Dom Pedro Conti

Os ratinhos e a pedra turquesa

 

Um homem se cansou da convivência com os seus semelhantes e se retirou num ermo bem afastado. Buscava paz, mas não a encontrou. A lembrança das pessoas que havia deixado o atormentava. Seus sonhos estavam povoados de sons, vozes e cantos. Certo dia, quando estava rezando em frente ao sacrário, viu que algum devoto tinha deixado, em meio às ofertas, uma bela pedra turquesa. Atraído pela cor da pedra, apareceu um ratinho que tentou arrastá-la. Não conseguiu. Voltou com mais outro ratinho e os dois pelejaram para remover a pedra. Também não deram conta. Começaram a guinchar e apareceram mais oito ratinhos. Juntos, com muito esforço, conseguiram concluir a façanha. O eremita tinha entendido a mensagem. Voltou no meio das pessoas, para aprender a se alegrar com a companhia dos outros e unir a sua obra à dos demais.

O trecho do evangelho de Marcos que encontramos no 16º Domingo do Tempo Comum nos apresenta a volta dos discípulos que Jesus tinha enviado, como soubemos pelo evangelho de domingo passado. No entanto, é bom lembrar que entre a ida e a volta dos missionários, o evangelista Marcos coloca o martírio de João Batista com uma introdução muito significativa. Nela se diz que “o nome de Jesus se tornara muito conhecido” e o próprio Herodes já tinha ouvido falar dele (Mc 6,14-16). É nessa situação de fama, mas também de perigo, que Jesus conduz os apóstolos a um lugar deserto e afastado para que descansem um pouco. Todos, incluindo o próprio Mestre, precisam decidir se continuam ou não na missão. Isso porque, de um lado, tem o povo que continua chegando e saindo atrás deles e, de novo, “não tinham tempo nem para comer” (Mc 3,20 e 6,31). Do outro lado, porém, aumenta o grupo daqueles que hostilizam Jesus. Até para Herodes era um incômodo ter um novo João Batista “ressuscitado”. Para tomar uma decisão tão importante, nada melhor que um pouco de descanso, não vazio, mas cheio de silêncio e oração, como Jesus estava acostumado a fazer, quando se retirava sozinho. Não conseguiram o que desejavam. Aqueles que os tinham visto sair de barco, foram em frente e, ao desembarcar, eles encontraram uma numerosa multidão aguardando. Qual foi a reação de Jesus? Fugir, esconder-se? Não. Ele “teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Nada de medo ou de incertezas. Ele se doou totalmente e começou “a ensinar-lhes muitas coisas”.

Conviver com os outros, sejam eles parentes, amigos, colegas de trabalho ou irmãos e irmãs de comunidade, cansa. De maneira especial, por estarmos numa sociedade apressada, onde toda hora nos cobramos uns aos outros algo para fazer e esperamos uma resposta mais do que imediata. Nem sempre damos conta. Sobretudo quando o que nos é pedido não é um mero serviço, mas é uma atitude, uma compreensão, um gesto e, talvez, um sentimento. Algo mais profundo, enfim, que torne mais humanos os nossos relacionamentos, constituídos, muitas vezes, só de interesses, obrigações, compromissos e formalidades. Para não reduzir tudo à rotina do dia a dia, precisamos da compaixão e da palavra. Compaixão não é ter pena do outro, mas é a capacidade de se colocar do seu lado, de conseguir imaginar o que ele ou ela espera de nós, o que gostaria ouvir ou receber naquele momento. Por isso, é importante a nossa comunicação pela palavra, na condição óbvia de que não seja falsa ou a repetição de frases de efeito. Quando falamos com os outros com sinceridade, nós nos apresentamos por aquilo que somos e por aquilo que sentimos. Discursos de ocasião arrancam aplausos, mas não curam feridas, não consolam, não aquecem o coração. Assim devia ser o ensinamento de Jesus: uma palavra viva que tocava e dava esperança. Também quando era dura e exigente mexia com as pessoas, porque comunicava sempre um Deus misericordioso e paterno. Ficar no meio do povo, em comunidade, cansa, mas quando tiramos as máscaras e sabemos unir as forças, para dialogar e colaborar, nenhuma “pedra” é impossível de ser removida. ■

 

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Uma difícil missão

 

São Gregório, o Taumaturgo (213?-270?), depois de uma juventude serena e reflexiva, transcorrida no estudo das ciências humanas e divinas, decidiu retirar-se no deserto e viver em solidão. Conhecendo as capacidades dele, o bispo de Amaséia decidiu que devia ser padre. Entre ele e o santo travou-se uma verdadeira luta. O bispo queria absolutamente ordená-lo, mas Gregório não se achava à altura da missão. Depois de muita insistência, ele teve que ceder. Foi arrancado do deserto, consagrado bispo e logo encarregado da comunidade de Cesareia formada por algumas dezenas de milhares de pessoas, todas pagãs, menos 17 cristãos. Com a santidade da sua vida e com os milagres que foram a consequência disso, concluiu os seus dias depois de ter ganhado todos a Cristo. Essa era a realidade dos primeiros séculos da Igreja.

