José Sarney

Um País confiável

 

Quando do término da elaboração da Constituição de 1988 tive a oportunidade de dizer que, embora não fosse perfeita, tínhamos de concluí-la para que a nossa Carta Maior coroasse a Transição Democrática e assegurasse que o País fizesse da melhor maneira a travessia de um regime autoritário para um regime de liberdade absoluta. Nesse sentido, era crucial promulgar a Constituição possível.

 

Assim ressaltei que a nossa Constituição era híbrida, parlamentarista e presidencialista, o que sem dúvida provocaria no tempo conflitos de competência entre um poder e outro. E agora estamos assistindo a essas disputas entre o Legislativo e o Executivo, além da recorrente acusação de ativismo judicial contra o Supremo Tribunal Federal, que estaria invadindo a competência do Congresso.

 

Nessas disputas a mais séria é o caso das medidas provisórias. Quando eu fui por oito anos presidente do Senado, tentamos várias vezes uma solução para que essa legislação não se tornasse rotina, aí sim, legislando com amparo na Constituição, mas invadindo costumeiramente o que seria atribuição de outro Poder.

 

A verdade é que no momento estamos vivendo um excesso de crises, como dizem os franceses nesses instantes. É crise nos preços, nos juros, no IOF (esta, um cabo de guerra), e para não ficar somente entre nós, vem Trump e impõe uma tarifa para o Brasil de 50% — um problemaço porque afeta todos os setores produtivos brasileiros complementares da economia americana. E ainda se enfrenta o grande embaraço de um presidente dos Estados Unidos que não tem a visão do que o seu país representa para o mundo e não respeita seus aliados e seus vizinhos. Como se não bastassem as nossas crises, temos que solucionar mais esta, certamente a maior, que tem conotações políticas e envolve empresas pessoais americanas, objeto de punição pela alta Corte da Justiça brasileira, uma vez que essas empresas são impedidas de veicular, no Brasil, materiais com propaganda de ódio e conteúdo antidemocrático, ambos proibidos pela legislação brasileira.

 

É triste sentir e constatar que os negociadores da crise do IOF não têm alcançado os resultados que eram de se esperar, pois eles têm autoridade e legitimidade para cuidar dos interesses nacionais, e não dos de grupos de pressão que atuam nessas ocasiões defendendo seus interesses — e não os do país.

 

Invoco mais uma vez meu testemunho sobre a origem desse inevitável imbróglio. A parte sobre o sistema tributário na Constituição de 1988 foi um dos textos que me levaram a dizer que o País se tornaria ingovernável e que a parte relativa ao consumo inovava perigosamente. A taxa do ICMS nas relações entre os Estados era feita pelo Senado Federal. Vem a Constituição e determina que seja da competência de cada Estado da Federação. O resultado é que temos hoje 27 taxas, cada uma refletindo os interesses de cada uma das unidades da Federação, que aumentaram significativamente à proporção que necessitavam de recursos. Isto aumentou muito a carga fiscal. Por outro lado, também o governo federal ao longo destes 40 anos tem aumentado seus impostos, enquanto a Câmara aumenta as despesas.

 

Por que então o País não ficou ingovernável? Porque aumentamos a carga tributária, o equilíbrio orçamentário desapareceu, e os impostos que recaem sobre o povo ficaram extorsivos. Se não encontrarmos uma solução para isso, dentro de três anos, aí sim, vamos enfrentar uma crise insolúvel. Nesses momentos as instituições têm de ser muito fortes para não serem atingidas. Lembremos Otávio Mangabeira quando dizia que “A Democracia é uma planta tenra que precisava ser cuidada constantemente.”

 

Não é possível que nossos líderes na Câmara e no Senado, com nosso competente, experiente e preparadíssimo Ministro Fernando Haddad não encontrem o caminho certo para o entendimento. Lembro-me do discurso inaugural de Tancredo Neves, que li perante o Ministério em 17 de março de 1988. Ele dizia: “É proibido gastar!” (A exclamação é minha.) E hoje podemos acrescentar: “E aumentar impostos!”

 

Assim, encerro esta exortação pedindo que abandonemos os discursos de ódio, passemos a considerar a opinião alheia, evitemos negociar pedindo ao outro lado o que jamais se pode aceitar e passemos a olhar mais para as responsabilidades que repousam nos ombros de quem exerce qualquer poder.

 

O Brasil precisa de Paz para continuar a ser o que sempre foi: um País confiável!​

 

História de Amor e Saudade

 

Este espaço é dos leitores. Não deve expressar sentimentos que sejam pessoais, por mais justificáveis que sejam. Mas o meu tema de hoje, embora pessoal, é daqueles que merecem uma meditação universal: a relação entre pais e filhos, os valores da família, o amor e a morte.

Minha mãe, se estivesse viva hoje, dia do seu aniversário, 4 de julho de 2025, faria 114 anos. Por ela vou orar em missa que mandei celebrar em sua memória na Rede Vida e na igreja que ela pediu para construir, com a invocação de Nossa Senhora, hoje Igreja de São Luís Rei de França, que inspirou o nome da capital do Maranhão.

A visibilidade pública cria um estereótipo do político como sendo uma alma de gelo, com a vaidade de parecer forte e invulnerável, de ser um fingidor da “dor que deveras sente”. Felizmente, tenho todos os defeitos das mais frágeis e indefesas criaturas, as fraquezas do amar e do sentir.

Minha relação com minha mãe sempre foi muito forte. Era devoção e segurança. Meu pai morreu cedo, mas recebi a graça de ver minha mãe chegar aos 92 anos. Mas não há tempo nem idade para aceitar a morte. Evitava essa ideia. Hoje sinto como é difícil o meu mundo sem a sua presença. Os vínculos com meus antepassados acabaram-se com minha mãe. Todos estão mortos. Meus ombros pesam nas incertezas das raízes que agora sou e que amanhã também morrerão para crescerem outras, que um dia também se renovarão no mistério da vida.

