José Sarney
40 Anos de Liberdade
A memória não retém o momento, o clima, a emoção. Depois de amanhã, 15 de março de 2025 é apenas uma data, fonte de tantos julgamentos e versões. O tempo é uma invenção do homem, e as datas redondas nos seduzem a construir o passado. Esta representa 40 Anos de Democracia, que se inicia com a minha posse no cargo de Presidente da República, encerrando o regime militar.
Na História do Brasil tivemos momentos de grandes inflexões. Mas aquela data será julgada no futuro como um instante em que a História se contorcia. Ela é o fim de um período marcado por revoluções, golpes de Estado, militarismo — que é agregação de poder político ao poder militar —, e agora a data da continuidade de uma democracia de massa, que o País jamais conhecera. Um Estado Social de Direito, o exercício pleno da cidadania, das liberdades individuais e dos direitos sociais.
Hoje não se pode avaliar o que estava em jogo naquela noite de 14 para 15 de março de 1985. A nove horas de tomar posse, o Presidente eleito, Tancredo Neves, começava a ser operado no Hospital de Base de Brasília. Não se sabia que ali começava o seu martírio e a sua agonia.
A realidade imitava a ficção. O país atônito. Os políticos envoltos em perplexidades não tinham nenhum grupo mobilizado. Reuniam-se improvisadamente na Câmara e no Senado. Os jantares organizados para antecipação da festa se transformavam em desorientação e tristeza. O ministro do Exército do Figueiredo comunicava ao chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, que iria voltar ao seu posto de comando e desencadear uma ação para interromper o longo processo da transição.
No meio de tudo isso, dois homens aparecem, mostram grande espírito público e capacidade de gerir crises: Ulysses Guimarães e Leônidas Gonçalves. Tancredo estava fora de ação, imobilizado por grave doença.
Quando, tomado de profunda emoção e saindo de uma depressão que escondi do país durante vários meses, voltado totalmente para o problema humano de Tancredo, disse a Ulysses que não desejava assumir sozinho, ele, rispidamente e mostrando sua fibra de grande chefe, me disse: “Não é hora de sentimentalismos, Sarney. Temos deveres com a Nação. Um processo tão longo de luta pelas instituições não pode morrer nas nossas indecisões”.
O general Leônidas, já escolhido ministro do Exército, partiu para ações concretas: “Vamos ao Leitão de Abreu, não para discutir a sucessão, mas para dizer que amanhã, às 10 horas, o vice-presidente, conforme determina a Constituição, irá prestar juramento perante o Congresso e assumir a Presidência até o restabelecimento de Tancredo”.
E assim fez, em companhia de Ulysses e dos senadores José Fragelli, Presidente do Congresso, e Fernando Henrique Cardoso. As Mesas do Senado e da Câmara decidiram no mesmo sentido. O Supremo Tribunal Federal, convocado secretamente pelo presidente Cordeiro Guerra, deliberou que esse era o caminho da Constituição.
Quando me comunicaram as conclusões, às três horas da manhã, eu era um homem batido pelo imprevisto. Tomei posse “com os olhos de ontem” e enfrentei o desconhecido dos anos que estavam à frente.
Há mais de dez anos, o brasilianista Ronald Schneider, que estudou as transições democráticas, escreveu que a transição do Brasil foi a mais exitosa.
Iniciou-se a Nova República com o lema “Tudo pelo social”. Enfrentei 12 mil greves, convoquei a Constituinte, implantamos uma democracia social, rompemos com a ortodoxia econômica com o Plano Cruzado, alcançamos a mais baixa taxa média de desemprego de nossa história — 3,59%. Até hoje não se repetiu o crescimento econômico daqueles anos.
Relembro nesta data Tancredo Neves. Afonso Arinos, repito, disse: “Muitos deram a vida pelo país, mas Tancredo é o único que deu a sua morte pelo Brasil”.
Esta é a História destes 40 anos de paz social, de alternância de poder e da presença do proletariado nas decisões nacionais. A República, nos seus 136 anos, pode contar com cidadãos de todos os segmentos da sociedade para ocupar a Presidência, desde marechais até um operário retirante das secas do sofrido Nordeste.
O destino entregou-me a responsabilidade de fazer a Transição Democrática depois de um longo período de autoritarismo. Enfrentei ameaças de retrocessos, mas conseguimos avançar no Social: criamos o SUDS, hoje SUS, universalizamos a saúde, criamos o Mercosul, com Raúl Alfonsín, da Argentina, e acabamos com a disputa nuclear entre nossos dois países e somos, graças a essa união, o único continente do mundo sem armas nucleares.
As instituições no País são tão fortes que resistiram a dois impeachments e à tentativa de destruí-las, com o processo agora em julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Saudemos os 40 Anos que comemoramos, da volta da Democracia, da Liberdade, que não morreu em minhas mãos; ao contrário, floresceu e consolidou-se.
Brasil, minha Pátria, meu torrão. País de hoje e do futuro.
Emendas remendadas
Quando fui Presidente havia três orçamentos: o orçamento fiscal, o das estatais e o do Banco Central. Na verdade, dos três orçamentos, não tínhamos nenhum, pois cada um apresentava um quantitativo diferenciado, como ocorre hoje quando o Ministro Flávio Dino procura o nome do parlamentar autor de emendas ao orçamento, o seu valor e destino e seus objetivos. Naquele tempo, tínhamos uma leitura mais simplificada e não sabíamos qual dos três orçamentos era o verdadeiro. Beaucoup de lois, pas de lois, dizia Montesquieu.
A ideia da existência do Parlamento foi consolidada na Inglaterra quando, no século XII, alguns endinheirados desejaram participar das regras de tributação nos tempos do Rei João, o João Sem Terra, que proclamou os direitos civis na Grã-Bretanha, que não possui uma Constituição escrita, seguindo as regras consuetudinárias que permanecem válidas até hoje — e ninguém as contesta.
