Dom Pedro Conti

Os óculos da vovó

Uma criança foi obrigada a usar óculos. Um colega lhe disse:
– Não está zangado por ter que usar óculos?
– Não, se forem como aqueles que usa a minha vovó – respondeu o menino – Minha mãe diz que ela consegue sempre ver quando as pessoas estão cansadas ou tristes. Logo ela percebe se você precisa de ajuda. Mas a coisa melhor é que a vó consegue ver alguma coisa boa em cada um. O pequeno continuou: Certo dia, perguntei à minha vó como é que ela conseguia ver todas aquelas coisas e ela me respondeu que isso aconteceu quando tinha ficado velha. Por isso, tenho certeza de que a culpa deve ser dos óculos que ela usa!

Na forma mais comprida do evangelho de Lucas, deste domingo, encontramos todo o capítulo 15 com as três parábolas da misericórdia. A mais conhecida é a do pai e dos dois filhos, um dos quais saiu de casa e gastou toda a parte da herança dele. Quando o dinheiro acabou, passou fome e resolveu voltar nem que fosse para ficar como empregado na casa do pai. Estava bem consciente que não mereceria nada mais. Supreendentemente, porém, o pai correu ao encontro dele e mandou fazer festa porque o filho perdido, enfim, tinha sido encontrado. Diferente foi a atitude do outro irmão, aquele que nunca saiu de casa. Não entendeu o porquê de tamanha alegria do pai.

Em todas as três parábolas algo, ou alguém, se perde: uma ovelha, uma moeda e um filho. No final, tudo o que estava perdido é encontrado e tudo acaba em festa. No entanto, há uma diferença muito interessante. É o pastor quem procura a ovelha até encontrá-la. É a mulher que varre a casa até encontrar a moeda. Mas o pai não sai atrás do filho. Aguarda ansioso a volta dele e, assim, consegue enxergá-lo “quando ainda estava longe”. A motivação desta atitude do pai é a mesma que o fez dividir a herança: o respeito pela liberdade do filho! Este não foi obrigado a sair e não será obrigado a voltar. Precisou antes “cair em si”, refletir, sentir a falta da casa do pai. Absolutamente soberana é também a liberdade do pai da parábola que se deixa tocar pela compaixão. Não tem nenhuma lei que o obrigue a perdoar. Isso porque a misericórdia, como o amor, somente tem valor e sentido se for oferecida com o coração livre de todo julgamento e rancor. O filho mais velho da parábola não entende o perdão ao irmão, porque reconhece o pai como um patrão exigente que o faz trabalhar e não como alguém que já o considera dono de tudo o que tem. Esse filho vive o seu ficar em casa como uma obrigação, um peso, sem liberdade, com submissão e tristeza. Saberá, um dia, fazer como o pai e abraçar o seu irmão?
Talvez com essas considerações, eu esteja respondendo a uma antiga questão: por que Deus não nos obriga a fazer somente o bem e nos deixa errar, pagando muito caro as consequência do nosso mal? Com certeza, não é porque não nos ama ou não se interessa por nós. A vida, a paixão e a morte de Jesus nos revelam um Deus que está do lado dos sofredores, solidário com os enfermos e os leprosos da história. Inocente, ele aceita ser condenado como malfeitor para denunciar todas as falsas “justiças” praticadas com a força de leis injustas ou de uma religiosidade que funciona só com o rigor das normas.

Nós, cristãos, acreditamos num Deus que respeita tanto a nossa liberdade a ponto de passar ele mesmo por mau, indiferente e insensível. Se Deus fosse assim não mereceria ser amado. Por isso, muitos não o conhecem bem e o substituem com os seus próprios interesses, as suas ideologias, os ídolos que estão na moda. Talvez chamem isso de liberdade; de fato estão trocando um Deus Amor consigo mesmo, o seu orgulho, o seu poder. O Deus das parábolas da misericórdia nunca desiste da busca do ser humano, até encontrar a ovelha e a moeda perdidas. Contudo, o amor é sempre um encontro entre aqueles que se amam. Precisamos nos deixar encontrar por ele, desistir de nos esconder por medo ou atrás de desculpas mesquinhas como a nossa tranquilidade e o nosso bem-estar. O Deus, Pai de Jesus, nos ama como filhos, também se andamos longe e escondidos. Ele sempre vê o bem que está em nós. E não precisa dos óculos da vovó.

 

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Os bons propósitos

A mãe estava passando roupa e o filho adolescente sentado à mesa escrevia, no seu caderno, os bons propósitos da sua vida. “Se visse alguém que estivesse para afogar – escrevia o jovem – logo me jogaria na água para socorrê-lo. Se pegasse fogo a casa salvaria as crianças. Se acontecesse um terremoto, não teria medo de entrar nos prédios mais perigosos para salvar alguém. Gastarei a minha vida para ajudar todos os pobres do mundo…”. De repente, a mãe lhe diz:
– Por favor, meu filho, vai à padaria, aqui embaixo, e compra alguns pães. Responde o jovem:

– Ó mãe, a senhora não vê que está chovendo?

