Dom Pedro Conti
Só uma pequena queixa
Uma jovem esposa tinha só uma pequena queixa do seu marido. Dizia: ” Meu marido, quando fala de mim com os amigos, fala sempre bem, reconhece todas as minhas qualidades. Os amigos me contam as coisas maravilhosas que ele diz de mim. Mas eu não estou nem um pouco contente. Por que não diz as mesmas coisas diretamente para mim?”.
Um simples desencontro entre o casal para introduzir a página simbólica ou programática das bodas de Caná que encontramos no Segundo Domingo do Tempo Comum, tempo litúrgico que nos acompanhará até a Quarta-Feira de Cinzas. O próprio evangelho de João define a mudança da água em vinho como o “início dos sinais de Jesus” (Jo 2,11). Com isso, somos convidados a entender esse sinal e a nos preparar para os outros que virão depois. O casamento, entendido como aliança de amor entre o homem e a mulher, representou, muitas vezes, no Antigo Testamento os laços de fidelidade que deviam unir Deus ao povo escolhido de Israel. No sentido negativo, os profetas chamaram de traição e adultério aqueles momento da história nos quais o povo seguia falsos deuses. Podemos logo compreender que, com Jesus, Deus quer mais que renovar laços anteriores, ele quer realizar uma “nova aliança”, melhor do que a antiga. O mestre-sala reconhece que o vinho tirado das talhas de pedra cheias de água é melhor e mais abundante do que o servido anteriormente e que veio a faltar. Agora os ritos antigos, representados pela água preparada pelas purificações, não servem mais. Usando as palavras da própria Liturgia, podemos dizer que começa a se realizar a promessa de uma “nova e eterna aliança” entre Deus Pai e um povo “novo” formado por aqueles que acreditarão no Filho e o seguirão como Mestre e Senhor. Essa “aliança” será selada pelo sangue de Jesus derramado na cruz. Para João, o evangelista-teólogo, essa será a hora da manifestação plena do amor de Deus com a humanidade. Nas bodas de Caná ainda não chegou essa hora, mas o vinho melhor antecipa o sinal eucarístico, deixado por Jesus como memorial da sua paixão, morte e ressurreição. Igualmente, a intervenção de Maria, a “mãe”, aqui chamada de “mulher”, e as suas palavras: “Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5) não somente abrem o caminho para que a água seja transformada no vinho melhor, mas nos convidam sempre à obediência. Com efeito, quando vivenciamos o mandamento do amor, que Jesus nos deixou, algo novo sempre acontece, a tristeza se transforma em alegria e a esperança toma o lugar do desânimo.
Somente o amor pode garantir que a festa da aliança entre Deus e o seu povo nunca acabe. O amor é fruto de muitas virtudes, precisa de fidelidade, perseverança, perdão e vontade de recomeçar. O lado fraco da aliança somos nós. Duvidamos e esquecemos do amor de Deus. Às vezes, o trocamos com algum ídolo deste mundo cheio de promessas e ilusões. O salmo 115 diz que os ídolos “…têm boca, mas não falam, têm olhos mas não veem… som nenhum sai de sua garganta (v. 4 -7). No entanto, hoje, com a inteligência artificial eles ganharam voz. São vozes conhecidas, familiares, cativantes. Agradam-nos, nos dizem o que gostamos de ouvir, atraem-nos e nos convencem. Brincadeira? De jeito nenhum. Numa Igreja – não digo onde – até a imagem (holograma) de Jesus conversa com os devotos que lhe fazem perguntas. Mas tudo isso não passa de um computador funcionando com a inteligência artificial. Para que a água da nossa fragilidade se torne em vinho da alegria e do entusiasmo da nossa fé, devemos continuar a fazer o que Jesus nos ensinou e como ele nos deu o exemplo. Nada de subterfúgios e atalhos. Amar alguém e fazer o bem nos deve custar, exige que saiamos do nosso comodismo para ir ao encontro do irmão necessitado, pede que façamos do amor fraterno o estilo da nossa vida. Pode ser que sejamos um pouco como aquele marido que falava bem da esposa aos outros, mas nunca dizia para ela que a amava e que era o maior presente da sua vida. Quando rezamos, dizemos a Jesus que o amamos e que estamos dispostos a fazer o que ele nos disser?
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40 Anos de Democracia
Tenho a sensação de que o tempo está passando por uma compressão nos últimos anos. Se fosse físico, fascinado como sou pelas partículas de altas energias, iria estudar este fenômeno que sinto. O tempo, como tenho dito, é uma criação do homem. Principalmente as datas redondas. Fui surpreendido quando verifiquei que, no dia 15 de janeiro, daqui a sete dias, completamos 40 anos da minha eleição com Tancredo Neves para a Presidência da República. Assim, encerramos o período dos governos militares, quando tivemos leis e procedimentos autoritários, o que para uns era uma ditadura e para outros, um regime de exceção, em que de quatro em quatro anos era eleito um general, por um Colégio Eleitoral composto de deputados e senadores. Durante esse tempo, estava em vigor o Ato Institucional nº 5, que suspendia os direitos individuais e civis possibilitando um regime autoritário de abandono da Democracia ─ em 1978, no governo Geisel, fui relator no Congresso da Emenda Constitucional nº 11 extinguindo o AI-5.
