Dom Pedro Conti
O leão e o ratinho
Ao sair do buraco, viu-se um ratinho entre as patas do leão. Estacou, de pelos em pé, paralisado pelo terror. O leão, porém, não lhe fez mal nenhum.
– Segue em paz, ratinho; não tenha medo do teu rei. Dias depois, o leão caiu numa rede. Urrou desesperadamente, debateu-se, mas quanto mais se agitava mais preso no laço ficava. Atraído pelos urros, apareceu o ratinho.
– Amor com amor se paga – disse ele lá consigo e pôs-se a roer as cordas. Num instante conseguiu romper as malhas. E como a rede era das tais que rompida a primeira malha as outras se afrouxaram, pôde o leão deslindar-se e fugir. (Monteiro Lobato)
O evangelho de Marcos do 26º Domingo do Tempo Comum é um conjunto de palavras de Jesus sobre assuntos diferentes. A linguagem usada é cheia de imagens e figuras. A primeira questão se põe quando alguém está expulsando demônios usando o nome de Jesus, mas não faz parte do grupo dos seus seguidores. Para o Mestre, tudo o que for feito em prol dos sofredores, em favor de uma vida mais livre e feliz, está a favor da grande causa do Reino e, portanto, não deve ser considerado ação inimiga. Até um gesto corriqueiro como oferecer um copo de água será reconhecido e recompensado. Outra questão: ninguém se deve considerar superior aos demais nos assuntos da fé e, sobretudo, não deve desprezar os pequenos e as pessoas simples que acreditam. Escandalizá-los, zombando da confiança que eles têm em Deus, será considerada uma culpa gravíssima. Por fim, Jesus lembra que o pecado – o mal que nós praticamos – não é fantasia, é muito real e concreto. Toda a nossa pessoa está comprometida em planejá-lo e realizá-lo; para isso, usamos a nossa mente e o nosso corpo exemplificado com as mãos, os pés e os olhos. Se estamos convencidos que a meta da nossa fé é participar da alegria do Reino talvez seja necessário “cortar” algumas atitudes erradas que nos afastam do amor a Deus e ao próximo. Essas ações a serem eliminadas são apresentadas novamente, através de alguns dos meios corporais que usamos para pecar: as mãos, os pés e os olhos.
Refletindo um pouco, talvez possamos reconhecer que os assuntos das palavras de Jesus, que nos parecem tão diferentes, possam ser reconduzidos a algo em comum e que não está tão longe da nossa experiência de vida. Todas aquelas situações escondem um conjunto de preconceitos e costumes nos quais podemos cair, sem perceber, numa armadilha da qual Jesus quer nos libertar. A primeira questão é sempre aquela de dividir o mundo e as pessoas em amigos e inimigos, conforme, evidentemente, as nossas ideias individuais e ou os favores que elas nos oferecem ou nos recusam. Para isso, tudo serve: os partidos, as ideologias, as bandeiras de todas as cores e também as religiões. Facilmente falamos de “nós” e dos “outros”, quase sempre de antemão sem reconhecer o positivo do outro lado e o negativo também do nosso. Entre os preconceitos em vigor está também o de julgar a fé e as suas manifestações dos irmãos e irmãs, talvez nos achando mais esclarecidos ou particularmente iluminados. Uma coisa é nos ajudar a vivenciar melhor e mais profundamente a Palavra de Deus, a Liturgia e a Caridade com todas as suas mais diversas expressões, outra coisa é julgar ter a exclusividade das rezas e do bem a ser praticado. Por fim, nem sempre usamos as nossas mãos para abençoar e socorrer e as usamos, ao contrário, para ameaçar e afastar. Os nossos pés, também, nem sempre seguem o Caminho que é o próprio Senhor. Damos muitas voltas ou preferimos ir longe. Os nossos olhos e a nossa cabeça agora viajam pelas telas dos smartphones e dos notebooks. Não serve “arrancar” os olhos, mas talvez desligar antes que o mal aconteça, sim. Nem precisa Jesus nos ameaçar com o “fogo do inferno”, basta reconhecer quanto o mal dos preconceitos, da soberba, da divisão, da cobiça e de tantos outros pecados acaba entristecendo a nossa vida pessoal, das nossas famílias e comunidades. Se cairmos em alguma dessas armadilhas, precisamos de alguém que venha roer as malhas da rede que nos prende. Até um ratinho ajuda, mas muito melhor se for Jesus com o seu amor.
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O mandarim e o alfaiate
O homem foi nomeado mandarim. Daquele momento em diante, seria uma grande autoridade e precisava de um manto adequado ao cargo. Um amigo lhe indicou um bom alfaiate de seu conhecimento. Para poder confeccionar o manto, o alfaiate quis saber desde quando o homem era mandarim. Aquele senhor estranhou a pergunta, mas o alfaiate logo explicou: “É que um mandarim recém-nomeado fica tão deslumbrado com o cargo que mantém a cabeça altiva, ergue o nariz e estufa o peito. Assim sendo, tenho que fazer a parte da frente maior que a parte de trás. Anos mais tarde, o trabalho e a experiência o tornam mais sensato e eu costuro o manto igual na frente e de trás. Com o passar dos anos, o seu corpo fica encurvado, sem mencionar a humildade adquirida através de uma vida de esforços e trabalho. Então eu faço o manto de forma que as costas fiquem mais longas que a frente. Portanto – concluiu o alfaiate – tenho que saber há quanto tempo o senhor está no cargo para que a roupa lhe assente apropriadamente”. O novo mandarim saiu da loja pensando menos no manto e mais na sabedoria daquele simples artesão.