No Evangelho de Lucas deste 23º Domingo do Tempo Comum, Jesus nos apresenta mais algumas condições para nos tornarmos seus discípulos. Ele já nos alertou sobre a ganância, o apego às coisas materiais, às amizades interesseiras que nos impedem de ser felizes experimentando um pouco do amor gratuito de Deus. Agora, parece pedir mais ainda. Nada de vida fácil para os seus discípulos. Será necessário se desapegar da família, carregar a própria cruz e renunciar a tudo o que temos. Jesus não exagerou demais na sua maneira de falar? E se alguém não conseguir tudo isso, nunca será discípulo do Mestre?

Vamos começar a entender um pouco melhor o que pode significar “carregar” a própria cruz. Logo pensamos em fardos pesados, situações adversas que vão exigir grandes esforços e sacrifícios. Na realidade, a nossa cruz somos nós mesmos, levando em conta os defeitos e as limitações que experimentamos, sem esquecer as circunstâncias – tempo e lugar – onde nascemos, crescemos e vivemos. Por isso, Jesus fala de uma “obra”, semelhante à construção de uma torre que deve ser bem calculada, para não parar no meio por falta de recursos e, assim, passar vergonha. Vale, também, a comparação com uma “guerra” que não pode ser ganha se o número dos próprios homens for pequeno demais para enfrentar o inimigo. Qualquer coisa que queiramos fazer ou alcançar na vida, somente será possível construir, incluindo a nossa personalidade ou maturidade que seja, a partir da nossa realidade que nunca é perfeita. São Paulo diz: “…quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta… (Rm 7,21-24). Nós vivemos mergulhados em bons exemplos e em bons sentimentos, mas também sempre com a tentação de desprezar e invejar os outros, transformando tudo em disputas, brigas e confusões. Encontramos amigos para amar, mas tropeçamos em inimigos que nos fazem sentir ódio e rancor.
Carregar a nossa cruz significa todo dia – talvez toda hora – suar um pouco ou muito para corrigir o nosso egoísmo, reconhecer que erramos, perdoar quem nos ofendeu, aprender sempre de novo a amar como Jesus nos deu o exemplo, servindo no último lugar aos pobres e pequenos. Por isso, ele nos pede de escolhê-lo como único “Senhor” da nossa vida, como “luz”, para podermos ter olhos capazes de ver o mal, as injustiças e as mentiras, também se podemos encontrar tudo isso entre os nossos familiares e, com certeza e sobretudo, nas coisas materiais que aprisionam o nosso coração e nos fazem construir uma sociedade desumana de excluídos e famintos. Acontece que é muito mais fácil apontar os erros dos outros que os próprios. Para os sócios, os amigos e os parentes valem critérios e desculpas bem diferentes daqueles que aplicamos aos demais. Com a melhor das intenções (amizade? afeto?) talvez compactuamos com os pecados pessoais e sociais que nada contribuem para o bem comum e a esperança de todos. Os panos sujos se lavam em casa, diz o ditado, mas é necessário fazermos alguma coisa para que eles fiquem limpos, quem sabe, de uma vez por todas. Jesus não nos coloca contra as nossas famílias e nem contra os bens deste mundo, somente nos pede para fazermos bem os cálculos para perseverarmos até o fim na construção da grande obra do seu Reino sem nos desviarmos, por outros objetivos, ao longo do caminho. Não precisa querer salvar todo o mundo ou esperar alguma fatalidade para sermos aclamados heróis. Começamos a ajudar alguém que precisa. Também se lá fora chove egoísmo e indiferença.

 

Muda de nome

Contam que certo dia Alexandre Magno, o grande general grego, viu um dos seus soldados fugir da batalha. Deu ordem que o procurassem e o trouxessem imediatamente. Quando o soldado chegou à sua frente, perguntou-lhe:

 

– Qual é o seu nome?

 

– Alexandre, senhor, respondeu o homem. O general olhou para ele e lhe disse:

 

– Ou você muda de nome ou muda de atitude! Para o comandante, não era possível ter um nome glorioso e agir de maneira tão mesquinha.

 

No evangelho de Lucas, deste 22º Domingo do Tempo Comum, encontramos Jesus participando de uma refeição na casa de um dos chefes dos fariseus. Estes ficam observando a Jesus, talvez para poder apanhá-lo em alguma infração à Lei ou simplesmente por curiosidade e desconfiança. Afinal, aquele “mestre” vinha da Galileia, região de pagãos e nunca havia estudado em Jerusalém. Jesus também ficava atento àquilo que acontecia: as pessoas escolhiam os lugares de destaque nas mesas, provavelmente mais perto que podiam daquele que os tinha convidado. Queriam aparecer. A parábola da festa de casamento e dos lugares a serem ocupados vai muito além de uma simples questão de ordem ou de organização. Jesus quer nos ensinar que todos somos convidados à festa do amor de Deus, ninguém ficará excluído. No entanto, não cabe a nós escolher o lugar. A decisão será do próprio Senhor que tem os seus critérios de prioridade, com certeza, bem diferentes dos nossos. O mais sensato seria ficar nos últimos lugares porque, se o merecermos, talvez o Senhor nos chame mais na frente. Vergonhoso seria ser convidado a deixar espaço para outro e assim acabar no fim da fila. Pela parábola, os orgulhosos serão rebaixados e os humildes elevados. É o Senhor que exalta os que merecem; ninguém deve se promover por sua própria conta. Pode estar muito, muito enganado.