Naquele 15 de janeiro de 1985, Tancredo afirmava que a nossa eleição seria a última de uma reunião do Colégio Eleitoral. Depois, já como Presidente, enviei ao Congresso o projeto para a extinção desse sistema e a volta das eleições diretas para Presidente da República. Ao mesmo tempo já estava nas duas Casas do Parlamento a convocação da Assembleia Constituinte, que nos daria a Constituição de 1988, restabelecendo os direitos civis e individuais, criando em nível constitucional os direitos sociais. Voltava a Democracia, e agora vamos comemorar neste ano de 2025 a sua volta, há 40 anos.
A democracia, dizia Lincoln, é o regime do povo, para o povo e pelo povo. Já Churchill proclamava ser o pior regime criado pelos homens, mas não existir melhor. Outro dia, eu li uma declaração do Mujica, ex-presidente do Uruguai, de que a democracia era uma “porcaria”, mas, copiando Churchill, reconhecia não haver coisa melhor. E um grande filósofo austro-britânico, um epistemologista muito objetivo e realista, afirmava “ser um regime em que se podia, de forma pacífica, substituir um governo ruim”.
Para mim, a democracia tem como definição máxima ser o regime da Liberdade, com um poder criativo que assegura ao cidadão todos os seus direitos individuais. Sem liberdade não há dignidade humana. Quando era Presidente da República, logo que assumi, em 1985, assinei a Mensagem ao Congresso Nacional para exame da Adesão do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos e aos Pactos das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; depois, em novembro de 1989, assinei o decreto de promulgação da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, como disposto no Pacto de São José Costa Rica, para a garantia dos Direitos Humanos. Estas garantias só a liberdade pode assegurar.
Foi pela liberdade que, em 1985, com a minha eleição e de Tancredo, restauramos a Democracia no Brasil. Agora, a democracia não traz o milagre da solução dos problemas de um país, mas desperta um sentimento de que se deve resolvê-los de imediato. É a síndrome do JÁ. Ela vem desde Dom Pedro II: quando lhe perguntaram se queria a maioridade, ele respondeu: “Só se for JÁ”.
Essa foi a grande tarefa da nossa Transição Democrática. Administrar o “JÁ” da solução de todos os problemas. É que tudo devia ser resolvido imediatamente. Todos os problemas, inclusive os institucionais. Enfrentei 12 mil greves e com paciência, calma, tranquilidade e prudência pudemos trazer de volta a Democracia, a Liberdade e os Direitos Sociais. É por isso que o brasilianista Ronald M. Schneider escreveu que a Transição Democrática no Brasil foi a melhor de todas. Trouxe a Liberdade, a Democracia e não deixou hipotecas militares.
Eu creio na democracia. Sou seu devoto. Sempre lutei por ela. É o melhor regime porque é capaz de defender-se e vencer os que contra ela investem cometendo crimes, como ocorreu nos episódios de 8 de janeiro de 2023. Este é um alerta a todos os que pensam em abatê-la.
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O hóspede mais importante
Certa noite, quando o Mahatma Ghandi estava em Pretória, na África do Sul, passou perto da casa de alguns amigos cristãos. Resolveu fazer-lhes uma visita. Quando entrou na casa daquela família, viu que estavam reunidos em oração. Todos ficaram alegres, deram as boas-vindas ao amigo e resolveram deixar a oração para outro momento. No entanto, Ghandi pediu que não parassem: ” Peço-lhes que continuem nas vossas orações. Aquele a quem vocês estão rezando é muito mais importante do que eu”.
Com a Solenidade da Epifania continuamos a viver o clima do Natal. Desta vez, são os Magos vindos do Oriente que nos conduzem ao encontro do Menino recém-nascido. Num estilo bem bíblico, ou seja, através de uma narração, o evangelista Mateus nos apresenta um grande anúncio: aquele que nasceu não será somente o “rei dos judeus” (Mt 2,2), será uma luz para todos os povos, para a humanidade inteira. Tudo contribui para essa boa notícia. Podemos começar pela estrela que guia os Magos. Ela representa o universo com a sua grandiosidade e o seu encanto. Contemplar as estrelas nos faz sentir pequenos e nos coloca na frente de algo ou de Alguém muito maior. Tudo já estava lá antes de nós e vai continuar depois que nós passarmos. A luz das estrelas, desde a antiguidade, serviu para orientar o caminho, sobretudo aos navegantes. Quando não conhecemos a estrada ou não sabemos para onde ir, somos como alguém que caminha no escuro, precisamos de uma luz para não nos perder. Tudo nos leva a pensar que os Magos, dos quais sabemos somente que vieram do Oriente, fossem astrólogos, ou seja, pessoas que interpretavam segundo os seus conhecimentos e as suas crenças a posição e os movimentos dos astros. Eles dizem ter visto aparecer uma estrela e somente o nascimento de um rei pode explicar isso. Querem saber onde encontrá-lo. O curioso da história é que os sumos sacerdotes e os mestres da Lei, convocados por Herodes, sabem onde devia nascer o Messias, mas não vão procurá-lo. Ficam perturbados com a notícia. É evidente que os Magos, que vieram de longe, estão mais interessados do que eles para encontrar o recém-nascido. Por fim, o evangelista Mateus nos apresenta a cena de um encontro que é de adoração e profecia. Os três presentes dos Magos são um reconhecimento àquele que será reconhecido como um rei manso e humilde. Ele revelará a presença misericordiosa de Deus na história humana e dará o exemplo do maior amor, porque entregará a sua própria vida na cruz. A página do evangelho da Epifania, está cheia de símbolos, memórias e cumprimento de promessas, é um anúncio de esperança para todos.