 

Na página do evangelho de Marcos do 15º Domingo do Tempo Comum encontramos o chamado dos doze apóstolos e o envio deles em missão. Jesus lhes confia a pregação retomando o seu convite inicial à conversão ou ao arrependimento (Mc 1,15). Alguns sinais acompanharão as palavras deles: o poder sobre os espíritos impuros, a expulsão de demônios e a cura de “numerosos doentes ungindo-os com óleo”. Entendemos que esses são os mesmos “sinais” de libertação que o próprio Jesus manifestava com o seu agir. Ele promovia uma grande “reconciliação”, uma vida “nova” de saúde, paz e misericórdia para os doentes, os pobres e os pecadores que não podiam cumprir as normas da Lei e se sentiam, portanto, excluídos do amor de Deus Pai. Nesse sentido, compreendemos as exigências que Jesus coloca para os missionários. Eles devem ir de dois em dois. Isso significa dar exemplo de trabalho em conjunto,  proclamar a mesma mensagem, caminhar unidos, formar comunidade. Não é possível querer ensinar a comunhão aos outros se os discípulos não vivem, por primeiro, a fraternidade entre si, o que diz muito para nós hoje. Depois vem a falta de recursos. A simplicidade e a pobreza são sinais de confiança na providência de Deus, mas também a esperança de acolhida nas casas que irão visitar. Para caminhar servem um cajado e as sandálias, porém a bagagem nas costas deve ser leve, não precisa carregar um guarda-roupa inteiro. Além disso, devem ser colocados na conta o possível fracasso, as portas e os corações fechados. Nem todos estarão dispostos a acolher aqueles desconhecidos, sem títulos, sem bens para oferecer, além de palavras bonitas e desafiadoras.

 

Hoje diríamos: por que tanta falta de organização? E se acontecer algum imprevisto? A falta de segurança e o despojamento dos mensageiros deviam servir para que eles não chamassem tanta atenção sobre si, como faziam certos pregadores itinerantes que cobravam caro pelos seus ensinamentos. Somente assim, a mensagem da conversão era visivelmente apresentada por meio das atitudes e das palavras dos próprios mensageiros. Não teria servido para nada anunciar a novidade do Reino de Deus e depois surpreender as pessoas com aparências chamativas ou humilhar os pobres com luxo e poder. À essencialidade da Boa Notícia devia, e deve, corresponder à essencialidade da vida das testemunhas. Obviamente, naquele tempo, não se falava de Pastoral da Visitação e, menos ainda, de Projetos de Evangelização. Com isso, não quero dizer que os Planos de Pastoral sejam inúteis. Ao contrário, precisamos conhecer bem a realidade e ter claros objetivos e meios da ação evangelizadora da Igreja. A busca da eficiência ajuda a não desperdiçar oportunidades e recursos. No entanto, não podemos absolutamente esquecer a ação misteriosa do Divino Espírito Santo. Atividades organizadas, eventos e momentos participativos, grandes ou costumeiros, como as nossas Missas dominicais e festivas, não excluem os encontros pessoais, as conversas fraternas, o “corpo a corpo” da partilha fraterna da fé, da oração, da benção de quem ainda a pede, da escuta de quem chora, do sorriso para quem está triste e abatido. A missão continua difícil, mas muitos ou poucos milagres, a curto ou  longo prazo, para quem acredita, sempre acontecem.

 

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O homem inquieto

 

Certa vez, um homem foi procurar o Profeta. Antes que ele abrisse a boca, o Profeta lhe disse:

— Vieste para me perguntar o que a virtude? Respondeu o homem:

— Como o senhor sabe? Continuou o Profeta: porque te vejo tenso e inquieto. Agora, escuta:  para saber o que é a virtude, deves interrogar o teu coração. A virtude é tudo aquilo pelo qual a alma goza de repouso e o coração de tranquilidade. O pecado é aquilo que traz turbamento à alma e tumulto ao coração. Não percas tempo a perguntar de um lado e do outro o que é a virtude. Tens que vivê-la. A tua alma e o teu coração te responderão.

 

A página do evangelho de Marcos do 14º Domingo do Tempo Comum nos diz que Jesus chegou a Nazaré, o povoado onde tinha se criado e vivido, por mais ou menos uns 30 anos, até iniciar aquela que chamamos de “vida pública”. Pouco sabemos desses anos da vida de Jesus. Numa vila pequena, todos se conhecem. Jesus era “o carpinteiro”, a mãe era Maria e públicos eram os nomes de alguns dos seus parentes mais próximos. Tudo deixa pensar que Jesus tenha transcorrido a maior parte daqueles anos numa vida muito simples e comum, aprendendo e praticando um trabalho manual, além de cumprir as obrigações de um homem judeu. Provavelmente, ele tinha deixado Nazaré alguns tempos antes, talvez, para conhecer melhor João Batista. Em seguida, porém, Jesus tinha tomado o seu próprio rumo. Começava a viver como um “profeta itinerante”, ensinando e juntando os primeiros discípulos. Algum fato considerado extraordinário, como as curas, ou duvidoso, como a expulsão de demônios, tinha criado e espalhado uma certa fama dele através das conversas do povo e assim tudo isso, com certeza, o tinha precedido a Nazaré. Ser do mesmo lugar devia favorecer Jesus, mas acabou sendo um obstáculo ao seu modo de falar e de agir. O “profeta” não foi bem acolhido em sua pátria. Ficaram “escandalizados”, ou seja,  recusaram-se a aceitar a novidade que Jesus representava. Para explicar isso, podemos especular outras motivações como a inveja, a desconfiança, o medo de se comprometer com as autoridades religiosas e políticas como os escribas, os fariseus e os partidários de Herodes que, já sabemos, não gostavam nada de Jesus. No entanto, pelo evangelho, a causa da rejeição foi a falta de fé deles. Dizendo que ali Jesus “não pôde fazer milagre algum” (Mc 6,5), o evangelista Marcos nos ensina que a fé é a condição necessária para que algo diferente ou extraordinário aconteça. Jesus não é um milagreiro qualquer. Ele tem uma boa notícia para anunciar e testemunhar para que outros continuem a mudar as doenças em saúde, as tristezas em alegria, os pecados em vida nova. A chegada do Reino de Deus pede a fé num Deus amoroso, que quer envolver a todos em novos relacionamentos de fraternidade e paz, de justiça e amor.