A interpretação teológica dos tributos foi utilizada pelos sacerdotes e escribas do tempo de Jesus, que lançaram mão da questão para obter d’Ele uma resposta que O incriminasse e assim lhe perguntaram: “É-nos lícito dar tributo a César, ou não?” E, diz São Lucas, Ele respondeu: “Por que me tentais? Mostrai uma moeda que tenha imagem e inscrição.” E então: “De quem é esta imagem e inscrição?” “De César”, foi a resposta. Disse-lhe então Jesus: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” E assim não puderam apanhá-Lo em palavra alguma diante do povo.
Essa definição teológica do dinheiro significa que dinheiro é coisa dos homens, que podem utilizá-lo para o bem ou para o mal. Em geral os que dispõem de muito dinheiro podem empregá-lo em coisas profanas, e os que não têm utilizam o pouco que conseguem para a subsistência do corpo.
Agora, no caso das emendas ao orçamento certamente elas não são disputadas por elas mesmas, mas, sim, porque se transformam em dinheiro e não se esgotam no seu destino, e acabam se prestando para acusações a prefeitos, vereadores, deputados e, por meios indevidos, vão parar — segundo acusações que circulam, difíceis de se confirmar — nesses agentes públicos.
No começo de Brasília presenciei uma discussão a bordo de um avião entre algumas freiras e o Deputado Tenório Cavalcante, que era uma figura folclórica na Câmara dos Deputados, pois portava sempre uma metralhadora de nome “Lurdinha”, com que enfrentava seus adversários em Caxias, no Rio de Janeiro.
Naquele tempo tínhamos apenas aviões da Scania que faziam a linha do Rio de Janeiro para a futura capital da República. Eram aviões que voavam a baixa altitude, não pressurizados e desconfortáveis. Nessa viagem a aeronave jogava bastante, e as freiras rezavam muito. Tenório Cavalcante disse a elas: “Irmãs, se esse avião cair, iremos para o Céu”. Elas lhe responderam: “Não diga isso, deputado”. Ele retrucou: “As senhoras não querem o Céu? Eu quero. Lá não tem dinheiro, não se compra nada e tem de tudo para todos”. As freiras apenas repetiam: “Não diga isso, deputado”.
Foi mais uma interpretação teológica do dinheiro a sua perda de valor.
O que se deseja mesmo aqui é fixar que é inacreditável o que ocorre agora no Congresso Nacional: predominantemente, só se fala em dinheiro, dinheiro das emendas, com que muitos setores receberam milhões de recursos para emprego político, mas fugindo às regras constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A política tem uma disciplina horizontal, somente os regimes de partidos únicos têm disciplina vertical. A disciplina dos partidos democráticos deve ser feita horizontalmente. Quando é invertida, trata-se de autoritarismo, que foge ao exercício da democracia interna, que não é exercida.
O que estamos vendo nos partidos atuais é uma decisão das cúpulas, que de certo modo é uma deformação do instrumento básico do regime democrático, baseado nos partidos políticos; e sem Parlamento forte, a democracia é difícil de existir.
Lembro-me, quando fui parlamentar no Rio de Janeiro — o líder do meu partido, a UDN, era Otavio Mangabeira, e eram seus colegas de liderança Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Adauto Lúcio Cardoso, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto e outros —, que a ascensão política e parlamentar era assegurada pelo valor pessoal, nunca por meios espúrios. Os nossos discursos eram assistidos por grande e qualificada plateia, os jornais os publicavam na íntegra, e assim iam se construindo os líderes, e os comandantes nessa escola se afirmavam.
Ah! Como era verde meu vale.
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Carnaval e Pero Vaz
O Carnaval passa ao largo do mercado, pois não depende dele. Se os bolsos ficarem vazios, é a Bolsa que fica ameaçada. Carnaval não influencia a taxa de juros, não a baixa nem a sobe. Assim, nada de preocupações; que seja a alegria.
As queixas procedentes vêm dos saudosistas — e eu talvez seja um deles —, todas na direção de que o Carnaval se modernizou, perdeu a autenticidade do passado. Acabaram os pierrôs apaixonados e as colombinas para surgir o biquíni e o peladão. Maravilha das maravilhas! Isso é o progresso. O mesmo que tirou de moda a ceroula, o cabeção, o espartilho e colocou as liberdades das musas do Carnaval: Isabelle Nogueira, Flávia Alessandra, Luciana Gimenez, Alane Dias…
Qual é a origem do Carnaval? Uns, querendo colocar sabedoria, dizem que sua origem está nas saturnais romanas, festas bem moderninhas em que se celebrava a entrada da primavera de maneira bem exuberante. Falam que ele veio de um tal carro-naval, que nada mais era do que um navio de rodas, cheio de marinheiros que cantavam canções obscenas nas ruas da Grécia antiga nas mudanças de estação.
Melhor imaginação tiveram aqueles que dizem ser estas festas e alegrias necessárias à preparação do corpo para o jejum da Quaresma. Os italianos chamavam esse tempo de “Carne! Vale!”, “Carne, vá em frente, caia na gandaia”. Outros exegetas colocam nas costas da igreja a responsabilidade da palavra Carnaval e a atribuem ao Santo Papa Gregório, o Grande, que chamou o domingo anterior à Quaresma de “dominica ad carnes levandas”, isto é, o domingo de sublimação da carne. O nome pegou por portas e travessas para Carnaval. Relembrava uma velha definição dos três dias antes da Quaresma, em que monges medievais davam-se a muitas liberdades, comiam e bebiam etc. e tal para resistir às tentações no tempo quaresmal. E alegavam que assim faziam imitando os camelos antes de atravessarem o deserto.