Foi numa casa que os Magos encontraram a criança com Maria sua mãe. Não foi no Templo e nem no palácio do rei. O que ela tinha de tão especial para a adorarem? Antes de responder que era o menino Jesus, vamos lembrar a profecia de Isaias 11,6-9: “o bezerro e o leão (inimigos por natureza) pastarão juntos, e um menino pequeno os guiará” (v.6). Aquela criança representa o que pode acontecer de realmente novo. Toda criança que nasce não é somente uma vida nova, é um novo projeto de pessoa, que poderá fazer algo inédito, surpreendente, talvez algo que antes parecia impossível. Toda criança tem tempo disponível à sua frente, poderá usar de forma nova a sua inteligência, a sua capacidade de amar, a sua criatividade e imaginação. Se não fosse assim, a humanidade estaria repetindo somente as coisas do passado e nunca teria inventado nada de novo. Cada criança é um potencial ainda desconhecido, é o maior sinal de esperança para uma humanidade cansada ou prisioneira nos seus velhos planos de poder, de ganância e, infelizmente, ainda de violência. O menino da profecia conduzirá juntos os inimigos, abrirá veredas de paz. Pode fazê-lo porque para ele tudo é novo, o caminho está totalmente aberto à sua frente. Nós cristãos acreditamos que se Deus se fez criança e assumiu a nossa humanidade foi para começar algo novo e nos envolver neste plano de renovação. “Adorar” Jesus é mais do que reconhecê-lo Messias e Senhor, é confiar nele e colocar em prática o que ele veio nos ensinar. Ele é sim o mais importante. É o novo horizonte.
“Peregrinos da esperança”
Estas palavras são o lema do Jubileu 2025 que iniciaremos em nossa Diocese no domingo 29 de dezembro de 2024. O começo oficial do Ano Santo já aconteceu em Roma no dia 24 de dezembro, quando o papa Francisco abriu a Porta Santa da Basílica de S. Pedro. Este tempo de graça será encerrado nas Dioceses do mundo inteiro no domingo 28 de dezembro de 2025 e, em Roma, no dia 6 de janeiro de 2026. O “lema” e as datas se encontram na Bula de Proclamação do Jubileu Ordinário de 2025 que também aponta o tema do Ano Santo: “ Spes non confundit” – a esperança não engana – (Rm 5,5). O último Jubileu ordinário foi aquele do ano 2000, no início do novo milênio. Os Papas, no entanto, podem propor Anos Santos extraordinários. Assim foi com o Ano Santo da Redenção, entre 1983 e 1984 com o papa João Paulo II; o Ano Santo da Misericórdia entre 2015 e 2016 com o papa Francisco ou anos com assuntos específicos como o Ano da Fé de 2012 a 2013 iniciado com papa Bento XVI e concluído com papa Francisco, para celebrar os 50 anos da abertura do Concílio Vaticano II.
Para os antigos hebreus, o Jubileu (chamado ano do yôbel, “do carneiro”, porque esta festividade era anunciada através do som de um chifre de carneiro) era um ano declarado Santo. Naquele tempo a lei mosaica prescrevia que a terra, da qual Deus era o único dono, fosse devolvida ao antigo proprietário e que os escravos tivessem de volta a liberdade. Podemos conferir isso nos textos bíblicos mais importantes: Lv 25,8-16.23-55 e Nm 36,4. Devia acontecer a cada 50 anos. Na era cristã, após o primeiro Jubileu do ano de 1300, a frequência da celebração foi fixada pelo papa Bonifácio VIII a cada 100 anos. Mais tarde com o papa Clemente VI o período foi reduzido para 50 e papa Paulo II fixou o prazo intermédio para 25 anos.
O Jubileu é constituído de gestos concretos. O mais evocativo é a abertura da Porta Santa. Os peregrinos dirigem-se à Porta e ajoelham-se em oração no seu limiar antes de atravessá-la. A passagem representa o compromisso de uma mudança, rumo a algo novo na própria vida de cristãos. Nas peregrinações a Roma, a outros lugares santos ou àqueles indicados propriamente a cada Jubileu, é possível fazer a experiência do caminho, do encontro com os companheiros da viagem. Além disso, a peregrinação é uma imagem da nossa vida; precisamos conhecer por onde andar e a meta para não vagar inutilmente. No Ano Jubilar deve ser oferecida a possibilidade de vivenciar melhor os sacramentos da Reconciliação, confessando e pedindo perdão dos nossos pecados, e da Eucaristia, alimento indispensável para uma corajosa renovação de vida. Lembramos também as obras de penitência e de caridade, como sinais concretos de justiça e solidariedade. Enfim, temos a “indulgência”; a conseguiremos por meio de algumas ações espirituais indicadas pelo Papa. Com ela poderemos libertar o nosso coração do peso do pecado e a certeza da misericórdia do Pai nos fará caminhar mais leves e decididos apesar das nossas fragilidades.
