José Sarney

Democracia é dogma

 

Há 40 anos, 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves e eu fomos eleitos Presidente e Vice-Presidente da República. Era a chegada da Democracia. Sem ela não teríamos sido Presidentes. Anos depois, também possibilitaria que Lula, um operário, fosse eleito Presidente da República.

Lamentavelmente o Brasil tem uma ponderável parcela da população que ainda não tem consciência do que esse regime representa. As últimas pesquisas publicadas da percepção do povo sobre democracia registraram que cerca de 30% da opinião pública ainda não apoia o regime democrático, prefere a ditadura ou não tem opinião sobre o regime que nos governa.

Parece pouco, mas é um número bastante elevado para uma comunidade que viveu, até pouco tempo, sob um regime autoritário e conquistou, em 1985, a plena liberdade, com a volta da democracia sem adjetivos, com absoluta liberdade e a conquista de uma cidadania que assegura a todos uma participação efetiva na vida política do País, com direito a proclamar sua opinião sobre as decisões do Legislativo e do Executivo. Foi a Transição Democrática, que me coube dirigir e é considerada a melhor do continente, que há 40 anos concretizou a implantação da liberdade no Brasil com a volta da democracia.

Quanto ao Judiciário, suas decisões são solitárias e representam as convicções individuais de cada juiz, baseadas nas leis e no direito. Hoje, contudo, diante da judicialização da política, há certa politização da Justiça pela sedução que a busca da popularidade exerce em todos na vida em sociedade. Mesmo este fenômeno não admite a politização da Justiça como um todo, mas apenas a posição pessoal de alguns juízes.

A democracia não é perfeita. Ela não faz o milagre de resolução de todos os problemas, como os mais visíveis, a inflação, o desemprego, a assistência médica, a educação e outros pequenos e graves problemas da cidade em que se reside, do Estado em que se está e do País que é sua pátria.

Porém, é a democracia que resolve de imediato o fundamental e maior de todos os problemas: a falta de liberdade. É o coração do regime democrático que assegura, como dizia Churchill, que, quando batem na porta de sua casa às cinco horas da manhã, você tem certeza de que é o leiteiro, e não a polícia política.

Creio que a existência de um terço de nossa sociedade que ainda não tem a convicção do que é a democracia e de alguns que ainda desejam uma ditadura é cruel. É preocupante. Ainda se julgarmos que 70% aprovam e se proclamam democráticos, sabemos que mesmo estes são vulneráveis a divisões, e os radicais são levados a cultivar o ódio extremo, germe da divisão. Há a lição bíblica de que uma casa dividida não prospera. No mundo atual, de uma sociedade complexa, sem solução dos entraves e com problemas difíceis de resolver, todos são sujeitos à demagogia com a proposição de soluções simples e inviáveis. Ainda mais que surgiu, com a sociedade digital, o insolúvel problema das fake news, que decretaram a morte da verdade e a presença da mentira, que pode criar versões altamente explosivas dos fatos, a colocar em risco as instituições, como exemplo o 8 de janeiro, com a destruição parcial das sedes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Estes episódios não são estranhos nas minorias autoritárias que ainda acreditam nas soluções de força.

A democracia precisa ser, na totalidade do País, uma consciência pessoal, que cada um de nós tenha entranhada a convicção de que o regime democrático é um dogma absoluto — não resolve a busca do desenvolvimento, mas é o caminho aberto para encontrá-lo. A liberdade, repito, tem um poder criativo que nos permite encontrar soluções e a esperança das utopias.

No caso do nosso País é preciso ter orgulho. Foi o que mais cresceu no mundo no século 20, somos a 8ª economia mundial e lutamos para, por meio do Estado Democrático de Direito, resolver os problemas da desigualdade e continuarmos a ser um exemplo de convivência racial e religiosa.

Até mesmo no terreno cultural estamos mais presentes mundialmente nas premiações da genial Fernanda Montenegro, com seu talento extraordinário, e de sua filha, Nanda Torres, que projetam a imagem do Brasil.

Todos devemos, assim, pregar a democracia, amar a democracia e tê-la como consciência pessoal. Lembremos finalmente, nessa data de 15 de janeiro, Tancredo Neves e a frase do Afonso Arinos: “Muitos homens deram a vida pelo Brasil. Tancredo Neves deu a morte.”

 

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O Tempo e a Democracia

 

A liberdade tem grande poder criativo. Até mesmo os excessos o seu exercício corrige. É necessário, para entendê-la, compreender o que é o tempo. Leonardo da Vinci escreveu, numa noite, em seus angustiados cadernos, que “a justiça é filha do tempo”. Um dia, em Hong Kong, em companhia do embaixador Miguel Osório ─ que naqueles anos procurava desvendar o mistério do que ocorria com a Revolução Cultural na China ─, ouvi a afirmativa de um velho poeta, com o sabor de sabedoria milenar, de que nós, do Ocidente, não sabíamos o que era o tempo.