No evangelho de Marcos do 25º Domingo do Tempo Comum, Jesus continua andando pelos caminhos da Galileia, ensina os seus discípulos e volta a falar da sua paixão, morte e ressurreição. Eles não compreendiam o que ele queria dizer. Estavam demais ocupados em outra questão. Animados, talvez, pela própria ambição, discutiam sobre quem seria o mais importante entre eles. Ao perceber o teor da disputa, Jesus derruba todas aquelas expectativas. Para o Mestre quem quiser ser o primeiro seja aquele que se coloca no último lugar e serve a todos os demais. O que vale mesmo é a busca do bem dos irmãos, a disponibilidade para servi-los, nada de briga pelo poder. Em seguida, para exemplificar a gratuidade do serviço, Jesus abraça uma criança e a coloca no meio deles afirmando que quem a acolherá, por causa do seu nome, estará acolhendo a ele em pessoa e aquele que o enviou: Deus Pai. Com efeito, uma criança era, e ainda é, totalmente dependente dos adultos. Só pode ser ajudada por generosidade, porque não tem poder algum para devolver algum favor e nem dinheiro para pagar a atenção recebida. Jesus fala aos discípulos, mas, no fundo, está apresentando a escolha dele de não ser um “messias” dominador, mas servidor, pronto para dar o exemplo de entregar a sua própria vida para que outros possam aprender a amar cada vez mais (Mc 10,45).
Não podemos excluir que a memória desse ensinamento de Jesus possa ter sido motivada por divisões e disputas de poder naquelas primeiras comunidades cristãs onde foi escrito o evangelho de Marcos. No entanto, a mensagem é de uma atualidade extraordinária entre pessoas e grupos da própria Igreja. Parece que a vontade de estar na frente e mandar nos outros é sempre uma grande tentação da qual não é fácil se livrar. Se também olharmos a situação atual da sociedade, existe uma verdadeira guerra para ocupar os primeiros lugares do poder em todos os âmbitos. As declarações são sempre juras de dedicação e humildade, mas depois, muitas vezes, na atuação prática acontece o contrário. No pensamento de muitos, quem chega a ocupar um cargo e não se organiza para se promover e subir mais é um incapaz que não soube aproveitar a oportunidade. Assim se perpetuam a corrupção e a descrença de que possa existir alguém que, estando em lugares de grande responsabilidade, consiga agir mais para o bem comum do que para os próprios interesses particulares. Para Jesus ser “últimos” não significa simplesmente ter humildade, verdadeira ou falsa que seja, mas saber de fato colocar os outros a nossa frente, trabalhar mais para o bem-estar dos demais do que para o nosso. Precisamos de autoridades que estejam a serviço do bem de todos, de maneira especial os mais necessitados e esquecidos. Segundo João 13,12-15, quando Jesus lavou os pés dos discípulos não disse que deixava de ser Mestre e Senhor, mas que era justamente nesta condição que os estava servindo de maneira tão exemplar. Um detalhe: na ocasião Jesus tirou o manto e cingiu o avental como faziam os servos. Não precisou de alfaiate.
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O burro na pele do leão
Um burro encontrou uma pele de leão que o caçador tinha largado no mato. Na mesma hora, o burro vestiu a pele e inventou a brincadeira de se esconder numa moita e de pular fora sempre que passasse algum animal. Todos fugiam assim que o burro aparecia. O burro estava gostando tanto de ver a bicharada fugir correndo, que começou a se sentir o rei leão em pessoa, e não conseguiu segurar um belo zurro de satisfação. Ouvindo aquilo, uma raposa, que ia fugindo com os outros, parou, virou-se e se aproximou do burro rindo: – “Se você tivesse ficado quieto, talvez eu também tivesse levado um susto. Mas aquele zurro bobo estragou a brincadeira”.
O evangelho de Marcos do 23º Domingo do Tempo Comum nos apresenta Jesus curando “um homem surdo, que falava com dificuldade”. Alguns detalhes chamam a nossa atenção. Estamos numa região de pagãos. São pessoas que não tem familiaridade com as Escrituras, mas também os discípulos não estão compreendendo bem o que Jesus fazia e ensinava (Mc 6,52). Precisa ter ouvidos atentos para escutar a Palavra e a língua solta para, depois, anunciar a novidade da Boa Notícia. A cura do surdo-mudo não é um espetáculo, é um encontro pessoal, por isso acontece fora da multidão, com gestos e uma ordem “Efatá”, que quer dizer “Abre-te”. Cabe a cada um de nós nos deixarmos alcançar por Jesus para que seja ele, com os seus dedos, a nos abrir os ouvidos e a tocar a nossa língua. O “segredo”, a não divulgação do acontecido, não tem como finalidade o escondimento em si, mas a perseverança no caminho da fé, até chegar ao pleno reconhecimento de Jesus como “Filho de Deus” após o sofrimento da cruz (Mc15, 39). No entanto, ao ver o homem escutando e falando corretamente, a turma fica tão impressionada que comenta repetindo algumas palavras da profecia messiânica de Isaías: “Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (cfr. Is 35,5). Fica bastante claro que esta cura tem um grande valor simbólico e se torna um compromisso para todos nós. Com efeito, o gesto e a palavra “Efatá” permaneceu no Rito do Batismo das Crianças acompanhada pelas palavras do ministro: “O Senhor que fez os surdos ouvir e os mudos falar, lhe conceda que possa logo ouvir sua Palavra e professar a fé para louvor e glória de Deus Pai”. No Ritual da Iniciação Cristã de Adultos, logo na primeira adesão, os candidatos ao Catecumenato são assinalados pelos catequistas nos ouvidos, com as palavras: “Recebam nos ouvidos o sinal-da-cruz, para que vocês ouçam a voz do Senhor”. Em seguida, são tocados na boca, com a palavras: “Recebam na boca o sinal-da-cruz, para que vocês respondam à palavra de Deus”.
