Dom Pedro Conti

Remédio infalível

 

Um vendedor ambulante percorria os povoados oferecendo remédio contra coice de burro. Instalou-se numa pracinha e começou a gritar com aquela habilidade própria dos charlatões:

 

– Alô, pessoal! Ouvi dizer que aqui há muito burro brabo. É só a gente passar perto e vem o coice. Mas tenho aqui um remédio infalível. Querem experimentar? Os curiosos se juntavam. Então, ele passou a mostrar um pacotinho bem fechado, dizendo:

 

– Cada pacotinho destes contém o remédio. Cura quem levou o coice e previne contra coices futuros. O pacotinho custa apenas…E dava o preço de um, de dois, de três pacotes, sempre com o desconto de praxe. Várias pessoas compraram o tal de remédio. Quando chegaram às suas casas, abriram o embrulho e encontraram dentro dele três metros de barbante e um bilhete com o conselho: “Para evitar coice de burro, basta ficar longe do animal, numa distância correspondente ao comprimento deste barbante”. Ludibriados e desapontados, foram atrás do vendedor para lhe dar uma surra. Mas o espertalhão já havia sumido da praça.

 

No 12º Domingo do Tempo Comum, continuamos com a leitura de um trecho do evangelho de Mateus. Para entender melhor as palavras de Jesus aos seus apóstolos, precisamos lembrar quando e como os evangelhos que chegaram até nós foram colocados por escrito. Eles não são simplesmente a gravação daquilo que o Mestre ensinou. Vários fatores contribuíram até chegar à redação final. Em primeiro lugar, obviamente, a tradição oral, ou seja, a “memória falada” das palavras e do exemplo de Jesus que as primeiras testemunhas contavam. Em segundo lugar, muito importantes eram também as diversas situações que as comunidades estavam vivenciando. Nos momentos bons ou difíceis, os cristãos se perguntavam o que o Mestre teria dito e feito. Nós também não lembramos toda hora tudo o que os nossos pais, avós e educadores nos ensinaram; lembramos aquilo que nos questiona e preocupa naquele momento. Em outra circunstância, lembramos outras palavras. Entendemos, portanto que, se no trecho do evangelho deste domingo, são repetidas três vezes as palavras de Jesus “não tenhais medo” é porque, provavelmente, aquelas comunidades, onde o evangelho de Mateus foi escrito, estavam passando por momento difíceis de dúvidas, desistências e perseguições.

 

Ser cristão significava, muitas vezes, arriscar a própria vida. Ainda hoje, nós veneramos os mártires: aqueles e aquelas que derramaram e derramam seu sangue por causa da fidelidade à própria fé. É muito bonito e encorajante ouvir Jesus dizer que ele mesmo irá se declarar a favor deles diante do Pai. Não devemos ter medo daqueles “que matam o corpo” (Mt 15,28). Devemos ter medo, sim, de desistir da fé e abandonar o Caminho que leva à Verdade e à Vida. Outro medo que sentiam era a respeito daqueles ensinamentos que eram transmitidos secretamente. Tinham pessoas que realizavam feitiçarias, magias e adoravam misteriosas “forças ocultas”. Sempre, o que não está claro, que é sussurrado, que não se pode dizer, suscita incertezas e pavor. Jesus, porém, diz que nas questões da fé cristã não tem nada de escondido, ao contrário, a Boa Notícia do amor de Deus e do seu Reino deve ser proclamada com coragem e ousadia. Nos dias de hoje, Papa Francisco acaba de agregar ao “martirológio” católico, os nomes de 21 mártires de outra Igreja, a Copto-ortodoxa, porque eles, afinal, foram mortos por causa do único Senhor Jesus Cristo.

 

A respeito de devoções a imagens que choram, crenças em supostas mensagens celestiais comunicadas interiormente a alguma pessoa e, muitas vezes, partilhadas como “novos secretos” nunca antes revelados, a nossa Igreja nos convida sempre à prudência e ao bom senso. Antes de acreditar cegamente precisa avaliar a situação, sobretudo quando aquela manifestação, supostamente “do céu”, rende algum lucro para o ou a vidente. Os únicos secretos da nossa vida de fé são os que guardamos em nossa consciência quando rezamos e confiamos na misericórdia de Deus. Cuidado, o resto pode ser como o “remédio infalível” do charlatão, só um engano.

 

 

Ganho o céu

Contam que, antigamente, um rei estava viajando de carruagem pelo seu reino. Chegou a um castelo, cansado da viagem e das etiquetas do protocolo. Queria descansar um pouco e resolveu dar uma volta sozinho. Vestiu-se de modo simples, para que ninguém o reconhecesse como rei. Chegando à cozinha, encontrou a cozinheira limpando galinhas. Sem rodeios, perguntou-lhe:

– Quanto você ganha por mês?

– Eu ganho quanto o rei – respondeu prontamente a senhora.

– Como assim? Você está comparando o seu serviço e o seu salário com as preocupações e o trabalho de um rei, que tem a missão de governar este imenso país? Não estou entendendo. A serviçal respondeu:

– O serviço pode ser diferente, mas o salário é igual. Eu com o meu trabalho, ganho o céu. O rei, com o trabalho dele, não ganha mais do que o céu. E, além disso, faço o meu trabalho por amor a Deus e, se o rei não fizer o seu trabalho por amor a Deus, pode até não ganhar nada!

