histórica, marcada por expectativas, temores e esperanças, Sarney assumiu a Presidência da República após o falecimento de Tancredo Neves. O fez com sobriedade, serenidade e profundo respeito à nova ordem democrática que se formava. Em seu governo, consolidaram-se as bases da redemocratização, com a reinstalação das liberdades civis e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte”, disse.

 

Na ocasião, Coêlho elencou a importância da atuação de Sarney para a advocacia, tanto quando ocupou a Presidência da República (1985-1990) quanto o Senado Federal. “Compreendeu, como poucos, que o Estado Democrático de Direito se faz com fortalecimento das instituições, com respeito às garantias fundamentais e com a valorização dos profissionais que possuem a Justiça como ofício. Nesse contexto, foi incansável na defesa da advocacia e de suas prerrogativas. Como senador, protagonizou importantes batalhas em defesa do livre exercício da profissão do advogado como voz de cidadão. Em momentos decisivo, ergueu a sua palavra com lucidez em favor da imunidade do exercício da profissão do advogado e da inviolabilidade dos escritórios de advocacia, marco histórico na proteção das prerrogativas”, ressaltou o ex-presidente da OAB Nacional, lembrando, ainda, sua importante contribuição para a elaboração do Código de Processo Civil (CPC).

 

José Sarney também foi governador do Maranhão (1966-1970) e deputado federal (1955-1966).

A solenidade foi prestigiada pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Herman Benjamin; o ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca; o ex-senador Edison Lobão; a diretoria da OAB; presidentes das seccionais da Ordem; conselheiros federais; desembargadores federais; entre outras autoridades.

 

Honraria

Criada em 2008, a Medalha Raymundo Faoro é a mais alta distinção concedida pela advocacia brasileira com o propósito de distinguir personalidades cuja atuação pública se destaca pelo compromisso com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais da cidadania, valores que moldam a história da OAB.

 

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Liberdade de Imprensa

 

A liberdade de imprensa passou a ser um ponto alto para a existência da Democracia. Nasceu da visão extraordinária de um homem público, um dos fundadores e pensadores maiores da independência dos Estados Unidos da América, Thomas Jefferson.

Quando a constituição americana foi elaborada — feita em 1789, subsiste há mais de 200 anos —, prescreveu em sua primeira emenda, extraída do Bill of Rights, ser a liberdade de imprensa essencial à democracia, pois, uma vez que os deputados tinham imunidade parlamentar, era necessário que o povo também tivesse liberdade para que pudessem dizer o que quisessem, ou seja, criticar o governo como um direito inalienável e básico para o funcionamento do regime democrático.

Assim, o povo teve na imprensa o seu grande instrumento para vigiar a democracia, exercendo livremente a liberdade de manifestar sua opinião. Isso fez com que naquele tempo a liberdade de imprensa fosse exercida livremente nos jornais impressos, em prelos de madeira, e hoje se tornou — com a expansão possibilitada pela tecnologia e o desenvolvimento das mídias, abrangendo imprensa, televisão, rádio e todos os instrumentos que a internet hoje possibilita — não mais como uma manifestação coletiva, mas como um direito individual exercido em blogs, Whatsapp, sites, vlogs, entre outros — e não sabemos até onde no futuro alcançará essa expansão.

Eu tenho muito respeito pela imprensa e pela mídia em geral, pois estudioso de sua liberdade. Tive oportunidade que o destino me deu de exercer, como jornalista, todos os escalões de sua estrutura. Comecei em O Imparcial, no Maranhão. Fui o chamado “Foca”, experiência que vivi durante dois anos, visitando as delegacias de polícia, todos os dias e, ao percorrê-las, pinçar os fatos criminais ali registrados e, através desse registro, procurar vítimas e autores para abastecer nossas redações. Depois, por avaliação interna, fui repórter de redação, nomenclatura essa que desapareceu, chegando a secretário de redação. Através do jornalismo, pude exercer minha vocação intelectual e literária.

