Dom Pedro Conti

Os mil nomes de Maria

Duas vizinhas se encontraram na porta do elevador. Uma disse para a outra:

– Estou indo rezar para Nossa Senhora.  A outra, sorrindo, perguntou:

– Qual delas? Vocês inventaram tantas… Nem por isso a colega desanimou e respondeu:

– Minha amiga, você tem seu nome, mas, como é que sua filha chama você? Chama de mamãe. E a sua neta chama você de vovó. Seu marido chama você de meu bem ou, quem sabe, algum apelido carinhoso. Para mim, você é minha vizinha. Para o zelador do prédio, a moradora do 506. Sua mãe chamava você de filha querida…  Chegou o elevador. Elas desceram juntas, mas a conversa continuou:

– O médico chama você de paciente, o feirante de freguesa… Se você, vizinha, tem tantos títulos, imagine aquela que é a Mãe de Jesus, nosso Senhor -. A porta do elevador se abriu. Aquela senhora devolveu um sorriso alegre para a outra e cada uma continuou o seu caminho.

No próximo domingo, celebraremos a solenidade da Assunção de Nossa Senhora. A Igreja nos convida a festejar a glória de Maria. Nesse caso, não é questão de dar mais um nome ou um título a Nossa Senhora, mas de sermos, todos nós, confirmados na nossa fé na ressurreição. Com efeito, é isto que a Igreja nos pede para acreditar: o corpo de Maria, agraciada pela maternidade divina, já está na glória do céu. Assim “ela é consolo e esperança” para nós, que ainda estamos a caminho. Vamos refletir um pouco.

Ainda hoje, muitas vezes, falamos de “salvação das almas”, no entanto quando o Filho de Deus veio no meio de nós, assumiu a carne humana (Jo 1,14), ou seja, um corpo real e material com todas as limitações de tempo e de espaço como nós experimentamos todos os dias. Igualmente passou pela morte e o seu corpo foi colocado num túmulo (Jo 19,40-41). Jesus participou em tudo da nossa vida, menos no pecado. Ele passou “fazendo o bem” e o fez com o seu corpo, com palavras e gestos, como toda pessoa verdadeiramente humana. Teve amigos, chorou, sentiu compaixão, exultou de alegria e louvou ao Pai. Encontramos todos esses momentos vividos por Jesus narrados nos Evangelhos, assim como foram contados e recontados e, por fim, escritos. Hoje, ninguém mais questiona a existência histórica daquele homem chamado Jesus. A vida dele não foi fruto da imaginação de alguém muito experto, capaz de inventar aqueles acontecimentos e, sobretudo, a morte e a ressurreição de uma pessoa tão diferente e extraordinária. Foi aquele corpo Crucificado que ressurgiu e foi pelas chagas da paixão que os apóstolos o reconheceram (Jo 20,27-28).

Nas “profissões de fé”, que rezamos nas missas, afirmamos que esperamos “a ressurreição dos mortos” e que acreditamos “na ressurreição da carne”. A “ressurreição” continua sendo algo além da nossa experiência humana. É uma questão de fé, ou seja, não está alicerçada em provas materiais, mas na nossa confiança no Deus da Vida, que, com Jesus, acreditamos, venceu, uma vez por todas, o mal e a morte. Por tudo isso, nós cristãos somos chamados a promover sempre a vida “de todo homem e do homem todo” (S. Paulo VI), desde a concepção até a morte natural, mas também de tantos outros seres vivos, sinais da mesma vida divina.

Cuidar dos “corpos” é cuidar das pessoas. O zelo com a saúde física, psíquica e espiritual de todos, significa curar a praga da fome, oferecer condições de vida digna a milhões de seres humanos, proporcionando-lhes casa, escola, segurança, lazer, acesso à informação. Por saúde “espiritual” podemos entender não somente a livre e respeitosa expressão da própria fé religiosa, mas também a pacífica convivência entre as pessoas, as famílias, o incentivo às artes, à música, a tudo aquilo que manifesta a alegria e o desejo de felicidade que o coração humano sente e almeja. Hoje, muitas pessoas gozam de saúde física e gastam fortunas para manter jovens os seus corpos. Estão carentes, porém, de saúde espiritual. Se esqueceram de Deus, dos irmãos, dos pobres e dos pequenos. Para manter essa saúde só tem um remédio, chama-se: amor!