 

O evangelho de Mateus do 11º Domingo do Tempo Comum nos apresenta a escolha que Jesus faz dos doze apóstolos, os nomes e a missão deles. Terão o poder de expulsar os demônios e curar todo tipo de enfermidade (Mt 10,10). Anunciarão a chegada do Reino dos Céus, começando com “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10,6-7). Estamos no início da missão, depois, no final, Jesus enviará os seus discípulos “a todos os povos” (Mt 28,19). Antes dessas palavras, porém, o evangelista coloca a motivação do envio dos apóstolos: Jesus compadeceu-se das multidões, estavam cansadas e abatidas como ovelhas que não têm pastor (Mt 9,36). Em seguida, ele constata que a messe é grande, mas os trabalhadores são poucos e exorta todos a pedir ao “dono da messe” que envie trabalhadores para a colheita (Mt 9,37-38).

 

Acompanhando o evangelho, podemos entender que aquelas multidões estavam carentes de força e de alegria, porque lhes faltava a boa notícia do Reino que Jesus estava inaugurando e que, afinal, era ele mesmo presente e atuante. Por isso, ele envia aqueles primeiros apóstolos para que com palavras e sinais, ou seja, com suas próprias vidas, manifestem claramente a chegada do Reino dos Céus. Surge para nós uma pergunta: se o próprio “dono da messe” sabe que precisam trabalhadores, porque ele mesmo não chama mais pessoas para a missão? Por que tem que sermos nós a pedir os operários? Parece escutar a queixa de muitos católicos: faltam padres! É o “dono da messe” que não chama mais a contento ou são os possíveis trabalhadores que não respondem com prontidão e generosidade?

 

A meu ver as respostas a essas perguntas estão relacionadas entre si. Tenho certeza que o Senhor continua a chamar jovens para os ministérios ordenados na Igreja. Se for assim, somos nós, povo cristão, que não rezamos como deveríamos para que não nos faltem os pastores ou, também, não damos o devido valor a esse “serviço” eclesial. Se a bondade e a fecundidade de uma árvore se medem pelos frutos, seria muito triste ter que reconhecer que as nossas Comunidades estão ficando estéreis. Obviamente as causas dessa situação são muitas e complexas; têm motivações ligadas ao momento atual, mas também raízes históricas herdadas do passado.

 

Há, porém, ao menos duas razões que quero lembrar. A primeira é, sem dúvida, a excessiva preocupação com o bem-estar particular e individualista. Poucos partilham com Jesus a compaixão pelo rebanho. Parece que gastar a própria vida para anunciar o Reino dos Céus não sirva para dar ânimo e esperança às multidões “cansadas e abatidas” – ou distraídas – de hoje. Melhor cada um cuidar de si mesmo. A segunda razão vai junto e é a busca de alguma vantagem, almejando o maior lucro possível com o menor esforço. Pensando assim, muitos de nós se tornam insensíveis às propostas de doação e gratuidade. Perder a própria vida para ganhá-la (Mt 10,39), como Jesus nos deu o exemplo, está cada vez mais fora de cogitação. Contudo, reis ou cozinheiras, um dia todos “perderemos” esta vida e o maior prêmio merecido será o amor sem limites de Deus. Mas, por ter querido ganhar demais neste mundo, talvez percamos tudo aquilo que virá depois.

 

**************************************************************************************************************

 

 

Para formarmos um único corpo (1 Cor 12,13)

 

“Toda manhã um piloto militar dos drones sai de casa depois de ter tomado café com a sua família. Se despede e alcança o seu escritório, na Base onde trabalha. Senta na frente dos monitores; os teclados não são muito diferentes daqueles dos videogames que tem em casa. Com um código, dá a partida a um drone que está a 11.000 Km de distância, estacionado num dos aeroportos da zona de guerra. Movendo o seu joystick faz decolar o drone. Depois de alguns minutos de voo, bombardeia um comboio matando vários militares inimigos e, às vezes, alguns civis que, por desgraça, passavam por lá. Depois, com boa habilidade, desvia o drone de dois mísseis e faz aterrizar a sua joia super tecnológica na pista. Saúda os colegas e sai do escritório em tempo para participar dos ensaios de dança da filha. Depois do jantar, sentado no sofá com a esposa, assiste à sua série preferida. A tecnologia elimina algumas distâncias, mas cria muitas outras. Até quando a consciência do nosso piloto vai aguentar?”

 

Encontrei essa história num jornal. Fiquei triste. Por isso, gostaria de falar novamente sobre a paz que Jesus Ressuscitado doa aos seus amigos e, depois, da unidade também. Na Solenidade de Pentecostes, a Liturgia nos propõe, novamente, uma parte do evangelho que já encontramos no Segundo Domingo de Páscoa. Desta vez, para nos ajudar a entender que a paz e o perdão devem ser os primeiros frutos visíveis da presença do Espírito Santo. A paz e a reconciliação que o Senhor nos trouxe foram “compradas a alto preço” (1 Cor 7,23). Custaram o sangue de Jesus. Não são, portanto, dons de pouco valor, e continuar a construí-las, testemunhá-las e vivenciá-las é algo desafiante e comprometedor. Significa, em poucas palavras, reconhecer as injustiças, os ódios e as divisões para transformar tudo em alegria. Foi essa alegria que inundou os corações dos discípulos, quando viram o Senhor, e continua sendo essa mesma alegria que pode salvar o mundo de um futuro sem compaixão, feito de distanciamentos e insensibilidades tecnológicas e não.