Na bula de proclamação do Jubileu 2025, papa Francisco aponta algumas situações ou grupos de pessoas que devem ser lembradas para que ações concretas em seu favor se tornem sinais de esperança para toda a humanidade. São elas: a urgência de trabalhar em prol da paz mundial, o desejo dos jovens de gerar novos filhos e filhas como fruto da fecundidade do amor, a oferta de resgate e liberdade para tantos presos, o cuidado amoroso com tantos doentes praticando as obras de misericórdia, a primorosa atenção aos jovens para que não percam a esperança e desistam dos seus sonhos de ver um dia uma sociedade mais justa e mais fraterna, a necessidade de mais acolhida e dignidade para os migrantes, sejam exilados, deslocados ou refugiados, o reconhecimento dos idosos como tesouros de experiência de vida e de sabedoria, a superação do escândalo dos pobres que sobrevivem às margens de uma sociedade indiferente.
Conseguiremos resolver tantas questões? A esperança é justamente a virtude de quem não tem prazo para parar, porque também se já sabe que não verá a plenitude dos resultados, porém está feliz porque acredita que pode preparar o caminho para algo novo e melhor para os que virão depois. O novo ano que começa será “santo” de verdade não por ser um ano jubilar, mas somente se nós todos viveremos com coragem a vocação à qual fomos chamados: à santidade. Sem nunca desistir porque somos “peregrinos de esperança”.
A caixa de papelão
Nunes era um humilde motorista de caminhão. Para ele, a religião não tinha nenhuma importância e até discutia com aqueles que falassem sobre isso. Mas, para Deus, tudo tem a sua hora. Numa tarde, o nosso motorista viajava a grande velocidade quando, à certa distância, avistou, bem no meio da estrada, uma enorme caixa de papelão. Não teve dúvida. Brincalhão como era, decidiu passar a roda do pesado caminhão bem em cima da caixa. Firmou o volante. Contudo, quando estava próximo, num gesto contrário à sua vontade, desviou totalmente da caixa. A manobra foi tão violenta que chegou a sair fora da pista. Voltando ao asfalto continuou a sua viagem como se nada tivesse acontecido. Porém, após ter andado mais de um quilômetro, parou e começou a refletir: “Por que eu quis passar em cima da caixa e não o fiz? O caminhão saiu do asfalto e quase capotou. Não poderia outro motorista fazer o mesmo e sofrer um acidente? É melhor que eu volte e retire aquela caixa.” Nunes volta e quando se dirige para perto da caixa, a fim de apanhá-la, percebe que a caixa está andando. Levanta a caixa e vê que dentro dela estava uma criança brincando. Coloca a criança na cabine do caminhão. Atira a caixa no mato e, sem saber ainda por quê, começa a chorar. Entrega o menino aos pais. Ainda não sabe explicar como tudo aquilo aconteceu, mas agora acredita que Deus tem diversas maneiras para nos alcançar e manifestar o seu amor por nós.
Essa pequena história não chega a ser um conto de Natal, mas pode nos ajudar a pensar e a rezar nesses últimos dias antes do 25 de dezembro. Fala de alguém que pouco pensava em Deus, tinha outros interesses o motorista. De repente, aparece uma caixa de papelão. Como não pensar nos tantos pacotes grandes e pequenos dos presentes de Natal? Muitos deles são sinais sinceros de afeto; estão cheios de carinho e gratidão. Muitos outros são só uma obrigação, cumprem às formalidades de um costume de boa educação entre pessoas que, por exemplo, trabalham ou vivem juntas o ano inteiro. Que bom se esses pacotes estivessem cheios, ao menos, de sorrisos e apertos de mão, de desculpas pelas palavras ditas ou não ditas, de promessas para um novo tempo mais fraterno e harmonioso. A caixa de papelão da história, esconde uma criança, que, andando sem saber do perigo, foi parar no meio da pista. Como não pensar no Menino Jesus, o grande “presente” de Natal para todos nós? Assim acreditaram as duas mães, Maria e Isabel ao se encontrarem, apesar de ainda não poderem ver os rostos dos seus filhos. A idosa, já no sexto mês de gravidez, e a jovem, ainda no começo daquela gestação, obra misteriosa do Espírito Santo, exultaram cheias de alegria como nos lembra o evangelho de Lucas, que ouviremos neste Quarto Domingo de Advento. Isabel proclama Maria “bem-aventurada”, porque acreditou e assim tornou possível o comprimento das promessas de Deus (Lc 1,45). Ter fé é, sem dúvida, um dom de Deus, mas nós não podemos deixar de pedir que ele a aumente e a confirme. Todos somos convidados a prestar mais atenção aos sinais do amor de Deus, a não desprezar as oportunidades que ele nos dá para abrirmos os nossos olhos e o nosso coração. Não precisa esperar algum evento extraordinário, porque Deus se serve das pessoas ao nosso redor para nos alcançar e quebrar o muro da nossa incredulidade.
Quantas mãos nos tiraram de situações perigosas, quantas nos conduziram pelos caminhos certos da vida, quantas enxugaram as nossas lágrimas e nos sustentaram nos momentos de fraqueza. Quantas mãos estendidas pediram a nossa ajuda para nos acordar da nossa indiferença. Quantas mãos se juntaram às nossas para rezar, agradecer, pedir a paz, o perdão e a reconciliação. Talvez nós teríamos passado por cima de tudo na corrida desenfreada atrás dos nossos interesses, fechados em nosso orgulho ou na busca exclusiva do nosso prazer. Se alguém nos ajudou a reavivar a mecha fumegante da nossa fé, porque não agradecer, por que não reconhecer o amor de Deus? Melhor ainda se formos nós a ajudar outros, porque acreditamos que encontrar Jesus no caminho da nossa vida, será sempre o maior presente de Deus para nós e para todos. E não só no Natal.