Retomando o “silêncio” que Jesus pede aos que viram a cura do surdo-mudo podemos, simplesmente, pensar que a comunicação da mensagem do Evangelho, com a qual somos convidados a alimentar sempre a nossa vida de cristãos, não deva ser confundida com qualquer outra notícia, ou como se fosse uma propaganda qualquer. Não é só questão de respeito, é sobretudo questão de responsabilidade. Se não escutarmos bem o que o Senhor quer nos dizer com as suas palavras e se não experimentarmos os frutos dessa escuta praticando os seus ensinamentos, podemos falar bonito, mas não comunicamos aquela palavra viva que devemos ter no coração e que, aos poucos, está transformando a nossa vida. Essa escuta acontece no recolhimento, na oração, quando nos perguntamos o que o Senhor quer de nós e como podemos corresponder ao seu chamado. Nas missas também escutamos a Palavra e aclamamos “Graças a Deus” e “Glória a Vós, Senhor”. Grande é a missão daqueles que procuram explicar a Palavra de Deus aos irmãos. Primeiro, os pais cristãos nas suas famílias, depois os padres, os diáconos, os e as catequistas, aqueles e aquelas que não ficam calados quando devem dar o seu depoimento e, por fim, tantos outros que falam melhor com a própria vida do que com as palavras. A pele do leão que o burro vestiu pode ser até a Bíblia que carregamos, mas, quando falamos do Senhor, não dá para disfarçar se procuramos conhecer e vivenciar o seu Evangelho de verdade ou não. Se o coração está vazio, sai somente a nossa opinião.
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Vespas e abelhas
Assim como as abelhas, as vespas também fazem favos. A diferença é que os favos das vespas são vazios e os favos das abelhas são de uma riqueza espetacular. O ditado dos antigos: “as vespas também fazem favos”, chamava a atenção para a necessidade de se saber distinguir o que é realmente bom do que é bom só em aparência. O favo das vespas não tem nada; o mel só está no favo das abelhas.
Com o 22º Domingo do Tempo Comum, retomamos a leitura do evangelho de Marcos. A página que será proclamada nos apresenta uma controvérsia entre Jesus, os fariseus e os mestres da Lei. Essa turma de observantes das tradições dos antigos reparou que alguns dos discípulos de Jesus estavam comendo pão sem ter lavado as mãos. Nada demais, diríamos nós. No entanto, não era assim para eles. Mais do que simples normas de higiene, os rituais de purificação serviam para distinguir e preservar os judeus dos demais povos que praticavam outras religiões. O não cumprimento das tradições era considerado um grave desrespeito à própria fé, a Deus, enfim. Respondendo às indagações daqueles homens, Jesus transfere a questão num outro plano: do conjunto das manifestações exteriores, para o interior do coração humano. O verdadeiro culto a Deus não é feito de atos formais, através de uma mera obediência a preceitos humanos. A honra dele se realiza quando praticamos o bem e não deixamos sair do nosso coração todas aquelas “coisas” erradas, que nos afastam do próprio Deus e do nosso próximo. Jesus chama essas pessoas, preocupadas em lavar as mãos sem limpar o seu coração, de “hipócritas”, falsos, comediantes, que se apresentam de um jeito, mas na realidade são o oposto. Ele ensina que não serve para nada lavar as mãos antes de comer para garantir que nenhum alimento impuro entre em nós, porque a contaminação não vem de fora de nós, dos alimentos que comemos, porque eles não têm esse poder. A “contaminação” do mal/do impuro vem de dentro do nosso coração quando cultivamos aqueles maus pensamentos que nos fazem agir de forma errada, praticando o mal. Em poucas palavras, enganamos a Deus e a nós mesmos se cumprimos normas exteriores sem nos preocupar com o mais importante: purificar o nosso coração de todas aquelas ações, maquinações e atitudes que ofendem o mandamento de Deus, o amor, e nos levam a prejudicar e a fazer sofrer os nossos irmãos.