 

A missão que Jesus entrega aos discípulos não é individual, exige a colaboração de todos e de todas. A leitura de São Paulo, proclamadas neste dia de Pentecostes, explica muito bem que os dons diferentes que o Espírito Santo distribui são para “caminhar juntos” porque “formamos um único corpo” (1 Cor 12,13). É bonito e confortante saber que “a cada um é dada a manifestação do Espírito” (1 Cor 12,7), no entanto, todos esses dons têm um único e grande objetivo: o “bem comum”. Podemos duvidar que a paz, a reconciliação e a unidade sejam “bens” que devemos espalhar e fazer frutificar? O preço deste compromisso é alto. Começa pela nossa própria fé que somos chamados a partilhar e a celebrar junto com os irmãos. Quantas dificuldades temos e nos acolhermos uns aos outros, justamente, com as nossas diversidades para que elas não sejam motivo de divisão, mas sim de fraternidade.

 

Falamos tanto de unir as forças, porém, muitas vezes, gostamos do nosso cantinho nas missas, nos grupos, nas pastorais. Uma capela, ou até uma paróquia, podem se tornar um jardim, mas fechado aos demais irmãos e irmãs “de fora”, eternos “visitantes”, que precisam ser apresentados, como se não partilhassem a mesma Fé, a mesma Palavra e a mesma Eucaristia. Caímos naquela autocontemplação que empobrece em lugar de nos enriquecer com a troca de experiências, de projetos e de “bens” – por que não? – colocados à disposição de todos. O encontro e a comunhão não deviam ser uma alegria? Já o santo Papa João XXIII exortava os cristãos das diferentes Igrejas a buscar antes o que nos une, antes de defender o que nos divide. Era a esperança da Unidade dos Cristãos que o fazia falar assim. Não é por acaso que no Brasil rezamos para isso na semana entre Ascensão e Pentecostes. A paz, a reconciliação e a unidade começam em casa e custam o esforço e o sacrifício de todos e todas. Sem dúvida a nossa rotina é muito diferente daquela do piloto dos drones. No entanto, com um clique no computador ou no celular podemos ferir um irmão, não só a 11.000 Km de distância, mas muito mais perto de nós. Pensemos.

 

 

Ao monte que Jesus lhes tinha indicado (Mt 28,16)

A solenidade da Ascenção do Senhor não é um momento de despedida, mas uma festa de envio em missão. No trecho do evangelho de Mateus, que proclamamos neste domingo, tudo acontece no “monte que Jesus lhes tinha indicado”. Lá, na Galileia, os discípulos (“amigos” Mt 28,10) deviam ir para encontrá-lo. Assim o Ressuscitado tinha dito às mulheres, que voltavam do túmulo ao amanhecer daquele “primeiro dia da semana”. “Os montes”, no evangelho de Mateus, são lugares privilegiados, onde os discípulos aprendem algo novo e diferente. Lembramos o “monte” das Bem-aventuranças (Mt 5,1). O Senhor quer doar àqueles que buscam o Reino de Deus uma alegria, que riquezas e poder nenhum oferecem. No “monte” da Transfiguração (Mt 17,1), Pedro declara que queria ficar lá, porque era bom.

 

Quando acolhemos o Senhor, uma nova luz resplandece em nossas vidas. Em Mt 15,30, foi num “monte” que Jesus curou muitos doentes e o povo glorificava a Deus. Houve, porém, também o “monte” das tentações (Mt 4,8) e “um lugar chamado Gólgota” (Mt 27,33) onde Jesus foi crucificado. Estamos agora num monte sem nome na Galileia, e os “onze” escutam palavras surpreendentes. O “ressuscitado”, a partir de então, é o vencedor da morte; é o Senhor da Vida, por isso fala de “autoridade” no céu e na terra. É com essa “autoridade” que ele envia os discípulos para que “todos os povos” possam participar da comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O lugar – o monte – e as palavras de Jesus abrem horizontes, convidam a olhar mais longe, a iniciar uma “missão”, que não terá limites nem de espaço e nem de tempo. A sua última promessa garante isso: “Eis que eu estarei convosco, todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20). “Emanuel” – Deus conosco – foi o nome com o qual, segundo a profecia, o Prometido será chamado (Mt 1,23). Assim   iniciou o evangelho de Mateus e, com a garantia dessa presença, termina.

 

Agora, é a vez dos discípulos continuarem a missão de evangelizar. Logo, nasce uma pergunta: será que vamos dar conta? Será que o Senhor Jesus não nos pediu e nos pede demais? Quantas dificuldades apareceram e aparecem à nossa frente! Os tempos e as culturas mudam. Hoje, a humanidade debate sobre a Inteligência Artificial ao mesmo tempo que milhões de seres humanos passam fome ou vivem na miséria. Nem todos dão valor ao que parece certo, incluindo os Direitos Humanos para os povos indígenas, as mulheres e uma paz duradoura. O próprio evangelista Mateus não esconde os problemas. O primeiro é evidente: os apóstolos não são mais “doze”, mas só onze. Judas escolheu outro caminho. Igualmente lemos: “ Ainda assim alguns duvidaram”. “Alguns” entre os onze? Talvez. Mais uma vez, devemos nos lembrar que o “Projeto” da missão evangelizadora não é nosso, é de Deus. Portanto ele, o Pai, através da obra de Jesus Cristo e a ação do Divino Espírito Santo sabe como e quando este projeto de Vida Nova irá chegar à plenitude. O que cabe a nós é participar, colaborar, enfim: acreditar, nunca desistir e, também, pedir para poder enxergar, sempre, os caminhos novos, que a história abre à nossa frente, fiéis ao Evangelho e ao mandato-envio de Jesus. É por isso que o Documento de Aparecida (maio 2007) nos ensinou a falar sempre de nós como “discípulos- missionários”.