Por iniciativa minha, o jornal criou seu suplemento literário, onde eu podia também exercer minha vocação literária, publicando crônicas, rodapés de críticas, poesias, dando apoio ao movimento chamado “neomodernista”, que então surgia, depois de 1945 nos Estados brasileiros, significativamente, em suplementos literários. Esse movimento desejava ser a continuidade da Semana de Arte Moderna de 1922, o grande movimento literário. Correspondíamos com todos: no Rio Grande do Sul, com a Revista Quixote, vamos fazer barbaridade, editada por Raimundo Faoro, que depois veio a ser o grande jurista referência nacional e um dos lutadores contra o regime autoritário. No Rio de Janeiro, Ledo Ivo, que também chegou à Academia, com a revista Branca.

Eles seguiam, no Ceará, no Correio do Ceará e depois nas revistas Clã; no Paraná, Joaquim; na Região, em Pernambuco, por iniciativa de Edson Régis e no Diário de Pernambuco, cujo suplemento era coordenado por Mauro Mota, também grande poeta, membro da Academia Brasileira de Letras — tive a honra de ser votado por ele quando fui escolhido para aquela Casa, na vaga de José Américo de Almeida, cadeira 38, sendo hoje o decano da própria Academia. No Maranhão, Tribuzzi, Lago Burnett, Carlos Madeira (que chegou a ministro do Supremo Tribunal Federal), Luci Teixeira, eu, e um grupo de pintores, formado por Floriano Teixeira, que depois mudou-se para a Bahia, onde foi ilustrador dos livros de Jorge Amado; Almeida, Paiva e todo o grupo de jovens intelectuais que se reuniam na Movelaria Guanabara, em São Luís. Esse grupo também pensava que o Maranhão não podia ficar somente na área literária, mas teria que romper o atraso em que se encontrava, cabendo, por minha personalidade política, ser o líder dessa vertente, que me levou à Presidência da República.

A imprensa livre, por consequência, a mídia e todos os meios de comunicação, têm um poder criativo que pode, a qualquer tempo, retificar, fazer uma releitura, como eu já disse, dos seus excessos. O coração da Democracia é a liberdade: a liberdade de opinião como o coração da Democracia.

 

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A liberdade abriu as asas

 

Nessas comemorações dos 40 anos da Democracia no Brasil, devemos fazer algumas reflexões. Otávio Mangabeira dizia que a Democracia é uma plantinha tenra que necessita ser irrigada e vigiada todos os dias. Já nós, ao tempo da União Democrática Nacional – UDN, no combate à ditadura Vargas, tínhamos como lema que “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.

Assim, quando todos nós, em uníssono, no País inteiro, comemoramos a liberdade que conseguimos implantar, devemos ter em mira que ela necessita de ser vigiada, adubada, protegida, até que se torne uma consciência individual, de cada cidadão de nosso País, sabendo que goza dos direitos que tem por causa do regime democrático.

Se não fosse a transição democrática, o operário Lula da Silva não teria sido jamais Presidente do Brasil. Ele o foi, e é, graças ao regime democrático. E a ele devemos um governo dos trabalhadores de grandes avanços.

Assim como tenho a alegria de ver a Democracia reconhecida e proclamada neste mês, tenho a responsabilidade também pessoal de defendê-la. Repito uma vez mais: em minhas mãos o Brasil passou de um estado de exceção para um Estado Democrático de Direito. Uma transição pacífica.

O Brasil tem uma longa tradição de crises. Testemunhei muitas delas, estudei com atenção as outras. A maior parte foram crises que não envolviam as instituições. Mas algumas as envolviam, e o Brasil pagou caro por elas.

Alto foi o preço da crise de 1823, que fechou a nossa primeira Constituinte — ao afastar José Bonifácio, o novo País recusou solução para os problemas da escravidão, da reforma agrária, da questão indígena, da educação. Alto foi o preço de 1831, pago durante as regências. Alto foi o preço de não se ter feito a abolição com a incorporação dos escravos e seus descendentes à sociedade — ainda o estamos pagando. Alto foi o preço de termos feito a República por um golpe militar e a mantermos pela fraude eleitoral por quase quarenta anos. Alto foi o preço do golpe de 1930, que nos levou a quinze anos de um projeto pessoal. Alto foi o preço da crise de 1961, que nos afastou do parlamentarismo ao usá-lo para tolher o mandato do Presidente da República. Alto foi o preço de 1964, com vinte anos de regime militar.