A semente rebelde
Certo dia, a discussão entre as sementes de uma árvore tornou-se mais acalorada. Era natural, pois colocava-se uma questão fundamental a todas: O que devo fazer? Os frutos estavam maduros e as sementes tinham que decidir sobre o próprio futuro. Uma semente dizia:
– Daqui não saio, estou tão bem aqui. Uma outra rebatia:
– Mas não percebes que se não saíres daqui e não caíres na terra, nunca serás uma árvore? Por fim, tomaram a decisão de se deixar cair por terra, perto da árvore a que pertenciam. Porém uma daquelas sementes recusou-se. Não aceitou cair no mesmo lugar. E dizia para si: “Por que eu deveria cair aqui onde o sabor do fruto ao qual pertenço já é conhecido? Prefiro cair num lugar onde o sabor não é conhecido; assim serei uma grande novidade”. Pensando dessa forma, esperou uma forte rajada de vento e lançou-se no ar, indo para além dos limites de onde nascera.
No evangelho de Lucas do Terceiro Domingo de Advento encontramos João, chamado “o Batista” porque batizava as pessoas nas águas do rio Jordão. O batismo de João era um gesto de conversão e penitência. As multidões o procuravam e perguntavam: “O que devemos fazer?” (Lc 3,10). O Batista tinha uma resposta para todos e para alguns grupos específicos. Ao povo em geral ele pedia que praticassem a partilha do necessário para todos: comida e roupa. Aos cobradores de impostos pedia que praticassem a justiça não cobrando mais do que o estabelecido. Enfim, aos soldados pedia que não se aproveitassem da força da armas para extorquir dinheiro e que não espalhassem o medo com falsas acusações. Era um tempo de grande expectativa e vendo toda aquela mobilização o próprio povo se perguntava se João não seria o messias tão aguardado. O Batista responde claramente que não era o messias. Explica que o batismo dele era de purificação e que devia chegar outro “mais forte” do que ele que batizaria “no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3,16). Com muita humildade João, o Batista, reconhece não ser digno nem de servir aquele que estava para chegar.
O evangelista Lucas aproxima bastante a pregação do Batista aos ensinamentos de Jesus e diz que o precursor “anunciava de muitos modos a Boa-Nova ao povo” (Lc 3,18). No entanto, não pode silenciar as diferenças entre os dois. Com efeito, João, o Batista, convida a todos a mudar de vida, mas, falando daquele que virá, o apresenta como alguém que julgará; ele separará o trigo da palha que será inexoravelmente queimada. Esse era o pensamento de João. Segundo ele e os seus seguidores, o messias esperado devia ser aquele juiz que puniria os errados e premiaria os justos. Mais tarde, Jesus usará palavras duras para desmascarar toda falta de amor ao próximo e denunciar a hipocrisia de certas pessoas aparentemente muito religiosas. Ele, porém, anunciou, em primeiro lugar, a misericórdia do Divino Pai e a possibilidade de resgate e de vida nova para os pecadores. Por isso, foi difícil acolher Jesus, porque foi um messias diferente daquele que estavam esperando: em lugar do poder e do castigo, o escândalo da cruz e o perdão.
Ainda hoje, muitos bons cristãos acham que a própria Igreja deveria ser menos tolerante e mais rigorosa, voltar a usar a ameaça da excomunhão e do inferno. Isso já aconteceu no passado, mas não foi esse o caminho que Jesus escolheu e praticou em sua vida terrena. Então, hoje vale tudo? Não, os pecados são sempre os mesmos, denunciá-los e corrigi-los é obrigação de todos. Mas antes precisamos começar conosco mesmo e apontar novos caminhos com o nosso exemplo e o nosso compromisso. Depois devemos usar sempre do remédio da misericórdia, porque a bondade e a aproximação fraterna conquistam mais que o desprezo e o afastamento. A chegada do Natal é sempre uma boa oportunidade para a reconciliação entre os irmãos que pararam de se falar, entre os grupos que se olham com raiva e desgosto. O amor é sempre novo e renova as nossas vidas. Peçamos, sem medo, uma rajada poderosa do vento do Divino Espírito Santo, para ir mais longe com o bem, como aquela semente que não queria repetir sempre o mesmo.
Aos poucos
Justino era um andarilho bastante conhecido pelo seu vigor físico e mental. Não bebia nada que tivesse álcool. Tinha um amigo de infância que, constantemente, se embriagava. Certo dia, procurou convencê-lo a libertar-se da escravidão do alcoolismo, enfatizando as vantagens e privilégios do seu sistema de vida e apontando os perigos a que o vício poderia conduzir o amigo. Impressionado com os argumentos de Justino, o seu amigo tomou uma decisão:
-Bem, vou abandonar as bebidas fortes, mas aos poucos! Justino, perplexo, retrucou:
– Se você fosse envolvido por um incêndio, será que pediria aos bombeiros para lhe salvar aos poucos?