 

Hoje somos nós os convidados a acolher o “profeta” Jesus. Precisamos entender, porém, que o verdadeiro milagre que a fé nele pode fazer em nós, é muito mais do que a cura de uma ou outra doença. Também não basta dizer que ele nos salvou dos nossos pecados, derramando seu sangue na cruz e que já estamos perdoados. Ter fé de verdade significa arriscar mesmo sobre a sua palavra. Talvez continuamos a servir mais ao dinheiro do que ao Senhor. Continuamos a colocar o nosso bem estar, a nossa segurança, as nossas vantagens antes da fome de muitos, da dignidade dos irmãos menos favorecidos, da sobrevivência do planeta explorado até a exaustão. Chamamos de paz e tranquilidade a nossa indiferença e a nossa insensibilidade. Culpamos o sistema, apontamos o dedo contra os outros, temos dificuldade a reconhecer os muros que construímos para não ver e nos deixar atingir pelos sofrimentos dos pequenos. A nossa fé vivenciada é a nossa colaboração com o projeto de Jesus. Ele não pode e não quer fazer tudo sozinho. Ele quer que nós confiamos nele e façamos a nossa parte. Quantos de nós vivem tensos e inquietos por muitas razões! Jesus têm questionamentos e inquietações saudáveis, que se transformarão em virtude, porque somente vivendo o amor e a bondade encontraremos o repouso da alma e a tranquilidade do coração.

 

Chefes ou servidores

 

“O chefe se impõe: Aqui mando eu. O servidor: Contem comigo.

 

O chefe existe pela sua autoridade; o servidor pelas suas atitudes.

 

O chefe exige impor-se com extensos argumentos; o servidor com exemplos e testemunhos.

 

O chefe inspira medo; sorriem-lhe pela frente e o criticam pelas costas. O servidor inspira confiança, dá poder à sua equipe, os entusiasma e, quando está presente, fortalece o grupo.

 

O chefe sabe como se faz as coisas; o servidor ensina como devem ser feitas. O primeiro guarda segredos, o outro capacita as pessoas para alcançar a meta.

 

O chefe chega em cima da hora; o servidor chega adiantado e transforma pessoas ordinárias em pessoas extraordinárias. Compromete-as com uma missão que lhes permita a realização. Dá sentido à vida de seus seguidores, uma razão para viver… É um arquiteto humano.

 

O chefe se aproveita dos demais. O servidor dá sua vida pelos que ama.”

 

Todo ano, com a solenidade de São Pedro e São Paulo, celebramos a memória desses dois grandes apóstolos. “Por diferentes caminhos, os dois congregaram a única família de Cristo e, unidos pela coroa do martírio, recebem hoje, por toda a terra, igual veneração”. Assim proclamaremos no prefácio da missa. Essa festa nos oferece a oportunidade de refletir um pouco sobre algo que é próprio da nossa Igreja, que chamamos de católica, apostólica e… romana. Por isso, rezaremos de maneira especial pelo Santo Padre papa Francisco. A “cabeça” da Igreja, pensada como um corpo vivo, é o próprio Senhor Jesus (Cl 1,18). Não devemos ter dúvida alguma. No entanto acreditamos que ele tenha deixado alguém, necessariamente humano, com a missão desafiadora de ser um sinal visível de unidade na fé. O papa é humano e, portanto, limitado. Não sabe tudo e não pode fazer tudo. Precisa de colaboradores, bons e sinceros, mas, sobretudo, precisa da confiança de todos os cristãos para cumprir a sua difícil missão: manter unida a Igreja. Vivemos tempos de individualismo exacerbado e de autopromoção sem nos perguntar se isso ajuda a unidade e a comunhão ou satisfaz o nosso gosto de querer ser diferentes a qualquer custo.

 

Conhecer e obedecer às normas da Igreja não significa ser submissos ou nos sentir frustrados em nossa personalidade. Se pensarmos, por exemplo, nas nossas celebrações litúrgicas, quando todos – crianças e adultos – conseguem cantar juntos, ninguém deve se achar diminuído. Ao contrário, fazemos a experiência de uma voz unânime, sentimo-nos parte de algo bem maior que a nós mesmos. Essa comunhão é tão grande que, nas missas, rezamos pelos vivos e pelos mortos, pelos presentes e os ausentes, pelos santos e santas, que já cantam no céu a glória de Deus. Também a fila para receber a Eucaristia não serve só para aguardar a nossa vez. Nos ensina a caminhar juntos, alimentados pela mesma Palavra e pelo mesmo Corpo do Senhor, sem fazer gestos particulares de devoção.