A hipocrisia é um mal no qual todos podemos cair. De maneira especial, hoje, quando temos a oferta de muitas expressões “religiosas”, das mais variadas, e, às vezes, nós também escolhemos a comunidade, a paróquia, o site, a reza, mais pela simpatia, o costume, porque nos sentimos bem, do que por desejar mudar algo de mais profundo na nossa vida cristã: a clareza da nossa fé, as escolhas morais, uma caridade mais comprometida e transformadora. Fique bem claro. Não estou desvalorizando as práticas exteriores. Precisamos muito delas, mas com a devida atenção para não nos tornar falsos. O nosso ir à Missa, por exemplo, revela a vontade e a seriedade da nossa fé. Se vamos, é porque não achamos tempo perdido a nossa participação na liturgia e, sobretudo, se nos alimentamos com a santa Eucaristia. Igualmente, uma manifestação religiosa, uma novena, uma reza, mais ainda se com numerosa participação do povo, encorajam-nos a reconhecer o valor da mensagem do Evangelho, o exemplo de Maria e de tantos santos e santas nossos padroeiros e padroeiras. O perigo está em cumprir tudo isso como se fosse uma mera obrigação, um costume tradicional, para dizer, depois, que participamos, mas sem que aquele momento consiga fazer acontecer algo novo em nossa vida de cristãos: um novo propósito, um novo compromisso, uma nova atitude. Essas são escolhas que exigem uma decisão que só pode vir do profundo do nosso coração, da nossa consciência, motivada pela fé e pelo amor a um Deus no qual não só dizemos acreditar, mas que também deixamos que ilumine com sua luz a nossa vida inteira, dentro e fora. Nada de coração vazio. Queremos ser como as abelhas, com favos cheios e doces, de verdade.
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Os dois escravos
Um rei tinha dois escravos muito capacitados, obedientes e prestativos. Um dia, por causa da fidelidade deles, quis premiá-los. Chamou o primeiro e lhe disse:
– Como recompensa do seu trabalho lhe dou a liberdade e uma boa quantia de dinheiro para viver bem com a sua família. Vá em paz! Depois chamou o segundo e lhe disse:
– Como recompensa do seu trabalho lhe dou a liberdade. Quero, porém, que fique aqui comigo como meu conselheiro e amigo.
Depois disso, os dois antigos escravos se encontraram e partilharam as decisões do rei. Apesar da liberdade e do dinheiro, o primeiro não ficou satisfeito e voltou com o rei para saber das razões do tratamento desigual. Logo perguntou:
– Senhor, o meu serviço não era tão bom como aquele do outro, por que esta diferença? O rei respondeu:
– Você tem razão, o serviço de ambos sempre foi excelente, mas você me obedecia por medo de ser castigado. Desejava a liberdade. Foi o que lhe dei. O outro, ao contrário, sempre obedecia para ter, em primeiro lugar, a minha estima e a minha amizade. Por isso, eu quis ficar com ele.
No evangelho de João deste 21º Domingo do Tempo Comum, chegamos à conclusão do capítulo 6, cujo assunto principal, é bom lembrar, é a apresentação de Jesus como “o pão descido do céu”, “o pão da vida”. Nos versículos anteriores, Jesus afirma que o sinal do pão, é “carne” – ou seja o corpo-vida – dele – e é verdadeiro alimento para os que acreditam. Igualmente, o sinal do vinho – o sangue-vida derramado na cruz – é verdadeira bebida. Para entender essa passagem do “pão” (e vinho) para “a carne e o sangue” precisamos confrontar as duas afirmações que encontramos em João 6,51: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente” e em João 6, 54: “Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia”. Esse jeito de falar gera a dúvida dos judeus que não compreendem o sentido do sinal do “pão” e se perguntam: “Como é que ele pode dar a sua carne a comer?” (Jo 6,52). Os discípulos também não entendem e dizem que é uma palavra “dura” demais: “Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,60). Acreditar, de verdade, é exigente, pede escolhas. “A partir daquele momento, muitos discípulos”, diz o evangelho, “voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo 6,66). Por isso, Jesus pergunta aos doze se também querem ir embora. A resposta de Simão Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68) além de uma declaração de fé no “Santo de Deus”, é o reconhecimento dele como presença e fonte daquela vida plena que somente Deus pode dar.
O nosso pensamento vai de imediato a quantos passaram e passam pelas nossas paróquias, comunidades, grupos e movimentos, a quantos recebem os sacramentos, e depois… não participam mais. Jesus não obriga ninguém a segui-lo contra a sua vontade ou por medo. Mas ele, também, não quer seguidores de qualquer jeito. Conseguimos acompanhar Jesus – mais ou menos e cada um com o seu jeito – somente se reconhecermos nele “palavras de vida eterna”, ou seja, algo que possa realmente abrir novos horizontes para a nossa existência. Todo o esforço da Igreja com a sua organização e as suas atividades, de fato, deve ter uma só finalidade: anunciar a fé em Jesus de uma forma que permita o encontro livre e pessoal com ele. Devoções, costumes, conjunto de doutrinas, planejamentos, tudo pode ajudar, mas nada substitui a nossa adesão consciente e responsável à pessoa de Jesus. É ele que precisamos conhecer mais e melhor. É a sua palavra e o seu exemplo que devem ecoar em nossa consciência, quando somos chamados a tomar as grandes decisões da nossa vida, quando exultamos e agradecemos pelas metas alcançadas. Contudo, é com o tempo que passa, no serviço cotidiano, cansativo e rotineiro, na fidelidade humilde e escondida, na oração e no silêncio da nossa secreta interioridade, que amadurecemos a amizade com Jesus. Se formos cristãos por amor ao Senhor e não para aparecer ou para ganhar alguma coisa, será ele mesmo a nos chamar, um dia, de amigos seus e não mais de servos (Jo 15,15).