Quando, em 1989, eu me encontrei com Deng Xiao Ping, em Pequim, ele mencionou o mesmo conceito e me falou entusiasmado de seu país dali a 100 anos como se dissertasse sobre o dia seguinte. Descreveu-me empolgado as metas dos próximos 20 anos como se comentasse a madrugada que viria.

Comecei então a aprender o que é o tempo e a saber que é dele que se faz a vida. Muito tenho falado sobre a paciência, mas, hoje, ocorre-me defini-la como a virtude de saber esperar. Não com o sentido de reparar injustiças ou o desejo de esquecer o passado, mas de ver os fatos com o sabor de experiência vivida, de ser humilde ao olhar erros, de aprender, de poder emitir conceitos e de ter a consciência de que muitas vezes podemos estar errados.

Nada mais falso do que o chavão de repetir que, se tivéssemos de viver de novo, repetiríamos tudo. Muitas coisas não faríamos, outras acrescentaríamos e outras nem uma coisa nem outra, simplesmente seriam ignoradas. Afinal, a gente melhora com o passar dos anos. Perde-se em vigor, mas ganha-se em saber. Os desenganos, as esperanças modestas, as ambições, as vaidades e as paixões têm o realismo do conhecimento do funcionamento do tempo, da vida.

Porque é bíblica e sagrada a certeza de que há tempo de semear e tempo de colher. É possível que o tempo de colher seja mais glorioso. Mas é o tempo de semear que determina o que se vai colher.

Governei o Brasil no período mais difícil de sua história, mais cheio de cobranças políticas. Somavam-se esperanças e dificuldades. As liberdades, represadas por 20 anos, explodiam em reivindicações e gestos de intolerância. A ânsia de mudanças atropelava os fatos.

Coube-me plantar e poucas vezes colher. Há frustração maior do que plantar e não colher? Até Cristo, quando olhou aquela videira sem frutos, que ele não plantara, lançou a maldição: “Teus galhos secarão.”

Mas é preciso ter a noção do tempo para esperar o momento da colheita. Como exemplo, recordo que semeei o respeito, até o limite dos exageros, à liberdade de imprensa, rádio e televisão porque sempre entendi que a prática da liberdade corrige os excessos. Não apenas nos veículos de comunicação, mas em todo o processo de circulação de informação da sociedade. As instituições se fortalecem e se consolidam. A democracia é um regime que é melhor do que os outros porque sobrevive às crises e sabe absorvê-las.

O Brasil vive as excelências de um regime democrático, pluralista e aberto. Sua massa crítica e as instituições não entram em colapso em face da tempestade e seguram as estruturas da sociedade e do Estado.

E, dentro deste vendaval, constata-se a verdade de Jefferson de que a liberdade de imprensa é a liberdade fundamental. Nosso Rui Barbosa resumiu o conceito chamando-a de “pulmão da democracia”.

A semeadura foi boa. Hoje, todos colhemos os frutos de uma imprensa vigorosa, cumprindo sua missão de informar. Porque, no mais, as decisões são frutos da verdade que, como se diz no Maranhão, “é como o manto de Cristo: não tem costura”. Inconsútil, não admite remendo sem deixar marca.

Hoje, no Novo Ano, a caminho dos meus 95 anos de idade, com a graça de Deus, estou feliz. Estou feliz colhendo o que semeei. Instituições fortes, paciência, diálogo e paz. Hoje todos reconhecem a minha contribuição para que a democracia e sua maior força, a liberdade, “abrisse as asas sobre nós”. Fizemos a Transição Democrática e hoje temos o reconhecimento do País.

 

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Um Menino chamado Jesus

 

O que é o Natal? Hoje, uma festa de confraternização universal, momento da fraternidade, a farra da mídia e do consumismo. Passamos mais um. Deus nos deu a graça da vida para abraçar amigos, reunir a família e, com o mundo globalizado, usufruir de uma alegria universal padronizada, entre o velho Papai Noel e luzes, fogos, festas.

Há um esquecimento quase total do verdadeiro simbolismo do Natal, uma data essencialmente religiosa. É o fundamento do Cristianismo. É a certeza de que o Deus de todas as coisas, que criou este planeta azul e o homem à sua semelhança, quis que não ficássemos sós na face da Terra, que tivéssemos a visão de que algo de transcendental existe em nossas vidas. Para isso, mandou que Cristo assumisse a condição humana e habitasse conosco este pequeno espaço, na vastidão do universo.