Fui o Presidente, repito, que conduziu a transição para a democracia. E ela se realizou completamente com a votação da Constituição de 1988 — e fui o primeiro a jurá-la.

Tenho a convicção de que nossas instituições estão fortes e capazes de enfrentar qualquer ataque, como já o fez, por duas vezes, com os dois impeachments que tivemos; e de superar os acontecimentos de 8 de janeiro, que não se completaram graças à atuação das Forças Armadas, que repeliram esses fatos, numa demonstração de que as Forças voltaram aos quartéis e estão a serviço da Pátria, para manter o regime democrático dentro da lei e da ordem, na forma da Constituição, que é guardada, em um dos seus dispositivos principais, pela Justiça, sob a égide do Supremo Tribunal Federal.

Sem instituições fortes, não há Democracia forte. E sem Parlamento, não há Democracia, que, ao representar o povo, talvez seja o coração dela.

Portanto, deve fazer parte dos nossos compromissos a comemoração do regime de que desfrutamos e o juramento de defender a liberdade com eterna vigilância, sem jamais permitir qualquer ofensa; em caso de ataque, que seja repelido com força e caráter por todos nós.

Tancredo morreu pela liberdade e, em sua memória, renovamos o compromisso de dedicar nossas vidas a sua defesa: a Democracia chegou e é irreversível.

Democracia é liberdade. E esta tem um poder criativo capaz de se estender por uma grande capilaridade a toda a sociedade, que desfruta de direitos e deveres como cidadão habitante de um país em que se vive em absoluto Estado de Direito.

A Transição trouxe a liberdade. E a liberdade abriu as asas sobre nós.

 

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Um Presidente Emotivo

 

Fiquei profundamente emocionado no Senado e na Câmara dos Deputados quando comemoramos os 40 Anos de Democracia no Brasil. Recordei que, aos 25 anos, no Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, onde funcionava a Câmara dos Deputados, eu jurava, pela primeira vez na vida, cumprir os deveres do mandato, de defender a Constituição e as leis do País. Depois, por mais uma vez no Rio, em 1959, novamente cumpria esta solenidade. Em 1960, quando Juscelino Kubitschek transferiu a capital para Brasília, transferia-me para esta cidade, de malas e bagagens, e aqui estou há 65 anos. Neste período estão incluídos os 40 anos que passei no Senado, sendo hoje o político mais longevo do País.

Tudo isso se passava em minha cabeça, chegando aos momentos trágicos da doença de Tancredo Neves e depois, com sua morte, indo à Câmara dos Deputados, onde jurei cumprir a Constituição, que seria revogada, uma vez que convoquei a Constituinte que iria elaborar a Constituição de 1988, a Constituição cidadã, como a chamou Ulysses Guimarães.

Assumi a Presidência levitando, tomado pela antevisão dos problemas que iria enfrentar. Com habilidade, consegui legitimar-me e sobreviver.

Pacifiquei o País. Enfrentei doze mil greves que ameaçavam jogar o Brasil na desordem. Nesse momento não contava com o apoio de grande parte do meu Partido, nem dispunha do capital político de Tancredo Neves. Como Vice-Presidente, não escolhera o Ministério nem participara da elaboração do Plano de Governo.

Foram cinco anos de profundas emoções e lutas. A Democracia, de que hoje desfrutamos, foi construída com muitas dificuldades. Dei a minha contribuição, sofrendo grandes ataques da mídia.

Mas deixei o País no exercício tão pleno da Democracia que passei o governo a um opositor que fora muito agressivo em ataques durante a campanha.