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A colheita
Dois camponeses trabalhavam em duas roças vizinhas. Passavam os dias a semear e a colher, sempre curvados sobre a terra. Nunca falavam entre si, estavam ocupados demais para perder tempo. Um dos dois, porém, vez por outra, endireitava-se, estendia os braços, louvava e agradecia a Deus. O outro, que ficava espiando às escondidas, pensava que o vizinho não era tão bom da cabeça. A colheita era sempre muito boa para ambos, porque Deus recompensava igualmente quem o louvava com a oração e quem continuava trabalhando. Os anos passaram e, um dia, por causa da idade, os dois tiveram que deixar o trabalho da roça. Mais uma vez, aquele que estava acostumado a louvar ao Senhor, levantou os braços e agradeceu. O outro ficou todo encurvado, não conseguia mais se endireitar. Dizem que se endireitou só quando aprendeu a rezar.
Neste domingo, celebramos a solenidade da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria ao céu. Acreditamos que Maria, por sua única e singular participação no mistério da encarnação do Filho de Deus, já esteja gloriosa no céu junto ao Cristo ressuscitado. A essa meta, a vida plena e amorosa de Deus, nós todos somos chamados e alimentamos a esperança de chegar lá um dia. Na página do encontro entre Maria e Isabel, o evangelista Lucas nos apresenta o hino com o qual Maria engrandece ao Senhor pelas maravilhas que ele fez olhando à humildade de sua serva. Esse hino é também um exemplo de oração e a Igreja nos convida a rezá-lo todos os dias na oração das Vésperas. Sobre isso, quero refletir um pouco porque papa Francisco nos convida, neste ano de 2024, a preparar o Jubileu de 2025 meditando justamente sobre a oração. Acredito que todos possamos aprender a rezar melhor, inspirados no hino de Nossa Senhora.
O ponto de partida de toda oração deve ser a consciência da pobreza da nossa condição humana. Nada de arrogância ou de apresentar merecimentos. Tudo é obra de Deus. Com efeito, Maria reconhece que se todas as gerações a “chamarão de bem-aventurada”, foi por total gratuidade do amor de Deus que a escolheu. Outra atitude do orante deve ser o reconhecimento da grandeza e da bondade de Deus. Ele é “santo” e nós somos pecadores, mas a sua misericórdia não tem limites. A compaixão de Deus com os pobres e os humildes se revela numa nova justiça social. Os poderosos e os soberbos são rebaixados e os pequenos enaltecidos, os famintos recebem com fartura e os ricos vão embora de mãos vazias. Parecem palavras chocantes, mas afirmam simplesmente que Deus está do lado dos pobres, porque eles não têm outro protetor e defensor. Os grandes confiam no seu próprio poder, os pobres clamam e invocam a Deus, só a ele podem recorrer. Maria retoma a pregação confiante dos profetas quando garantiam a escuta, por parte de Deus, da oração do órfão e da viúva à revelia daqueles que os exploravam sem temor algum. O final do hino é o reconhecimento da fidelidade de Deus às suas promessas feitas a Abraão e à sua descendência para sempre.
Com o hino de Maria podemos aprender a rezar melhor. Não é questão de acertar palavras ou posturas. A nossa oração será mais viva e sincera se iluminada pela fé em Deus. Na oração, rezamos de verdade somente se acreditarmos que alguém esteja nos escutando interessado e atencioso conosco. Por isso, também quando rezamos juntos com os irmãos, a nossa oração é sempre profundamente pessoal. Ela vai juntamente com a nossa fé e com o jeito com o qual cada um de nós se relaciona com Deus. Com efeito, só falamos e abrimos o nosso coração com quem confiamos. Para Maria, Deus não era um desconhecido, tinha familiaridade, intimidade, era o Deus das promessas, mas também dos pequenos, um Deus comprometido com o seu povo. Maria rezava com os demais e, como todos, aguardava a chegada do Messias. Provavelmente, em certos momentos da vida, todos rezamos, mas muito melhor seria se, todos os dias, pudéssemos abrir o nosso coração ao Pai providente e bondoso, ao Filho que nos ensinou a amar até ao fim e ao Divino Espírito, luz, força, coragem para nós também anunciarmos as maravilhas de Deus. Como Maria.
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Esquecer o essencial
Num dia de sábado, Josué descobriu seu genro fumando.
– O que está fazendo, Abraão, não tem vergonha?
– O que foi querido sogro? – perguntou espantado o jovem.
– Como pode um hebreu esquecer que hoje é sábado?
– Mas eu não esqueci que hoje é sábado – foi a simples resposta do genro.
– E então o que aconteceu?
– Aconteceu que me esqueci de ser hebreu!