 

Comecei falando da “autoridade” do papa e acabei fazendo exemplos bem comuns entre nós. Foi só para lembrar que aqueles que, às vezes, consideramos “chefes”, na realidade são companheiros na mesma caminhada. Bispos, padres e todos aqueles que têm alguma tarefa específica na Igreja, estão a serviço do único Povo de Deus e comprometidos a construir a unidade, também, através da obediência aos simples e pequenos gestos que, porém, formam, aos poucos, o nosso jeito de pensar e acreditar na Igreja. Toda “autoridade” tem essa missão a cumprir. O papa Francisco não inventou os Sínodos sobre a “sinodalidade” para complicar as coisas, mas, para nos lembrar e incentivar naquilo que nós todos somos chamados a zelar: caminhar juntos e todos na mesma direção. Somente assim a Igreja pode ser um sinal de esperança, paz e fraternidade num mundo tão dividido e conflituoso. São Pedro e São Paulo foram muito diferentes, mas “congregaram a única família de Cristo”. Não foram simplesmente “chefes” ou organizadores, foram verdadeiros servidores da comunhão no único Corpo de Cristo.

 

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Medo e Coragem

 

A Coragem estava sendo perseguida pelo Medo. Procurou abrigo para passar a noite. Bateu à porta da Covardia, porém ela não lhe abriu e disse que não a conhecia. Bateu à porta da Mentira, que também não lhe atendeu alegando não estar em casa. Bateu, enfim, à porta da Preguiça, e ela se justificou: “Já estou deitada”. Então, a Coragem tomou coragem. Bateu à porta da Vontade e essa logo a abriu convidando-a para entrar. Quando amanheceu, as duas saíram de casa e o Medo vendo a Coragem e a Vontade juntas, fugiu.

 

Continuando na sua “catequese”, o evangelho de Marcos do 12º Domingo do Tempo Comum, apresenta-nos mais uma pergunta sobre a identidade de Jesus. “Quem é este homem, a quem até o vento e o mar obedecem?” assim os discípulos “diziam uns aos outros”, depois que Jesus acalmou a tempestade durante a travessia do Mar da Galileia. Podemos ficar encantados com o poder de Jesus, mas é mais do que evidente que o evangelista quer nos conduzir muito mais longe que, simplesmente, nos contar um fato extraordinário ou milagroso. O objetivo do anúncio evangélico é sempre fazer-nos crescer na fé e na confiança em Jesus. Com efeito, é ele mesmo que questiona os discípulos: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”.

 

O medo dos discípulos é devido ao vento muito forte e às ondas que começavam a encher o barco. No entanto, Jesus parece não ligar para isso; ele dorme “sobre um travesseiro”. A quem apelar? Foi o Mestre que ordenou ir para “a outra margem”. Os discípulos, então, decidem acordá-lo com um grito de socorro: “Estamos perecendo e tu não te importas?”. Pelas palavras deles e de Jesus entendemos que há algo mais em jogo que aquele momento de tempestade e de medo. Naquele barco está o Mestre e a sua nova e pequena comunidade; eles são os seus primeiros seguidores. O evangelho, porém, foi escrito sobretudo para aqueles que virão depois, preparando-se para seguir Jesus – os catecúmenos – ou os já batizados e, portanto, todos os cristãos. A ordem de ir “para a outra margem” é uma antecipação do envio missionário fora das cidades conhecidas de Cafarnaum e Nazaré. Pelas suas palavras e atitudes, Jesus está encontrando a incompreensão dos familiares e aparecem verdadeiros adversários que já pensam como matá-lo (Mc 3,6). O medo dos discípulos, então, não é somente o da tempestade; é, antes, o de morrer com Jesus e, sabemos, que esse medo os acompanhará até o final, quando fugirão todos na hora da cruz (Mc 14,30). No entanto Jesus “dorme”, ou seja, parece despreocupado, ausente. Será? Talvez esse era o pensamento das primeiras comunidades quando foi escrito o evangelho de Marcos. Há momentos de provação e dificuldades pessoais e comunitárias, nos quais nós também duvidamos da promessa de Jesus de estar conosco, todos os dias, até o fim dos tempos (Mt 28,20). Depende de como entendemos a presença de Jesus no meio de nós, presença garantida, também, com o dom do Espírito Santo, porque é aí que nós podemos entender melhor. Com certeza, nós gostaríamos que o Senhor atendesse imediatamente os nossos pedidos e, assim, resolvesse todos os nossos problemas, quem sabe, podendo ser nós a dormir tranquilamente, cobrando tudo dele. Não é bem assim. Desde o início daquela que chamamos “história da salvação”, Deus chamou homens e mulheres para colaborar com ele. Alguns obedeceram e fizeram coisas prodigiosas, outros menos, outros, infelizmente, desobedeceram. Igualmente fez Jesus quando anunciou a chegada do Reino e, mais ainda, após sua morte e ressurreição. Sempre ele irá se servir da nossa pobre colaboração, sempre saberá chamar e inspirar alguém para ajudar, também se passando por momentos de martírio e de necessária conversão. Em lugar de cultivar dúvidas, precisamos vencer o medo, crescer na confiança e na certeza de que ele está sempre conosco, sobretudo no sofrimento e nas provações. Devemos colocar na conta do Reino, além do cêntuplo, também violência e perseguições (Mc 10,30). Se a Coragem e a Vontade juntas venceram o Medo, mais ainda, isso acontecerá somando a força e a luz da Fé.