Ele chegou. É essa chegada o Natal. É o sinal anunciado pelos profetas. Cristo nos ensinou regras de ouro. Trouxe uma mensagem e uma conduta de vida. “Todos somos irmãos”, criados por Deus, presos entre a vida e a morte. Deu-nos outra regra que é a síntese de todos os compêndios de conduta ética: “Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam.” E ainda: “Amai-vos uns aos outros.”

Eu ainda vivi, menino, no interior do Maranhão, entre luzes de candeeiros e velas de devoção, o Natal bíblico. Todos reunidos à meia-noite, rezando, meu avô de bíblia na mão, lendo os textos sagrados anunciando a vinda do Salvador. A Missa do Galo, numa pequena igreja, onde todos se conheciam, ouvindo aquele sino pobre e solitário, na escuridão da praça, sem outras luzes senão as das estrelas. Esperando acordar no outro dia e encontrar, debaixo da rede, o presente de Papai Noel. Um tambor artesanal de lata, pintado, vendido pelo funileiro da cidade. Um cavalo de madeira tosca feito pelo santeiro escultor, pintado de azul, com bolas brancas.

Vejo os brinquedos eletrônicos de hoje. A maravilha dos monstros dinossauros que as crianças adoram. Mas nada mais belo, ninguém mais feliz do que nós, meninos dos tempos dos tambores de lata e barquinhos de buriti.

Depois, é a marcha da Eternidade. Uma geração de tantas transformações. A pergunta de Machado de Assis é quase lugar-comum, tantas vezes citada, mas é pertinente: “Mudou o Natal ou mudei eu?” Mudou o Natal. O homem não mudou. Continua sendo aquilo que Irven Devore dizia: um caçador. Outrora, atrás da presa, hoje caçando sonhos.

Caçar sonhos é uma grande proposta nestes dias de festa, depois de Natal e fim de ano. Ver um Brasil sem desemprego, sem miséria, sem pobreza, sem violência. Um país unido, numa conduta cristã, a ética de uma vida em que o homem não seja o lobo do homem.

É possível? Tudo pode acontecer em nossa imaginação, no poder da esperança. E quem quiser ter esperança venha a São Luís e acompanhe a “Natalina da Paixão”, cantando: “Vem, Jesus Cristinho, / vem, Jesus Menino”.

E Ele vem.

 

Ninguém se perde no caminho da volta

 

O título deste artigo é uma frase que se tornou célebre na década de 50, do meu antecessor na Cadeira 38 da Academia Brasileira de Letras, que ocupo, José Américo de Almeida, grande romancista do Nordeste, autor de “A Bagaceira”, livro que foi uma marca no conjunto de escritores da região, um dos “búfalos” que Oswald de Andrade disse que invadiram a Semana de Arte Moderna de 22, abafando-a na importância que passaram a ter na história da literatura brasileira.

 

José Américo foi também candidato a presidente da República para as eleições de 1938, que não ocorreram devido ao golpe de Getúlio Vargas, em 1937, que resultou no período do Estado Novo.

 

Mas não é dessa volta que falo. É da minha volta a escrever para os Diários Associados. No fim da década de 50, com 17 anos de idade, começara minha vida profissional como repórter de setor policial, como todos começavam em jornal, no caso, em “O Imparcial”, dirigido pelo meu querido amigo José Pires de Saboia, então o maior jornal do Maranhão, pertencente a Chateaubriand. O velho jornalista brincava comigo, toda vez que me encontrava, dizendo que eu entrara em sua empresa por concurso, uma vez que fizera uma reportagem para uma competição aberta por “O Imparcial” e obtivera o 1º lugar com uma matéria sobre a Quinta do Barão de Bagé, num subúrbio de S. Luís.

 

Este ano, 2024, os Diários Associados comemoram 100 anos. E eu, que comecei a carreira de jornalista num dos seus jornais, aos 17 anos, volto a escrever em outro jornal dos Diários Associados, nos meus 94 anos de idade, publicando às sextas-feiras o artigo que vinha escrevendo no meu site, que era transcrito em muitos outros do Brasil. Espero não me perder neste caminho de volta. Estou feliz.

 

Quando eu me elegi deputado, Chateaubriand me disse, ao nos encontrarmos no aeroporto da Bahia, onde nossos aviões se cruzaram: “Olhe, Sarney, diga ao Saboia para não dar baixa em sua carteira no jornal. Daqui a pouco eles fecham essa Câmara e você vai voltar a ser meu empregado.”