 

Depois da parábola, Jesus fala diretamente a quem o tinha convidado, mas é evidente que está falando a todos nós. Aqui aparece a novidade do Evangelho. Com efeito, todos nós temos as nossas amizades, preferências de pessoas e interesses. Os laços podem ser familiares, de convivência com vizinhos ou colegas de trabalho, sócios de negócios reais ou na esperança de conseguir algum apoio ou favor. Se no nosso aniversário – ou casamento – comparecer alguém desconhecido, logo queremos saber quem é o cara e, sobretudo, quem o chamou. Convidar “os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” (Lc 14, 13) não faz parte dos nossos planos. Mais claramente: isso nem passa pela nossa cabeça! Ainda, talvez, as sobras do banquete podem ser para os pobres, mas a festa não. Ou seja, estamos muito longe da proposta de Jesus. Provavelmente pensamos que seja mais um dos exemplos exagerados de Jesus, uma forma de se expressar para chamar atenção. Pode até ser, mas as palavras do Evangelho explicam a verdadeira motivação para convidar os pobres e os excluídos em geral: é porque eles não terão como devolver o convite. Isso significa colocar em nosso agir a gratuidade em lugar dos interesses ou da troca de favores.

 

Na prática,  não acreditamos que esta generosidade possa nos proporcionar alegria e felicidade, por serem elas, sem dúvida, muito diferentes daquela euforia que o sucesso, a fama e o dinheiro parecem nos oferecer. No entanto Jesus insiste: “Então tu serás feliz”. É palavra dele, e a recompensa que virá “na ressurreição dos justos” será simplesmente a plenitude daquela alegria que teremos experimentado fazendo o bem a quem nada podia nos pagar ou devolver. Seremos felizes, porque teremos descoberto um pouco mais de como é o nosso Deus, quão grande é a bondade e a misericórdia deste Pai que Jesus nos fez conhecer e que não deixa faltar o seu amor aos seus filhos, também aos ingratos, aos desobedientes e rebeldes. A “batalha” da gratuidade generosa contra uma visão “retributiva” e interesseira de um Deus que deveria premiar os bons e castigar os maus é difícil de se ganhar. Dá vontade de desistir, de agir somente se recebermos algo, logo e bem concreto, sem esperar o depois. “Cristão” é o nome de quem quer ser discípulo de Jesus. Felizes? Ou arriscamos a confiar na sua palavra ou mudamos de nome.

Os mil nomes de Maria

Duas vizinhas se encontraram na porta do elevador. Uma disse para a outra:

– Estou indo rezar para Nossa Senhora.  A outra, sorrindo, perguntou:

– Qual delas? Vocês inventaram tantas… Nem por isso a colega desanimou e respondeu:

– Minha amiga, você tem seu nome, mas, como é que sua filha chama você? Chama de mamãe. E a sua neta chama você de vovó. Seu marido chama você de meu bem ou, quem sabe, algum apelido carinhoso. Para mim, você é minha vizinha. Para o zelador do prédio, a moradora do 506. Sua mãe chamava você de filha querida…  Chegou o elevador. Elas desceram juntas, mas a conversa continuou:

– O médico chama você de paciente, o feirante de freguesa… Se você, vizinha, tem tantos títulos, imagine aquela que é a Mãe de Jesus, nosso Senhor -. A porta do elevador se abriu. Aquela senhora devolveu um sorriso alegre para a outra e cada uma continuou o seu caminho.

No próximo domingo, celebraremos a solenidade da Assunção de Nossa Senhora. A Igreja nos convida a festejar a glória de Maria. Nesse caso, não é questão de dar mais um nome ou um título a Nossa Senhora, mas de sermos, todos nós, confirmados na nossa fé na ressurreição. Com efeito, é isto que a Igreja nos pede para acreditar: o corpo de Maria, agraciada pela maternidade divina, já está na glória do céu. Assim “ela é consolo e esperança” para nós, que ainda estamos a caminho. Vamos refletir um pouco.

Ainda hoje, muitas vezes, falamos de “salvação das almas”, no entanto quando o Filho de Deus veio no meio de nós, assumiu a carne humana (Jo 1,14), ou seja, um corpo real e material com todas as limitações de tempo e de espaço como nós experimentamos todos os dias. Igualmente passou pela morte e o seu corpo foi colocado num túmulo (Jo 19,40-41). Jesus participou em tudo da nossa vida, menos no pecado. Ele passou “fazendo o bem” e o fez com o seu corpo, com palavras e gestos, como toda pessoa verdadeiramente humana. Teve amigos, chorou, sentiu compaixão, exultou de alegria e louvou ao Pai. Encontramos todos esses momentos vividos por Jesus narrados nos Evangelhos, assim como foram contados e recontados e, por fim, escritos. Hoje, ninguém mais questiona a existência histórica daquele homem chamado Jesus. A vida dele não foi fruto da imaginação de alguém muito experto, capaz de inventar aqueles acontecimentos e, sobretudo, a morte e a ressurreição de uma pessoa tão diferente e extraordinária. Foi aquele corpo Crucificado que ressurgiu e foi pelas chagas da paixão que os apóstolos o reconheceram (Jo 20,27-28).