O Carnaval, na Espanha, só termina, como na Bahia, no domingo depois da Quarta-Feira de Cinzas. Perdão! Na Bahia, não termina nunca. Em Veneza, começa no Dia de Reis e lá vai aquela coisa chata de gôndolas e bandolins.
Lembro essas coisas para dizer que o Carnaval não é nada disso. Ele nasceu no Brasil, sem primavera, nem saturnais, nem o Papa Gregório. O Carnaval brasileiro tem origem e cultura próprias. Sua certidão de nascimento é a Carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500, quando descreve o descobrimento do Brasil. A chegada logo se transformou no primeiro carnaval, os índios na praia, de “carapucinhas vermelhas”, “contas amarelas”, pintados e de maracás, os portugueses batendo tambor, todos bebendo, dançando e caindo numa bruta gandaia. Temos até o nome do primeiro folião, Diogo Dias, que tocava gaita, “homem gracioso e de prazer”, que comandava a folia. A diferença é que era Páscoa, mas, na Bahia, todo tempo é bom de Carnaval.
A globeleza, que se pensa ser criação de hoje, da Globo, já estava lá. E não era uma só, eram muitas. Diz Caminha que as índias participavam da festa e eram “bem moças e bem gentis, com cabelos mui pretos e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas de cabeleiras que, de muito as olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”.
Enquanto isso, nas nossas rádios e tevês, comandantes encarregados do policiamento já dão instruções ao povo: “Não beba. Se beber, não dirija. Leve só a roupa do corpo”. E, finalmente, “Não perca seu bloco e use a camisinha”.
Bom Carnaval!
Ódio não!
Eu muitas vezes, em entrevistas, artigos, disse que, ao longo da vida, nunca tive capacidade de sentir ódio. E isto considero que me fez e faz muito bem. O ódio traz como consequência maior o ressentimento, e este, a amargura, que faz muito mal a nós próprios e deforma o nosso modo de viver.
Conheci um homem que tinha uma alma pura, o Deputado Djalma Marinho. Era uma figura muito conhecida e respeitada na Câmara dos Deputados. Foi candidato a presidente da Casa. Perdeu. Eu e o Deputado Nelson Marchezan fomos a sua casa prestar-lhe solidariedade. Com o meu jeito de não cultivar sentimentos negativos, disse-lhe: “Djalma, não guarde ressentimentos.” Ele me respondeu: “Sarney, eu não guardei dinheiro na vida, que é coisa boa, lá vou guardar ódio e ressentimento, que não prestam para nada?” Foi ele que depois, na Comissão que presidia, recusou-se a cumprir uma ordem do governo para processar o Deputado Moreira Alves, em 1968, quando o país estava sob as normas do AI-5. Renunciou ao cargo de presidente e, repetindo o espanhol Calderon de La Barca, marcou a Casa com a célebre frase: “Ao rei tudo, menos a honra”.
Mas quero falar também das consequências do ódio, que muitos escritores registraram na literatura, como Tolstói, cuja personagem feminina vai ao suicídio sucumbida pelo ódio; Dostoiévski, com o alerta de que “o ódio alimenta o ódio”; Shakespeare, com o seu Otelo, o Mouro de Veneza, cujo ciúme o leva a matar sua fiel esposa, Desdêmona, um destino de ódio construído pelo relato falso de infidelidade por Iago, um suboficial preterido numa promoção.
Também resultado desse mal, escrevo sobre a divisão que vemos hoje no Brasil: a casa está dividida, justamente pelo ódio que perpassa pela política brasileira. E uma casa dividida não prospera. Disso já sabemos nós, cristãos.
Na política brasileira, eu, que por mais de meio século a acompanho como espectador, interlocutor, participante e até como protagonista, nunca vi uma época em que os homens se dividissem entre uns adeptos do diabo e outros, de Deus. De tal modo que a luta política extravasou para um nível em que uns são conduzidos à salvação e outros, condenados à perdição.
Eu, pessoalmente, sempre tive adversários. E a estes nunca considerei inimigos. Essa concepção de adversários como inimigos foi proposta por Carl Schmitt, jurista oficial do Terceiro Reich, para quem a política era uma guerra, na qual devíamos eliminar os contrários e levá-los até a morte — como ocorreu na Alemanha com a morte de milhões de judeus. O ódio ao inimigo também justificou, logo depois da Revolução Russa, a violência e crueldade dos comunistas aos milhões de perseguidos e eliminados. O exemplo simbólico e maior na Rússia talvez tenha sido o fuzilamento da família inteira do Czar Nicolau II, que hoje pela Igreja Oriental foi considerado santo.
Eu era deputado no Rio de Janeiro quando ouvi Carlos Lacerda, o maior orador a que assisti no Parlamento, defender-se — no processo que moveram contra ele por ter divulgado um telegrama secreto, que envolvia o Jango e o Peron, num tempo em que os discursos tinham títulos, a que chamou de “A corrida dos touros embolados” — daqueles que o acusavam de uma maneira odienta, retrucando com a seguinte denúncia: “Aqui até o ódio é fingido.”
Não é o que ocorre hoje no Brasil. Situação repelida por todos nós. O ódio hoje é real. E deve acabar. Ele é a semente que desponta como o instrumento de divisão não só dos políticos, como do povo brasileiro. Não é difícil encontrarmos dentro das famílias discussões acaloradas e situações difíceis em que as posições são dogmáticas.
O ódio leva até ao que está sendo apurado no processo sobre a inacreditável proposta de assassinato, a ser cumprido nas figuras do Presidente e do Vice-Presidente e de um Ministro do Supremo Tribunal Federal. O caso segue o devido processo legal — somos um Estado de Direito — no Supremo e depois, tudo devidamente apurado, haverá a punição prevista na lei dos responsáveis.