 

Esta não foi a única ordem que Chateaubriand deu ao Saboia sobre mim. Quando Saboia ainda era simplesmente diretor de “O Imparcial” e não o grande líder do Condomínio dos Diários Associados e fui candidato a governador, Chateaubriand passou um telegrama ao seu diretor, dizendo: “Coloque nossos jornais serviço campanha Sarney”.

 

Não voltei a ser empregado de Chateaubriand e agora não sou mais nada. E o jornalista Josemar Gimenez, atual Presidente do Condomínio dos Diários Associados, certamente não vai colocar um velho desempregado no olho da rua.

 

José Sarney é homenageado com a Medalha “Celso Magalhães”

 

José Sarney, Presidente da República (1985–1990), recebeu na noite da última quarta-feira (11) a Medalha do Mérito do Ministério Público “Celso Magalhães”, uma honraria que reconhece personalidades por suas valorosas e relevantes contribuições ao fortalecimento da instituição.

 

A cerimônia também marcou a abertura do 14º Congresso Estadual do Ministério Público do Maranhão. A solenidade foi presidida pelo procurador-geral de justiça, Danilo de Castro e contou com a participação de membros e servidores do MPMA, autoridades dos três poderes, defensores públicos, advogados, policiais civis e militares, estudantes e convidados.

 

Durante o 14 º Congresso Estadual do MPMA, ocorreu a cerimônia de entrega da Medalha do Mérito do Ministério Público “Celso Magalhães”, concedida pelo Colégio de Procuradores de Justiça. Na ocasião, três homenageados receberam a comenda.

 

O desembargador Raimundo José Barros de Sousa recebeu a medalha do procurador-geral de justiça, Danilo de Castro, e do procurador de justiça Francisco das Chagas Barros de Sousa, irmão do homenageado. Já o procurador-geral de justiça do Ministério Público da Bahia, Pedro Maia Souza Marques, recebeu a honraria das mãos do procurador-geral de justiça e da corregedora-geral do MPMA, Maria de Fátima Rodrigues Travassos Cordeiro.

 

Coube a Danilo de Castro e ao procurador de justiça Eduardo Nicolau a entrega da comenda ao ex-presidente José Sarney. Falando em nome dos homenageados, o presidente da República no período de 1985 a 1990 saudou os presentes e congratulou o Ministério Público do Maranhão pelo evento, que “agrega conhecimentos com o alto nível dos palestrantes convidados”.

 

José Sarney lembrou que o Ministério Público do Maranhão é parte importante de sua vida, pois seu pai foi promotor de justiça por 28 anos, percorrendo boa parte do estado do Maranhão. Citando muitas das comarcas ocupadas por seu pai, ele afirmou que “essa ‘peregrinação’ ajudou em minha formação, ao me permitir conhecer a realidade de todo o estado”.

 

José Sarney também lembrou das dificuldades enfrentadas à época pelos membros da instituição para o exercício de seu trabalho e de como isso o levou a buscar valorizar o Ministério Público nos cargos políticos que exerceu. De acordo com Sarney, um de seus primeiros atos como governador foi igualar o vencimento de promotores de justiça ao de magistrados, sendo o Maranhão o primeiro estado brasileiro a alcançar essa paridade.

 

Como presidente da República, ele destacou a elaboração da Lei da Ação Civil Pública “que veio antes da Constituição de 1988 e deu força ao Ministério Público, recolocando as suas atribuições na defesa da sociedade”. José Sarney enalteceu, ainda, a figura de Sepúlveda Pertence na construção do papel do Ministério Público a partir da Carta Magna de 1988.

 

Medalha Celso Magalhães

José Sarney celebrou a escolha, por parte do Ministério Público do Maranhão, do nome da Medalha do Mérito ser Celso Magalhães, considerado por ele um grande defensor da sociedade e um homem de coragem.

 

José Sarney lembrou que atuou como oficial judiciário do Tribunal de Justiça do Maranhão e, em dado momento, houve uma ordem para que fossem descartados todos os processos com mais de 50 anos arquivados. Em meio àqueles papéis, ele encontrou o Processo da Baronesa de Grajaú, que foi entregue a Josué Montello e serviu de base para a obra “Os tambores de São Luís”, “o melhor livro de Josué Montello, baseado na bravura de um membro do Ministério Público”, comentou.

 

Ao encerrar sua fala, Sarney reforçou novamente a sua ligação com o MPMA, reafirmando que sempre ajudou e sempre estará na linha de frente para defender a instituição.