A Fundação Astrojildo Pereira e o Instituto Cidadania, com o apoio do Correio Braziliense — que realiza notável exposição desses 40 Anos com fotos históricas — realizaram uma solenidade no Panteão da Pátria, que, pela primeira vez, abriu suas portas para celebrar a Democracia.

Nessas comemorações dos 40 Anos, vivi profundas emoções, até comoção, pelas lembranças da minha vida: nascido numa pequena casa de 50 metros quadrados, em Pinheiro, pequeníssima cidade — naquela época de apenas duas ruas —, somente com a presença de meu pai, minha avó, da parteira e da empregada, Emília, que me encheu de carinho por toda a infância. Chovia, e abri meus olhos para o mundo. E nada mais belo do que a terra natal.

Máximo Gorki, famoso escritor russo, dizia que os batentes de sua aldeia eram mais belos do que os vitrais da Catedral de Strasbourg, considerados os mais belos do mundo.

Tudo isso me tomou nesses dias. Os discursos que ouvi de Senadores, Deputados, Ministros me destruíram a vaidade, mas não a humildade.

Aí está o País gozando dos ventos da liberdade. O povo dono do seu destino. A cidadania exercida em sua plenitude.

A Democracia não resolve outros problemas senão os da liberdade, dos direitos individuais e civis. Mas a nossa Democracia foi além. Avançou nos direitos sociais.

Deixamos uma Constituição que assegurou ao Brasil 40 Anos de Democracia sem rupturas institucionais. Sem nova Constituição, não estaria completa a redemocratização. Ela é o coração da Transição Democrática.

Peço desculpas aos meus leitores pela vaidade. Perdoem-me. É um desabafo ameno. Vivi tantas emoções nesta semana que não tive tempo senão de confessar estas minhas fraquezas.

Mas a Democracia tem que permanecer vigilante. Sempre tem inimigos. E o País não pode ficar dividido, repito, com uns condenados à salvação, e outros, à perdição. Fim da luta entre amor e ódio. Todos somos irmãos.

E o dever dos políticos é defender o espírito de união, a esconjuração da desonestidade e a busca da Paz.

 

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40 Anos de Liberdade

 

A memória não retém o momento, o clima, a emoção. Depois de amanhã, 15 de março de 2025 é apenas uma data, fonte de tantos julgamentos e versões. O tempo é uma invenção do homem, e as datas redondas nos seduzem a construir o passado. Esta representa 40 Anos de Democracia, que se inicia com a minha posse no cargo de Presidente da República, encerrando o regime militar.

Na História do Brasil tivemos momentos de grandes inflexões. Mas aquela data será julgada no futuro como um instante em que a História se contorcia. Ela é o fim de um período marcado por revoluções, golpes de Estado, militarismo — que é agregação de poder político ao poder militar —, e agora a data da continuidade de uma democracia de massa, que o País jamais conhecera. Um Estado Social de Direito, o exercício pleno da cidadania, das liberdades individuais e dos direitos sociais.

Hoje não se pode avaliar o que estava em jogo naquela noite de 14 para 15 de março de 1985. A nove horas de tomar posse, o Presidente eleito, Tancredo Neves, começava a ser operado no Hospital de Base de Brasília. Não se sabia que ali começava o seu martírio e a sua agonia.

A realidade imitava a ficção. O país atônito. Os políticos envoltos em perplexidades não tinham nenhum grupo mobilizado. Reuniam-se improvisadamente na Câmara e no Senado. Os jantares organizados para antecipação da festa se transformavam em desorientação e tristeza. O ministro do Exército do Figueiredo comunicava ao chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, que iria voltar ao seu posto de comando e desencadear uma ação para interromper o longo processo da transição.

No meio de tudo isso, dois homens aparecem, mostram grande espírito público e capacidade de gerir crises: Ulysses Guimarães e Leônidas Gonçalves. Tancredo estava fora de ação, imobilizado por grave doença.