O ódio é danoso, cruel, indigno, divisionista. Por julgá-lo assim quero vê-lo extirpado do nosso país. Sou partidário do diálogo, de ver o próximo como objeto de convergência e não da divergência. Por tudo isso e mais, não há palavras suficientes que definam o mal que o ódio produz. Somos irmãos e como irmãos devemos viver em paz. Que os dirigentes e líderes do país viajem por outros caminhos que não este, o do ódio. Por isso, só me cabe encerrar dizendo:
Ódio não!
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A velhice é boa
O tempo destrói tudo, mas também constrói. É dele que se faz a vida. Sempre gostei dos velhos e sempre pedi a Deus para chegar à velhice. Muito se fala que os medicamentos descobertos pela ciência e o estilo de vida são responsáveis pela longevidade. E se relacionam muitas pessoas que envelheceram e continuam trabalhando e mantendo seu estilo de vida. Com isso agradam às suas famílias, que se reúnem para receber e retribuir afeto e carinho.
No Brasil, segundo o IBGE, são 780 mil pessoas com mais de 90 anos; comigo, 780.001, sendo as mulheres a maioria, número que tende a crescer nos próximos anos.
Vejo com grande satisfação que os nonagenários (ou quase) estão ativos no cenário político, econômico, artístico mundial, plenos de vigor.
A minha querida amiga Fernanda Montenegro, no auge dos seus 96 anos, minha colega da Academia Brasileira de Letras, onde sou decano, está aproveitando sua glória de grande atriz que domina não só o teatro, mas também o cinema, a literatura, a televisão e continua cumprindo inclusive com seus deveres sociais. Ela está vivendo uma emoção inédita: ver a filha, também Fernanda — a Nanda, a Fernandinha, a gloriosa Fernanda Torres —, brilhar como a primeira atriz brasileira a ganhar o Globo de Ouro (prêmio para o qual ela foi indicada em 1999) e ainda ser alvo da mobilização do país inteiro para que alcance o Oscar — o orgulho não é só dela, mas de todo o povo brasileiro. E o coração de Fernanda Montenegro? Como está? Deve estar repleto de alegria e plenitude.
Tive a felicidade de ser amigo da Fernanda mãe e considero ter sido também do pai, Fernando Torres, intelectual, ator e premiado diretor de teatro: um grande homem de uma empatia pessoal rara.
Agora, nesta semana recebo uma carta do meu amigo, o nonagenário Jean Chrétien, ex-primeiro-ministro do Canadá, dizendo ao povo canadense que estava comemorando seus 91 anos com muita satisfação, mas que, sobretudo, protestava contra as declarações de Trump de que o Canadá devia se incorporar aos Estados Unidos.
Eu conheci o estadista Jean Chrétien no InterAction Council, uma organização internacional de ex-Chefes de Estado e de Governo, de que sou membro, em companhia de Bill Clinton, Jimmy Carter, Raúl Alfonsín, Felipe González, Takeo Fukuda, Helmut Schmid, Miguel de la Madrid, Lee Kuan Yew e muitos outros, onde recebemos, como convidados, estadistas de renome como Henry Kissinger, Robert McNamara.
Agora, devemos louvar aqui Tancredo Neves, que, quase octogenário, aos 76 anos, deu sua vida pelo Brasil, herói e mártir da Democracia.
E lembrar os velhos guerreiros que nos deixaram saudades e exemplo de coerência de vida, como o velho Ulysses Guimarães (falecido em atividade aos 76 anos), que dizia: “Sou velho, mas não sou velhaco.”
E os da estirpe dos nossos João Amazonas, Luís Carlos Prestes e Giocondo Dias (também falecidos em atividade, respectivamente, aos 90, 92 e 74 anos), considerados os fora da lei nos tempos das ditaduras.
Quero citar Julio Sanguinetti, ex-Presidente do Uruguai que, nos seus 89 anos, em plena atividade, em breve estará no Brasil para participar comigo das comemorações dos 40 anos da Democracia.
Não vamos esquecer o Papa Francisco, lutando contra quedas em sua peregrinação mundial, pregando o Evangelho; o excepcional Rubens Ricupero, nos seus 87 anos, com a cabeça brilhante, escrevendo memórias, fazendo conferências, um dos maiores pensadores do Brasil de todos os tempos; aos 88 anos, Jorge Gerdau, o empresário do aço, firme no trabalho, lutando agora com as tarifas do Trump; o meu amigo Fernando Henrique Cardoso, com 93 anos. E temos ainda o mestre Ives Gandra e o bom humor de Ary Fontoura, aos 91 anos — com cinco milhões de seguidores no Instagram —, a dizer: “Neste ano não quero saber de gente mal-humorada, nem mão-de-vaca e nem de gente que não toma umas biritas.”
Não esqueçamos o nosso saudoso Roberto Marinho, falecido em total lucidez aos 99 anos. Ouvi, na festa em que ele comemorava seus 90 anos de idade, o Arnaldo Niskier fazer-lhe uma saudação: “Dr. Roberto, quero aqui estar nos seus 100 anos.” Roberto lhe respondeu: “Arnaldo, não limite a vontade do Criador.”
Para terminar, mas sem acabar, vamos citar Laura Cardoso, com 96 anos; Lima Duarte, com 94 anos. E muitos mais…
Na verdade, ser velho é bom. Eu sou um velho feliz pela graça de Deus de viver tanto, cumprindo o destino em que Deus encheu minhas mãos de estrelas.
Outro dia, disse ao Presidente Lula: “Presidente, velho como eu só quer duas coisas: apreço e carinho.” E vou vivendo como parte desses nonagenários, agradecendo ao Criador a graça da vida.
Bobbio, o grande politicólogo italiano, ao definir sua velhice, disse: “A velhice é muito boa, mas com um grave defeito: dura muito pouco.”