 

Natal com barbas de frade

 

Já entramos no Advento e começamos a ouvir os sinos do Natal — para mim uma festa de alegrias contidas, com o saibo das ausências —, e a minha memória me convida a pensar em Frei Agostinho, a quem ouvia todo domingo, assistindo à sua missa na pequena e modesta Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Lá encontrávamos sempre dezenas de pedintes e pobres que eram de sua assistência. O IPHAN e a Fundação Municipal de Patrimônio Histórico, sob o comando caridoso de Kátia Bogéa — essa brilhante mulher que fez a restauração de muitos monumentos históricos do Maranhão e continua nesse amor maior construindo o Museu Nacional do Azulejo, no belo prédio de 200 anos chamado Solar dos Tarquínios —, recuperaram a igreja, que teve o seu altar-mor todo restaurado. Ali está guardada a mais bela imagem de São Benedito.

Agora meu pensamento, ao ouvir os sinos do Natal, me leva a Frei Agostinho, que rezava a missa já com intimidade com Deus, o que lhe fazia erguer lentamente a hóstia e o cálice durante a Eucaristia. Era um franciscano entre a vida e o Eterno.

Nascera às margens do Lago de Como, de onde saiu para o Maranhão, nos anos 1920, na missão de evangelizar. Caminho igual ao dos capuchinhos mandados por Maria de Médicis, 300 anos antes, para converter os índios, afastá-los do Diabo, que foram os primeiros pregadores na Amazônia.

Frei Agostinho parecia um deles, queimando suas bondades — como dizia Caminha — para afastar o Demônio e o pecado. Atravessou o tempo, assistiu ao Concílio Vaticano II e não abandonou suas sandálias de couro, sua batina de brim marrom com cordão de corda branca, seu crucifixo de madeira, sua barba longa e branca, mais pobre e sofrido que as cabras.

Durante oitenta anos, catequizou e converteu almas. Construiu muitas igrejas, em torno das quais as cidades nasceram, a maior delas em Imperatriz, no tempo em que a vila era apenas um pouso.

Frei Agostinho despiu-se de pátria e família por amor a São Francisco e a Deus. A voz mansa, os olhos já fundos eram como poços sem água, onde as lágrimas, pelo tempo, secaram.

Era um frade simples, sem misticismo, sem apelações. Foi envelhecendo, suas missas já eram cansadas e sua voz vinha lenta. Mas, de repente, de seus lábios brotavam os movimentos, como falavam os profetas. Com grande firmeza, descobria no Evangelho argumentos, ensinamentos, conclusões. A missão da Igreja era anunciar a Vida Eterna. Nada da Igreja da Libertação. Sua Igreja era a igreja da oração. Saíamos de sua missa invadidos de Paz.

Seu corpo acabou. Caiu, sua coluna sofreu, dobrou-se no sofrimento. Sem poder mais ser o apóstolo das selvas, foi recolhido ao Convento do Carmo, em São Luís, só com sua dor e as lembranças de missionário. Deram-lhe como tarefa ser o confessor da velha Igreja do Carmo.

Dona Cotinha fora encarregada de buscar Frei Agostinho para, aos domingos, celebrar a missa dos pobres na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, igreja pequena, feita por doação de escravos. Pobre, sem ouro, prata ou talha. Despojada, paredes brancas e lisas. Frei Agostinho vinha curvado, arrastando os pés, trôpego, com os olhos de dor. Recebia apenas uma pequena espórtula. Uns pobres meninos de rua o derrubam para roubar. Aumentam seus sofrimentos. Um irmão manda buscá-lo para morrer na Itália. Frei Agostinho embarca, apoiado em sua bengala, cercado das lágrimas e dos fiéis que lhe queriam bem. Afirma: “Viajo amargurado. Minha morte será mais sofrida. Queria ficar no Maranhão.”

Lembro-me de quando estávamos preparando a Festa do Natal e, durante a missa, o celebrante, o reitor do Convento do Carmo, anunciou:

— Quero dizer aos fiéis que Frei Agostinho, pelo milagre da saudade, está melhor e quer voltar ao Maranhão. Chegará no dia 8 de janeiro!

Nossos sinos do Natal ainda têm o som das barbas desse frade missionário que renova o milagre da ressurreição na sua volta para ficar conosco na terra do seu amor e do seu sofrimento.

Como o Padre Vieira, que tanto castigou com sua palavra de fogo o Maranhão, quando lhe perguntaram onde queria morrer, respondeu:

— No Maranhão!

 

Uma COP que caiu no poço

 

Uma longa e prolongada salva de palmas explodiu quando o Presidente da COP29 anunciou que tinham chegado a um acordo: 300 bilhões de dólares dos países ricos para financiar medidas destinadas a combater e limitar o aumento do clima no mundo. Mas logo em seguida levantou-se um dos delegados — eram três horas da manhã — e disse: “Estes aplausos não são para este vergonhoso acordo, mas sim porque o Sr. Presidente anunciou que está encerrada esta fracassada Conferência.”