Maria, deu tudo de si mesma, “corpo e alma”, e agora está na glória do céu.

 

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O corvo e as moedas de ouro

Era uma vez um corvo que gostava muito de juntar moedas de ouro. Vivia sobrevoando os lugares e cada vez que encontrava uma moeda bicava-a e a levava para sua casa, guardando-a dentro de um grande vaso. Seus amigos diziam-lhe: “Para que um corvo precisa de moedas de ouro? Aproveite seus voos para coisas mais interessantes”. Mas o corvo dizia que elas valiam muito e que precisava delas. O vaso já estava quase cheio. Um belo dia, resolveu contá-las, mas grande foi a sua surpresa quando, ao tentar tirá-las, descobriu que seu bico não conseguia entrar na boca do vaso. Fora mesmo inútil juntar aquelas moedas porque agora não poderia usá-las.

 

Essa foi só uma historinha. Se o corvo fosse inteligente, bastaria quebrar o vaso para conseguir as tão suadas moedas. Contudo fica o questionamento dos amigos: para que um corvo precisa de moedas de ouro?

 

O assunto principal do evangelho de Lucas, deste 18º domingo do Tempo Comum, é o alerta de Jesus sobre “todo tipo de ganância”, como se a vida de uma pessoa dependesse da abundância dos bens. As riquezas acumuladas não garantem uma vida mais longa ou mais feliz. Ninguém conhece a hora da própria morte. Teremos que deixar tudo. Seria muito melhor trabalhar para ser ricos diante de Deus que juntar tesouros para nós mesmos, porque nada poderemos carregar deste mundo. Na parábola, Jesus chamou o rico de “louco”, não porque tinha acumulados tantos bens, mas porque se deixou surpreender por algo que, estultamente, tinha excluído de seus planos: a morte. Apesar de sermos conhecedores do fim inevitável da nossa vida, sempre imaginamos poder escapar, preferimos fingir que conosco será diferente. Jesus não quer nos amedrontar. Ele quer nos ajudar a não perder o tempo com o acúmulo de bens passageiros e a dar um sentido grande à nossa vida, aos nossos afazeres, ao jeito de usar das coisas deste mundo. Sabemos muito bem o que significa ser ricos diante dos homens, mas o que significa ser ricos “diante de Deus”? Encontraremos a resposta no evangelho do próximo domingo.

 

Podemos, porém, já adiantar alguma coisa. Com certeza já devem ter ouvido falar daquela que chamamos de “Doutrina Social da Igreja” (DSI). Essa doutrina é o conjunto das orientações que a Igreja deu, ao longo da sua história milenar, sobre as diferentes questões sociais ao passo que se apresentavam e, portanto, pediam um posicionamento dos pastores. Podemos encontrar os ensinamentos mais organizados nas Encíclicas Sociais dos Papas, a partir de Papa Leão XIII até Papa Francisco com a “Fratelli Tutti”. Contudo, desde os primeiros séculos, com os Padres da Igreja, muitos ensinamentos foram dados. A abundância de bens materiais, a riqueza em geral, não é vista tanto como uma bênção de Deus, mas como uma responsabilidade com os demais irmãos menos abastecidos.

 

A Igreja ensina que sobre qualquer riqueza “pesa uma hipoteca social”, ou seja, os bens não podem servir só para o lucro ou o capricho individual ou de poucos, devem ser administrados para que todos ou, ao menos, sempre mais pessoas tenham alguma vantagem com aqueles bens. Esse retorno ou finalidade social dos bens pode acontecer de diversas formas. A mais imediata é a justa e digna remuneração dos trabalhadores. De fato, eles também contribuem com a geração da riqueza. Outro retorno para o bem comum são os “serviços sociais” que são pagos com os impostos do próprio povo e que devem ser oferecidos a todos, ou, com certeza, aos mais carentes.  São “serviços” públicos: o tratamento de saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico, a habitação, a limpeza, a segurança, entre outros. A Igreja não é contra a propriedade particular, mas cobra que seja útil e aconteça alguma forma de distribuição da renda obtida. O pagamento dos impostos e a honesta administração do dinheiro público arrecadado são formas justas de colaboração para alcançar melhorias de vida para todos os cidadãos. Sonegar impostos, pagar propinas, desviar verbas públicas são exemplos de pecados sociais gravíssimos porque causam sofrimento a muitas pessoas.