Quando, tomado de profunda emoção e saindo de uma depressão que escondi do país durante vários meses, voltado totalmente para o problema humano de Tancredo, disse a Ulysses que não desejava assumir sozinho, ele, rispidamente e mostrando sua fibra de grande chefe, me disse: “Não é hora de sentimentalismos, Sarney. Temos deveres com a Nação. Um processo tão longo de luta pelas instituições não pode morrer nas nossas indecisões”.

O general Leônidas, já escolhido ministro do Exército, partiu para ações concretas: “Vamos ao Leitão de Abreu, não para discutir a sucessão, mas para dizer que amanhã, às 10 horas, o vice-presidente, conforme determina a Constituição, irá prestar juramento perante o Congresso e assumir a Presidência até o restabelecimento de Tancredo”.

E assim fez, em companhia de Ulysses e dos senadores José Fragelli, Presidente do Congresso, e Fernando Henrique Cardoso. As Mesas do Senado e da Câmara decidiram no mesmo sentido. O Supremo Tribunal Federal, convocado secretamente pelo presidente Cordeiro Guerra, deliberou que esse era o caminho da Constituição.

Quando me comunicaram as conclusões, às três horas da manhã, eu era um homem batido pelo imprevisto. Tomei posse “com os olhos de ontem” e enfrentei o desconhecido dos anos que estavam à frente.

Há mais de dez anos, o brasilianista Ronald Schneider, que estudou as transições democráticas, escreveu que a transição do Brasil foi a mais exitosa.

Iniciou-se a Nova República com o lema “Tudo pelo social”. Enfrentei 12 mil greves, convoquei a Constituinte, implantamos uma democracia social, rompemos com a ortodoxia econômica com o Plano Cruzado, alcançamos a mais baixa taxa média de desemprego de nossa história — 3,59%. Até hoje não se repetiu o crescimento econômico daqueles anos.

Relembro nesta data Tancredo Neves. Afonso Arinos, repito, disse: “Muitos deram a vida pelo país, mas Tancredo é o único que deu a sua morte pelo Brasil”.

Esta é a História destes 40 anos de paz social, de alternância de poder e da presença do proletariado nas decisões nacionais. A República, nos seus 136 anos, pode contar com cidadãos de todos os segmentos da sociedade para ocupar a Presidência, desde marechais até um operário retirante das secas do sofrido Nordeste.

O destino entregou-me a responsabilidade de fazer a Transição Democrática depois de um longo período de autoritarismo. Enfrentei ameaças de retrocessos, mas conseguimos avançar no Social: criamos o SUDS, hoje SUS, universalizamos a saúde, criamos o Mercosul, com Raúl Alfonsín, da Argentina, e acabamos com a disputa nuclear entre nossos dois países e somos, graças a essa união, o único continente do mundo sem armas nucleares.

As instituições no País são tão fortes que resistiram a dois impeachments e à tentativa de destruí-las, com o processo agora em julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Saudemos os 40 Anos que comemoramos, da volta da Democracia, da Liberdade, que não morreu em minhas mãos; ao contrário, floresceu e consolidou-se.

Brasil, minha Pátria, meu torrão. País de hoje e do futuro.

 

Emendas remendadas

 

Quando fui Presidente havia três orçamentos: o orçamento fiscal, o das estatais e o do Banco Central. Na verdade, dos três orçamentos, não tínhamos nenhum, pois cada um apresentava um quantitativo diferenciado, como ocorre hoje quando o Ministro Flávio Dino procura o nome do parlamentar autor de emendas ao orçamento, o seu valor e destino e seus objetivos. Naquele tempo, tínhamos uma leitura mais simplificada e não sabíamos qual dos três orçamentos era o verdadeiro. Beaucoup de lois, pas de lois, dizia Montesquieu.

A ideia da existência do Parlamento foi consolidada na Inglaterra quando, no século XII, alguns endinheirados desejaram participar das regras de tributação nos tempos do Rei João, o João Sem Terra, que proclamou os direitos civis na Grã-Bretanha, que não possui uma Constituição escrita, seguindo as regras consuetudinárias que permanecem válidas até hoje — e ninguém as contesta.