Nas “profissões de fé”, que rezamos nas missas, afirmamos que esperamos “a ressurreição dos mortos” e que acreditamos “na ressurreição da carne”. A “ressurreição” continua sendo algo além da nossa experiência humana. É uma questão de fé, ou seja, não está alicerçada em provas materiais, mas na nossa confiança no Deus da Vida, que, com Jesus, acreditamos, venceu, uma vez por todas, o mal e a morte. Por tudo isso, nós cristãos somos chamados a promover sempre a vida “de todo homem e do homem todo” (S. Paulo VI), desde a concepção até a morte natural, mas também de tantos outros seres vivos, sinais da mesma vida divina.

Cuidar dos “corpos” é cuidar das pessoas. O zelo com a saúde física, psíquica e espiritual de todos, significa curar a praga da fome, oferecer condições de vida digna a milhões de seres humanos, proporcionando-lhes casa, escola, segurança, lazer, acesso à informação. Por saúde “espiritual” podemos entender não somente a livre e respeitosa expressão da própria fé religiosa, mas também a pacífica convivência entre as pessoas, as famílias, o incentivo às artes, à música, a tudo aquilo que manifesta a alegria e o desejo de felicidade que o coração humano sente e almeja. Hoje, muitas pessoas gozam de saúde física e gastam fortunas para manter jovens os seus corpos. Estão carentes, porém, de saúde espiritual. Se esqueceram de Deus, dos irmãos, dos pobres e dos pequenos. Para manter essa saúde só tem um remédio, chama-se: amor!

Maria, deu tudo de si mesma, “corpo e alma”, e agora está na glória do céu.

 

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O corvo e as moedas de ouro

Era uma vez um corvo que gostava muito de juntar moedas de ouro. Vivia sobrevoando os lugares e cada vez que encontrava uma moeda bicava-a e a levava para sua casa, guardando-a dentro de um grande vaso. Seus amigos diziam-lhe: “Para que um corvo precisa de moedas de ouro? Aproveite seus voos para coisas mais interessantes”. Mas o corvo dizia que elas valiam muito e que precisava delas. O vaso já estava quase cheio. Um belo dia, resolveu contá-las, mas grande foi a sua surpresa quando, ao tentar tirá-las, descobriu que seu bico não conseguia entrar na boca do vaso. Fora mesmo inútil juntar aquelas moedas porque agora não poderia usá-las.

 

Essa foi só uma historinha. Se o corvo fosse inteligente, bastaria quebrar o vaso para conseguir as tão suadas moedas. Contudo fica o questionamento dos amigos: para que um corvo precisa de moedas de ouro?

 

O assunto principal do evangelho de Lucas, deste 18º domingo do Tempo Comum, é o alerta de Jesus sobre “todo tipo de ganância”, como se a vida de uma pessoa dependesse da abundância dos bens. As riquezas acumuladas não garantem uma vida mais longa ou mais feliz. Ninguém conhece a hora da própria morte. Teremos que deixar tudo. Seria muito melhor trabalhar para ser ricos diante de Deus que juntar tesouros para nós mesmos, porque nada poderemos carregar deste mundo. Na parábola, Jesus chamou o rico de “louco”, não porque tinha acumulados tantos bens, mas porque se deixou surpreender por algo que, estultamente, tinha excluído de seus planos: a morte. Apesar de sermos conhecedores do fim inevitável da nossa vida, sempre imaginamos poder escapar, preferimos fingir que conosco será diferente. Jesus não quer nos amedrontar. Ele quer nos ajudar a não perder o tempo com o acúmulo de bens passageiros e a dar um sentido grande à nossa vida, aos nossos afazeres, ao jeito de usar das coisas deste mundo. Sabemos muito bem o que significa ser ricos diante dos homens, mas o que significa ser ricos “diante de Deus”? Encontraremos a resposta no evangelho do próximo domingo.

 

Podemos, porém, já adiantar alguma coisa. Com certeza já devem ter ouvido falar daquela que chamamos de “Doutrina Social da Igreja” (DSI). Essa doutrina é o conjunto das orientações que a Igreja deu, ao longo da sua história milenar, sobre as diferentes questões sociais ao passo que se apresentavam e, portanto, pediam um posicionamento dos pastores. Podemos encontrar os ensinamentos mais organizados nas Encíclicas Sociais dos Papas, a partir de Papa Leão XIII até Papa Francisco com a “Fratelli Tutti”. Contudo, desde os primeiros séculos, com os Padres da Igreja, muitos ensinamentos foram dados. A abundância de bens materiais, a riqueza em geral, não é vista tanto como uma bênção de Deus, mas como uma responsabilidade com os demais irmãos menos abastecidos.

 

A Igreja ensina que sobre qualquer riqueza “pesa uma hipoteca social”, ou seja, os bens não podem servir só para o lucro ou o capricho individual ou de poucos, devem ser administrados para que todos ou, ao menos, sempre mais pessoas tenham alguma vantagem com aqueles bens. Esse retorno ou finalidade social dos bens pode acontecer de diversas formas. A mais imediata é a justa e digna remuneração dos trabalhadores. De fato, eles também contribuem com a geração da riqueza. Outro retorno para o bem comum são os “serviços sociais” que são pagos com os impostos do próprio povo e que devem ser oferecidos a todos, ou, com certeza, aos mais carentes.  São “serviços” públicos: o tratamento de saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico, a habitação, a limpeza, a segurança, entre outros. A Igreja não é contra a propriedade particular, mas cobra que seja útil e aconteça alguma forma de distribuição da renda obtida. O pagamento dos impostos e a honesta administração do dinheiro público arrecadado são formas justas de colaboração para alcançar melhorias de vida para todos os cidadãos. Sonegar impostos, pagar propinas, desviar verbas públicas são exemplos de pecados sociais gravíssimos porque causam sofrimento a muitas pessoas.