Cuidado Senhor Deus

O seu Joaquim era um pai de família. Muito mal conseguia sustentar a família: a esposa e seis filhos. No domingo foi à missa e ouviu do padre que tudo aquilo que precisamos devemos pedir a Deus e, se for para o nosso bem, ele atenderá. Joaquim voltou para casa e escreveu uma carta pedindo ajuda a Deus. Colocou a carta nos Correios com o endereço: “Deus Pai – Céu”. Os funcionários acharam muito esquisita aquela carta e a abriram para ver do que se tratava. Joaquim pedia a Deus mil reais para pagar a dívida no supermercado. O pessoal dos Correios ficou comovido, fizeram uma vaquinha e juntaram oitocentos reais. Colocaram o dinheiro num envelope e o enviaram para o Sr. Joaquim. Quando ele recebeu a carta e a abriu, pulou de alegria, mas constatou que dentro tinha oitocentos reais e não os mil que havia pedido. Então escreveu outra carta para Deus, sempre com o mesmo endereço. Os funcionários dos Correios viram a carta e a abriram pensando que fosse um agradecimento. Porém na carta do seu Joaquim estava escrito: “Senhor Deus, recebi os oitocentos reais. Muito obrigado! Mas cuidado Senhor Deus. Numa próxima vez, mande um cheque nominal, porque, mandando em dinheiro, os funcionários dos Correios roubam uma parte!”

 

No evangelho de Lucas deste 17º Domingo do Tempo Comum, Jesus, a pedido dos seus discípulos, ensina a oração do Pai-Nosso e convida a confiar sempre na bondade providente do Pai. Chamar Deus de “pai” é a grande novidade de Jesus. No Antigo Testamento, Deus é chamado por vários nomes e muitos são os atributos referidos a ele. Se exalta a sua grandeza, o poder, a soberania, mas raramente a paternidade. Talvez por achar íntima e demais familiar essa forma de tratá-lo. No entanto o povo rezava, esperava e pedia que Deus caminhasse junto, “rasgasse os céus e descesse” (Is 63,19). O profeta Isaías tinha anunciado a vinda do Emanuel, o Deus conosco (Is 7,14; Mt 1,23). Nós acreditamos que essa promessa se realizou em Jesus, o Filho de Deus, que se fez “carne” humana e “veio morar entre nós” (Jo 1,14). Ele, com a sua vida, o seu modo de falar e agir, mostrou-nos o rosto bondoso e misericordioso do Pai. Não um Deus que amedronta, do qual temos medo e preferimos ficar longe, mas um Deus Pai amoroso e acolhedor, sempre pronto a atender aos seus filhos. Se Jesus nos deixou o mandamento do amor fraterno e até aos inimigos é porque devemos aprender a nos amar como o próprio Deus nos ama. Somos convidados a sermos perfeitos e santos “como o Pai” (Mt 5,48; Lc 6,36) porque fomos criados à imagem e à semelhança dele. Na pessoa do Filho, somos reconciliados com Deus Pai e reconduzidos na sua intimidade.

 

Se podemos chamar Deus de “Pai nosso” é porque somos “filhos” em relação a ele e “irmãos” entre nós. A familiaridade com Deus se estende à “familiaridade” com os nossos semelhantes e, de certa forma, com todas as criaturas que Deus também ampara e protege. Na sua imensa generosidade, Deus nos entregou tudo o que existe neste planeta e nos deu a capacidade de multiplicar os recursos, de cultivar e transformar tantas riquezas. Ele não precisa de milagres para exercer a sua paternidade, bastaria que nós vivêssemos e praticássemos mais a nossa fraternidade. Ou seja, Deus se serve das pessoas de bom coração para alcançar os necessitados, os sofredores e desamparados. Serve-se também de leis justas, de uma economia mais solidária e capaz de repartir os ganhos. Serve-se de uma “política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (Fratelli Tutti 154). Não é Deus Pai que falha na sua paternidade, somos nós que esquecemos a nossa fraternidade. Usamos nossas capacidades muito mais para os nossos interesses e vantagens individuais do que para o bem e a vida de tudo e de todos. Culpamos Deus pelo nosso egoísmo e indiferença. Fazemos as guerras e depois pedimos dele a paz. Em lugar de agradecermos e aprendermos com a bondade do Pai duvidamos do seu amor. Queremos dele um cheque nominal, só para nós, porque desconfiamos da solidariedade dos irmãos. Deveríamos suspeitar da generosidade de nós mesmos. ■