Tenho outras confissões. Junto à minha mãe, não conseguia envelhecer. Julgava-me sempre o menino do seu carinho, um velho de 74 anos no tempo de filho, sem idade. É esse mundo que acabou.

Fui testemunha da sua vida e do seu exemplo. Menina, aos 14 anos, num desses dramas que separam as famílias, com seu forte caráter, ficou ao lado do pai, meu avô, e com ele saiu de Correntes, em Pernambuco, fugindo das secas em busca dos vales úmidos do Maranhão. Fugia da seca e do destino. De saúde frágil, viveu a pobreza mais dura. Nunca ninguém ouviu de seus lábios um lamento, nunca alterou a voz, nunca discutiu com ninguém. Ensinava pelo exemplo. Nas crises falava pelo silêncio.

Sei que existe fé porque vi minha mãe professar a fé com a força de todas as crenças. Sei o que é ser cristão porque ela era cristã: amava a todos, oferecia a outra face do rosto, sabia o que era o próximo no exercício da oculta caridade. Sei o que é a força da oração porque vi minha mãe orar a vida inteira e tudo conseguir orando, dias e noites agarrada às contas do terço e com os olhos “nos olhos do crucificado”.

Sua casa sempre foi cheia dos filhos, netos, bisnetos, tataranetos e dos filhos que adotou e criou e de todos que dela recebiam carinho e abrigo. Nunca deixou que o poder entrasse em sua casa, nunca lhe ofereceu cadeira larga na varanda. Ninguém conhece um gesto seu de interferência, uma atitude de ressentimento ou de censura. Mas não faltou nunca a predicação dos valores morais, da ponderação, do equilíbrio, do respeito às pessoas. Era pobre porque nunca quis ter nada. Sua casa era um exemplo de simplicidade e despojamento. As luzes que a enfeitavam eram suas velas e candeias.

Era uma mulher forte-frágil. Deus deu-lhe a graça de chegar ao fim da vida sem o menor sinal de senilidade. Sua cabeça era límpida e clara. Escreveu carta aos filhos. Era uma canção de gratidão pela vida, de agradecimento a Deus. Seu pedido: que fosse enterrada no mais simples caixão, com sandálias e num pobre vestido branco, que, às escondidas, com a cumplicidade de uma filha, mandara fazer. Que os filhos continuassem a manter os pobres que ajudava. Seu pedido será sempre atendido. Ela está no Céu. Para mim é Santa de Altar.

Ela bem merecia aquilo que Bandeira escreveu em Irene no Céu: “Pode entrar, você não precisa pedir licença”.

Esta é uma história de amor de um menino de 95 anos que não tem mais seu tesouro, e uma saudade que não passa permanece em seu coração, em sua alma, em sua vida.

 

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E nós, depois?

 

O último livro do Yuval Harari que eu li, Nexus, me assustou. Ele nos diz que vem aí, daqui a 200 anos, uma civilização que vai substituir a nossa, a dos computadores, e que essa civilização terá outros sentimentos que não os nossos. O amor não será o nosso, nem o ódio, nem o perdão. Nem as crenças serão as nossas. E ainda que, como hoje temos as nossas mitologias, essa civilização também terá as suas, e por aí ocorrerá a extinção dos humanos como eles são hoje, substituídos por uma fornada de humanos que terão outras emoções, diferentes das nossas. É de alarmar. Não será mais para mim nem para nós! Ninguém do nosso tempo verá isso.

Lembro-me de uma anedota, entre as muitas que ouvi em Roma, quando do Concílio do Vaticano II, que se contava de dois cardeais que se dirigiam para a reunião, eles bem velhos, um disse para o outro: “Devemos nos levantar para extinção do celibato na Igreja Católica.” O outro respondeu: “Mas não será mais para nós, não é?”  Ao que seu interlocutor, acrescentou: “Mas será para nossos filhos.”

No nosso caso, nem para os filhos dos nossos filhos.

Mas quando eu pensei nessa gente daqui a duzentos anos tive muita pena deles. Não assistirão ao jogo do Flamengo contra o Chelsea, nem ao carnaval do Rio e nem à festa de Nazaré em Belém, nem ouvirão O Peba na Pimenta, do João do Vale, nem O Siri jogando bola, do Luiz Gonzaga, nem poderão ver o Lula vencendo na eleição o José Serra, nem o programa do Chacrinha — e também não poderão chorar a tristeza de uma saudade, como a que sinto do arcebispo e cardeal de Brasília Dom Falcão.

Eu quis experimentar como será esse novo humano: coloquei-me em frente do meu computador e entrei no futuro: havia doze dedos em minhas mãos — seis dedos em cada mão, como O homem que matou Getúlio Vargas, “descoberto” por Jô Soares —, e meu computador não usava mais o sistema binário, de zero e um. Era um algoritmo que fazia o papel de zero e outro que fazia o do um. O sistema binário havia desaparecido, substituído por uma nova linguagem em que não tínhamos mais zeros. Como não existir zero, número do nada que passa a ser tudo a partir do 10, 200 etc? Ainda com minha “roupa de futuro”, vi que o registro dos séculos estava escrito com cinco dígitos! A partir daí eu não entendi mais nada, saí da máquina imaginária, que também não era mais o meu computador.

Mas essa gente do futuro, de qualquer maneira, vai ter que opinar e também ficará revoltada com essa matança em Gaza. Lembro-me do romance de Huxley, Sem Olhos em Gaza, muito diferente da realidade de hoje, com grande crítica da sociedade, a descrição da vida de Anthony Beavis, sua conversão e um grande sentimento de paz.