Cuidado Senhor Deus

O seu Joaquim era um pai de família. Muito mal conseguia sustentar a família: a esposa e seis filhos. No domingo foi à missa e ouviu do padre que tudo aquilo que precisamos devemos pedir a Deus e, se for para o nosso bem, ele atenderá. Joaquim voltou para casa e escreveu uma carta pedindo ajuda a Deus. Colocou a carta nos Correios com o endereço: “Deus Pai – Céu”. Os funcionários acharam muito esquisita aquela carta e a abriram para ver do que se tratava. Joaquim pedia a Deus mil reais para pagar a dívida no supermercado. O pessoal dos Correios ficou comovido, fizeram uma vaquinha e juntaram oitocentos reais. Colocaram o dinheiro num envelope e o enviaram para o Sr. Joaquim. Quando ele recebeu a carta e a abriu, pulou de alegria, mas constatou que dentro tinha oitocentos reais e não os mil que havia pedido. Então escreveu outra carta para Deus, sempre com o mesmo endereço. Os funcionários dos Correios viram a carta e a abriram pensando que fosse um agradecimento. Porém na carta do seu Joaquim estava escrito: “Senhor Deus, recebi os oitocentos reais. Muito obrigado! Mas cuidado Senhor Deus. Numa próxima vez, mande um cheque nominal, porque, mandando em dinheiro, os funcionários dos Correios roubam uma parte!”

 

No evangelho de Lucas deste 17º Domingo do Tempo Comum, Jesus, a pedido dos seus discípulos, ensina a oração do Pai-Nosso e convida a confiar sempre na bondade providente do Pai. Chamar Deus de “pai” é a grande novidade de Jesus. No Antigo Testamento, Deus é chamado por vários nomes e muitos são os atributos referidos a ele. Se exalta a sua grandeza, o poder, a soberania, mas raramente a paternidade. Talvez por achar íntima e demais familiar essa forma de tratá-lo. No entanto o povo rezava, esperava e pedia que Deus caminhasse junto, “rasgasse os céus e descesse” (Is 63,19). O profeta Isaías tinha anunciado a vinda do Emanuel, o Deus conosco (Is 7,14; Mt 1,23). Nós acreditamos que essa promessa se realizou em Jesus, o Filho de Deus, que se fez “carne” humana e “veio morar entre nós” (Jo 1,14). Ele, com a sua vida, o seu modo de falar e agir, mostrou-nos o rosto bondoso e misericordioso do Pai. Não um Deus que amedronta, do qual temos medo e preferimos ficar longe, mas um Deus Pai amoroso e acolhedor, sempre pronto a atender aos seus filhos. Se Jesus nos deixou o mandamento do amor fraterno e até aos inimigos é porque devemos aprender a nos amar como o próprio Deus nos ama. Somos convidados a sermos perfeitos e santos “como o Pai” (Mt 5,48; Lc 6,36) porque fomos criados à imagem e à semelhança dele. Na pessoa do Filho, somos reconciliados com Deus Pai e reconduzidos na sua intimidade.

 

Se podemos chamar Deus de “Pai nosso” é porque somos “filhos” em relação a ele e “irmãos” entre nós. A familiaridade com Deus se estende à “familiaridade” com os nossos semelhantes e, de certa forma, com todas as criaturas que Deus também ampara e protege. Na sua imensa generosidade, Deus nos entregou tudo o que existe neste planeta e nos deu a capacidade de multiplicar os recursos, de cultivar e transformar tantas riquezas. Ele não precisa de milagres para exercer a sua paternidade, bastaria que nós vivêssemos e praticássemos mais a nossa fraternidade. Ou seja, Deus se serve das pessoas de bom coração para alcançar os necessitados, os sofredores e desamparados. Serve-se também de leis justas, de uma economia mais solidária e capaz de repartir os ganhos. Serve-se de uma “política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (Fratelli Tutti 154). Não é Deus Pai que falha na sua paternidade, somos nós que esquecemos a nossa fraternidade. Usamos nossas capacidades muito mais para os nossos interesses e vantagens individuais do que para o bem e a vida de tudo e de todos. Culpamos Deus pelo nosso egoísmo e indiferença. Fazemos as guerras e depois pedimos dele a paz. Em lugar de agradecermos e aprendermos com a bondade do Pai duvidamos do seu amor. Queremos dele um cheque nominal, só para nós, porque desconfiamos da solidariedade dos irmãos. Deveríamos suspeitar da generosidade de nós mesmos. ■

Pássaro conselheiro

Afastado das aldeias, morava um velho sábio. Muitas pessoas gostavam de andar por lá e escutar o velho falar. Um dia, uma criança disse para ele:
– Tu dás conselho a todas as pessoas que aqui vêm. Tu sabes falar sobre qualquer assunto. Mas me diga uma coisa: e tu mesmo, quando precisas de um conselho, a quem procuras? O sábio respondeu:

– Eu tenho um pássaro. Eu pergunto a ele. E ele me ajuda bastante.