 

Para sermos “missionários” de verdade – e não por empolgação improvisada e superficial – precisamos ser “discípulos” do Senhor, para não anunciarmos as nossas ideias, ideologias, incompreensões sempre parciais da Igreja Povo de Deus. No entanto isso não significa esperar sermos, antes, “doutores” nos ensinamentos da nossa fé para partir em missão. O Batismo já é um envio, sobretudo se acreditamos que a primeira evangelização acontece pelo “testemunho” da nossa vida e não, necessariamente, pelas nossas explicações, mais ou menos, convencedoras. Deixemos ecoar em nossos corações as palavras que nos foram transmitidas pelos Atos dos Apóstolos e proclamadas hoje. Para começar, o campo da “missão” está muito perto de nós: família, comunidade, cidade, país…planeta. Não podemos “ficar parados olhando para o céu” (At 1,11).

 

 

Não vos deixarei órfãos” (Jo 14,18)

O velho e sábio Abba João dizia aos seus discípulos:

 

– Vejam, o primeiro golpe que o diabo deu em Jó aconteceu contra os seus bens, e ele viu que Jó não se entristeceu e não se distanciou de Deus. Com o segundo golpe, ele atacou o seu corpo, mas também nesse caso o valente atleta não pecou com nenhuma palavra que saiu de sua boca. No interior de si mesmo, ele tinha aquilo que é de Deus, e se alimentava disso sem cessar.

 

No evangelho de João, que a Liturgia nos propõe no Sexto Domingo da Páscoa, Jesus diz que vai pedir ao Pai para enviar o Espírito Santo que ele chama de “outro Defensor” e de “Espírito da Verdade”. O Espírito “permanecerá” junto com os féis e “estará dentro” deles. Essa “presença interior” será a garantia de que eles não ficarão órfãos. No final do trecho, Jesus volta a ligar a observância aos seus “mandamentos” com o amor que torna possível a participação dos discípulos na comunhão amorosa do Pai, do Filho e, podemos dizer, também do Espírito Santo. Entendemos facilmente que a página do Evangelho de João, escolhida para este Domingo, vai nos preparar para celebrarmos as próximas solenidades de Ascensão e Pentecostes. No entanto, lembramos que o evangelista João coloca a promessa do “dom” do Espírito Santo aos discípulos durante a Última Ceia, ou seja, antes da sua Paixão e Morte, e a “entrega” do Espírito quando estavam reunidos “ao entardecer” do dia de Páscoa. Não devemos procurar uma “concordância” absoluta entre os escritos do Novo Testamento, porque cada autor tem o seu jeito de nos transmitir a sua mensagem. Isto é o mais importante.

 

A primeira consideração que faço, diz respeito à promessa de Jesus de não deixar “órfãos”, em outras palavras, desamparados, os seus amigos. Sem dúvida essa foi a grande angústia que os discípulos sentiram com a morte de Jesus. Evidentemente, a presença visível dele dava segurança. Ele era o Mestre que falava “com autoridade” (Mc 1,22). Só que o tempo da presença física de Jesus tinha chegado ao fim; agora ele era o crucificado-ressuscitado que participava da glória junto ao Pai (Jo 20,17). De fato, essa é a situação de todos os cristãos que vieram depois, ou seja, a nossa. Nunca encontraremos o Cristo em carne e ossos neste mundo. Nem “aparições” e nem “fantasmas” nos devem perturbar. Acreditar, portanto, em uma “nova” presença do Senhor é decisivo para a nossa fé. É por isso que sempre devemos lembrar “como” e “onde” o próprio Jesus disse que estaria presente. A lista inicia com a comunidade de fé (Mt 18,20), passa pela Palavra e a Eucaristia e chega aos pobres e sofredores. E tem mais. Com o “dom” do Espírito Santo, não somente Jesus não quis nos deixar órfãos, mas quis estar “dentro” de nós. Essa é a inestimável novidade da nossa fé que, às vezes, esquecemos.

 

Ser cristãos não é simplesmente cumprir um conjunto de normas, costumes e ritos, externos a nós. Todas as crenças e religiões têm tudo isso. Para nós cristãos, ter o Espírito Santo, o Espírito de Jesus “dentro” de nós significa, no mínimo, ter consciência daquilo que São Paulo já escrevia aos Coríntios na sua primeira carta: “Não sabeis que vosso corpo é santuário daquele que habita em vós, o Espírito Santo que recebestes de Deus e que não pertenceis a vós mesmos? De fato fostes comprados por alto preço! Glorificai, portanto, a Deus no vosso corpo”(1Cor 6,19-20). Quando lembramos disso? Talvez tenha lugares onde nunca levaríamos nossos filhos… Situações nas quais nos encontramos e que fariam envergonhar os nossos pais… No entanto, nós, batizados e crismados, estamos lá, nós, “santuários” do Espírito Santo. Esse é o lado negativo, as nossas indignidades.

 

Graças a Deus, porém, com certeza, têm muitos lugares e situações onde a presença dos cristãos é uma bênção, é verdadeira ação do Divino Espírito, é bondade, compaixão, misericórdia. Podemos acreditar que quando sofremos por praticarmos o bem e a justiça, quando lutamos para construir a paz, estamos simplesmente deixando acontecer e transparecer a santidade daquele que é o Santo, puro amor. Sejamos agradecidos. Não estamos sozinhos, estamos muito, mas muito mesmo, bem acompanhados e fortalecidos.