O que há de verdade no livro do Harari? Tudo e nada. Tudo porque diz dos avanços da era digital. Nada, porque faz previsão do que acontecerá com a nova tecnologia sem que se possa basear em nada de concreto.

A descoberta dos computadores data dos anos 1960. Em 1980 começou a ter um desenvolvimento tecnológico extraordinário até chegarmos aos dias atuais em que entramos na era da Inteligência Artificial (IA). E é a grande moda — para não dizer a grande preocupação dos cientistas — antever o que acontecerá com as IAs, até saber se as máquinas se revoltam, ou não, contra o criador, no velho ditado popular de que toda criatura se revolta contra o seu criador. Isso, na nossa civilização, na política, é lei: acontece sempre. Não só na política como também na administração pública.

Quando eu era presidente da República e tinha que escolher em uma lista tríplice para nomear uma autoridade maior — ministros dos tribunais superiores, presidentes do Banco Central, de agências e demais cargos —, o José Hugo, então Chefe da Casa Civil, me advertia: “Aqui está uma lista para o senhor escolher um nome. Naturalmente, dois ficarão zangados porque preteridos, e o nomeado será um traidor, porque vai dizer sempre que nada deve ao senhor, e sim aos seus próprios méritos. Então, o senhor terá dois inimigos e um traidor. ”

O que há de verdade é que os computadores já estão conversando entre eles mesmos, sem dar bola aos seus criadores nem aos provedores que os alimentam.

As operações financeiras de mais de sete trilhões de dólares, diariamente, têm mais de 90% de suas operações feitas por computadores — uns falando com outros computadores e chegando a encontrar o valor do câmbio.

Como anotou Harari, “Em 2017, só os homens podiam disseminar mensagens anônimas online. A partir do ano passado, sofisticação linguística e política similares podem facilmente ser compostos por computadores, independentemente da interferência dos homens. ”

Assim os computadores já estão independentes e podem fazer tudo. Não dependem mais de nós. Péssima notícia.

Mas eles precisam de muita energia. E isso depende de nós.

É verdade que essa turma não precisa aturar o Trump com suas vacilações.

E nós, depois? Vamos torcer pelo Flamengo, e os algoritmos vão chupar dedo!

 

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A Pós-verdade

 

Estamos vivendo coisas com que nunca sonhamos. Uma delas, a pós-verdade, que colocou a mentira no lugar da verdade, que deixou de ser o que é para tornar-se o que as emoções da rede social definiram como verdade. O fato foi substituído pela narrativa.

As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres. Podemos, numa tela vazia em nossa frente, por artes de Deus ou do diabo, ver o que se passa em todos os lugares do mundo no instante mesmo em que estão acontecendo. Com uma pequena caixinha que cabe na palma de minha mão, posso localizar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo e falar com ela, através dela me comunicar, saber e transmitir notícias, prever o tempo, fazer cálculos matemáticos e recuperar mensagens que me mandaram de outra máquina fabulosa — sua excelência, o computador —, que com um teclado que também me conecta com todo o mundo no mesmo instante que me fornece todas as informações que desejo, milhões e milhões de dados sobre tudo, a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, que vão se multiplicando quando alguém mais se junta a esse processo, que não tem limites e atinge o infinito, que é o conceito de rede.

O que acontece com nossa cabeça que foi da cultura oral, fez uma pausa no livro e de repente caiu na era da cultura visual? Que mudanças aconteceram em nossa maneira de pensar, nos costumes e nos sentimentos que durante milênios criaram a criatura humana que a História formou até agora? Nós nos acostumamos a conviver com a alegria, com a tristeza, com o amor em todos os seus níveis, com a noção de trabalho, com os valores da família, os sentimentos de ódio, da cólera, da violência, tudo isso de maneira artesanal, criando outro mundo, outra sociedade para a qual não estávamos preparados, diferente, com coisas que não podemos dominar, outro mundo a que buscamos nos adaptar, e não ele a nós.

Tudo mudou. Vivemos nossas circunstâncias, em que são as da realidade. Porém nossa realidade não é realmente a realidade. Nossos sentimentos e nossas reações estão sendo reciclados e já não são o que nos faziam acreditar. “O que em mim sente está pensando”, dizia o verso de Fernando Pessoa. Só que hoje, sentir e pensar não são mais faculdades do ser individual e sim do ser coletivo que somos.

O amor deixou de ser o amor como o concebíamos no passado. O mesmo acontece com a amizade, com a noção de convivência, com o ódio e a cólera. Estamos perdendo até a indignação, todos submetidos ao uso de uma droga tecnológica. As próprias drogas fazem parte deste contexto. A diferença é que estas são substâncias químicas para a sublimação dos prazeres. A droga da modernidade, com a parafernália de comunicação, nos impõe uma situação mais perigosa que a de não ter a liberdade de ingeri-la, porém, a obrigação de consumi-la.

O culto da velocidade. Não temos mais a liberdade de andar. As distâncias, o estilo de vida que foi criado nos fez dependentes da velocidade, do patinete, da bicicleta, da moto, do carro, do ônibus, do trem, do avião. Já não tem sentido escrever cartas. A civilização é oral, é o telefone. Escrever passou a ser algo atrasado. Escreve-se para confirmar o que se falou. Fala-se por telefone, por fax, pelo computador, pelo cinema, pela televisão, pelas redes sociais na internet.

Vemos perplexos que somos um grande laboratório e que estamos nos transformando com todas as mudanças que acontecem no mundo. É como se estivéssemos chegando ao desaparecimento da espécie de homem que foi o homem e que fez a História que chegou aos nossos dias.