Pássaro conselheiro

Afastado das aldeias, morava um velho sábio. Muitas pessoas gostavam de andar por lá e escutar o velho falar. Um dia, uma criança disse para ele:
– Tu dás conselho a todas as pessoas que aqui vêm. Tu sabes falar sobre qualquer assunto. Mas me diga uma coisa: e tu mesmo, quando precisas de um conselho, a quem procuras? O sábio respondeu:

– Eu tenho um pássaro. Eu pergunto a ele. E ele me ajuda bastante.

Desde então se espalhou em toda a região a história do pássaro conselheiro que vivia com o velho sábio. Porém, um dia, um grupo de crianças tomou coragem e perguntou ao sábio sobre o tal do pássaro.

– Então vocês querem ver o pássaro? O velho entrou na choupana e trouxe um pássaro de madeira esculpido toscamente. As crianças olharam aquilo e perguntaram se tinha certeza de que era aquele o pássaro que dava respostas. O velho sábio respondeu:

– Eu não disse que o pássaro dá respostas. Eu só disse que este pássaro me ajuda bastante, pois a ele eu faço as perguntas. Faço muitas perguntas. E se eu souber fazer bem as perguntas, já é uma etapa importante na busca das respostas.

No evangelho deste 12º Domingo do Tempo Comum, encontramos a versão de Lucas das bem conhecidas perguntas de Jesus aos discípulos: “Quem diz o povo que eu sou?” e “E vós, quem dizei que eu sou?”. Voltaremos a encontrar essas perguntas na versão de Mateus na próxima Solenidade de São Pedro e São Paulo. As respostas e a conversa seguinte podem ser um pouco diferentes, mas o que vale mesmo são as perguntas. Com efeito, podemos acreditar que se elas ficaram nos evangelhos é porque aqueles homens e mulheres, que queriam abraçar a fé cristã, deviam conhecer bem e não titubear nas respostas antes de serem batizados. Fica claro, também, que nem as perguntas de Jesus e nem as respostas dos discípulos são um questionário que se deve acertar para passar numa prova escolar ou num teste de aptidão psicológica. O que está em jogo é a fé e a vida das pessoas que encontraram no Senhor Jesus “O Cristo de Deus”, o Ungido, o Prometido tão Esperado. Muitos de nós, que nos declaramos cristãos, sabemos as respostas certas sobre Jesus, mas não estaríamos dispostos a mexer um dedo para defendê-lo ou explicá-lo a quem o desprezasse ou simplesmente o ignorasse. Ser cristãos de verdade é conhecer a palavra dele, avaliar a vida e a morte, o bem e o mal, o mundo, as riquezas e, sobretudo, amar e servir os nossos irmãos pobres e sofredores, com o mesmo coração dele.

Até que a resposta “O Cristo de Deus” não tomar conta dos nossos pensamentos, nortear as nossas decisões, iluminar o nosso caminho, pouco ou nada nos serve repetir palavras decoradas, mas vazias de sentido para nós. É isto que significam as palavras “renunciar a si mesmo”. De fato, quantos de nós, organizamos a nossa vida sobre valores e interesses por nós mesmos escolhidos, o nosso bom senso, a nossa prudência, achando-nos donos da verdade, sábios conhecedores dos mais profundos segredos da vida. Quantos acompanhamos sem pensar as modas, as novidades badaladas, as promessas, os medos e as ameaças daqueles que achamos serem os que nunca erram porque “todos fazem assim”. “Tomar a cruz” com Jesus significa ir na contramão, desmascarar as ilusões dos que buscam a felicidade no lucro e no bem-estar individual, esquecendo a própria transitoriedade humana, desprezando a fraternidade e a alegria do bem comum construído em conjunto. Queremos salvar a nossa vida escolhendo caminhos que geram morte, destruição do planeta, gerando milhões de seres humanos famintos e deslocados, sem pátria, sem casa, sem água, sem trabalho, sem educação. Pensamos em ficar ricos e estamos ficando cada vez mais pobres, porque perdemos o gosto da solidariedade, do serviço generosos, da gratuidade dos gestos, dos saberes partilhados, da vida doada como Jesus nos deu o exemplo.