Nesse momento repetiram-se os aplausos. Os delegados, exaustos, dormiam por todos os lados, uns em sofás amassados, outros no chão em grossos tapetes.

Uma coisa muito difícil é o êxito dessas conferências. Esta, a COP29, dias antes do fracasso, transferiu a solução dos financiamentos dos países em desenvolvimento para a próxima Conferência, já convocada para Belém, que tem a sedução chamativa de ser localizada na cidade que fica na foz do Rio Amazonas, com toda a sua grandeza, suas lendas e seus mistérios.

A primeira reunião promovida pelas Nações Unidas em busca de um pacto global para enfrentar o problema do Meio Ambiente e o despertar do mundo para a destruição da natureza e a liberação de gases tóxicos ocorreu em Estocolmo, em 1972, quando pela primeira vez se discutiu um novo modelo de desenvolvimento.

Eu era Senador nesse tempo e fiz o primeiro discurso no Congresso Nacional sobre Meio Ambiente, analisando o que fora discutido em Estocolmo. Já em 1989 eu era Presidente do Brasil e apresentamos o Brasil para sediar a Segunda Conferência do Meio Ambiente, fizemos um acordo para que se realizasse no Rio de Janeiro, o que foi aprovado: em 1992, quando eu já tinha deixado o Governo, ocorreu a Rio-92, também conhecida como Eco-92. A Conferência foi um sucesso, com grande repercussão social, e despertou o mundo. Mas o problema do clima ainda não era a bola da vez.

Assim, estamos agora, com evidência científica, sabendo que, se não enfrentarmos seriamente o aquecimento global até o fim do século, os oceanos crescerão, as cidades das orlas estão ameaçadas de inundação, as chuvas aumentarão, assim como o número de tsunami, de secas e desastres climáticos, e assim começará a destruição da Terra.

Enquanto isso, os países ricos pensam que irão salvar-se, com esses 300 bilhões de dólares e a destruição das geleiras e as inundações.

Que Belém do Pará possa ter êxito e que lá os países ricos tenham ouvidos para ouvir e olhos para ver que precisamos salvar o Planeta. Que o futuro não os acuse de suicidas.

 

 

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Lula e o G20

 

O Presidente Lula marcou um gol olímpico com a realização no Brasil da Cúpula do G2O. Antes da Cúpula, a reunião do G20 Social foi um sucesso, com a extensão dos objetivos do Grupo para enfrentar os problemas sociais e, para isso, conseguiu mesmo que se realizasse um evento paralelo com representantes de líderes de movimentos populares, tendo como foco o problema da fome, produzindo um documento para ser entregue à Troika, formada pelo atual presidente (Brasil, 2024), pelo ex-presidente (Índia, 2023) e pelo futuro presidente (África do Sul, 2025), conforme organização da Governança do Grupo.

Concretizou-se no Brasil a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, com a adesão de 148 membros fundadores: 82 países do Grupo, mais 24 Organizações Internacionais, nove instituições financeiras internacionais e 31 fundações filantrópicas e organizações não-governamentais.

A necessidade de união e cooperação de países com os mesmos interesses e a urgência em enfrentar crises globais fez com que os países adotassem esta fórmula do Grupo. Foi no final dos anos 90, após as crises econômicas mundiais, que se iniciou um fórum multilateral de discussão da economia mundial, entre ministros de Finanças e presidentes de Bancos Centrais. Posteriormente, em 2008, após a grande crise da bolha imobiliária americana, chefes de Estado e de Governo passaram a se reunir para discutir a estabilidade econômica global. Inicialmente G7, com a reunião dos países mais industrializados — Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá –, o grupo recebeu doze países emergentes, totalizando 19, mais a União Europeia como vigésimo membro; depois, com a União Africana, são 21 países, chegando ao formato atual do Grupo dos 20.

A reunião do Rio, no G20 Social, foi importante porque aprovou, de forma inédita, uma decisão que fugiu totalmente às origens do G20, que era debate de economia e finanças, para exigir que o mundo se debruce sobre um problema mundial, o mais terrível deles, a fome.

A inclusão do problema da fome no G20 foi essencialmente iniciativa do Brasil, e pessoalmente do Presidente Lula, que sempre o teve entre as suas pregações e preocupações. Quando eu era Presidente da República, tratei desse problema da fome nas Nações Unidas, em 1985, e denunciei esse crime contra a Humanidade: manter milhões de pessoas em extrema miséria.