Estamos em meio a estas perplexidades que são mais de segurança que de dúvidas. Nossas reações são condicionadas pelas inseguranças que nos rodeiam. Já não sabemos o que é bom e o que é mau. Nossos códigos de ética e comportamento individual, aquelas leis que cada um de nós processa dentro de si ao longo da vida, de um momento para outro estão questionadas pela realidade virtual. São os meios de comunicação que nos condicionam, e de tantas informações que nos chegam já não podemos distinguir o que é verdade e o que é mentira… As verdades são tantas que é impossível saber qual delas realmente é a verdade. Abrimos os jornais, vemos televisão, navegamos na internet, e a soma de informações que nos chegam são tão grandes que não podemos estabelecer uma escala de valores para absorvê-las.

Estamos dentro da bolha da rede social na internet, da qual é impossível fugir. A tarefa de sair tornou-se inexpugnável.

São tantas as versões que existem sobre uma verdade que é difícil descobrir onde está escondida a verdadeira mentira.

Ilustração: “Squelette arretant masques” (1891): a obra de James Ensor é famosa pelos seus desenhos e pinturas de máscaras e multidões que utilizou como crítica social da hipocrisia e da mentira

 

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Quanto vale um Deputado?

 

Como reagir ao saber da notícia de que, em Mato Grosso, a Polícia Federal chegou ao fim de uma investigação para saber quem tinha assassinado o advogado Roberto Zampieri, que estava permanentemente lutando contra a corrupção na Justiça naquele Estado, e, quando concluiu o trabalho, o que a Polícia encontrou, para o estarrecimento de todos e vergonha para o País? Uma empresa estruturada com uma tabela de preços para a prática de crimes hediondos, chegando ao maior deles:  o homicídio.

Na tabela, os criminosos precificaram um deputado: vale cem mil reais. A revelação desses fatos nos levou à indignação, sentimento que chegou também a toda a sociedade. É, sem dúvida nenhuma, a perspectiva ou certeza de impunidade. Só esta hipótese pode explicar tanta ousadia. Não uso “coragem” porque esta é uma palavra que não pode ser aplicada para bandidos, para o mundo do crime.

Como os tempos mudaram! Nessa linha penso no Maranhão do século 19, quando o A Pacotilha, combativo jornal de S. Luís, publicava anúncios de um poeta oferecendo-se para fazer versos a preços módicos, colocando uma tabela de preços que eram proporcionais ao sentimento que o freguês tinha: versos de amor: 50 réis. Se fosse soneto, dobrava o preço para 100 réis. Quando o pedido era do marido enganado, que estava doente pelo amor perdido e desejava matar de inveja seu concorrente sedutor, o preço era maior que todos os outros, 200 réis. O poeta dizia que o aumento do preço era pela dificuldade que tinha de sentir essa desgraça. Naquele tempo dos réis, o dinheiro tinha um valor que não se pode comparar com o de hoje em dia.

Agora a política no Brasil está sendo levada pelo ódio e pelo ressentimento. Não acho que seja por programas de direita ou de esquerda. É mais um sentimento partidário e coletivo de dirigentes em busca de poder. E para isso o gosto de ganhar leva os ânimos a ficarem fora de controle.

Quando a política era colocada em torno de questões ideológicas, como no final do século 19, a discussão entre Rosa Luxemburgo, apelidada de “Rosa la Roja”, e Eduard Bernstein, sobre Reforma e Revolução, foi central para o movimento socialista. Muito depois Lenin impôs sua concepção leninista, invocando Clausewitz, o autor do livro Da Guerra (Vom Kriege), um clássico até hoje dissecado por estudiosos, afirmando que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Lênin estendeu essa ideia de Clausewitz, dizendo que se deveria aplicar à política as “leis da guerra”.

Assim na política não se teria adversários, mas inimigos, pois ela seria uma luta de classes que se estabelecia nos partidos burgueses, formados de inimigos do povo, e assim adversários eram inimigos que deviam ser eliminados. Paradoxalmente, hoje Benjamin Netanyahu, alegando motivos religiosos, pratica o extermínio dos palestinos, o que provoca a revolta mundial porque não se entende como se pode fazer da fome arma de guerra, como ocorre em Gaza.

Lembro do nosso poeta Bandeira Tribuzzi: “Que tempos de viver-se! Quando a fome / é crime, crime o canto e a liberdade / falso lema de gritos e histerismos, / vai perdendo a beleza que criara / entre as patas e o cântico das balas / assassinas de peitos sem defesa / como lírios entregues ao delírio / das razões em razões da força estúpida.”

Mas no Brasil não existe nenhuma dessas hipóteses de guerra: há um anarcopopulismo que torna a atividade política uma bagunça, sem partidos e sem ideologias, o que faz com que os programas e as doutrinas desapareçam e haja somente os dirigentes voltados a pensar na vitória — e para ela vale-tudo.

Mas tudo isso não é causa: é efeito de uma estrutura de sistema eleitoral impossível de continuar, baseado nas pessoas e com sistema de votação arcaico, que não existe em lugar nenhum do mundo, servido por um presidencialismo de composição.

O sindicato do crime assim é uma manifestação de violência que não pode ser aceita. Esses matadores de agora não devem ser considerados senão como criminosos que são, e seus crimes devem ser investigados até o fim e punidos com rigor.

Vai-se o tempo, e a minha terra com seu mercado de poesia cobrando preços irrisórios, com o poeta com sua empresa limitada e individual e seus sonetos de amor.  Ao contrário dessa firma ignominiosa de Mato Grosso, que é uma sociedade anônima com muitos sócios.

Quero lembrar novamente versos do grande poeta maranhense Bandeira Tribuzzi, que diziam: “Que sonho raro / será mais puro e belo e mais profundo /do que esta viva máquina do mundo?”