No 18º Domingo do Tempo Comum continuamos a leitura do capítulo 6 do evangelho de João. Como já expliquei, outras vezes, esse evangelista tem um jeito próprio de nos comunicar a sua mensagem. O faz através de perguntas e respostas, comparações e mal-entendidos que permitem aprofundar o assunto. Por exemplo, na página do evangelho deste domingo devemos prestar atenção às palavras que acompanham os dois tipos de alimentos: “aquele que se perde” e “aquele que permanece até a vida eterna e que o Filho do Homem vos dará” (Jo 6,27). Após a multiplicação dos pães e dos peixes, quando todos ficaram satisfeitos, o povo continua a procurar Jesus. Ele entende o esforço daquelas pessoas para encontrá-lo novamente, mas as exorta a procurar um alimento novo, diferente. O próprio Jesus apresenta a si mesmo como esse “novo” alimento e diz: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35). Aparece claro, a essa altura, que Jesus não está mais falando de um alimento qualquer, perecível, como foi o maná que caiu do céu no deserto no tempo de Moisés. Ele fala agora de um alimento novo para uma vida nova, a vida “eterna”, ou plena, que somente pode ser dom de Deus Pai que dá o “verdadeiro pão do céu” (Jo 6,32) enviando aquele que “marcou com o seu selo” (Jo 6,27). É nele, Jesus, que devem acreditar aqueles e aquelas que querem realizar “as obras de Deus” (Jo 6,29).
Refletindo sobre todas essas palavras bonitas do evangelho de João, o nosso pensamento vai imediatamente à Eucaristia que celebramos e da qual nos alimentamos como Jesus mandou fazer em memória dele. Os sinais são aqueles escolhidos do pão e do vinho, mas deve ficar claro que a celebração da Eucaristia nos quer conduzir muito mais longe em nossa vida de cristãos. Faz parte da nossa experiência saber que todos nós precisamos de alimentos e de bens materiais para sobreviver. Alguns desses bens são absolutamente necessários, outros acabam se tornando indispensáveis conforme o nosso jeito de viver. O exemplo mais fácil é o da própria internet. Até alguns anos atrás nem sabíamos o que era, hoje ficamos angustiados se a velocidade e o tamanho do sinal não correspondem imediatamente às nossas expectativas. Também hoje funciona perfeitamente a chamada indústria da diversão. Afinal ninguém é de ferro, precisamos nos divertir, relaxar, consumir aquilo que nos é apresentado como capaz de dar prazer e felicidade. Nem certas formas de religiosidade escapam dessa busca de bem-estar e de satisfação individual. Estamos esquecendo o essencial, ou seja, que a vida é muito mais do que tudo isso. Ela é feita, em primeiro lugar, de relações entre as pessoas com as quais nos confrontamos e nosos ajudamos a resolver as grandes questões da existência. Por ocupada que seja, é pobre e, talvez, vazia, a vida de quem não sente a falta dos seus pais, dos seus irmãos, de amigos com quem partilhar sonhos e esperanças junto com os medos e as decepções que todos enfrentamos. Estamos fugindo das grandes perguntas das quais ninguém pode se esquivar, aquelas que dão sentido ao nosso amar, sofrer e, um dia, morrer. Celebrar a Eucaristia de Jesus é reconhecer nele alguém que viveu plenamente porque nunca buscou satisfações pessoais, mas passou neste mundo “fazendo o bem” a quem precisava. Ensinou que é doando vida aos outros que salvamos a nossa do vazio e do tédio. Precisamos resgatar a nossa fome e a nossa sede de amor, de paz, de justiça e fraternidade. Por causa daquilo que passa e perece, do material e do virtual, estamos esquecendo do essencial. Acreditar e confiar em Jesus é ter a “certeza da fé”: só quando amamos realizamos “as obras de Deus”, um Deus que é amor, bondade e compaixão.
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Tinham direito ao almoço
No início do século passado, uma pobre família do Sul da Europa decidiu emigrar para os Estados Unidos. As viagens eram de navio e duravam muitos dias. Levaram consigo bastante pão e queijo; era o que tinham para se alimentarem durante a viagem. O dinheiro não dava para comer no restaurante do navio. Com o passar dos dias e das semanas, porém, o pão ficou duro e o queijo mofou. A certa altura, o filho do casal começou a chorar porque não aguentava mais aquela comida velha. Os pais, então, juntaram o pouco dinheiro que tinham e decidiram pagar um almoço para o filho. Este foi, comeu e voltou chorando mais ainda, mas, desta vez, de raiva e amargura. Os pais, preocupados, perguntaram por que, depois de ter feito tudo o que podiam, não estava satisfeito e chorava tanto. Entre os soluços, o filho respondeu: “O almoço no restaurante estava incluído no preço da passagem e nós comemos pão e queijo todos estes dias!”.
No evangelho de Mateus, deste 17º Domingo do Tempo Comum, encontramos mais três parábolas sobre o Reino dos Céus. Duas delas se assemelham, apresentam a busca por um tesouro escondido e por uma pérola de grande valor. A terceira parábola compara o Reino a uma rede lançada ao mar que apanha peixes bons e peixes que não prestam. Essa última pode ser entendida à luz da parábola do joio e do trigo, que encontramos domingo passado. O final do trecho é curioso. À pergunta de Jesus se os discípulos tinham compreendido o que ele acabava de ensinar, eles disseram que sim. A resposta permitiu ao Mestre fazer mais uma comparação entre os discípulos e um pai de família que “tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52). É a conclusão do discurso em parábolas e serve para nos lembrar da dinamicidade das mesmas. As parábolas não são simples casos para contar, elas nos envolvem e sempre suscitam mais perguntas que respostas.