Outro ponto positivo da reunião do G20 Social foi lembrar, no excelente discurso de Lula, a tragédia e a crueldade das guerras atuais e dizer que “o mundo está pior”.

Não podemos ignorar que só é possível a mudança da atenção para os problemas sociais, em que 82 países firmam um documento final, graças à globalização e aos avanços que o mundo atravessa com a civilização digital. Esta possibilitou um melhor relacionamento entre os chefes de Estado e de Governo. Recordo que já no meu tempo de Presidente (e estávamos apenas começando), quando tínhamos qualquer problema grave de interesse internacional, pegava o telefone e ligava para Alfonsín, Sanguinetti, Aylwin Azócar (ainda candidato no Chile), Mario Soares, Felipe Gonzales, Pérez de Cuéllar etc. E resolvíamos o problema e estreitávamos relacionamento e ficávamos amigos. Até hoje mantenho amizade com os que estão vivos.

Parabéns ao Presidente Lula que pouco a pouco coloca na agenda mundial a responsabilidade dos países ricos para a solução dos problemas ambientais, do problema da pobreza e da necessária ajuda aos países pobres.

Outro assunto abordado pelo Presidente, para que não fosse esquecido, diz respeito aos organismos internacionais que envelheceram, pois remontam à Segunda Guerra Mundial, como a ONU, o BID, o Banco Mundial e, sobretudo, o Conselho de Segurança, que não tem a presença da América Latina, da Índia, da África do Sul, e à falta do debate entre todos os países do mundo interessados no assunto. Hoje, nada de maior frustação do que as Resoluções das Nações Unidas que não são cumpridas, são apenas peças de intenções.

Estes problemas estão na pauta da política exterior, e o Presidente Lula adotou todos eles como bandeira.

O Brasil, assim, mantém a sua tradição de diplomacia respeitada e de excelente qualidade — desde Rio Branco até hoje, conduzida pelo grande diplomata Mauro Vieira, competente e de grande experiência.

 

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As baleias das crianças

 

Quem possui muitos livros e tem o hábito de, à noite, visitá-los, percorrendo as estantes para encontrar determinado título, aprende que os livros são danados para “andar”. É que quem gosta de livro e vai durante a noite atrás de um específico na estante, ao se deparar com outro que atrai sua atenção, coloca este fora da prateleira para no dia seguinte buscá-lo. E começa a fazer isso com tantos que esquece o lugar onde cada um estava. Assim ao encontrar determinado livro fora do seu lugar fica com a impressão de que ele caminhou.

Foi assim que outro dia achei um livro, intitulado “Meu Amigo Presidente Sarney”, e fiquei alegre e curioso. Era um livro que o escritor Virgílio Costa organizou, com uma seleção de cartas endereçadas a mim, cartas ingênuas e belíssimas na pureza de seus sentimentos e pedidos.

A maioria das cartas pedia que eu proibisse a pesca da baleia, no caso a Baleia Jubarte, que chamavam carinhosamente de Jubá, estas que vinham para as águas quentes do Atlântico, na costa do Brasil, para reprodução e aqui eram submetidas a uma pesca predatória, para venda de óleo e carne, para consumo interno e algumas vezes para exportação. Essa exploração vinha desde o século 17 e continuava no século 20. Isso fez com que essas baleias estivessem já relacionadas em “espécies em extinção”. Em nosso País, no Nordeste, os Municípios de Baía da Traição e Rio Tinto, na Paraíba, eram o maior centro dessa pesca. Havia ali uma grande atividade industrial e mesmo de sustentação da economia da cidade, com muitos pescadores e comerciantes envolvidos no negócio. Também se praticava essa pesca em Salvador, na Bahia, e no Sul, no Município de Florianópolis, mas com menor intensidade. Essa exploração da baleia foi tão grande que, em 1987, calculava-se que só existissem 300 indivíduos das Jubartes. As crianças eram quem mais me pedia para proibir essa atividade, embora existissem muitos grupos com a mesma bandeira entre ambientalistas, ONGs e outros setores da sociedade, sempre com a resistência dos interessados na exploração, que alegavam que a pesca das baleias era fonte de empregos e uma atividade econômica, principalmente dos Municípios de Baía da Traição e Rio Tinto.

Eu resisti a todas essas pressões e, motivado pela minha consciência ecológica, proibi essa pesca. Agora pesquisando o assunto descobri que, desde a proibição até agora, o número de Jubartes aumentou de trezentos indivíduos para trinta mil em nossas águas. A espécie está fora da lista das “em extinção”, e hoje as baleias podem vir procriar em nossas costas — agora muito mais empregos foram criados no turismo, com o despertar da curiosidade de ver esse mamífero aquático gigante, que pode chegar a quarenta toneladas, charmoso por suas piruetas e peripécias, com gigantescas aparições. Como já são muitas, é fácil encontrá-las. Hoje o turismo para vê-las é muito grande.