O complexo dos muros
Estamos num tempo de guerras sem tiros, sem lenço e sem documento. Refiro-me à guerra econômica, de taxas protecionistas, alfandegárias, de um lado para o outro, entre os Estados Unidos e a China, o Canadá, o México, a Colômbia. E nós, no Brasil, aqui encolhidos esperando que sobrem para nós algumas taxas em nossos sapatos, aço, sucos e outras coisas mais. Como o Brasil tem com os Estados Unidos uma troca de exportação-importação equilibrada, não dá para entender nada daquela frase do Presidente Trump de que “eles precisam mais de nós do que nós, deles.”
Recordo com saudade as iniciativas políticas para a América Latina do Presidente Roosevelt, a “Política de boa vizinhança” (Good Neighbor Policy), e a do Presidente Kennedy, “Aliança para o Progresso” (Alliance for Progress), tão queridos de todos nós.
Não é que no Brasil também iniciamos uma guerra bem brasileira, a “guerra dos bonés”, para mostrar a preferência pelos dois lados políticos, direita e esquerda?! É bem verdade que a origem dessas expressões está, na realidade, na divisão, na Assembleia Nacional francesa, entre os a favor — esquerda — e os contra — direita — a Constituinte de 1789.
Nessa guerra de tarifas, creio que o Presidente Trump não está sendo sincero ao optar pela guerra comercial. Na verdade, desconfio de que o que ele tem é o “vírus do muro”, o antigo vírus da civilização humana de construção de muros para proteção das cidades. Os portugueses levaram um susto danado quando chegaram a Benim, em 1485: ficaram estarrecidos com a existência de uma muralha de quase 20 metros de altura. Estudos mostraram que possuía 16 mil km de comprimento de cerca, abrangendo 6.500 mil km2, com fossos profundos. No passado, considerada a segunda maior estrutura feita pelo homem depois da Grande Muralha da China, foi devastada pelos britânicos, em 1897. Aliás, os muros não têm uma tradição de vitória. Todos eles, sem tempo ou com mais tempo, foram destruídos ou ultrapassados.
Mas creio que a Muralha da China é, no fundo, a obsessão do Presidente dos Estados Unidos. Esta muralha, construída nos tempos antes de Cristo, possui 21.196 km de comprimento. Entre rios e montanhas, foi erigida para conter os povos bárbaros, principalmente os mongóis, que não conseguiram ultrapassá-la.
O Presidente Trump, nessa disputa entre os Estados Unidos e a China, não possuindo uma muralha para confrontá-la e ser uma das dez maravilhas do mundo, escolheu fazer um muro na divisa com o México, de aço, e guardá-lo pelo Exército americano. Nem assim conseguirá entrar no Guinness World Records (antigo Guinness Book of Records).
E agora o Sr. Milei, Presidente da Argentina, que esteve na posse do Trump e com ele se abraçou, contraiu também o “vírus do muro” e resolveu construir um na divisa da Argentina com a Bolívia. A Srª Patricia Bullrich, Ministra de Segurança, anunciou que vai construir, na fronteira com a Bolívia, um muro de 200 metros de comprimento, com 2,8 metros de altura. Como não tinha dinheiro para fazê-lo de aço ou cimento, ela o fará com arame farpado no topo. Isso, sem dúvida, ficará como símbolo dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento de como poderão manifestar sua solidariedade ao Presidente Trump construindo muros de arame farpado.
Não temos espaço para tratar do Muro de Berlim. Criado, em 1961, pelos russos para evitar a saída dos cidadãos da Alemanha Oriental do “paraíso comunista”, foi derrubado, em 1989, pelo povo, com o fim da União Soviética. Israel tem o seu muro com a Cisjordânia e uma barreira fronteiriça, com cercas de arame farpado, sensores e zonas-tampão, muros e paredes de concreto e aço, isolando a Faixa de Gaza: muros intransponíveis, mas não evitaram a guerra cruel a que estamos assistindo.
Graças a Deus, o Brasil é tão grande e tão sensato que não tem planos de construir muros com ninguém, principalmente com a Argentina, com quem desejamos, cada vez mais, fortalecer nossa amizade fraternal com o seu povo, como já começamos a fazer com a criação do Mercosul. A leva de argentinos que recebemos vem ao Brasil para mergulhar nas águas quentes de nossas praias, e a nossa para a Argentina, para apreciar a beleza de Buenos Aires e dos pampas, passar uma noitada na Recoleta e, indo até o Sul, visitar as geleiras da Antártida.
Dos Presidentes do Brasil, creio que fui o que mais amizade teve (e tenho) pela Argentina, pelo seu povo, pela sua cultura, sua história, reconhecendo a necessidade, imposta pela geografia de territórios contínuos, de sermos irmãos — nenhum muro poderá nos separar.
Lembremos Saenz Penna, Presidente argentino, para repetir sua frase, que diz tudo: “Tudo nos une, nada nos separa.”
Assim, essa “guerra de bonés”, de muros e muralhas, de amores e rivalidades, vai desaparecer, será derrubada como o são todos os muros para encontrarmos a Paz e a solidariedade entre todos os povos.
Que desapareçam da cabeça do Presidente dos Estados Unidos essa inveja da Muralha da China, esse erro do muro com o México, da extinção da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional; em inglês, United States Agency for International Development), da saída da OMS (Organização Mundial da Saúde) e agora essa decisão de ocupar o território de Gaza, expulsando os palestinos de sua terra, com a reação até dos seus aliados e amigos, como nós.
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Mercosul, garante da Paz
As raízes do Mercosul remontam ao meu primeiro encontro com Raul Alfonsín, em Foz do Iguaçu, novembro de 1985, quando lhe propus que encerrássemos essas equivocadas divergências históricas, que mantinham nossas relações cheias de atrito. Disse-lhe que ninguém podia modificar a geografia. Nossos territórios eram contínuos e fomos destinados a viver juntos. Alfonsín me respondeu que suas ideias eram as mesmas. Firmamos, então, o Documento de Iguaçu, documento fundacional, e abordamos o problema nuclear com que alguns setores militares estavam empenhados desenvolvendo um artefato nuclear, bomba atômica, visando um status de potência militar.