É hora de acabarmos com o ódio e marchamos para uma convivência civilizada em que os nossos juízes, deputados e senadores, tão atacados, se entendam nas divergências e se unam no interesse público e melhorem o apoio do povo a seu trabalho.

Cadeia para os bandidos e, aí sim, maldição a esses que mancham o Brasil.

Crédito da imagem: Maurenlson Freire/Correio Braziliense

 

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O mau político

 

Eu fui a São Paulo receber uma homenagem da USP – Universidade de São Paulo, na sua tradicional e famosa Faculdade de Direito, conhecida como Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde, numa solenidade especial, comemoramos os 40 Anos de Democracia no Brasil. Ressaltei o significado desse encontro com uma grande e qualificada audiência, formada de professores, formandos de diversos cursos e convidados políticos, que, em grande número, prestigiavam aquele evento. Procurei louvar a nossa Transição Democrática, o que representa para nós essa consciência de que a Democracia nos deu a Liberdade e, por meio dela, o direito à cidadania plena.

A Liberdade tem um poder criativo extraordinário. Cheguei a afirmar, nas Nações Unidas, num discurso que fiz quando assumi a Presidência da República, que a Democracia era o caminho do desenvolvimento e, depois, pensei bem e lembrei-me da China, que nos contraria esse nosso entendimento, e de que Thomas Jefferson foi quem definiu a Democracia como a conquista da Liberdade, e pudemos acrescentar, naquela oportunidade, que ela não foi feita para resolver problemas econômicos, cujo alcance depende de pessoas e circunstâncias. Ele também acrescentou a esse conceito a “busca da felicidade” entre os direitos do homem.

Jefferson era um homem do saber. Falava oito línguas, a começar com falar latim, grego e hebraico, além de possuir uma vasta cultura que incluía grande conhecimento de arqueologia e antropologia, o que inspirou John Kennedy a dizer a frase tão repetida nos Estados Unidos: “…a não ser quando Thomas Jefferson jantava sozinho nesta sala da hoje Casa Branca.” Kennedy afirmava, então, que Jefferson tinha mais cultura e inteligência que aqueles seus convidados — sessenta ganhadores do Prêmio Nobel, que jantavam naquela noite com ele, Kennedy, Presidente dos EUA!

Entrei numa estrada lateral. Mas prossigo na homenagem da Faculdade do Largo de São Francisco. A minha palestra foi sucedida por respostas a algumas perguntas. Uma delas era que conselhos daria aos jovens que queriam entrar na política.

Minha primeira observação foi a de que há políticos e Políticos, com P maiúsculo, como dizia Joaquim Nabuco a respeito do seu pai, o Senador José Tomás Nabuco de Araujo. Aos primeiros, atribuo o fato de considerarem a política como profissão ou emprego, e assim estão voltados para interesses que não os da atividade política. E assim pensam em si mesmos, nos seus interesses pessoais, em sua remuneração e, não raro, quase permanentemente, estão visando vantagens e ganhos de dinheiro associados a prestígio, uso de jabutis nas emendas da legislação e outras atividades indevidas. Estes são os maus políticos, que desmoralizam a política e mancham a imagem dos verdadeiros Políticos. Devem ser objeto de identificação e repelidos pelos eleitores e por toda a sociedade.

Os com P maiúsculo são aqueles que pensam nos outros, na sociedade, no seu próximo, no seu Município, no seu Estado, no seu País, na Humanidade. Têm ideologia, programa de ação e conduta moral e política ilibadas. Zelam pela política, protegem a administração pública, têm espírito público moral.

Aos jovens que desejam entrar na política, eles primeiro têm que escolher qual das duas espécies de políticos desejam ser.

Se forem os da primeira, digo para jamais entrarem ou pensarem em entrar na política. Serão infelizes e provocarão a infelicidade dos outros, da sociedade, além de manchar o nome de sua família. Procurem emprego e cumpram seu destino individualista.

O outro caminho é o de Políticos de que precisamos, dos que dedicam sua vida aos outros, que pensam nos seus semelhantes, que desejam melhorar a sorte do seu torrão natal, do seu Município, do seu Estado, do seu País, da sua sociedade, da Humanidade.

Para esses, devo dizer que o primeiro passo é o de saber se têm vocação de liderança. Se desejam mudar o mundo. Se têm utopias, se têm fé. Se acreditam na esperança e caridade. Devem estudar, ter uma base de cultura humanitária e saber trabalhar em equipe.

Venham se juntar aos jovens políticos, busquem o exemplo dos velhos bons políticos. Abominem a corrupção. Tenham um ideal.

E, para mim, homem de fé, devem acreditar em Deus. Sejam cristãos.

 

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O novo Papa – Leão XIV

 

Está muito cedo para saber-se o que aconteceu nas quatro sessões que levaram os cardeais a escolher o Cardeal Robert Prevost, americano e peruano, para tornar-se o Papa Leão XIV. Ele adquiriu a nacionalidade peruana, uma vez que a legislação daquele país exige que todo cidadão que esteja há mais de dez anos ali se naturalize peruano. Só ele pode dizer se foi uma vontade pessoal e um amor que cresceu ou se apenas cumpriu uma exigência legal. O certo é que, de uma forma ou de outra, a legislação pode ter influenciado na sua escolha.