 

 

Quem é Jesus para você?

 

O padre da paróquia conhecia muito bem os seus fiéis até pelo nome. Numa celebração em dia da semana, com um número reduzido de participantes, fez uma homilia partilhada, pela facilidade que a circunstância oferecia. Proclamou o evangelho, em que Jesus pede aos seus apóstolos a opinião do povo a seu respeito. O padre, aproveitando a ocasião, fez a mesma pergunta aos seus fiéis:

 

– Cristina, quem é Jesus para você? Ela de pronto respondeu que é o Salvador.

– E a Joana, o que diz?

– Para mim, Jesus é o Filho de Deus.

– E o Antônio?

– Para mim, Jesus é o amigo que nos ajuda. E assim, chamou a todos, e cada um deu uma resposta. Por último, perguntou a uma senhora, da qual não se lembrava mais o nome:

– E a senhora, desculpe, porque me esqueci de seu nome, quem é Jesus para a senhora? E ela prontamente respondeu: – Jesus, para mim, é aquele que nunca esquece o meu nome.

 

Na Liturgia da palavra do Quarto Domingo da Páscoa sempre nos é proposto um trecho do evangelho de João tirado do capítulo 10. Nesse capítulo, Jesus se define como o Bom Pastor e nós somos as ovelhas do seu rebanho. Nos primeiros 11 versículos, porém, a comparação que Jesus usa para apresentar-se a si mesmo e o que ele vai fazer é aquela do redil que tem uma porta para o pastor e as ovelhas entrarem e saírem. Só o pastor entra pela porta e o porteiro lhe abre. As ovelhas conhecem e escutam a sua voz, ele as chama pelo nome e as conduz para fora do redil. Elas seguem o pastor; não seguem os estranhos, antes, fogem deles. Por fim, Jesus se define “a porta” e declara: “Quem entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). Ele diz que os que vieram antes foram “ladrões e assaltantes”. Agora ele veio para que as ovelhas “tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Podemos entender melhor todas essas figuras da vida pastoril se lembrarmos o capítulo 34 do livro do profeta Ezequiel. Lá encontramos, depois das acusações contra os maus pastores que exploram e maltratam as ovelhas, a promessa de uma nova aliança e de um único pastor que cuidará das ovelhas, mas sobretudo podemos ler as palavras: “Pois assim fala o Senhor: eu mesmo buscarei minhas ovelhas e delas tomarei conta” (Ez 34,11). É evidente que o evangelista João quis nos dizer que aquela promessa se realizou com Jesus. As comparações apresentadas, não são definições, mas nos ajudam a entender ao menos duas coisas importantes: a familiaridade entre as ovelhas e o pastor e o fato que ele as chama pelo nome.

 

Intimidade significa confiança, afago, sinceridade e até cumplicidade para o bem, se quizermos.  O fato de ser chamadas pelo nome tem outro grande sentido. A referência é mesmo à vocação, ao chamado de Deus que, desde o Antigo Testamento, nunca é anônimo ou genérico. Pode ser o chamado de um povo inteiro, o de Israel, o escolhido, mas sobretudo é o chamado de pessoas que têm uma missão a cumprir. Muitas vezes., o nome delas já revela a qual tarefa serão enviadas. Nos Evangelhos, é o próprio Jesus que chama a segui-lo e é por causa dele que os discípulos deixam tudo (Mt 4,21c-22). Com isso, aprendemos que os chamados por ele não são “ovelhas sem nome e sem rosto”, são pessoas que não seguem uma doutrina, ou um conjunto de normas morais, mas decidem acompanhar alguém que os atraiu também com uma relação muito pessoal, amorosa e fascinante, apesar de ser exigente e desafiadora.

 

Talvez, para muitos de nós, Jesus é ainda um desconhecido. Ele não faz parte dos círculo dos nossos amigos dos quais conhecemos ideias, projetos, virtudes e defeitos. No entanto, ele nos conhece muito bem, mais do que nós mesmos, “nos escolheu antes da fundação do mundo” diria São Paulo (Ef 1,4), porque o caminho que ele seguiu para nos alcançar é o caminho do amor, de quem ama de antemão e de forma totalmente gratuita. Somos nós que ainda desconfiamos desse amor, temos medo que ele nos engane, manipule-nos ou aproveite de nós. Perdemos a oportunidade de seguir o único pastor que, com certeza, nunca esquece o nosso nome. O nosso pároco pode até esquecer, mas Jesus não.

 

 

Corações ardentes, pés a caminho (Lc 24,32-33)

 

No Terceiro Domingo de Páscoa, deste ano, a Liturgia da Palavra nos propõe a página bem conhecida do Evangelho de Lucas que nos apresenta o episódio dos discípulos de Emaús. Aproveito dessa oportunidade para refletirmos um pouco sobre o 3º Ano Nacional Vocacional, que iniciamos no Domingo de Cristo Rei em novembro do ano passado e que concluiremos na mesma festividade em 2023. O “lema” do Ano Vocacional: “Corações ardentes, pés a caminho” faz referência aos discípulos de Emaús. Eles, lemos no evangelho, estavam desanimados e, por isso, queriam deixar para trás Jerusalém e virar, por assim dizer, uma página decepcionante e dolorosa de suas vidas. No caminho, porém, encontram um peregrino misterioso que lhes pergunta sobre qual assunto eles estavam conversando. Iniciam, assim, um diálogo tão interessante que, no final, eles mesmos afirmaram que lhes “ardia o coração”, quando aquele estranho companheiro de caminhada lhes “abria” as Escrituras. Além das palavras iluminadoras e reconfortadoras, aquele peregrino lhes oferece algo mais. Ao anoitecer, aceita o convite para ficar com eles mais um pouco e, no gesto de repartir o pão, o reconhecem como o próprio Jesus vivo e ressuscitado. Ele “desaparece”, mas as suas palavras e o seu gesto foram mais do que suficientes para que os dois mudassem os seus planos. Imediatamente, regressaram a Jerusalém e lá encontraram os Onze reunidos com os demais. Todos juntos, confirmaram a própria fé na ressurreição do Senhor Jesus. Até aqui, o evangelho; uma página sempre surpreendente e cheia de mensagens para nós.