Assim, o que veio a ser o Mercosul não era somente um desejo de construir um espaço econômico, mas o de construir uma unidade, a integração latino-americana, o que no futuro seria o Mercado Comum da América do Sul, com integração física, cultural, política e econômica. Minha ideia era a de repetir o que fora feito no começo do Mercado Comum Europeu, no acordo do aço entre a Alemanha e a França, para superar as divergências e rivalidades entre os dois países. Este exemplo nos levou a buscar acabar com as divergências entre Brasil e Argentina.
Assim, cabe-me defender o Mercosul. Alfonsín, onde estiver, dar-me-á procuração para tomar a mesma atitude. Ao longo desse tempo, 40 anos, tivemos muitos ataques. Todos eles com o objetivo de separar Brasil-Argentina. Na hora em que um de nossos dois países abandoná-lo, o Bloco estará destruído. Menem, presidente da Argentina, fez algumas investidas. Alfonsín e eu reagimos.
Agora Milei, acredito que ainda animado pelas festas da posse de Trump, levantou a hipótese de fazer um acordo bilateral com os Estados Unidos e, no caso de o Mercosul não concordar, ele sairia com a Argentina do grupo. Ora, ele sabe que seu país assumiu compromissos de unidade, e a força do Mercosul é esta: Brasil e Argentina foram o começo. A saída da Argentina será o fim. Essa tragédia não pode acontecer. O Presidente Milei não desejará, sem dúvida, ser o coveiro deste sonho gigantesco da integração e unidade do continente, naquilo que mereceu a frase do grande estadista e intelectual Julio Sanguinetti, Presidente da República do Uruguai, de 1995 a 2000, e hoje sócio-correspondente da Academia Brasileira de Letras: “Foi a coisa mais importante depois de nossas independências.”
O Presidente Milei não pode enveredar por esse caminho. Isso não se esgotará na simples saída da Argentina. Mas na sedução de outros países de fazerem o mesmo, até o Brasil com China, Alemanha, França ou outros — o que acredito que o Presidente Lula jamais faria.
Mas o ponto principal dos êxitos do Bloco, do fim de nossas divergências com a Argentina, foi: acabar com a corrida nuclear, que contou com dois fatos fundamentais: minha visita às instalações da ultrassecreta usina nuclear argentina de Pilcaniyeu, e a de Alfonsín na inauguração da usina nuclear brasileira de Aramar, até então secreta, de enriquecimento de urânio — projeto extraordinário conduzido por nossa Marinha, com seus membros cientistas competentes e pioneiros.
Disso resultou o fato de sermos o único continente do mundo livre de armas nucleares, o que foi reforçado pela aprovação na ONU do Atlântico Sul como Zona de Paz, proposto pelo Brasil quando eu era Presidente da República, que proibia que por aqui, em nossas águas, transitasse qualquer artefato nuclear. Assim creio que prestamos um grande serviço à Humanidade.
Só este fato leva o Mercosul à posição de órgão intocável; e essas suas conquistas, também. Outros sucessos do bloco foram: o comércio no Bloco aumentou para muitos bilhões de dólares; nossos povos hoje têm estreito relacionamento; e todas as relações com nossos vizinhos são de Amizade e Paz.
Há ainda mais uma conquista, lembrando Alfonsín, grande estadista que comigo sonhou o sonho da união e formação do nosso mercado comum: a criação de nossa moeda, o “gaúcho”.
Acredito que nossa unidade é uma ideia tão forte que não morrerá jamais. Ela continuará a se realizar, como está se realizando, e o Presidente Milei deve juntar-se a nós, e não se deixar seduzir por aqueles que querem nossa desagregação.
Tenho muito orgulho de ter participado, como protagonista, da elaboração do acordo que garantiu ao Brasil, à Argentina e a toda a América do Sul estarem livres de confrontos e disputas nucleares.
O Mercosul é o garante de nossa integração.
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Tancredo
Na semana que passou escrevi sobre a sacralidade da democracia dizendo que ela devia ser um dogma na consciência de cada um. O tema tinha a imposição da data de 15 de janeiro, quando o Brasil, há 40 anos, via surgir a volta da Democracia. Nessa data fomos eleitos, Tancredo Neves e eu, Presidente e Vice-Presidente, na forma da Constituição.
Tenho ao longo desses 40 anos preservado a memória de Tancredo Neves para manter a minha obrigação moral de lembrá-lo como um dos heróis do sentimento democrático do País. A História o tinha preparado para essa tarefa. Ele era um homem que conhecia a política nacional e o Brasil profundamente. Essas qualidades o levaram a comandar o processo de derrubada do regime autoritário. Tancredo foi escolhido candidato justamente porque inspirava confiança ao País, pelo seu passado e pelos atos que marcaram sua coragem e sua determinação.
Na sua biografia como ministro de Getúlio Vargas, fora leal até o fim, acompanhando-o até a tragédia do seu suicídio. Nós o encontramos chorando, comovido, no enterro de Vargas, fazendo uma apaixonada oração fúnebre, na qual não pregava a revolta pelo que tinha acontecido, mas a conciliação, sua marca. A vingança não tinha lugar em seus lábios e, ao contrário do que os outros oradores pregavam, ele abandonava o sentimento de revolta para assumir a bandeira da conciliação nacional, pedindo que o Brasil não se dividisse no sangue e no gesto de Vargas.
Com o Juscelino Kubsticheck na crise da maioria absoluta, é Tancredo quem costura a solução, concretizada na posse do Presidente. Juscelino sai brilhantemente da ameaça de não assumir a presidência para o sucesso do seu governo e a construção de Brasília, que o levou a um lugar grandioso em nossa História.