É outro Papa da América Latina, o que assegura uma continuidade do Papa Francisco e, ao mesmo tempo, revela que sua escolha tem o DNA do seu antecessor — a rapidez da escolha também revela isso. Francisco tinha uma marca de vivência peronista e, por esta marca, distanciou-se de Milei: durante seu papado, não visitou a Argentina. As ideias do atual mandatário, de estado mínimo, estão muito distantes das do Papa Francisco. A verdade é que ele foi criado e vivia na Argentina durante quase todo o período em que Perón governou o país. Contudo, não foi esta a marca do seu funeral: ele distanciou-se destas ideias raiz e terminou glorificado com a presença dos presidentes e dignatários dos maiores países do mundo. Não se pode deixar de analisar a presença de Trump e a necessidade de confrontá-lo com a liderança católica, moral e política do Papa. O mesmo que ocorreu com João Paulo II em relação ao mundo comunista e a Cuba.

Vou me aventurar a entrar na Capela Sistina e testemunhar como ocorreu a escolha do Novo Papa.

A primeira votação é a rodada das homenagens, cada um votando no cardeal amigo ou preferido. Na segunda, é a hora dos privilegiados, aqueles que entrarão papáveis e sairão cardeais, entre eles os burocratas da Cúria — e aí perderam os italianos. Naturalmente foi uma discussão acirrada, o que obrigou, após a terceira rodada, os seguidores de Francisco e por ele nomeados cardeais (dois terços) a abrirem o jogo e lembrarem o voto de gratidão, pois Francisco já tinha preparado a indicação do Cardeal Prevost, latino-americano e americano. Bastou essa explicitação para que, na quarta votação, se chegasse à escolha do novo Papa: continuidade de Francisco, conduta marcada pelo estilo latino-americano de Igreja dos pobres, despojada, mas canônica, sem esquecer sua liturgia e pompa.

Mas o Papa Leão XIV nasceu e cresceu nos Estados Unidos, sendo cidadão americano; portanto, sem raiz na pregação da miséria e da fome. Seus temas são raciais e políticos, sua relação com o mundo é a de levar a mensagem da democracia, na formulação de Jefferson, de que todos nascemos iguais e temos o direito da busca da felicidade.

A formação de Leão XIV já diz do seu equilíbrio. Primeiro estudou e formou-se em matemática, ciências exatas e, segundo, em Filosofia, abstração. São duas matérias que levam a uma confluência: a aridez da matemática e a caridade nos direitos humanos. Assim, a personalidade deste Papa é sedutora. Sai da amplitude de sua formação para os compromissos de sua eleição ao escolher o nome de Leão, tendo como antecessor o mais notável da doutrinação da Igreja, Leão XIII, que, em meio às perplexidades e injustiças trazidas pela Revolução Industrial — contrapondo ao Manifesto Comunista de 1848, de Marx e Engels, e ao capitalismo de Adam Smith —, aponta o caminho da Igreja: a Rerum Novarum, como seu braço temporal.

Leão XIV escolheu um grande desafio com um grande peso. Será que ele vai adiante? É difícil, mas não impossível. Ele está ao lado de Santo Agostinho, já que é o primeiro papa da Ordem de Santo Agostinho, e o segundo dos mais notáveis — como Leão XIII, que deu à Igreja a sua doutrina social, a Rerum Novarum.

 

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O que é CPLP?

 

Eu era Presidente da República, e Mário Soares, Presidente de Portugal. O meu telefone toca, era o meu amigo Mário Soares, de Lisboa. Como é o costume português, o interlocutor perguntou: “Está lá?”  Respondi, também no mesmo costume português: “Estou, estou!”  Nada de “Alô, alô”, como respondemos no Brasil. Ele diz: “Senhor Presidente, sei que estão realizando uma nova Constituição e venho pedir-lhe que nela conste que a língua oficial do Brasil é a Língua Portuguesa”. Respondi-lhe: “Mas, caro amigo, esta é mesmo a nossa língua e já falei ao Ulysses Guimarães que assim o faça.” E dessa forma ficou registrado em nossa Constituição. Disse ainda ao Presidente Mário Soares que desejava mesmo fazer uma reunião no Brasil para fundarmos uma comunidade de países que falam a língua portuguesa. Portugal estava de acordo, disse-me ele.

Encarreguei o Itamaraty de mobilizar nosso serviço diplomático na África para convidar, pessoalmente, todos os Presidentes dos países lusófonos para um encontro em São Luís, no Maranhão, onde faríamos uma primeira reunião.

Para minha surpresa, os africanos reagiram, recusando-se a participar de uma reunião com Portugal para criação de uma comunidade, alegando estarem num momento de proximidade da descolonização e serem muito recentes as cicatrizes deixadas pelos colonizadores, tudo ainda à flor da pele. Diante desse impasse, sugeri que fizéssemos a reunião não para criar uma comunidade, mas para criar uma instituição, o IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), com foco na defesa da língua portuguesa e de caráter eminentemente cultural. Assim todos concordaram — com exceção do José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola, que não veio, mas enviou representante, justificando sua ausência pela indisposição de se reunir com Mário Soares.

Dessa forma, a língua mostrava o seu efeito unificador e sua neutralidade, constituindo-se patrimônio de todos nós. Anos depois, com a concordância geral, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa tornou-se CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), um grande e prestigiado organismo internacional, com sede na África, em Cabo Verde, presidido, em rodízio, por todos os presidentes dos países onde se fala português.

No dia 5 maio, nesta semana, celebramos o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Essa data foi estabelecida pela CPLP — que se tornou uma organização parceira oficial da UNESCO em 2000 —, que nasceu em São Luís do Maranhão.

A Academia Brasileira de Letras foi fundada há mais de 100 anos e, na sua instalação, dois grandes escritores, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, estabeleceram as diretrizes, sintetizadas em duas condutas: defender a língua e a tradição.

Eu, por artes do destino, sou hoje o decano da ABL e assim tenho a obrigação, como político e intelectual, de defender — como o fiz na criação da CPLP — essa nossa extraordinária língua de cultura, hoje falada por quase 300 milhões de pessoas.