 

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Cinco mil anos

 

“No túmulo de um dos antigos faraós do Egito encontraram um punhado de grãos de trigo. Eram velhos de cinco mil anos. Alguém pegou um daqueles grãos, o plantou e o regou. Com grande surpresa de todos, a semente estava viva e brotou. Depois de cinco mil anos.”

 

Sabemos que o evangelho de Marcos é o mais curto dos quatro evangelhos. Apesar de dizer que Jesus ensinava e explicava, não encontramos muitos discursos ou palavras dele. Significa que devem ser mais o agir dele e as diversas situações que ajudam a reconhecer a chegada do Reino de Deus e, assim, acreditar naquele que o está anunciando e o mostrando presente. No evangelho do Décimo Primeiro Domingo do Tempo Comum, encontramos duas parábolas de Jesus com as quais ele apresenta a surpreendente realidade do Reino de Deus. A primeira parábola é própria do evangelista Marcos. Ela continua a apresentar a imagem da semente, como na bem conhecida parábola do semeador, mas com mais detalhes e uma belíssima novidade. De fato, o agricultor semeia, mas depois “vai dormir e acorda”, ou seja, os dias vão passando e “a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece”. A parábola segue com a descrição das etapas do crescimento da espiga, dos grãos que enchem a espiga, até a colheita. “A terra, por si mesma, produz o fruto”, eis um dos segredos do Reino de Deus: o agricultor não sabe como, mas existe uma força que, “por si mesma”, faz crescer a semente. Indiretamente, a parábola faz uma grande afirmação: o Reino de Deus cresce porque é “de Deus” e não pode não crescer. Essa consideração serve de introdução da segunda parábola, a da semente de mostarda que é bem pequena e, por isso, pode deixar dúvidas sobre a sua efetiva possibilidade de crescimento. No entanto, daquela sementinha surgirá uma grande “hortaliça”, capaz de abrigar os pássaros à sua sombra.

 

O anúncio do início e, portanto, da presença do Reino de Deus é a grande novidade de Jesus (Mt 4,17;Lc 17,21). Ela foi também a causa de inúmeras críticas e mal-entendidos. Aqueles que aguardavam um reino de poder e dominação ficaram decepcionados. Igualmente, aqueles que esperavam um reino somente de puros e rigorosos seguidores da Lei não suportaram a liberdade de Jesus a respeito da própria Lei e a sua misericórdia com os enfermos que curava e com os pecadores que perdoava. As parábolas de Jesus sobre o Reino servem para esvaziar – se podemos dizer assim – as falsas expectativas e, ao mesmo tempo, para abrir os novos e maravilhosos horizontes desse Reino. Basta lembrar a ousadia da primeira das bem-aventuranças que, em Lucas, reza assim: “Bem-aventurados vós, os pobres, pois vosso é o Reino de Deus!” (Lc 6,20). Jesus surpreendeu a todos e ainda hoje a dinâmica do Reino é bem diferente dos esquemas que  explicam o funcionamento e a eficiência das organizações simplesmente humanas. As duas parábolas do evangelho deste domingo, que têm como exemplo a semente, desafiam a lógica do planejamento, da previsibilidade e da eficácia tão privilegiada por aqueles que visam a garantia do lucro e não conhecem a potência da gratuidade e do amor. O Reino de Deus tem uma “força” que o faz crescer, porque é, acima de tudo e muito além do esforço humano, um dom. Isso não significa que não haja, também, a nossa pequena colaboração, mas essa deveria ser mais no sentido da generosidade e da confiança que dos cálculos e da organização. Todo “presente” é mais bonito, quando supera as nossas expectativas e nos deixa encantados! O pequeno grão de mostarda, que se torna grande hortaliça, é também sinal de um Reino aberto e acolhedor. Os ramos com a sua “sombra” oferecem abrigo e descanso para quem precisar sem discriminações ou exclusões. Se depois imaginamos a alegria dos pássaros cantando, melhor ainda fica a imagem daquele crescimento inesperado. Deveríamos arriscar e confiar mais na “força” do Reino. Se os grãos do tempo dos faraós brotaram, por que duvidar das “sementes” do Reino de Deus semeadas em nossas vidas desde o dia do nosso Batismo?

 

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A flauta mágica

 

Falar de caça hoje é antiecológico, mas houve um tempo que caçar fazia parte da vida e da sobrevivência humana. Certo dia, lá na África, um caçador pediu a um feiticeiro que inventasse alguma coisa para facilitar o seu trabalho. Depois de muitas tentativas, o dito feiticeiro lhe entregou uma flauta mágica que, ao ser tocada, amansava e fazia dançar qualquer animal por mais feroz que fosse. O caçador achou por bem convidar alguns amigos para uma caçada. O grupo encontrou um tigre faminto. Logo tocaram a flauta. O tigre começou a dançar e levou um tiro certeiro. Em seguida, avistaram dois leopardos que estavam se aproximando. Novamente tocaram a flauta e os dois leopardos acabaram mortos. Já estavam voltando para casa quando apareceu um leão na frente deles. Tocaram a flauta, mas o leão não dançou. Desesperados, os pobres caçadores continuaram a tocar, mas foram devorados pelo leão brabo. Simplesmente, o leão era surdo e não podia ouvir a música da flauta mágica.