 

Para entender a escolha da referência aos discípulos de Emaús, neste Ano Vocacional, basta lembrar o tema proposto: Vocação: Graça e Missão. Falar em “vocação” significa acreditar que a existência de cada um de nós não pode ser uma mera coincidência  da “loteria genética” da espécie humana. Essa, no fundo, é a primeira pergunta que toda pessoa que pensa um pouco se faz: por que eu sou eu e agora estou aqui? Todas as vocações começam com o chamado à vida, mas logo desembocam na busca do próprio lugar neste mundo e na motivação do lugar procurado. Devemos ser agradecidos se no tempo da juventude podemos tomar com esperança e entusiasmo as grandes decisões da nossa vida: o trabalho, a família ou outros caminhos entre os muitos que se abrem à nossa frente. Muitas opções são nossas, mas muitas dependem das circunstâncias e das pessoas que encontramos, ou seja, são-nos oferecidas e, somente depois percebemos como e quando isso aconteceu. Cada um também sabe, em sua consciência, quanto a fé no Senhor e o pertencer, ou não, a uma comunidade cristã possa ter influenciado as suas escolhas.

 

“Vocação”, portanto, é “Graça” quando nos faz sentir felizes por estarmos no lugar onde estamos, fazendo o que podemos e sabemos fazer. Mas “Vocação” é também “Missão”, porque compreendemos que Alguém – e não simplesmente o acaso – colocou-nos naquela situação para colaborar e contribuir com algo muito maior do que nós. Podemos chamar isso de “vocação” a colaborar na construção do Reino de Deus? Esta é a primeira “Vocação” de todo cristão consciente do seu chamado. Desde o início, Jesus chamou colaboradores para segui-lo. Os acompanhou com paciência e carinho e os enviou para que fossem “à sua frente”. “E dizia-lhes: A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi ao Senhor da colheita que mande trabalhadores para a sua colheita” (Lc 10,2). Por que devemos rezar pelas “vocações”? Não é ele o “Senhor da colheita”? Não sabe de quantos operários precisa? Sem dúvida alguma, é sempre ele que chama. Mas a nossa oração abre os nossos ouvidos ao seu chamado, abre os nossos olhos para ver as necessidades dos irmãos, da comunidade, da Igreja, do país, da paz mundial; faz abrasar o nosso coração na alegria da resposta comprometida e generosa. Rezamos pelas vocações porque desejamos, ardentemente, que o Senhor não deixe faltar trabalhadores e trabalhadoras na sua vinha, que é a Igreja toda e a nossa Diocese de maneira especial. Porque temos tão poucos padres daqui? Será que rezamos mesmo com fé e esperança?

 

*****************************************************************************************************

 

 

Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia (At 10,40)

É sempre difícil expressar em poucas palavras a grandeza do evento pascal. Os próprios evangelistas tiveram que encontrar palavras novas para dizer algo inesperado e surpreendente. Isso vale também para nós. Se reduzimos a Páscoa a algumas afirmações decoradas podemos saber dizer que “Jesus ressuscitou”, mas, com isso, não deixamos ainda que essa “novidade” ilumine a nossa vida. Com efeito, a Páscoa de Jesus nos comunica algo extraordinário sobre Deus, Jesus e nós mesmos.
Afirmar que o Deus, Pai de Jesus Cristo é o “Deus da Vida e não da morte” é mais do que falar de imortalidade ou algo semelhante. Desde o Antigo Testamento, aprendemos que o problema do ser humano não é a morte biológica em si, que nos é apresentada como a conclusão natural de uma existência passageira. O que faz a diferença entre quem está vivo e quem está morto não é o número dos anos alcançados, mas a maneira de viver. Quem acompanha e obedece ao projeto de Deus está “vivo”. Quem não acolhe a proposta de Deus já está “morto”, apesar de estar andando ainda pelos caminhos deste mundo. Ou seja: somente quem está em “comunhão” com Deus está vivo de verdade. No Novo Testamento, é a vida de Jesus que nos é apresentada como uma forma de vida perfeitamente em acordo com a vontade do Pai. Isso não significa que tudo foi fácil para ele. Até o último dia, os seus seguidores esperavam alguma manifestação grandiosa de poder que revertesse a situação ameaçadora na qual ele se encontrava. Na Paixão, foram tantos os que gritaram: “Se és o Cristo, desce da cruz, salva a ti mesmo e a nós” (Lc 23,35-39).

Para muitos, ainda hoje, Jesus não soube aproveitar do seu sucesso, perdeu todas as oportunidades que a sua fama lhe oferecia para se tornar poderoso. Foi sempre essa a tentação que o acompanhou. É a mesma que nós todos experimentamos, quando temos que decidir como gastar a nossa vida e os talentos que recebemos sem pedir: usá-los para dominar os irmãos ou para servi-los? Se o Deus que Jesus veio nos fazer conhecer é amor, somente ele pode doar. Não quer tirar nada de ninguém e nem obrigar a fazer a sua vontade. Somos nós que nos preocupamos demais com aquilo que vamos ganhar. A vida de Jesus foi uma vida totalmente doada, a serviço do Reino de Deus que ele veio iniciar. Para segui-lo, chamou “os que ele quis”, mas ninguém foi forçado a fazê-lo.