Desde então se espalhou em toda a região a história do pássaro conselheiro que vivia com o velho sábio. Porém, um dia, um grupo de crianças tomou coragem e perguntou ao sábio sobre o tal do pássaro.

– Então vocês querem ver o pássaro? O velho entrou na choupana e trouxe um pássaro de madeira esculpido toscamente. As crianças olharam aquilo e perguntaram se tinha certeza de que era aquele o pássaro que dava respostas. O velho sábio respondeu:

– Eu não disse que o pássaro dá respostas. Eu só disse que este pássaro me ajuda bastante, pois a ele eu faço as perguntas. Faço muitas perguntas. E se eu souber fazer bem as perguntas, já é uma etapa importante na busca das respostas.

No evangelho deste 12º Domingo do Tempo Comum, encontramos a versão de Lucas das bem conhecidas perguntas de Jesus aos discípulos: “Quem diz o povo que eu sou?” e “E vós, quem dizei que eu sou?”. Voltaremos a encontrar essas perguntas na versão de Mateus na próxima Solenidade de São Pedro e São Paulo. As respostas e a conversa seguinte podem ser um pouco diferentes, mas o que vale mesmo são as perguntas. Com efeito, podemos acreditar que se elas ficaram nos evangelhos é porque aqueles homens e mulheres, que queriam abraçar a fé cristã, deviam conhecer bem e não titubear nas respostas antes de serem batizados. Fica claro, também, que nem as perguntas de Jesus e nem as respostas dos discípulos são um questionário que se deve acertar para passar numa prova escolar ou num teste de aptidão psicológica. O que está em jogo é a fé e a vida das pessoas que encontraram no Senhor Jesus “O Cristo de Deus”, o Ungido, o Prometido tão Esperado. Muitos de nós, que nos declaramos cristãos, sabemos as respostas certas sobre Jesus, mas não estaríamos dispostos a mexer um dedo para defendê-lo ou explicá-lo a quem o desprezasse ou simplesmente o ignorasse. Ser cristãos de verdade é conhecer a palavra dele, avaliar a vida e a morte, o bem e o mal, o mundo, as riquezas e, sobretudo, amar e servir os nossos irmãos pobres e sofredores, com o mesmo coração dele.

Até que a resposta “O Cristo de Deus” não tomar conta dos nossos pensamentos, nortear as nossas decisões, iluminar o nosso caminho, pouco ou nada nos serve repetir palavras decoradas, mas vazias de sentido para nós. É isto que significam as palavras “renunciar a si mesmo”. De fato, quantos de nós, organizamos a nossa vida sobre valores e interesses por nós mesmos escolhidos, o nosso bom senso, a nossa prudência, achando-nos donos da verdade, sábios conhecedores dos mais profundos segredos da vida. Quantos acompanhamos sem pensar as modas, as novidades badaladas, as promessas, os medos e as ameaças daqueles que achamos serem os que nunca erram porque “todos fazem assim”. “Tomar a cruz” com Jesus significa ir na contramão, desmascarar as ilusões dos que buscam a felicidade no lucro e no bem-estar individual, esquecendo a própria transitoriedade humana, desprezando a fraternidade e a alegria do bem comum construído em conjunto. Queremos salvar a nossa vida escolhendo caminhos que geram morte, destruição do planeta, gerando milhões de seres humanos famintos e deslocados, sem pátria, sem casa, sem água, sem trabalho, sem educação. Pensamos em ficar ricos e estamos ficando cada vez mais pobres, porque perdemos o gosto da solidariedade, do serviço generosos, da gratuidade dos gestos, dos saberes partilhados, da vida doada como Jesus nos deu o exemplo.

O “pássaro conselheiro” está dentro de nós, é a nossa consciência. Só precisamos ter a coragem e a honestidade de nos perguntar como estamos gastando a nossa vida e todos os dons que de graça recebemos: os dias que passam, a sede de amor para dar e receber…Em tudo isso terá lugar ainda para “O Cristo de Deus”? .

Palavras sem coração

“A oração é a chave que abre a porta do amanhecer e fecha a porta do entardecer. Na oração é melhor ter um coração sem palavras que palavras sem coração. Ela deve ser capaz de satisfazer plenamente a fome do nosso coração. O homem de oração estará em paz consigo mesmo e com o mundo inteiro” (Mahatma Gandhi).
Peguei emprestado este pensamento de Gandhi – que não era cristão – sobre a oração para lembrar que todo ser humano, que reflete e reconhece a própria fragilidade, sente a necessidade de abrir um horizonte mais amplo em sua vida, além dele mesmo. Muitos chamam isso de “religiosidade natural”. Santo Agostinho prefere falar daquela inquietação do coração humano que só se apaga quando encontra Deus. Acredito que todos nós, que nos dizemos cristãos e católicos, rezamos fazendo o sinal da cruz e invocando o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Quase todas as orações da Liturgia são dirigidas à Santíssima Trindade: a Deus Pai, em nome do Filho, na unidade do Espírito Santo. Algumas são dirigidas diretamente a Jesus Cristo, Nosso Senhor, mas no final se diz: Vós que sois Deus, com o Pai, na unidade do Espírito Santo. E nós respondemos juntos “Amém”, assim seja, é isso que acreditamos! Estamos tão acostumados com tudo isso que, talvez, nem pensamos mais nas palavras que pronunciamos. De fato, estamos proclamando um “mistério” grande, maior e acima de todas as nossas explicações racionais. Mas, atenção: o “mistério” do qual estou falando não é somente algo difícil demais para ser entendido e que, portanto, aceitamos nas formulações que nos são propostas. Não. O verdadeiro “mistério” diz respeito à possibilidade, não de entender a questão em si, mas de ter acesso, de poder nos relacionarmos com este Deus, assim como ele mesmo se fez conhecer. Aquilo que nunca estaria ao nosso alcance, no Deus feito carne humana, no homem Jesus, se tornou possível. Vou falar difícil: Deus continua sendo o “totalmente Outro” – ou seja, absolutamente diferente de nós humanos – mas por sua própria escolha decidiu se fazer conhecer. Ensina o Concílio Vaticano II, falando de Jesus: “…por sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado.” (GS 22). “E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós”, “dentro” de nós, propriamente.