A interpretação teológica dos tributos foi utilizada pelos sacerdotes e escribas do tempo de Jesus, que lançaram mão da questão para obter d’Ele uma resposta que O incriminasse e assim lhe perguntaram: “É-nos lícito dar tributo a César, ou não?” E, diz São Lucas, Ele respondeu: “Por que me tentais? Mostrai uma moeda que tenha imagem e inscrição.” E então: “De quem é esta imagem e inscrição?” “De César”, foi a resposta. Disse-lhe então Jesus: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” E assim não puderam apanhá-Lo em palavra alguma diante do povo.

Essa definição teológica do dinheiro significa que dinheiro é coisa dos homens, que podem utilizá-lo para o bem ou para o mal. Em geral os que dispõem de muito dinheiro podem empregá-lo em coisas profanas, e os que não têm utilizam o pouco que conseguem para a subsistência do corpo.

Agora, no caso das emendas ao orçamento certamente elas não são disputadas por elas mesmas, mas, sim, porque se transformam em dinheiro e não se esgotam no seu destino, e acabam se prestando para acusações a prefeitos, vereadores, deputados e, por meios indevidos, vão parar — segundo acusações que circulam, difíceis de se confirmar — nesses agentes públicos.

No começo de Brasília presenciei uma discussão a bordo de um avião entre algumas freiras e o Deputado Tenório Cavalcante, que era uma figura folclórica na Câmara dos Deputados, pois portava sempre uma metralhadora de nome “Lurdinha”, com que enfrentava seus adversários em Caxias, no Rio de Janeiro.

Naquele tempo tínhamos apenas aviões da Scania que faziam a linha do Rio de Janeiro para a futura capital da República. Eram aviões que voavam a baixa altitude, não pressurizados e desconfortáveis. Nessa viagem a aeronave jogava bastante, e as freiras rezavam muito. Tenório Cavalcante disse a elas: “Irmãs, se esse avião cair, iremos para o Céu”. Elas lhe responderam: “Não diga isso, deputado”. Ele retrucou: “As senhoras não querem o Céu? Eu quero. Lá não tem dinheiro, não se compra nada e tem de tudo para todos”. As freiras apenas repetiam: “Não diga isso, deputado”.

Foi mais uma interpretação teológica do dinheiro a sua perda de valor.

O que se deseja mesmo aqui é fixar que é inacreditável o que ocorre agora no Congresso Nacional: predominantemente, só se fala em dinheiro, dinheiro das emendas, com que muitos setores receberam milhões de recursos para emprego político, mas fugindo às regras constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

A política tem uma disciplina horizontal, somente os regimes de partidos únicos têm disciplina vertical. A disciplina dos partidos democráticos deve ser feita horizontalmente. Quando é invertida, trata-se de autoritarismo, que foge ao exercício da democracia interna, que não é exercida.

O que estamos vendo nos partidos atuais é uma decisão das cúpulas, que de certo modo é uma deformação do instrumento básico do regime democrático, baseado nos partidos políticos; e sem Parlamento forte, a democracia é difícil de existir.

Lembro-me, quando fui parlamentar no Rio de Janeiro — o líder do meu partido, a UDN, era Otavio Mangabeira, e eram seus colegas de liderança Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Adauto Lúcio Cardoso, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto e outros —, que a ascensão política e parlamentar era assegurada pelo valor pessoal, nunca por meios espúrios. Os nossos discursos eram assistidos por grande e qualificada plateia, os jornais os publicavam na íntegra, e assim iam se construindo os líderes, e os comandantes nessa escola se afirmavam.

Ah! Como era verde meu vale.

 

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Carnaval e Pero Vaz

 

O Carnaval passa ao largo do mercado, pois não depende dele. Se os bolsos ficarem vazios, é a Bolsa que fica ameaçada. Carnaval não influencia a taxa de juros, não a baixa nem a sobe. Assim, nada de preocupações; que seja a alegria.