 

O jovem rico, por exemplo, foi chamado ao seguimento, mas ficou livre de decidir e foi embora triste (Mt 19,16-22). Os apóstolos fugiram na hora da Paixão, mas Jesus, depois da Ressurreição, não os culpou pela covardia e nem os ameaçou de castigos, ao contrário, ofereceu-lhes a paz e o perdão. Por tudo isso, nós ousamos dizer que Jesus, “com forte clamor e lágrimas” (Hb 5,7), mas sobretudo com amor total caminhou livremente – e conscientemente – rumo à morte de cruz, e São Paulo chama isso de “obediência” ao Pai (Fl 2,8). Com essa vida e com essa morte, Jesus se tornou o “homem” que realizou, plenamente, o Projeto de Deus como o próprio Deus tinha pensado desde o início.

A vida dele foi diferente, sempre doada, sempre promovendo novas vidas com o perdão, a fraternidade, a partilha, a cura da maior de todas as doenças: o pecado entendido como “morte”, porque quando falta o amor morremos, afastando-nos de Deus e dos irmãos. Deus Pai “ressuscita” Jesus, porque a vida amorosa vivida pelo Filho encarnado é a própria vida de Deus que nem a morte pode vencer.

 

A Vida-Amor não morre, continua viva, porque participa da vida divina. A vida nova da “ressurreição” – a vida verdadeira que não morre mais – começa em nós, quando acreditamos e praticamos o que afirmamos no nosso Batismo: deixamos as obras mortas que levam à morte – também se chamadas poder, riqueza, prestigio, força – e abraçamos as obras que geram vida, encontro, misericórdia, união. A Vida Nova da Páscoa está mais perto de nós do que pensamos e lembramos, pois está conosco desde quando pela fé, a esperança e o amor tivemos o dom, não merecido, de participar da Vida Divina. Essa Vida é o mesmo Espírito daquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos e que habita em nós (Rm 8,11). A comunhão com Deus-Amor não morre.

 

 

“Quem é este homem?” (Mt 21,10)

Chegamos ao “Domingo de Ramos da Paixão do Senhor” e iniciamos a Semana Santa. Todos os anos, somos convidados a acompanhar Jesus nos últimos dias de sua vida. Estaremos com ele na última Ceia, na despedida dos discípulos, na agonia do Getsêmani, no caminho do Calvário, na morte cruel na cruz, no silêncio do Sábado, até o amanhecer do dia da Páscoa. O convite para todos os cristãos é, evidentemente, para participar dos momentos litúrgicos que, com sua simplicidade e sobriedade, saberão reavivar a nossa fé e nos colocar mais perto do Senhor e dos irmãos.

 

Nesse sentido, a nossa maneira de viver os dias da Páscoa será um sinal de como e de quanto estamos interessados no assunto. Para muitos serão dias comuns, de trabalho e de atividades. Não podemos mais esperar que o vaivém da vida corrida, cheia de afazeres e negócios, pare para chamar a nossa atenção e nos lembrar que é Páscoa. Não estamos mais numa sociedade “cristã”, também se nas TVs passarão filmes sobre a Paixão do Senhor e seremos submergidos de mensagens com rostos ensanguentados de Jesus para todos os gostos, com as lágrimas de Maria e com todas as orações possíveis. Logo em seguida, será a vez de recebermos a obrigatória enxurrada de votos de “Feliz Páscoa”. Tudo isso significa que se, nesses dias, não paramos para refletir e nos questionar sobre a nossa fé, gastaremos tempo para, assistir, ler, responder e apagar as mensagens, mas tudo passará rapidamente e muito pouco ficará daquele evento fundamental, que para nós cristãos é a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Sim, um único “evento”, consumado em poucas horas. Para as autoridades daquele tempo, tudo devia acabar para sempre ao anoitecer daquela Sexta-Feira. Mas o corpo ensanguentado daquele malfeitor, condenado às pressas, para se livrarem dele, morto na cruz e sepultado de qualquer jeito, nunca mais foi encontrado. “Ele está vivo” começaram a proclamar os seus seguidores e saíram pelo mundo para espalhar essa notícia dispostos a morrer por causa disso. Algo novo, inesperado, surpreendente, tinha acontecido. Voltaremos sobre o assunto no próximo domingo.

 

Agora, o convite, é refletir e tentar responder à pergunta que “a cidade inteira” de Jerusalém, na sua agitação, fazia-se: “Quem é este homem?”. As leituras da Liturgia deste Domingo de Ramos nos ajudam, mas nada e ninguém poderá substituir o que cada um de nós pensa e declara acreditar, porque nós “recebemos” dos outros, através da comunidade cristã, o conteúdo da fé, mas a adesão a ela só pode ser pessoal, dada no exercício da nossa liberdade e no silêncio da nossa consciência. Vou apresentar algumas respostas. As multidões dizem: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21,11). Certo, um profeta. Mas a pouco servirão o seu exemplo e os seus ensinamentos. No processo, serão usados contra ele. Judas, saúda Jesus com um: “Salve, Mestre”. Em resposta ao seu beijo, ele escuta: “Amigo, a que vieste?”.