Ter acesso ao “mistério” de Deus e entrar em relação com ele é iniciativa e dom dele mesmo. Escutamos na carta aos Romanos da Liturgia da Palavra deste Domingo: “…o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” (Rm 5,5) E no evangelho: “Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade…não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido…porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (Jo 16,13-14). Amor e Verdade, uma realidade só. O amor abre a inteligência e o coração ao reconhecimento das maravilhas de Deus e a verdade garante que não seremos enganados, que podemos confiar, porque confiamos amorosamente no próprio Deus que se faz conhecer.

Precisamos ser muito mais agradecidos pelo dom da fé neste Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. A nossa oração é feita de silêncio para poder escutar a Palavra do Senhor e deixar que ela ecoe dentro de nós. Também tem as nossas palavras para abrir o nosso coração a quem com certeza nos escuta, porque nos ama como somente Deus sabe amar. Quando rezamos de verdade entramos no mistério de Deus, começamos a enxergar as coisas com o olhar dele, entendemos que tudo o que acontece ou fazemos acontecer em nossa vida é a possibilidade que temos de amar como ele nos amou e nos ama sempre. Aprendemos a ver os caídos pelas estradas da vida, a não julgar, condenar e apedrejar, mas a ter compaixão, perdoar, carregar os pesos dos outros solidários e fraternos. Quando rezamos, é melhor ter um coração sem palavras que tantas palavras sem coração.

Jesus, o enviado que nos envia

Com o Domingo de Pentecostes encerramos o Tempo Pascal e encontramos, novamente, a primeira parte da página do evangelho de João, que proclamamos no Segundo Domingo de Páscoa. Naquele momento, refletimos mais sobre os encontros dos apóstolos com Jesus ressuscitado. Agora, olhamos para o que virá depois. Jesus cumpriu a missão dele, obediente ao Pai até o fim, por amor a esta pobre humanidade necessitada de rumo e reconciliação. A vida dele foi limitada no tempo e no espaço. Foram poucos os anos de sinais e pregações gastados para anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus que chegou. As andanças de Jesus não passaram dos 70 Km no comprimento e os 40 de largura da Palestina. Como não pensar que a sua mensagem fosse destinada a ficar esquecida e confinada naqueles lugares para sempre? Igualmente, o número dos discípulos reunidos após os dias da Paixão nos espanta. Eram poucos, medrosos e trancados em casa. O que se podia esperar deles? Algo novo e surpreendente, porém, aconteceu.

Jesus ressuscitado doou a eles o Divino Espírito Santo e confiou àqueles homens a mesma missão que havia recebido do Pai. O pequeno grupo tomou coragem, saiu e não teve mais medo de falar do profeta da Galileia condenado à vergonhosa morte de cruz pelas autoridades religiosas, econômicas e políticas de Jerusalém. Os seus discípulos sustentaram que Deus Pai o tinha ressuscitado, que ele estava vivo e queria que esta vida nova fosse oferecida a todos aqueles que acreditassem nele. Ou seja: a missão de Jesus continuou, os seus seguidores foram enviados a todas as gentes e até os confins da terra. Um detalhe significativo: nos 21 capítulos do evangelho de João o “envio” de Jesus é lembrado 40 vezes! O evangelista João insiste, portanto, que foi Deus Pai que enviou o seu Filho. O próprio Jesus diz que foi “enviado” do alto e que deve comunicar o que ouviu do Pai. Tudo isso para nos confirmar que a novidade manifestada com a vida de Jesus foi mesmo querida por Deus. Foi a Palavra feita vida humana nele, que realizou a definitiva explicação daquilo que Deus é e quer de nós. Essa comunicação é mais que uma “doutrina”, um ensinamento; é a possibilidade de ver e experimentar em Jesus e com Jesus a própria realidade de Deus. Aqui está a radical diferença entre a fé-religião cristã e outras religiões.