As queixas procedentes vêm dos saudosistas — e eu talvez seja um deles —, todas na direção de que o Carnaval se modernizou, perdeu a autenticidade do passado. Acabaram os pierrôs apaixonados e as colombinas para surgir o biquíni e o peladão. Maravilha das maravilhas! Isso é o progresso. O mesmo que tirou de moda a ceroula, o cabeção, o espartilho e colocou as liberdades das musas do Carnaval: Isabelle Nogueira, Flávia Alessandra, Luciana Gimenez, Alane Dias…

Qual é a origem do Carnaval? Uns, querendo colocar sabedoria, dizem que sua origem está nas saturnais romanas, festas bem moderninhas em que se celebrava a entrada da primavera de maneira bem exuberante. Falam que ele veio de um tal carro-naval, que nada mais era do que um navio de rodas, cheio de marinheiros que cantavam canções obscenas nas ruas da Grécia antiga nas mudanças de estação.

Melhor imaginação tiveram aqueles que dizem ser estas festas e alegrias necessárias à preparação do corpo para o jejum da Quaresma. Os italianos chamavam esse tempo de “Carne! Vale!”, “Carne, vá em frente, caia na gandaia”. Outros exegetas colocam nas costas da igreja a responsabilidade da palavra Carnaval e a atribuem ao Santo Papa Gregório, o Grande, que chamou o domingo anterior à Quaresma de “dominica ad carnes levandas”, isto é, o domingo de sublimação da carne. O nome pegou por portas e travessas para Carnaval. Relembrava uma velha definição dos três dias antes da Quaresma, em que monges medievais davam-se a muitas liberdades, comiam e bebiam etc. e tal para resistir às tentações no tempo quaresmal. E alegavam que assim faziam imitando os camelos antes de atravessarem o deserto.

O Carnaval, na Espanha, só termina, como na Bahia, no domingo depois da Quarta-Feira de Cinzas. Perdão! Na Bahia, não termina nunca. Em Veneza, começa no Dia de Reis e lá vai aquela coisa chata de gôndolas e bandolins.

Lembro essas coisas para dizer que o Carnaval não é nada disso. Ele nasceu no Brasil, sem primavera, nem saturnais, nem o Papa Gregório. O Carnaval brasileiro tem origem e cultura próprias. Sua certidão de nascimento é a Carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500, quando descreve o descobrimento do Brasil. A chegada logo se transformou no primeiro carnaval, os índios na praia, de “carapucinhas vermelhas”, “contas amarelas”, pintados e de maracás, os portugueses batendo tambor, todos bebendo, dançando e caindo numa bruta gandaia. Temos até o nome do primeiro folião, Diogo Dias, que tocava gaita, “homem gracioso e de prazer”, que comandava a folia. A diferença é que era Páscoa, mas, na Bahia, todo tempo é bom de Carnaval.

A globeleza, que se pensa ser criação de hoje, da Globo, já estava lá. E não era uma só, eram muitas. Diz Caminha que as índias participavam da festa e eram “bem moças e bem gentis, com cabelos mui pretos e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas de cabeleiras que, de muito as olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”.

Enquanto isso, nas nossas rádios e tevês, comandantes encarregados do policiamento já dão instruções ao povo: “Não beba. Se beber, não dirija. Leve só a roupa do corpo”. E, finalmente, “Não perca seu bloco e use a camisinha”.

Bom Carnaval!

 

Ódio não!

 

Eu muitas vezes, em entrevistas, artigos, disse que, ao longo da vida, nunca tive capacidade de sentir ódio. E isto considero que me fez e faz muito bem. O ódio traz como consequência maior o ressentimento, e este, a amargura, que faz muito mal a nós próprios e deforma o nosso modo de viver.