Nestes últimos quinhentos anos, o português transformou-se de um idioma oceânico em um idioma continental.

Ao iniciar, no século XV, sua expansão para fora da faixa mais ocidental da Península Ibérica ganhou primeiro o Atlântico e depois o Índico, fixando-se nas ilhas e nos pequenos e numerosos portos ao longo das praias que bordejam o que os gregos chamavam de Rio Oceano. Língua de marinheiros, tornou-se o idioma de ligação dentro dos breves espaços das feitorias e o falar do comércio com os povos que lhes eram vizinhos. Impôs-se como língua de beira-mar e de viagem, insulana, quer a cercasse o mar ou a isolassem a estranheza e a hostilidade das terras que a envolviam. Isso não impediu que se tornasse a língua franca do mercadejo nos litorais da África e do sul da Ásia, que se fizesse a língua de corte, a exemplo do que sucedera com o francês na Europa do século XVII, em reinos africanos como os do Benim, do Congo e do Warri, que entregasse palavras e modos de dizer a numerosas línguas, do iorubano ao japonês, que marcasse profundamente não só o vocabulário, mas também a sintaxe de idiomas como o papiamento e o urrobo, que criasse novas línguas, como os crioulos de Cabo Verde, de Casamansa, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe e de Ano Bom, e os papiás de Málaca, do Ceilão, de Macau, do Timor e da índia.

O açúcar, o ouro e o gado fizeram-na, com relativa rapidez, ganhar o interior do continente sul-americano. E, se mais lento foi o avançar pelos planaltos africanos, subiu o Zambeze e se instalou nos “prazos” de Moçambique e percorreu, em Angola, o Cuanza, o Loja, o Dande, o Cuvo, fixando-se, ali e acolá, em entrepostos, vilarejos e acampamentos de pombeiros. Abandonou, pouco a pouco, sua insularidade. Saiu dos navios e das praias, para expandir-se terra firme adentro, acabando por consolidar-se num imenso espaço territorial, terra que se tornou a América Portuguesa, um dos mais amplos espaços do mundo em que se fala o mesmo idioma. E fala-se o mesmo idioma com invulgar unidade, uma unidade que se superpõe aos regionalismos que o enriquecem e que o tornam, sem qualquer esforço, naturalmente compreendido por todos os que o falam ao longo do grande arco que corre da Europa até Timor-Leste.

 

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O livro não morrerá

 

Na semana passada comemoramos o Dia Mundial do Livro (23 de abril), com letra maiúscula, pois o Livro é o meu maior amigo, que Deus me deu no meu nascimento e me acompanhará até o fim. Acredito que vinte por cento da minha vida tenho passado o tempo em sua companhia.

Um dia, em São Paulo, ao almoçar com Elio Gaspari, ele me tranquilizou dizendo que duas coisas não iam acabar com a ameaça dos avanços da internet e do livro digital e concluiu: o jornal e o livro não acabarão nunca. Concordei e fui sedimentando essa convicção.

Hoje sei que alguns segmentos do livro foram atingidos: as enciclopédias e os dicionários já morreram. As minhas enciclopédias Larousse e Britânica já estão com doença terminal autoimune: olham-me com os olhos de amargura, pois há muito tempo não as procuro. Estou de amores novos com a Wikipédia.

Há sete anos participei da Feira do Livro de Guadalajara, convidado por seu presidente, Raúl Padilla López, a maior feira do livro em espanhol do mundo — um extraordinário conjunto com imensos espaços, onde se realizam palestras, seminários, com autógrafos de grandes autores. Ali encontrei García Márquez, Vargas Llosa, Miguel de la Madrid, Nélida Piñón, Marisol Schulz e muitos outros.

Pronunciei a conferência inaugural. O tema era “O livro e a internet”. Defendi que o livro jamais acabaria e procurei percorrer o longo e grande caminho da escrita, como consequência da linguagem.

Minha geração viveu entre a magia e a realidade. Aconteceram fatos e criaram-se coisas que nunca sonhamos pudessem existir. As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres inimagináveis. De repente, podemos, com um monitor à nossa frente, a TV, assistir ao que acontece em todos os lugares e no mesmo instante em que estão acontecendo. Com um pequeno paralelogramo, uma caixinha que cabe na palma da mão, o celular, podemos localizar qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo e com ela falar, comunicar, transmitir notícias, saber do tempo, fazer cálculos e recuperar os recados mandados de outra máquina — o computador —, numa conexão universal onde passam quase instantaneamente todas as informações que eu desejar, milhões e zilhões de dados sobre tudo, que muda a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, e vai crescendo à proporção que alguém a ele se agrega, nessa teia que não tem limites, ganha o infinito e se chama rede.

A História é marcada por mudanças mais ou menos bruscas que alteram seu curso. Revoluções, dizemos. A do Fogo, a da Roda, a da Navegação. Com mais razão, a da Agricultura, da Terra Semeada, a do Pastoreio. Também dizemos idades: da Pedra, do Bronze, do Ferro. Mas o que define realmente o homem é sua capacidade de se comunicar. Só com o Homo habilis, há dois e meio milhões de anos, surge a capacidade fisiológica da linguagem, talvez com a comunicação simbólica, e apenas com o Homo sapiens sapiens, há meros duzentos mil anos, surge a linguagem propriamente dita. Não sabemos como surgiu, mas sabemos que ela transformou profundamente a sociedade humana.

Há cem mil anos a linguagem falada começa a se diversificar. Ela é o instrumento — instrumento tecnológico — que permite a troca, que permite o intercâmbio de cultura, que permite a formalização de estruturas sociais, e é portadora de sua própria transformação.