Jesus não é o fundador de um novo culto, mas o anunciador da presença de Deus na história humana, fato que aconteceu e iniciou na sua pessoa e com a sua vida doada para a salvação de todos. É o que lemos no evangelho de João 3, 16-17: “De tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna, pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por meio dele”. Com o dom do Divino Espírito Santo, Jesus ressuscitado confirma a missão recebida do Pai e envia os discípulos para que continuem a mesma missão. A partir daqueles dias, somos nós, seguidores do Senhor, que devemos anunciar e testemunhar a presença salvadora de Deus em nossas vidas pessoais e na conturbada história humana. É uma missão entusiasmante, mas também extremamente exigente. Os que olham, também hoje, para os cristãos têm todo o direito de cobrar o cumprimento dessa missão. Quero dizer com isso que a novidade do Reino-presença de Deus, iniciado com Jesus deve ser visível e reconhecível não somente entre nós – o que nem sempre acontece – mas deve ser possível, vivível e experimentável nas diferentes situações da vida, para que, como disse Jesus, “o mundo creia” que Deus Pai o enviou” (Jo 17,23) e aqueles que o seguirem vivam na alegria plena que somente a presença de Deus em suas vidas pode garantir (Jo 15,11). Tudo isso significa que todas as vezes que nós cristãos brigamos, dividimo-nos, calamos ou nos apresentamos tristes e vazios por medo, covardia ou falta de compromisso, nós estamos negando o que deveríamos testemunhar com perseverança e entusiasmo. Rezamos para que o Divino Espírito Santo nos dê luz e coragem para cumprirmos a missão que Jesus nos entregou.

A “sinodalidade” e a consulta ao Povo de Deus

Neste final de semana, a nossa Diocese realizará uma pequena e breve Assembleia para chegar à síntese das respostas às perguntas da “consulta”, que iniciamos em nossas paróquias e comunidades desde os meses de março e abril deste ano. Em outubro de 2023, acontecerá em Roma um Sínodo da Igreja Católica sobre a “sinodalidade”. Essa palavra significa “caminhar juntos”. O grande questionamento, então, é se de fato estamos ou não praticando isso. Cada um de nós tem a sua sensibilidade e o seu jeito de pensar e avaliar a Igreja como um todo e, de maneira especial, a comunidade da qual participa mais ou menos ativamente. No entanto são, sobretudo, as duas palavras “caminhar” e “juntos” que deveriam iluminar a nossa reflexão.

“Caminhar” para uma Comunidade significa ser uma realidade viva, preocupada com o anúncio da Boa Notícia do Evangelho, com atenção aos sofredores, aos últimos, afastados e excluídos da sociedade. Em geral, estamos bastante envolvidos com as nossas atividades. Fazemos promoções para a manutenção das nossas estruturas ou para chamar atenção e convencer as pessoas com a finalidade de que venham participar e colaborar. Organizamos lindas celebrações e vibramos quando as nossas igrejas ficam cheias de gente. Nem sempre, porém, estamos dispostos a “sair” para conhecer, encontrar irmãos e irmãs nas periferias dos nossos bairros ou em situações e lugares diferentes daqueles que estamos acostumados a frequentar. Não se trata de arrebanhar pessoas, conseguir adeptos ou fazer pregações e eventos arrebatadores. A questão é não gastar todas as nossas energias só para falar sempre entre nós mesmos e, assim, acabar fechados na contemplação das nossas próprias obras. Parece que tenhamos medo de apresentar a Boa Notícia de Jesus a outras pessoas, principalmente com a nossa maneira de viver e nos relacionar, e assim testemunhar a alegria de ter sido alcançados pelo Senhor.

A outra palavra é “juntos”. É bonito gostar de participar de um grupo, de um movimento, de uma nova comunidade, sentir-se atraídos por algum carisma ou ação específica, mas com a condição de que isso nos ajude a praticar mais os ensinamentos de Jesus. Todo batizado, antes de declarar a sua pertença a um ou outro grupo, movimento ou carisma, deveria compreender-se simplesmente como cristão, que vive a sua fé em comunhão com os demais. Se insistimos muito sobre o que nos distingue acontece que os que não se reconhecem em nenhum grupo, movimento ou carisma, acabam pensando ser cristãos de segunda classe, como se pudesse haver classificações na vida cristã. Os serviços, ministérios e responsabilidades, a pertença a um grupo, movimento ou carisma, não tornam alguém mais cristão do que o outro. O chamado à santidade é igual para todos. O que nos faz diferentes é o jeito de responder a esse chamado com a nossa vida. O cristão, digamos “comum”, sem alguma pertença específica, deveria ser, portanto, a referência certa, porque o modelo para todos é o único Mestre e Senhor: Jesus Cristo. Igualmente únicas são, para todos, a Palavra e a Eucaristia. Nenhum batizado deveria ter uma meta menor que a santidade ou considerar-se, por algum motivo, inferior ou à margem da Igreja. Jesus deu preferência aos pobres, aos desvalidos, aos pecadores e a muitos outros que eram considerados indignos pela religião oficial.

Caminhar juntos significa procurar ser uma Igreja de comunhão, participação e missão, nunca uma Igreja de elite, excludente ou fechada, preocupada com a sobrevivência de si mesma, das suas estruturas e organizações. A Igreja existe para evangelizar os pobres, anunciar o Reino de um Deus amor e misericórdia. A variedade dos dons, serviços e carismas é uma riqueza extraordinária em prol do cumprimento desta missão que Jesus entregou aos seus seguidores. O resultado da nossa Assembleia será unido às respostas das outras Dioceses do Brasil e do mundo inteiro. Em primeiro lugar, porém, servirá para reconhecer se nós estamos “caminhando juntos” ou não e o que seria urgente fazer para que consigamos o maravilhoso objetivo de sermos “sinais de comunhão” numa sociedade cada vez mais dividida e incapaz de paz, diálogo e fraternidade.