Nesse sentido, as duas parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa são exemplares. Em ambos os casos, estamos à frente de pessoas que sabem dar o valor merecido àquilo que encontraram. Para o que descobre o tesouro escondido no campo pode ser simplesmente um caso de muita sorte. Contudo ele guarda o segredo antes de comprar aquele campo, porque sabe quanto vale o que encontrou. No caso da outra parábola, o comprador de pérolas está atrás mesmo de uma de grande valor. Ou seja: nenhum dos dois pensa duas vezes ou despreza e descarta o achado. Ambos vendem logo “todos os seus bens” para adquirir o campo e a pérola preciosa. A mensagem é evidente: o tesouro e a pérola são o próprio Reino dos Céus. Pelo jeito, os dois consideraram tão valioso o que encontraram que eles decidiram se desfazer de qualquer outro bem. Por que uma decisão tão radical? Não seria, talvez, uma loucura ou uma imprudência? Obviamente não é assim para o Senhor como ele ensinou no Discurso do Monte: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33).
A lição vale para todos nós. Muitas vezes falamos bonito de Deus, da sua bondade e misericórdia, mas resistimos a arriscar algo da nossa vida por causa do Reino dos Céus. Admiramos e falamos bem daqueles e daquelas que fazem escolhas mais radicais, que empregam os seus talentos a serviço dos pobres, que gastam a sua vida por causa do Evangelho. No entanto, parece que a maioria dos cristãos continua desconfiando do valor inestimável do Reino e prefira preciosidades mais mundanas e passageiras, mas que se possam contar e guardar no cofre. Sem dúvida, a disposição de fazer escolhas mais corajosas é um dom de Deus que podemos pedir, mas as parábolas, desde domingo, convidam a todos nós a superar o comodismo, o medo de ser julgados esquisitos e fanáticos ou, pior, de sermos enganados pelo próprio Senhor. Enfim, continuar comendo pão e queijo, quando os passageiros tinham direito ao almoço, foi burrice. Por que não se informaram antes? O Reino dos Céus está próximo (Mt 3,2), é oferecido a todos, basta reconhecer o seu valor e buscá-lo de verdade.
Os ratinhos e a pedra turquesa
Um homem se cansou da convivência com os seus semelhantes e se retirou num ermo bem afastado. Buscava paz, mas não a encontrou. A lembrança das pessoas que havia deixado o atormentava. Seus sonhos estavam povoados de sons, vozes e cantos. Certo dia, quando estava rezando em frente ao sacrário, viu que algum devoto tinha deixado, em meio às ofertas, uma bela pedra turquesa. Atraído pela cor da pedra, apareceu um ratinho que tentou arrastá-la. Não conseguiu. Voltou com mais outro ratinho e os dois pelejaram para remover a pedra. Também não deram conta. Começaram a guinchar e apareceram mais oito ratinhos. Juntos, com muito esforço, conseguiram concluir a façanha. O eremita tinha entendido a mensagem. Voltou no meio das pessoas, para aprender a se alegrar com a companhia dos outros e unir a sua obra à dos demais.
O trecho do evangelho de Marcos que encontramos no 16º Domingo do Tempo Comum nos apresenta a volta dos discípulos que Jesus tinha enviado, como soubemos pelo evangelho de domingo passado. No entanto, é bom lembrar que entre a ida e a volta dos missionários, o evangelista Marcos coloca o martírio de João Batista com uma introdução muito significativa. Nela se diz que “o nome de Jesus se tornara muito conhecido” e o próprio Herodes já tinha ouvido falar dele (Mc 6,14-16). É nessa situação de fama, mas também de perigo, que Jesus conduz os apóstolos a um lugar deserto e afastado para que descansem um pouco. Todos, incluindo o próprio Mestre, precisam decidir se continuam ou não na missão. Isso porque, de um lado, tem o povo que continua chegando e saindo atrás deles e, de novo, “não tinham tempo nem para comer” (Mc 3,20 e 6,31). Do outro lado, porém, aumenta o grupo daqueles que hostilizam Jesus. Até para Herodes era um incômodo ter um novo João Batista “ressuscitado”. Para tomar uma decisão tão importante, nada melhor que um pouco de descanso, não vazio, mas cheio de silêncio e oração, como Jesus estava acostumado a fazer, quando se retirava sozinho. Não conseguiram o que desejavam. Aqueles que os tinham visto sair de barco, foram em frente e, ao desembarcar, eles encontraram uma numerosa multidão aguardando. Qual foi a reação de Jesus? Fugir, esconder-se? Não. Ele “teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Nada de medo ou de incertezas. Ele se doou totalmente e começou “a ensinar-lhes muitas coisas”.