No caminho do Advento deste ano, o Segundo Domingo é substituído pela Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, a “Nossa Senhora da Conceição” como é popularmente conhecida. Foi no dia 8 de dezembro de 1854 que o então Papa Pio IX proclamou Maria preservada, por Deus Pai, da mancha do pecado original “em vista dos méritos de Jesus Cristo”, preparando assim uma digna mãe para a encarnação do Filho. Só podemos nos alegrar e aprender com Maria a praticar, cada vez mais e melhor, a nossa fé em comunhão com a Tradição da Igreja, ou seja, com tantos cristãos e cristãs que nos precederam neste caminho e nos transmitiram aquilo que acreditamos. O evangelho proclamado nessa solenidade será, mais uma vez, a página bem conhecida da “anunciação”. Logo pensamos em Maria, mas, na realidade, a festa que celebramos no dia 25 de março é da “Anunciação do Senhor” que é feita à Nossa Senhora. A Maria é anunciada a concepção do filho ao qual porá o nome de Jesus. O anjo explica, entre outras coisas, que aquela criança será grande e chamado Filho do Altíssimo. Ela fica “perturbada” com a notícia e precisa ser encorajada pelo anjo a não ter medo. Tudo o que acontecerá será obra do poder de Deus para o qual “nada é impossível”. O sinal que vai ajudar a entender e a confiar é o sexto mês de gravidez da parenta Isabel, a idosa estéril. Todos conhecemos a resposta de Maria que sempre vale a pena deixar ecoar em nosso coração: “ Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1,38). O evangelista Lucas quer nos dar uma boa notícia: a encarnação do Filho de Deus. Ele faz isso do jeito bíblico, narrativo, e não simplesmente através de um comunicado, mais ou menos enfeitado, como poderia ser hoje uma mensagem, por exemplo, colocada nas redes sociais. Cabe, portanto, a nós percebermos o valor e o sentido do “anúncio” mais do que ficar preocupados com a forma da apresentação. O que deve nos interessar mais é a boa notícia – se completou o tempo previsto (Gl 4,4), o tempo da espera – e a adesão plena e humilde de Maria. Depois, daqui a poucos dias, no Natal, contemplaremos o nascimento de Jesus, o Menino-Deus.
Como cristãos, somos chamados a oferecer a nossa colaboração para que aquele evento, único na história, continue produzindo os seus frutos de salvação e libertação. A “encarnação” do Filho Unigênito é o compromisso do amor de Deus com a humanidade para que esta encontre o rumo certo no meio de tantos caminhos tortos, de brigas, guerras e confusões. Jesus não veio para complicar a nossa vida com listas de pecados ou para nos impor obrigações religiosas. Ele nos mostrou o que vale mais de tudo e que somente pode mudar a história da humanidade. O nosso “vício” é o egoísmo. Gastamos tantas energias querendo aproveitar e arrancar da vida o que mais podemos de bens, fama, sucesso, riquezas e prazeres. Ele nos ensinou a colocar à disposição dos outros, amigos ou não, os dons que recebemos e, não último, o grande bem do próprio planeta, a Casa Comum. Parece que só pensamos em ganhar. Se buscarmos isso, sempre ficaremos insatisfeitos. Sempre teremos inveja dos outros e disputaremos mais e mais até aqueles bens que são dádivas para todos. Jesus ensinou a doar e não a cobrar para receber. Maria, teve medo, perguntou, quis saber, mas depois que deu o seu “sim”, não voltou mais atrás, foi totalmente fiel. E nós? Bastará nos corrigirmos “aos poucos”? Como está o nosso “sim”?
O guarda-chuva
Chovia muito naquele dia. Dois homens, que viviam juntando coisas velhas descartadas, rodavam pela cidade, empurrando um carrinho de mão, em busca de algo jogado fora e que tivesse ainda algum valor. Numa lata de lixo, encontraram um guarda-chuva preto. Parecia novo. Sem acreditar muito, o pegaram para olhar. Um dos dois logo começou a reclamar:
– – Que pena, o cabo está quebrado. Não vamos ganhar nada. O outro, ao contrário, ficou feliz e disse:
– – Que sorte que temos. Encontramos um guarda-chuva no meio do lixo justo hoje com toda esta água. E assim os dois, um alegre e o outro triste, continuaram no seu caminho debaixo do guarda-chuva todo quebrado.
Estamos chegando ao final do Ano Litúrgico. Por isso, o evangelho de Marcos do 33º Domingo do Tempo Comum nos apresenta algumas palavras de Jesus sobre as “realidades últimas” e que parecem nos apresentar aquele que chamamos de “fim dos tempos”. Ele usa a linguagem “apocalíptica”, específica para esses assuntos e bastante difícil para a nossa compreensão. Aquelas expressões, apesar das imagens às vezes assustadoras, queriam transmitir esperança sobretudo em tempos difíceis, de provações e inseguranças. Era uma forma para dizer que, um dia, aqueles sofrimentos acabariam com a vitória do bem. Não muito mais do que isso. Nada de previsões do futuro ou ameaças de desastres. O próprio evangelho não marca nem o dia e nem a hora, porque não sabe, mas apresenta o evento mais importante de todos: a volta do Filho do Homem.