 

Conheci um homem que tinha uma alma pura, o Deputado Djalma Marinho. Era uma figura muito conhecida e respeitada na Câmara dos Deputados. Foi candidato a presidente da Casa. Perdeu. Eu e o Deputado Nelson Marchezan fomos a sua casa prestar-lhe solidariedade. Com o meu jeito de não cultivar sentimentos negativos, disse-lhe: “Djalma, não guarde ressentimentos.” Ele me respondeu: “Sarney, eu não guardei dinheiro na vida, que é coisa boa, lá vou guardar ódio e ressentimento, que não prestam para nada?” Foi ele que depois, na Comissão que presidia, recusou-se a cumprir uma ordem do governo para processar o Deputado Moreira Alves, em 1968, quando o país estava sob as normas do AI-5. Renunciou ao cargo de presidente e, repetindo o espanhol Calderon de La Barca, marcou a Casa com a célebre frase: “Ao rei tudo, menos a honra”.

 

Mas quero falar também das consequências do ódio, que muitos escritores registraram na literatura, como Tolstói, cuja personagem feminina vai ao suicídio sucumbida pelo ódio; Dostoiévski, com o alerta de que “o ódio alimenta o ódio”; Shakespeare, com o seu Otelo, o Mouro de Veneza, cujo ciúme o leva a matar sua fiel esposa, Desdêmona, um destino de ódio construído pelo relato falso de infidelidade por Iago, um suboficial preterido numa promoção.

 

Também resultado desse mal, escrevo sobre a divisão que vemos hoje no Brasil: a casa está dividida, justamente pelo ódio que perpassa pela política brasileira. E uma casa dividida não prospera. Disso já sabemos nós, cristãos.

 

Na política brasileira, eu, que por mais de meio século a acompanho como espectador, interlocutor, participante e até como protagonista, nunca vi uma época em que os homens se dividissem entre uns adeptos do diabo e outros, de Deus. De tal modo que a luta política extravasou para um nível em que uns são conduzidos à salvação e outros, condenados à perdição.

 

Eu, pessoalmente, sempre tive adversários. E a estes nunca considerei inimigos. Essa concepção de adversários como inimigos foi proposta por Carl Schmitt, jurista oficial do Terceiro Reich, para quem a política era uma guerra, na qual devíamos eliminar os contrários e levá-los até a morte — como ocorreu na Alemanha com a morte de milhões de judeus. O ódio ao inimigo também justificou, logo depois da Revolução Russa, a violência e crueldade dos comunistas aos milhões de perseguidos e eliminados. O exemplo simbólico e maior na Rússia talvez tenha sido o fuzilamento da família inteira do Czar Nicolau II, que hoje pela Igreja Oriental foi considerado santo.

 

Eu era deputado no Rio de Janeiro quando ouvi Carlos Lacerda, o maior orador a que assisti no Parlamento, defender-se — no processo que moveram contra ele por ter divulgado um telegrama secreto, que envolvia o Jango e o Peron, num tempo em que os discursos tinham títulos, a que chamou de “A corrida dos touros embolados” — daqueles que o acusavam de uma maneira odienta, retrucando com a seguinte denúncia: “Aqui até o ódio é fingido.”

 

Não é o que ocorre hoje no Brasil. Situação repelida por todos nós. O ódio hoje é real. E deve acabar.  Ele é a semente que desponta como o instrumento de divisão não só dos políticos, como do povo brasileiro. Não é difícil encontrarmos dentro das famílias discussões acaloradas e situações difíceis em que as posições são dogmáticas.

 

O ódio leva até ao que está sendo apurado no processo sobre a inacreditável proposta de assassinato, a ser cumprido nas figuras do Presidente e do Vice-Presidente e de um Ministro do Supremo Tribunal Federal. O caso segue o devido processo legal — somos um Estado de Direito — no Supremo e depois, tudo devidamente apurado, haverá a punição prevista na lei dos responsáveis.

 

O ódio é danoso, cruel, indigno, divisionista. Por julgá-lo assim quero vê-lo extirpado do nosso país. Sou partidário do diálogo, de ver o próximo como objeto de convergência e não da divergência. Por tudo isso e mais, não há palavras suficientes que definam o mal que o ódio produz. Somos irmãos e como irmãos devemos viver em paz. Que os dirigentes e líderes do país viajem por outros caminhos que não este, o do ódio. Por isso, só me cabe encerrar dizendo:

 

Ódio não!

 

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