A tecnologia da escrita foi usada, desde o começo, como instrumento de poder. Claude Lévi-Strauss — que foi meu amigo e com quem mantive razoável correspondência — tem uma frase muito forte: a escrita “era usada para facilitar a escravidão de outros seres humanos”. A escrita esteve associada com a estruturação das sociedades, a formação de hierarquias internas e de supremacia externa.

A capacidade de aprender sem mestre foi uma das grandes façanhas da escrita. Mas o verdadeiro feito foi acelerar a velocidade em que o conhecimento — informação e também sabedoria —, era transmitido. Os intervalos da natureza estão sempre em aceleração, e este impulso foi maior: a vida tem 4,3 bilhões de anos; primatas, 10 milhões; Homo, 2,5 milhões; Homo sapiens e linguagem falada, 200 mil; escrita, 5 mil e trezentos anos. O brusco passo da difusão da cultura oral para a cultura escrita levou 25, 30 séculos. Uma eternidade, mas um instante. Da escrita para cá corre a História.

Em Roma, os grandes homens deviam ser também escritores. Era parte essencial de sua reputação a qualidade do que escreviam. Assim a memória de Cícero e César encontra a de Virgílio e Plutarco.

A leitura e o livro caminharam. Na Idade Média a cópia era uma arte, os livros e as bibliotecas, preciosidades. As bibliotecas das primeiras universidades, como a Sorbonne, tinham umas poucas centenas de exemplares. Foi quando chegou a revolução de Gutenberg. Com a imprensa, a difusão do conhecimento daria um salto.

Assim chegamos à era atual em que a internet ameaça o livro em papel.

Nessa era o livro vencerá. É a mais nova tecnologia. Cai e não quebra. Tem todos os programas de computador. Não precisa de energia. Pode ser levado e lido (em) a qualquer lugar: no ônibus, no automóvel, no avião e no banheiro.

Como é gostoso seu cheiro e poder voltar a página para verificar o que foi lido!

Não há melhor presente do que um livro.

Quando visitei os Estados Unidos como chefe de Estado, a Srª Selwa Roosevelt, então chefe do cerimonial da Casa Branca, que escreveu suas memórias, disse que a mais fácil escolha de presente que teve para o Presidente que visitava os Estados Unidos foi o meu, porque soube que eu gostava de livro e que ela tinha predileção por Walt Whitman, poeta americano. E dos grandes. Ela comprou a coleção de suas obras completas e ofertou-me.

O Presidente Reagan as autografou: “Melhor homenagem eu não poderia fazer ao meu amigo, o Livro, senão estas palavras, desejando que ele faça parte da vida de todos os brasileiros e brasileiras.”

 

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José Sarney, 95 anos: uma celebração à vida e à história

 

Nesta quinta-feira (24), José Sarney, ex-presidente da República (1985–1990), completou 95 anos de vida. A data, além de marcar o aniversário de um dos nomes mais influentes da política brasileira, tornou-se um momento de reconhecimento e memória pela sua contribuição histórica à democracia do país.

A celebração aconteceu na Fundação da Memória Republicana Brasileira (FMRB), em São Luís, em uma cerimônia que reuniu autoridades, amigos e familiares para homenagear a trajetória de Sarney. Um dos pontos altos do evento foi o lançamento do selo e do carimbo comemorativos pelos 40 anos da redemocratização. A imagem escolhida para o selo traz Sarney ao lado de Tancredo Neves, símbolo de um Brasil que, após anos de repressão, voltava a respirar liberdade e esperança.

A solenidade também marcou a abertura da exposição “Ecos da Democracia: fios de memória e resistência”, que resgata, por meio de documentos e imagens, o caminho da reconstrução democrática e os desafios vividos por quem lutou por um país mais justo.

O evento contou com a presença de diversas lideranças políticas e representantes institucionais, entre eles o governador do Maranhão, Carlos Brandão; os deputados federais Juscelino Filho e Roseana Sarney, filha do presidente José Sarney; o ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas; o governador do Pará, Helder Barbalho; a presidente da Assembleia Legislativa do Maranhão, Iracema Vale; além de representantes dos Correios, do Ministério das Comunicações, do Tribunal de Justiça do Estado e da própria Fundação.

Memórias

Logo no início da cerimônia, um vídeo emocionou os presentes ao relembrar os tempos difíceis da Ditadura Militar, os ecos da censura e a importância do papel de Sarney na condução pacífica e democrática da transição. Juscelino Filho, que abriu os discursos, ressaltou a responsabilidade de cada brasileiro em defender os direitos fundamentais e destacou a atuação de Sarney na promoção do diálogo, da cultura e dos direitos humanos.

O governador Carlos Brandão classificou a noite como histórica. “Hoje celebramos não apenas os 95 anos de vida de José Sarney, mas os 40 anos de um marco essencial da nossa história: a redemocratização do Brasil. Falar de Sarney é falar de uma presença constante nas grandes decisões do país nas últimas seis décadas”, afirmou.

Visivelmente emocionado, José Sarney agradeceu as homenagens com a voz carregada de gratidão. Relembrou a amizade e a importância de Tancredo Neves naquele momento decisivo para o país, e saudou os presentes com seu tradicional “Brasileiros e brasileiras” — uma marca de sua passagem pela Presidência da República. “Falo com o coração cheio de emoção e gratidão, porque a gratidão é a memória do coração. Essa homenagem tem um valor especial porque vem da minha terra, do meu povo, do meu chão”, declarou.

Sarney também destacou o papel da Fundação da Memória Republicana como um espaço essencial para a preservação da história e para o acesso de pesquisadores a documentos e registros do período em que esteve à frente do governo.

Mais do que uma celebração de aniversário, a data foi um tributo à memória viva de um homem que ajudou a escrever capítulos importantes da história brasileira — e que, aos 95 anos, segue sendo lembrado com respeito, carinho e reverência.