Esse revelar e esconder ao mesmo tempo, obriga-nos, simplesmente, a estar sempre prontos e acordados. Se quisermos estar preparados para esse momento, devemos prestar atenção aos sinais. Este é o sentido da parábola da figueira: “quando os ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar” (Mc 13,28) é sinal que o verão está para chegar. Sinais nunca vão faltar, mas a dificuldade sempre será interpreta-los. O que pode ser um sinal positivo para alguns, pode ser negativo para outros. O discernimento é dom do Espírito Santo! No caso das palavras de Jesus, no evangelho deste domingo, o sinal é sem dúvida confortante: a figueira vai florescer e produzir logo os seus frutos doces e gostosos. Como dizer que não devemos aguardar a volta do Senhor prestando atenção primeiramente aos desastres naturais ou à destruição causada pelos homens com a exploração, poluição e exaustão dos recursos naturais e as consequências de guerras deflagradas com armas, cada vez mais, destruidoras. O Senhor Jesus não virá no meio de sinais de morte, mas de vida, de luz e esperança. A quem fala do próximo fim do planeta e da própria humanidade, nós, cristãos, só podemos responder nos comprometendo sempre e de novo com a fraternidade, a solidariedade, a colaboração de todos para um mundo de paz e de alegria. Somos convidados a ver, mas sobretudo, a ser sinais do bem que vence o mal. Muitas vezes são gestos pequenos, escondidos. Isso porque cada ser humano, em qualquer lugar ou situação que esteja, é chamado a mudar o seu coração de pedra em um coração de carne, apaixonado pela vida, pela vontade de estarmos juntos, de partilhar os benditos frutos da terra e da inteligência humana.
Papa Francisco, em sua mensagem para o 8º Dia Mundial dos Pobres, que celebramos neste domingo, lembra-nos que “os pobres têm um lugar privilegiado no coração de Deus”. Eles não têm outros recursos a não ser a própria coragem e a confiança de serem ouvidos em suas preces. Além disso, o Papa nos diz que “os pobres têm ainda muito para nos ensinar, porque numa cultura que colocou a riqueza em primeiro lugar e que sacrifica muitas vezes a dignidade das pessoas no altar dos bens materiais, eles remam contra a corrente, tornando claro que o essencial da vida é outra coisa”. Devemos, portanto, ajudar concretamente os pobres e aprender com eles a sermos mais sóbrios e humildes, promovendo uma vida sem os desperdícios de um consumo desenfreado e os gastos absurdos em armas de morte em lugar de construir obras de vida. Até um guarda-chuva quebrado é sinal de alegria para quem tem um coração simples e desapegado.
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Pode sempre doar alguma coisa
Um homem se considerava o mais pobre da terra. Um dia, encontrou outro na mesma situação e lhe disse:
– Eu me achava ser o mais pobre de todos, mas agora encontrei você que não tem nem chapéu. O outro respondeu:
– Amigo, lembre-se que todo pobre no seu caminho encontrará sempre alguém mais pobre do que ele! Essa é a sua única consolação, porque poderá sempre doar alguma coisa. Então, o homem tirou o chapéu e o doou ao outro. Depois, continuou o seu caminho. Encontrou mais um pobre que não tinha nem capa. Logo tirou a sua capa e a deu a para ele. Continuou a caminhar e, aos poucos, ia se desfazendo de alguma pobre coisa que tinha. Ficou somente com os sapatos e estava contente, porque assim podia ainda caminhar. Por fim, doou também os sapatos e viu que não possuía mais nada. Tinha chegado ao paraíso.
As leituras do Primeiro Livro dos Reis e do evangelho de Marcos do 32º Domingo do Tempo Comum nos falam de duas viúvas muito pobres. Naquele tempo, elas eram reconhecíveis pelo traje. A viúva de Sarepta, à qual o profeta Elias pede que lhe traga um pouco de água e um pedaço de pão, não se recusa a fazer isso com o último punhado de farinha que tinha e depois morrer, ela e o filho. Em resposta à tamanha generosidade, o profeta lhe garante, em nome do Deus de Israel, que, por todo o tempo da carestia, na casa dela não acabará nem a farinha na vasilha e nem o azeite na jarra. No evangelho, Jesus exorta a “grande multidão” a tomar cuidado com os doutores da Lei. Eles chamam atenção pela roupa, pelos primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes, mas depois “devoram as casas das viúva, fingindo fazer longas orações”. Mais tarde, Jesus está sentado no Templo “diante do cofre das esmolas” e fica observando. Os ricos atraem os olhares do povo, porque depositam grandes quantias de moedas no cofre. Com certeza eles demoravam propositalmente e todos escutavam o soar das moedas caindo. No entanto, Jesus declara que uma pobre viúva, que somente depositou “duas pequenas moedas que não valiam quase nada”, na realidade, foi a que mais doou, porque não entregou as sobras, mas “tudo o que possuía para viver”.
Elogiando a generosidade da viúva, na prática, Jesus continua o ensinamento anterior: não devemos nos deixar enganar pelas aparências. A verdadeira bondade do coração não se mede pelas aparências – a quantia de dinheiro ou as longas orações – mas por aquilo que custou de sacrifício ou pela honestidade de vida. Podemos enganar as multidões, mas não o Pai “que vê o que está em segredo” (Mt 6,6).