Tancredo foi preparado para desempenhar esse papel de conciliador, na ultrapassagem do regime militar em 1985, no ponto mais alto de sua carreira, comandando a engenharia política que nos levaria ao 15 de janeiro de 1985, que hoje lembramos e comemoramos: 40 anos de Democracia.
No martírio da sua posse, surpreendido pela doença que finalmente o levaria à morte, sua preocupação em não se deixar operar para tomar posse não era uma vaidade pessoal, mas o ideal muito mais alto de concluir a transição democrática. Ele receava a volta dos militares diante da resistência do Presidente Figueiredo de transmitir o poder ao Vice-Presidente, invocando uma inimizade pessoal comigo. Ouvi do Ministro Leitão de Abreu — logo depois da retirada de uma comissão composta por Ulysses Guimarães, Leônidas Pires Gonçalves e Fernando Henrique — que, quando lhe comunicaram a decisão da minha posse, o General Valter Pires, Ministro do Exército, lhe visitou e afirmou que iria imediatamente voltar ao Ministério e dirigir-se aos comandos do País inteiro para juntos pedir a continuidade do governo do Presidente Figueiredo e abortar a transição para a democracia.
O Ministro Leitão conta ainda que, nesse instante, o dissuadiu com o argumento que ele já não era mais ministro do Exército, uma vez que o Diário Oficial publicara a sua exoneração do Ministério. Assim, a democracia não morreu naquela noite. E Tancredo, quase agonizante, resistia a sua operação, que todos os médicos julgavam salvadora. Para demovê-lo dessa resistência, o seu sobrinho Dornelles contou-lhe uma inverdade: a de que havia estado com o Presidente Figueiredo e este assegurara que transmitiria o governo a minha pessoa. A preocupação de Tancredo era a conclusão do processo democrático e, com essa comunicação do Dornelles, ele julgava que sua missão estava concluída, e a Transição Democrática, realizada. Disse aos médicos: “Agora podem me operar. Nossa luta está vitoriosa.”
É justamente por isso que Afonso Arinos disse que muitos brasileiros deram a vida pelo Brasil e Tancredo deu a morte. Sua grande virtude e ação como político era o que Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês do Paraná, encarnou no Império: a Conciliação. Seu sonho de assumir a Presidência não era oportunismo, nem uma opção pragmática e circunstancial, e sim uma questão de princípios: unir o País e não deixar que o medo de represálias fosse o combustível da continuidade do autoritarismo.
No momento assistimos à maior nação do mundo, os Estados Unidos, vacilar no exemplo dos ideais dos Pais Fundadores da Democracia Americana e no sonho de Jefferson da busca da felicidade. Trump nega este destino dos Estados Unidos de solidariedade, de luta pela democracia liberal e liberdade de mercado com ameaça de uso de sanções, na tese de que uns são condenados à salvação, e outros, à perdição.
Tancredo é o estadista conciliador e Trump, o espalha-brasas, um político menor. Que o exemplo do nosso estadista, de união e convergência, seja símbolo para todos os políticos e inspiração para as gerações futuras.
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Democracia é dogma
Há 40 anos, 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves e eu fomos eleitos Presidente e Vice-Presidente da República. Era a chegada da Democracia. Sem ela não teríamos sido Presidentes. Anos depois, também possibilitaria que Lula, um operário, fosse eleito Presidente da República.
Lamentavelmente o Brasil tem uma ponderável parcela da população que ainda não tem consciência do que esse regime representa. As últimas pesquisas publicadas da percepção do povo sobre democracia registraram que cerca de 30% da opinião pública ainda não apoia o regime democrático, prefere a ditadura ou não tem opinião sobre o regime que nos governa.
Parece pouco, mas é um número bastante elevado para uma comunidade que viveu, até pouco tempo, sob um regime autoritário e conquistou, em 1985, a plena liberdade, com a volta da democracia sem adjetivos, com absoluta liberdade e a conquista de uma cidadania que assegura a todos uma participação efetiva na vida política do País, com direito a proclamar sua opinião sobre as decisões do Legislativo e do Executivo. Foi a Transição Democrática, que me coube dirigir e é considerada a melhor do continente, que há 40 anos concretizou a implantação da liberdade no Brasil com a volta da democracia.
Quanto ao Judiciário, suas decisões são solitárias e representam as convicções individuais de cada juiz, baseadas nas leis e no direito. Hoje, contudo, diante da judicialização da política, há certa politização da Justiça pela sedução que a busca da popularidade exerce em todos na vida em sociedade. Mesmo este fenômeno não admite a politização da Justiça como um todo, mas apenas a posição pessoal de alguns juízes.
A democracia não é perfeita. Ela não faz o milagre de resolução de todos os problemas, como os mais visíveis, a inflação, o desemprego, a assistência médica, a educação e outros pequenos e graves problemas da cidade em que se reside, do Estado em que se está e do País que é sua pátria.
Porém, é a democracia que resolve de imediato o fundamental e maior de todos os problemas: a falta de liberdade. É o coração do regime democrático que assegura, como dizia Churchill, que, quando batem na porta de sua casa às cinco horas da manhã, você tem certeza de que é o leiteiro, e não a polícia política.
Creio que a existência de um terço de nossa sociedade que ainda não tem a convicção do que é a democracia e de alguns que ainda desejam uma ditadura é cruel. É preocupante. Ainda se julgarmos que 70% aprovam e se proclamam democráticos, sabemos que mesmo estes são vulneráveis a divisões, e os radicais são levados a cultivar o ódio extremo, germe da divisão. Há a lição bíblica de que uma casa dividida não prospera. No mundo atual, de uma sociedade complexa, sem solução dos entraves e com problemas difíceis de resolver, todos são sujeitos à demagogia com a proposição de soluções simples e inviáveis. Ainda mais que surgiu, com a sociedade digital, o insolúvel problema das fake news, que decretaram a morte da verdade e a presença da mentira, que pode criar versões altamente explosivas dos fatos, a colocar em risco as instituições, como exemplo o 8 de janeiro, com a destruição parcial das sedes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Estes episódios não são estranhos nas minorias autoritárias que ainda acreditam nas soluções de força.