 

Até o fim, Jesus é amigo dos pecadores, pronto a mostrar-lhes o rosto misericordiosos do Pai. Até por isso foi julgado réu.  Na cruz, colocaram um letreiro com as palavras: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”. Era costume afixar no patíbulo o motivo da condenação. Mas, nesse caso, ficou um “título” que, diz outra coisa: o nome significa “Deus salva”. É como se estivessem escrito que “este” aí, Jesus, era o salvador do seu povo. Para o evangelista Mateus o “nome” de Jesus é importante, o usa mais de que os outros evangelistas. Esse “nome” é lembrado também na segunda leitura da Missa. Após ter dito que “Jesus Cristo” se fez obediente até a morte, e morte de cruz, na carta aos Filipenses lemos: “Por isso Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus é o Senhor”, para a glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11). Também os soldados “se ajoelharam diante de Jesus, mas para zombá-lo (Mt 27,29). Um profeta, o amigo dos pecadores, o rei-salvador do seu povo…o Senhor… Afinal, quem é este homem para nós?

 

 

Eu sou a ressurreição e a vida (Jo 11,25)

 

Chegamos ao Quinto Domingo da Quaresma e concluímos a nossa reflexão sobre os três evangelhos que marcam os Escrutínios dos catecúmenos, rumo ao Batismo na noite de Páscoa. A página do evangelho de João proposta é aquela que identificamos como a “ressurreição” de Lázaro. Propriamente não foi uma ressurreição, mas uma reanimação. A “ressurreição” – de Jesus, para nós – é outra coisa. Nem sempre a terminologia ajuda a entender. A reanimação de Lázaro é o último dos sinais apresentados pelo evangelista João – o primeiro foi o das bodas de Caná – antes do sinal, por excelência, que será a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Portanto, um sinal que antecipa uma passagem: da morte para a vida. Qual morte? Qual vida? É isso que precisamos entender para chegar à alegria da fé que todos professaremos, renovando as promessas do nosso Batismo, junto aos catecúmenos, durante a Vigília Pascal.

 

Começamos com o uso das palavras que o evangelista João faz. Avisam a Jesus que o amigo dele, Lázaro, estava doente. Nesse caso, a palavra usada é a da amizade humana, da qual vem a nossa palavra “filantropia”. Logo em seguida, porém, é dito que Jesus era “muito amigo” de Marta, Maria e Lázaro. Desta vez a palavra usada é outra, é aquela que Jesus usa quando fala do amor que é doação, gratuidade total, que não espera recompensa, ou seja, um amor que vai muito além da solidariedade por mais generosa que seja. Jogo de palavras? Não. Aqui está a novidade do relacionamento que liga Jesus a esses “amigos”: aquele amor total que é puro dom. É por esse caminho que podemos começar a entender de qual ressurreição e de qual vida Jesus fala.

 

Todo amor humano é grande, valioso e digno de respeito, mas tem um “amor” que é mais do que humano, é participação do amor divino. A nossa morte e a morte de quem amamos interrompe os laços que nos unem. Juramos amor eterno, mas nada neste mundo dura para sempre e, muitas vezes, já começa misturado com outros interesses como o medo da solidão, a busca de uma vida melhor, o desejo de ter uma família, o nosso bem-estar individual. Cada um de nós carrega essas limitações. No entanto, é possível passar de um amor-amizade a um amor-doação, onde o que vale é mais a felicidade e a alegria dos outros que a nossa. Por isso, Jesus apontou como o maior amor aquele de quem doa até a própria vida para quem ama (Jo 15,13). A comparação é com o grão de trigo que só morrendo produz muitos frutos (Jo 12,24). Foi assim que Jesus nos amou, até o último suspiro da sua vida. A morte, lembramos, não é simplesmente algo biológico. Experimentamos também uma morte que é o não amor, o ódio e toda a negação da vida para os demais e a própria natureza com a qual estamos interligados. Somente quem aprende a amar com a doação-entrega de si mesmo experimenta um novo jeito de viver e participa da “vida plena”, a vida amorosa de Deus, que vai além da morte neste mundo passageiro.

 

Jesus chora na frente do túmulo de Lázaro,  solidariza-se com a dor de Marta e Maria, com a dor de todos aqueles que se despedem dos seus  entes queridos. No jardim das oliveiras também, Jesus, plenamente humano, passará, na sua agonia, pelo medo do sofrimento e da morte (Lc 22,44). No entanto o amor-doação, na obediência ao Pai, o amor total, falará mais forte e, em reconhecimento a esse amor, o Pai ressuscitará Jesus ao amanhecer do dia de Páscoa. A reanimação de Lázaro se torna, assim, o sinal de algo muito maior e oferecido a todos aqueles e aquelas que decidem começar a viver a “vida nova”, a do amor-doação. Nesse sentido, vamos deixar ecoar a voz forte de Jesus que diz a Lázaro: “Vem para fora!”. O não amor ou o amor egoísta é como um túmulo que nos aprisiona, fecha-nos em nós mesmos e nos nossos interesses. Ainda precisamos de alguém que desate as amarras e nos ponha a caminhar.

 

Quando o Batismo cristão é um encontro verdadeiro com o Senhor da Vida, algo novo começa a acontecer. A nossa vida é animada pela força e a luz do Divino Espírito Santo, penhor da vida plena, ganhamos ânimo e coragem para testemunhar e praticar um pouco do amor divino-humano oferecido por Jesus, vencedor do mal, do pecado e da morte. Ensina São Paulo: “Ora, a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).