Cuidar do nosso asseio, é sinal de educação, de bom gosto, de amor a nós mesmos, porque zelamos pela limpeza e pela ordem. Até da nossa saúde, podemos dizer. Mas tudo tem limite. Quando a nossa principal preocupação é o julgamento dos outros, significa que talvez estejamos construindo uma imagem de nós mesmos que queremos seja reconhecida e elogiada, também se não corresponde à verdade da nossa fé, dos nossos sentimentos e motivações. Querer ser duas ou mais pessoas, ao mesmo tempo, é uma doença. O pior acontece quando, de tanto fingir ou representar, não sabemos mais quem somos de verdade. Jesus repreende aqueles ricos que queriam aparecer generosos quando, na realidade, estavam dando das sobras dos seus bens, ou seja, tudo aquilo não ia lhe fazer falta alguma. Muito diferente é a situação da viúva que estava dando tudo o que tinha para viver. Para ela, aquele pouco, era tudo. Com isso, o evangelista Marcos, chegando ao final do seu escrito, prepara-nos a reconhecer onde pode nos levar o amor: a doar “tudo”, até a própria vida como fez Jesus. A verdadeira doação não depende da quantidade, mas daquilo que nos custa doar. Sem pensar no que podemos ganhar com aquele gesto, nos aplausos ou reconhecimentos – aliás, melhor se não tivermos nada disso – mas só na alegria de vencer o nosso egoísmo e fazer felizes ao menos alguns dos nossos irmãos e irmãs. Ninguém é tão pobre que não tenha algo para doar. O pouco vale muito, se nos “custa” amor, carinho, atenção. São pequenos sinais da alegria do paraíso.
Ajudai-me colega
O santo Cura d’Ars recebera de um colega uma carta que começava assim: “Sr. Vigário, quando se sabe tão pouco a teologia, como é o seu caso, nunca se deve entrar no confessionário”. O Santo, que nunca achava tempo bastante para responder às inúmeras cartas que recebia, a esta respondeu imediatamente: “Quanta razão tenho de amar-vos, meu caríssimo e reverendíssimo colega! Vós sois o único que me conhece. Já que sois tão bom e caridoso, interessando-vos pela minha pobre alma, ajudai-me a obter a graça, que peço sempre, de ser substituído no cargo, de que sou indigno pela minha ignorância, a fim de retirar-me a um canto e chorar a minha pobre vida…”. Confundido com tamanha humildade, o autor da insolente carta correu a pedir desculpas ao Santo.
No início do mês de novembro, lembramos com saudade os nossos irmãos e irmãs falecidos e celebramos a solenidade de Todos os Santos. Na visita aos cemitérios, refletimos sobre o tempo que passa e a necessidade de dar um sentido menos superficial, talvez, à nossa vida. Repensamos os nossos relacionamentos, o valor que damos a Deus, as pessoas e os bens materiais. No domingo da festa de Todos os Santos, a Igreja nos aponta aqueles cristãos e cristãs que encontraram a verdadeira felicidade, porque tomaram a sério o evangelho das Bem-Aventuranças. Eles e elas, de tantas formas e por tantos caminhos, colaboraram com a construção do Reino de Deus e, acreditamos, merecem participar da glória do céu. Por ter ouvido tantas histórias de santos e santas famosos, pensamos que a santidade seja algo absolutamente heroico e, por isso, somente para poucos. No entanto, todos nós cristãos, somos chamados a buscar e praticar, conforme as nossas possibilidades, a santidade. As palavras com as quais a Liturgia apresenta os santos e as santas podem nos ajudar a entender. Na segunda Oração Eucarística rezamos: ”Lembrai-vos ó Pai…e dai-nos participar da vida eterna com a Virgem Maria, São José…os apóstolos e todos os santos que viveram na vossa amizade”. Aprendemos assim que os santos e as santas foram, são e serão os “amigos” de Deus e, por consequência, amigos também dos homens porque, como ensina João em sua Primeira Carta “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’ mas odeia o seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão que vê, não poderá amar a Deus que não vê (4,20).
Apesar das nossas dificuldades, todos desejamos ter amigos, ou seja, pessoas nas quais podemos confiar e que possam nos socorrer na hora da necessidade. Por isso, talvez, escolhamos a dedo as nossas amizades por interesse ou para ter alguma vantagem. A questão, porém, não é “ter” amigos, mas “ser” amigos, sermos, nós mesmos, pessoas com as quais os outros possam contar e sempre prontas para ajudar. Quando Jesus quis falar de um amor “muito grande” disse que “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Por isso, podemos dizer, sem medo, que ele, Jesus, se oferece para ser o nosso “maior” amigo, ao menos se acreditarmos que ele gastou realmente toda a sua existência terrena fazendo o bem, acolhendo, consolando e curando aqueles que sofriam de tantas formas de pobreza e enfermidade. Ele nada pedia em troca pelas curas e a quem perdoava os pecados simplesmente exortava a não pecar mais. Com isso, ensina-nos que a doença mais perigosa, que acaba com nossas vidas, acontece quando nos afastamos de Deus e dos irmãos, quando nos fechamos em nós mesmos e, afinal, não amamos ninguém. Quantos homens e mulheres foram e, ainda hoje, são verdadeiros santos e santas, também se nunca ficaram conhecidos. De fato, os santos e as santas “famosos” nunca buscaram a santidade para serem honrados neste mundo, se fosse assim já teriam recebido a sua recompensa (Mt 6,2). Simplesmente, amaram, praticaram o bem, doaram as suas vidas para outros serem felizes ou sofrerem menos e, sobretudo, não sozinhos e abandonados. Afinal, somos todos “colegas” de caminhada, por que não nos ajudamos mais para sermos todos santos e santas? Com humildade, sem inveja, sem disputas. O mundo precisa de uma grande corrente de alegre santidade. Hoje é a nossa vez.