A democracia precisa ser, na totalidade do País, uma consciência pessoal, que cada um de nós tenha entranhada a convicção de que o regime democrático é um dogma absoluto — não resolve a busca do desenvolvimento, mas é o caminho aberto para encontrá-lo. A liberdade, repito, tem um poder criativo que nos permite encontrar soluções e a esperança das utopias.
No caso do nosso País é preciso ter orgulho. Foi o que mais cresceu no mundo no século 20, somos a 8ª economia mundial e lutamos para, por meio do Estado Democrático de Direito, resolver os problemas da desigualdade e continuarmos a ser um exemplo de convivência racial e religiosa.
Até mesmo no terreno cultural estamos mais presentes mundialmente nas premiações da genial Fernanda Montenegro, com seu talento extraordinário, e de sua filha, Nanda Torres, que projetam a imagem do Brasil.
Todos devemos, assim, pregar a democracia, amar a democracia e tê-la como consciência pessoal. Lembremos finalmente, nessa data de 15 de janeiro, Tancredo Neves e a frase do Afonso Arinos: “Muitos homens deram a vida pelo Brasil. Tancredo Neves deu a morte.”
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O Tempo e a Democracia
A liberdade tem grande poder criativo. Até mesmo os excessos o seu exercício corrige. É necessário, para entendê-la, compreender o que é o tempo. Leonardo da Vinci escreveu, numa noite, em seus angustiados cadernos, que “a justiça é filha do tempo”. Um dia, em Hong Kong, em companhia do embaixador Miguel Osório ─ que naqueles anos procurava desvendar o mistério do que ocorria com a Revolução Cultural na China ─, ouvi a afirmativa de um velho poeta, com o sabor de sabedoria milenar, de que nós, do Ocidente, não sabíamos o que era o tempo.
Quando, em 1989, eu me encontrei com Deng Xiao Ping, em Pequim, ele mencionou o mesmo conceito e me falou entusiasmado de seu país dali a 100 anos como se dissertasse sobre o dia seguinte. Descreveu-me empolgado as metas dos próximos 20 anos como se comentasse a madrugada que viria.
Comecei então a aprender o que é o tempo e a saber que é dele que se faz a vida. Muito tenho falado sobre a paciência, mas, hoje, ocorre-me defini-la como a virtude de saber esperar. Não com o sentido de reparar injustiças ou o desejo de esquecer o passado, mas de ver os fatos com o sabor de experiência vivida, de ser humilde ao olhar erros, de aprender, de poder emitir conceitos e de ter a consciência de que muitas vezes podemos estar errados.
Nada mais falso do que o chavão de repetir que, se tivéssemos de viver de novo, repetiríamos tudo. Muitas coisas não faríamos, outras acrescentaríamos e outras nem uma coisa nem outra, simplesmente seriam ignoradas. Afinal, a gente melhora com o passar dos anos. Perde-se em vigor, mas ganha-se em saber. Os desenganos, as esperanças modestas, as ambições, as vaidades e as paixões têm o realismo do conhecimento do funcionamento do tempo, da vida.
Porque é bíblica e sagrada a certeza de que há tempo de semear e tempo de colher. É possível que o tempo de colher seja mais glorioso. Mas é o tempo de semear que determina o que se vai colher.
Governei o Brasil no período mais difícil de sua história, mais cheio de cobranças políticas. Somavam-se esperanças e dificuldades. As liberdades, represadas por 20 anos, explodiam em reivindicações e gestos de intolerância. A ânsia de mudanças atropelava os fatos.
Coube-me plantar e poucas vezes colher. Há frustração maior do que plantar e não colher? Até Cristo, quando olhou aquela videira sem frutos, que ele não plantara, lançou a maldição: “Teus galhos secarão.”
Mas é preciso ter a noção do tempo para esperar o momento da colheita. Como exemplo, recordo que semeei o respeito, até o limite dos exageros, à liberdade de imprensa, rádio e televisão porque sempre entendi que a prática da liberdade corrige os excessos. Não apenas nos veículos de comunicação, mas em todo o processo de circulação de informação da sociedade. As instituições se fortalecem e se consolidam. A democracia é um regime que é melhor do que os outros porque sobrevive às crises e sabe absorvê-las.
O Brasil vive as excelências de um regime democrático, pluralista e aberto. Sua massa crítica e as instituições não entram em colapso em face da tempestade e seguram as estruturas da sociedade e do Estado.
E, dentro deste vendaval, constata-se a verdade de Jefferson de que a liberdade de imprensa é a liberdade fundamental. Nosso Rui Barbosa resumiu o conceito chamando-a de “pulmão da democracia”.
A semeadura foi boa. Hoje, todos colhemos os frutos de uma imprensa vigorosa, cumprindo sua missão de informar. Porque, no mais, as decisões são frutos da verdade que, como se diz no Maranhão, “é como o manto de Cristo: não tem costura”. Inconsútil, não admite remendo sem deixar marca.
Hoje, no Novo Ano, a caminho dos meus 95 anos de idade, com a graça de Deus, estou feliz. Estou feliz colhendo o que semeei. Instituições fortes, paciência, diálogo e paz. Hoje todos reconhecem a minha contribuição para que a democracia e sua maior força, a liberdade, “abrisse as asas sobre nós”. Fizemos a Transição Democrática e hoje temos o reconhecimento do País.
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