 

No evangelho de Marcos do Décimo Domingo do Tempo Comum, encontramos mais uma disputa de Jesus com os seus adversários. Eles o acusam de usar do poder do “príncipe dos demônios” para libertar as pessoas de diversos tipos de doenças. Por serem inexplicáveis naquele tempo, muitas enfermidades eram consideradas possessões de espíritos maus. Jesus aproveita da contradição do raciocínio deles para silenciá-los. Se fosse verdade o que eles dizem, o próprio Belzebu estaria contra os demais demônios. Uma família dividida não pode manter-se e se tiver um homem forte defendendo a sua casa, nenhum ladrão, sem vencê-lo, conseguiria entrar para roubar. Portanto, somente alguém mais forte do que Belzebu pode derrotá-lo e vencer os demais espíritos maus. Essa “força”, que age em Jesus e que liberta tem nome, é o espírito bom, o Espírito Santo de Deus. Quem blasfemar contra ele não será perdoado, porque não acreditou no poder do amor de Deus que está se manifestando no profeta de Nazaré. Pelo evangelho, aprendemos também que muita gente procurava Jesus e que ele e os seus discípulos não conseguiam nem comer. Talvez foi por isso e pelas disputas acirradas com os mestres da Lei e os fariseus que os parentes quiseram “agarrá-lo” e, com isso, protegê-lo. Em resposta, Jesus nos deixou mais uma lição sobre os seus verdadeiros amigos e irmãos: “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,35).

 

De uma forma ou de outra, todos nós fazemos a experiência de forças opostas que lutam entre si. Pode ser uma dificuldade que não sabemos como superar, uma pessoa com a qual temos problemas para lidar. Pode ser, enfim, a luta de sempre, entre, digamos, o bem e o mal ou, ao menos, o que nós percebemos como um bem e outra realidade que consideramos errada e má. Gostaríamos que vencesse sempre o bem, muito nos alegraria a solução de tantos conflitos que nos afligem pessoalmente, fazem sofrer as nossas famílias, e outros gravíssimos que atormentam a humanidade inteira. Muitas vezes, sentimo-nos incapazes de superar as dificuldades e, infelizmente, acabamos achando que é inútil lutar, que o mal nunca será derrotado e que nunca veremos a luz do bem vencer as trevas do ódio, da violência e da maldade. É assim que caímos no pecado contra o Espírito Santo, o pecado do desânimo e da dúvida, de achar que o “demônio” e todos os males da vida tenham sempre a última palavra. Pior ainda quando caímos na tentação de ficar do lado do mal por nos parecer tão forte e invencível, quando esquecemos que é mais larga a porta e mais espaçoso o caminho que leva à perdição e que, ao contrário, “estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida” (Mt 7,13-14). Como e com Jesus, sabemos que é o caminho da cruz que conduz à vitória pascal sobre o mal e a morte. O “segredo”, portanto, não é nenhuma flauta mágica, é escutar bem, entender e praticar a “vontade de Deus”, aquele Deus Pai que Jesus veio nos fazer conhecer. Precisamos sempre de muita fé, esperança e amor. Serve a perseverança; mágicas, não resolvem.

 

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Era suco

 

Talvez lembramos o caso da mosca que caiu no copo de leite e que, de tanto se mexer, conseguiu engrossá-lo e, assim, sair daquela perigosa situação. Novamente, aquela mosca caiu num copo cheio de líquido. Tinha firme certeza de que, com o seu agitar-se, tudo seria resolvido. No entanto desta vez o líquido não engrossava. Outra mosca viu o desespero dela e se ofereceu para ajudar. Disse para a colega: “Tem um canudo ali. Nada até ele e sobe! Mas a tal mosca estava tão convencida de que o leite ia se transformar em manteiga, que não aceitou o socorro. Debateu-se por muito tempo. Suas energias se esgotaram e ela acabou afundando. Não percebeu que a situação era diferente e que, desta vez, o líquido não era leite. Era suco.

Com o 9º Domingo do Tempo Comum voltamos à leitura do evangelho de Marcos. Teremos a possibilidade de acompanhar a sua catequese, lembrando que o objetivo de todos os evangelhos, também se por caminhos diferentes, é sempre o anúncio de “Jesus Cristo Filho de Deus” (Mc1,1). Se acolhemos a “boa notícia” dele, a nossa resposta deve ser a fé e o seguimento como discípulos-missionários. Tudo isso exige escolhas. É nesse sentido que o evangelista Marcos nos apresenta algumas das “disputas” de Jesus com os seus adversários, que bem cedo começam a tramar “como haveriam de matá-lo” (Mc 3,6).