Conviver com os outros, sejam eles parentes, amigos, colegas de trabalho ou irmãos e irmãs de comunidade, cansa. De maneira especial, por estarmos numa sociedade apressada, onde toda hora nos cobramos uns aos outros algo para fazer e esperamos uma resposta mais do que imediata. Nem sempre damos conta. Sobretudo quando o que nos é pedido não é um mero serviço, mas é uma atitude, uma compreensão, um gesto e, talvez, um sentimento. Algo mais profundo, enfim, que torne mais humanos os nossos relacionamentos, constituídos, muitas vezes, só de interesses, obrigações, compromissos e formalidades. Para não reduzir tudo à rotina do dia a dia, precisamos da compaixão e da palavra. Compaixão não é ter pena do outro, mas é a capacidade de se colocar do seu lado, de conseguir imaginar o que ele ou ela espera de nós, o que gostaria ouvir ou receber naquele momento. Por isso, é importante a nossa comunicação pela palavra, na condição óbvia de que não seja falsa ou a repetição de frases de efeito. Quando falamos com os outros com sinceridade, nós nos apresentamos por aquilo que somos e por aquilo que sentimos. Discursos de ocasião arrancam aplausos, mas não curam feridas, não consolam, não aquecem o coração. Assim devia ser o ensinamento de Jesus: uma palavra viva que tocava e dava esperança. Também quando era dura e exigente mexia com as pessoas, porque comunicava sempre um Deus misericordioso e paterno. Ficar no meio do povo, em comunidade, cansa, mas quando tiramos as máscaras e sabemos unir as forças, para dialogar e colaborar, nenhuma “pedra” é impossível de ser removida. ■
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Uma difícil missão
São Gregório, o Taumaturgo (213?-270?), depois de uma juventude serena e reflexiva, transcorrida no estudo das ciências humanas e divinas, decidiu retirar-se no deserto e viver em solidão. Conhecendo as capacidades dele, o bispo de Amaséia decidiu que devia ser padre. Entre ele e o santo travou-se uma verdadeira luta. O bispo queria absolutamente ordená-lo, mas Gregório não se achava à altura da missão. Depois de muita insistência, ele teve que ceder. Foi arrancado do deserto, consagrado bispo e logo encarregado da comunidade de Cesareia formada por algumas dezenas de milhares de pessoas, todas pagãs, menos 17 cristãos. Com a santidade da sua vida e com os milagres que foram a consequência disso, concluiu os seus dias depois de ter ganhado todos a Cristo. Essa era a realidade dos primeiros séculos da Igreja.
Na página do evangelho de Marcos do 15º Domingo do Tempo Comum encontramos o chamado dos doze apóstolos e o envio deles em missão. Jesus lhes confia a pregação retomando o seu convite inicial à conversão ou ao arrependimento (Mc 1,15). Alguns sinais acompanharão as palavras deles: o poder sobre os espíritos impuros, a expulsão de demônios e a cura de “numerosos doentes ungindo-os com óleo”. Entendemos que esses são os mesmos “sinais” de libertação que o próprio Jesus manifestava com o seu agir. Ele promovia uma grande “reconciliação”, uma vida “nova” de saúde, paz e misericórdia para os doentes, os pobres e os pecadores que não podiam cumprir as normas da Lei e se sentiam, portanto, excluídos do amor de Deus Pai. Nesse sentido, compreendemos as exigências que Jesus coloca para os missionários. Eles devem ir de dois em dois. Isso significa dar exemplo de trabalho em conjunto, proclamar a mesma mensagem, caminhar unidos, formar comunidade. Não é possível querer ensinar a comunhão aos outros se os discípulos não vivem, por primeiro, a fraternidade entre si, o que diz muito para nós hoje. Depois vem a falta de recursos. A simplicidade e a pobreza são sinais de confiança na providência de Deus, mas também a esperança de acolhida nas casas que irão visitar. Para caminhar servem um cajado e as sandálias, porém a bagagem nas costas deve ser leve, não precisa carregar um guarda-roupa inteiro. Além disso, devem ser colocados na conta o possível fracasso, as portas e os corações fechados. Nem todos estarão dispostos a acolher aqueles desconhecidos, sem títulos, sem bens para oferecer, além de palavras bonitas e desafiadoras.
Hoje diríamos: por que tanta falta de organização? E se acontecer algum imprevisto? A falta de segurança e o despojamento dos mensageiros deviam servir para que eles não chamassem tanta atenção sobre si, como faziam certos pregadores itinerantes que cobravam caro pelos seus ensinamentos. Somente assim, a mensagem da conversão era visivelmente apresentada por meio das atitudes e das palavras dos próprios mensageiros. Não teria servido para nada anunciar a novidade do Reino de Deus e depois surpreender as pessoas com aparências chamativas ou humilhar os pobres com luxo e poder. À essencialidade da Boa Notícia devia, e deve, corresponder à essencialidade da vida das testemunhas. Obviamente, naquele tempo, não se falava de Pastoral da Visitação e, menos ainda, de Projetos de Evangelização. Com isso, não quero dizer que os Planos de Pastoral sejam inúteis. Ao contrário, precisamos conhecer bem a realidade e ter claros objetivos e meios da ação evangelizadora da Igreja. A busca da eficiência ajuda a não desperdiçar oportunidades e recursos. No entanto, não podemos absolutamente esquecer a ação misteriosa do Divino Espírito Santo. Atividades organizadas, eventos e momentos participativos, grandes ou costumeiros, como as nossas Missas dominicais e festivas, não excluem os encontros pessoais, as conversas fraternas, o “corpo a corpo” da partilha fraterna da fé, da oração, da benção de quem ainda a pede, da escuta de quem chora, do sorriso para quem está triste e abatido. A missão continua difícil, mas muitos ou poucos milagres, a curto ou longo prazo, para quem acredita, sempre acontecem.
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