Fecho esse artigo com Ana Cláudia, que hoje deve estar na casa dos 40 anos. Sua carta é bela. Eu me comovi ao reler seu pedido e ver beleza da sua carta. As crianças amam as baleias.

São José dos campos, 24/9/85. Querido presidente, não deixe que matem nossas baleias. Tenho 6 anos e nunca vi uma. Gostaria de ver um dia. Proíba a caça de baleia. Um beijo, Ana Cláudia.

 

Ana Cláudia, onde você estiver, saiba que ajudou a salvar as Baleias!

 

 

MDB vitorioso

 

No começo da República, o Brasil não teve partido nacional, adotou o modelo de partidos estaduais. A lei que criou o regime de partido nacional foi a de 1945, a chamada Lei Agamenon Magalhães. Então, surgiram o Partido Republicano, de Artur Bernardes; o Partido Socialista, de João Mangabeira; o Partido Libertador, ou melhor, parlamentarista, de Raul Pilla e assim por diante. O regime de 1964 extinguiu os partidos, com o Ato Institucional nº 2.

Bem ou mal, aqueles partidos do regime de 1946 tiveram líderes de peso nacional, como Otávio Mangabeira, Eduardo Gomes, Carlos Lacerda, Afonso Arinos e Virgílio de Melo Franco, Adauto Lúcio Cardoso, Bilac Pinto, na União Democrática Nacional; Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek, Amaral Peixoto, Israel Pinheiro, Gustavo Capanema, Ulysses Guimarães, no Partido Social Democrático; Brizola, Pasqualini, Jango, Fernando Ferrari, no Partido Trabalhista Brasileiro; além de muitos outros nomes também muito representativos.

Por mais defeitos que tivessem e críticas que sofressem, esses partidos eram uma forte escola de formação de líderes e pessoas de respeito na sociedade.

Em 1964, o Presidente Castelo Branco, o melhor de todos os presidentes nesse regime, desejava fazer eleições diretas — mesmo que fosse eleito o Juscelino, o provável vencedor. Feitas as eleições estaduais de 1965, pensou-se num sistema de dois partidos, nos quais se abrigariam, de um lado, os governistas e, do outro, a Oposição. Lembro que, para obter o número de parlamentares que o ato institucional pedia, Castelo fez um apelo a Rui Carneiro, grande expressão política do PSD da Paraíba, para filiar-se ao MDB, no que teve sucesso. Formaram-se assim as legendas de Arena e MDB, que se tornaram herdeiras desses grandes nomes tradicionais.

O MDB foi conduzido por idealistas e corajosos dirigentes, como Ulysses Guimarães, que se destacou com forte combatividade, abrindo o partido a nomes de todas as tendências que enfrentaram o regime militar; finalmente, em 1985, com a eleição de Tancredo/Sarney, voltamos ao Estado de Direito.

Assim o MDB é um grande partido histórico. A maior parte dos partidos que foram formados com a abertura democrática saíram do MDB. O nome do PSD, de Vargas, que desaparecera, agora ressurgiu com o Kassab, mas sem os velhos pessedistas do passado.

Todos achavam que o MDB marchava para esse destino depois do fracasso de Ulysses nas eleições de 1989 e sua morte posterior. Realmente o Partido entrou numa fase de declínio.

Agora, nas últimas eleições municipais, o velho MDB mostrou que está vivo, com suas raízes fortes.

Devemos reconhecer que a nova geração pegou a bandeira do Partido, incorporou suas lutas e tradições, e o MDB ressurgiu como o segundo maior partido em governo de prefeituras do País: fez 864 prefeitos, sendo o primeiro em número de eleitores: 27,9 milhões de votantes.

Quero louvar o Presidente Baleia Rossi, que está à frente dessa significativa vitória e tem feito um trabalho notável, super aplaudido por todos. Ele tem buscado a união e a ampliação dos nossos quadros, cultivando a convivência com todos os partidos e posicionando nossos ideais junto ao Governo e à Oposição nas alianças e votações.

Eu quero ressaltar que o MDB é o partido que comandou as lutas que levaram à implantação da democracia e possibilitou, quando eu ocupava a Presidência da República, a Transição Democrática — que, no dia 15 de março do próximo ano, completa 40 anos.

Como Presidente do Honra do Partido, quero proclamar o nosso reconhecimento pelo trabalho vitorioso realizado pelo nosso companheiro Baleia Rossi, como Presidente do Partido.

 

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