Como era de se esperar, o primeiro grande embate entre Jesus e os fariseus acontece sobre a questão do sábado. De um lado, temos pessoas religiosas que cobram a observância rigorosa de um preceito extremamente importante para os judeus e, do outro lado, gente com fome, que arranca espigas de trigo para comer, e um homem doente sentado num canto da sinagoga. A lei do sábado obrigava o descanso para que o povo pudesse reunir-se, ouvir a Palavra, louvar e agradecer a Deus pelas dádivas recebidas. O respeito da lei do sábado fazia com que os judeus se distinguissem dos outros povos e, ao mesmo tempo, confirmava-os na própria identidade de povo eleito. Era uma lei que devia ser respeitada pelo alto valor social: o repouso – e religioso – a gratidão pela eleição. No entanto, no tempo de Jesus, muitos detalhes para o cumprimento dessa lei a tinham tornado quase impraticável para muitos, sobretudo para os mais pobres e as pessoas com alguma deficiência. Jesus não discute o valor da lei em si, mas lembra aos fariseus que ela existia para confirmar a dignidade do ser humano e não para humilhá-lo quando, por causa da fome, alguém era obrigado a algum trabalho no dia de sábado. Quando Jesus pergunta se naquele dia era “permitido” fazer o bem ou fazer o mal, ele está, simplesmente, colocando acima da lei do sábado a solidariedade com os irmãos sofredores e marginalizados. Ele fica “triste” pela insensibilidade dos fariseus e partidários de Herodes com o homem aleijado. Colocando-o no meio e curando-o fica claro que Jesus prefere desobedecer à lei do sábado e enfrentar as consequências, que fechar o seu coração em nome de uma lei que, a essa altura, seria desumana.

Como veremos, também, nos evangelhos dos próximos domingos, Jesus é uma pessoa livre que não pauta o seu agir conforme regras pré-estabelecidas sociais ou religiosas e nem para ganhar prestígio ou criar inúteis inimizades. Ele olha o ser humano na sua condição de fragilidade e, com isso, revela um Deus que ama a todos, a começar pelos mais fracos e necessitados. Ele não louva os observantes rigorosos da lei. Ao contrário, quer ajudá-los a se libertarem daquelas amarras que os prendiam e que os faziam ser insensíveis aos sofrimentos alheios. Só alguém livre, pode libertar, porque consegue ver e propor caminhos novos. Ao contrário, quem se achava – e ainda hoje se acha – “perfeito” no seu entendimento e na obediência a um Deus, que mais fiscaliza do que ama, acaba fechado em seu próprio orgulhoso rigor. Devemos duvidar de leis e normas que acomodam a nossa consciência, mas talvez nos impeçam de amar e de fazer o bem a quem está precisando. Jesus vem em nosso socorro, quer nos salvar da dureza do nosso coração. Ele sempre nos ensina a obedecer à lei do amor.

 

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Teoria e prática

 

Um famoso palestrante ganhava a vida como especialista em educação. O auditório lotava para ouvir suas orientações. Título da palestra: “Os dez mandamentos para educar os filhos”. Tinha resposta para tudo. Era solteiro e sem filhos. Um dia, casou-se com a mulher dos seus sonhos e nasceu o primeiro filho. Diante da nova realidade, mudou o título da palestra: “Dez regras de ouro para a educação dos filhos”. O tempo passou e o palestrante tornou-se pai pela segunda vez. Continuou a dar palestras, com mais humildade. O título agora era: “Dez sugestões para educar os filhos”. A autossuficiência foi substituída pela humildade. A teoria precisou levar em conta a prática.

 

No domingo após Pentecostes, festejamos a Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um único Deus em três pessoas. Usamos para essa realidade divina a palavra “mistério” não porque seja simplesmente incompreensível em si, mas porque sendo algo que diz respeito a Deus, ele estará sempre além dos nossos raciocínios e das nossas experiências. Contudo, nós cristãos acreditamos que foi o próprio Deus a se revelar como Pai, Filho e Espírito Santo e, se assim ele quis ser reconhecido e amado, este “mistério” deve ter um valor e um sentido para a nossa fé e, mais ainda, para a nossa vida. De fato, a partir das Sagradas Escrituras não é difícil perceber como Deus se fez conhecer, digamos, aos poucos, com “acontecimentos e palavras intimamente conexos entre si” (Dei Verbum n.2). É possível vislumbrar alguma antecipação da Santíssima Trindade já no Antigo Testamento, mas é somente no Novo que nos é revelado o projeto amoroso do Pai que envia o seu Filho. Este comunica aquilo que “ouviu” do Pai (Jo 15,15)  e nos ensina a confiar e a orar chamando-o, nós também, de “pai nosso”.  Por sua vez, o Filho doa aos seus discípulos o Espírito Santo e garante que ele nos conduzirá no conhecimento da verdade (Jo 16.13). No trecho do evangelho de Mateus, proclamado neste domingo, escutamos Jesus enviando os discípulos em missão e a batizar todos os povos “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19).

 

Essa “autorrevelação” de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo nos permite afirmar que o nosso Deus é um “mistério de unidade e de amor” ou, para usar uma palavra que resume tudo isso: um “mistério de comunhão”. Com efeito, para amar precisa ter alguém diferente de nós que possa ser amado e nos amar também. Um solitário não teria ninguém para amar e ser amado. Ao mesmo tempo, o amor realiza algo novo nas pessoas que se amam, o encontro se torna cada vez mais profundo e entre elas surge uma união impensável antes. Outra característica de uma amor verdadeiro é a necessidade de se comunicar, de se expandir (ou “transbordar”, como diz papa Francisco) para que outros participem dessa alegria. O nosso Deus é assim. Na sua absoluta perfeição e na sua plenitude de amor, ele não precisava de nada, mas quis que outros o conhecessem e experimentassem a maravilha do seu amor-comunhão. Então “Deus criou o ser humano à sua imagem, a imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Por isso, nós acreditamos que no fundo do coração de todo ser humano existe uma grande sede de amor, unidade e comunhão também se, muitas vezes, experimentamos o mal como divisão, conflito, exclusão do outro. Mas o projeto do nosso Deus, que é amor-comunhão, só pode ser o de uma humanidade unida e fraterna. Existimos para nos ajudarmos uns aos outros, para caminharmos juntos e não para desperdiçarmos as nossas capacidades no ódio ou na indiferença. Tudo isso parece uma bela teoria, algo inalcançável. No entanto, se lembramos, as horas mais felizes das nossas vidas foram, com certeza, alguns momentos de paz e de união das nossas famílias, das nossas comunidades ou quando povos inteiros depuseram as armas e as trocaram pela colaboração e a ajuda. Não adianta fazer palestras bonitas sobre o amor, a paz e vida fraterna, se não passarmos da teoria à prática. Só poderemos descobrir um pouco da maravilha da Santíssima Trindade praticando a comunhão no dia a dia, com muita humildade, mas também com coragem e determinação.

 

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A fonte

 

Durante as férias, uma família, que morava em uma  grande cidade, foi passear num bosque. Todos admiravam a altura das árvores, o perfume e a variedade das flores. Depois de uma boa caminhada, encontraram uma fonte que brotava da rocha. Na pedra, estava esculpido: “Aprendam de mim!”. O pai perguntou:

 

_ O que podemos aprender com esta fonte? A mãe foi a primeira a falar:

 

–  Esta fonte ensina a persistência. Não desiste. Nasce na profundidade da terra, brota da rocha e vai seguindo o seu caminho até chegar ao mar. A filha apontou a pureza da água e a sua gratuidade:

 

_ A fonte é generosa, se oferece a quem tem sede e nada exige por isso. Para o filho, a fonte servia a todos sem distinção:  – Ela serve aos amigos, aos estranhos, às aves, aos animais, aos insetos…Finalmente o pai observou:

 

– Cada um aprende alguma coisa, de acordo com sua experiência e o seu coração. A fonte é a mesma. Os corações é que são diferentes.

 

Cinquenta dias após a Páscoa, chegamos ao Domingo de Pentecostes e celebramos, acompanhando o livro dos Atos dos Apóstolos, o dom do Espírito Santo derramado sobre os discípulos reunidos. O evangelho de João fala do dom do Espírito “ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana” (Jo 20,19) ou seja, no mesmo dia de Páscoa. Mas já na cruz, ao morrer, Jesus “entregou o espírito” (Jo 19,30). Cada evangelista tem o seu jeito e as suas motivações para nos comunicar a mensagem: o Divino Espírito Santo é o último “dom” de Jesus aos seus amigos, é o cumprimento da sua promessa de não deixá-los órfãos na tarefa da missão (Jo 14,18). Por isso, para o autor do livro dos Atos dos Apóstolos, é o Espírito Santo o protagonista da difusão do Evangelho. É ele que orienta as decisões, acompanha os apóstolos e os sustenta nas dificuldades.

 

A solenidade de Pentecostes é sempre a oportunidade para refletirmos sobre a presença viva do Espírito Santo em nossa vida pessoal e na vida das nossas comunidades. No caminho sinodal, proposto com coragem pelo papa Francisco, somos convidados à escuta uns dos outros e todos juntos à escuta do Espírito Santo. Com efeito, todos nós percebemos que a nossa Igreja deve estar em constante renovação e reavivamento. Numa sociedade que muda rapidamente, métodos e linguagens de outros tempos precisam ser atualizados sem perder, evidentemente, o mais importante: a fidelidade à pessoa de Jesus Cristo e à sua mensagem reveladora e salvadora. Temos uma história milenar de santidade, evangelização e martírio, mas, a cada mudança de época, somos desafiados a encontrar formas melhores para comunicar a novidade do Evangelho aos homens e às mulheres deste novo tempo. Contamos com grandes exemplos, com a Tradição viva, mas, sobretudo, devemos dar atenção aos “sinais dos tempos” – situações, pessoas e formas de pensamento – através dos quais, junto com seus “ministérios” e “carismas”, o Divino Espírito Santo continua a sustentar a sua Igreja. Precisamos melhorar no diálogo entre nós, para superarmos, também, dentro das nossas comunidades as polarizações que destroem a comunhão e aquelas formas de saudosismos  que nos impedem de abrir novos caminhos. A página de Pentecostes do livro dos Atos para apresentar a chegada do Espírito Santo usa as imagens bíblicas do vento e do fogo. Tomo a liberdade de lembrar mais uma imagem do mesmo Espírito, usada por Jesus: a  da água. Lemos em Jo 7,37-39: “No último e principal dia da festa (das Tendas), Jesus, de pé, exclamou: ‘Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim. Conforme diz a Escritura: do  seu interior fluirão rios de água viva’. Ele disse isso, falando do Espírito que haveriam de receber os que cressem nele; pois não havia ainda o Espírito, porque Jesus ainda não fora glorificado”. Jesus é a única e inesgotável “fonte”. Todos teremos sempre muitas coisas para aprender com ele. No entanto, aqueles que saciarem a sua sede  nessa fonte, tornar-se-ão, por sua vez, fontes capazes de satisfazer a sede de outros. A água-Espírito Santo, corre livremente, nunca cansa de se doar a todos, é generosa e gratuita. É a água do amor, da sabedoria, da comunhão. Talvez sejamos nós a ter pouca sede dela.

 

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