O “pássaro conselheiro” está dentro de nós, é a nossa consciência. Só precisamos ter a coragem e a honestidade de nos perguntar como estamos gastando a nossa vida e todos os dons que de graça recebemos: os dias que passam, a sede de amor para dar e receber…Em tudo isso terá lugar ainda para “O Cristo de Deus”? .

Palavras sem coração

“A oração é a chave que abre a porta do amanhecer e fecha a porta do entardecer. Na oração é melhor ter um coração sem palavras que palavras sem coração. Ela deve ser capaz de satisfazer plenamente a fome do nosso coração. O homem de oração estará em paz consigo mesmo e com o mundo inteiro” (Mahatma Gandhi).
Peguei emprestado este pensamento de Gandhi – que não era cristão – sobre a oração para lembrar que todo ser humano, que reflete e reconhece a própria fragilidade, sente a necessidade de abrir um horizonte mais amplo em sua vida, além dele mesmo. Muitos chamam isso de “religiosidade natural”. Santo Agostinho prefere falar daquela inquietação do coração humano que só se apaga quando encontra Deus. Acredito que todos nós, que nos dizemos cristãos e católicos, rezamos fazendo o sinal da cruz e invocando o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Quase todas as orações da Liturgia são dirigidas à Santíssima Trindade: a Deus Pai, em nome do Filho, na unidade do Espírito Santo. Algumas são dirigidas diretamente a Jesus Cristo, Nosso Senhor, mas no final se diz: Vós que sois Deus, com o Pai, na unidade do Espírito Santo. E nós respondemos juntos “Amém”, assim seja, é isso que acreditamos! Estamos tão acostumados com tudo isso que, talvez, nem pensamos mais nas palavras que pronunciamos. De fato, estamos proclamando um “mistério” grande, maior e acima de todas as nossas explicações racionais. Mas, atenção: o “mistério” do qual estou falando não é somente algo difícil demais para ser entendido e que, portanto, aceitamos nas formulações que nos são propostas. Não. O verdadeiro “mistério” diz respeito à possibilidade, não de entender a questão em si, mas de ter acesso, de poder nos relacionarmos com este Deus, assim como ele mesmo se fez conhecer. Aquilo que nunca estaria ao nosso alcance, no Deus feito carne humana, no homem Jesus, se tornou possível. Vou falar difícil: Deus continua sendo o “totalmente Outro” – ou seja, absolutamente diferente de nós humanos – mas por sua própria escolha decidiu se fazer conhecer. Ensina o Concílio Vaticano II, falando de Jesus: “…por sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado.” (GS 22). “E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós”, “dentro” de nós, propriamente.

Ter acesso ao “mistério” de Deus e entrar em relação com ele é iniciativa e dom dele mesmo. Escutamos na carta aos Romanos da Liturgia da Palavra deste Domingo: “…o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” (Rm 5,5) E no evangelho: “Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade…não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido…porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (Jo 16,13-14). Amor e Verdade, uma realidade só. O amor abre a inteligência e o coração ao reconhecimento das maravilhas de Deus e a verdade garante que não seremos enganados, que podemos confiar, porque confiamos amorosamente no próprio Deus que se faz conhecer.

Precisamos ser muito mais agradecidos pelo dom da fé neste Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. A nossa oração é feita de silêncio para poder escutar a Palavra do Senhor e deixar que ela ecoe dentro de nós. Também tem as nossas palavras para abrir o nosso coração a quem com certeza nos escuta, porque nos ama como somente Deus sabe amar. Quando rezamos de verdade entramos no mistério de Deus, começamos a enxergar as coisas com o olhar dele, entendemos que tudo o que acontece ou fazemos acontecer em nossa vida é a possibilidade que temos de amar como ele nos amou e nos ama sempre. Aprendemos a ver os caídos pelas estradas da vida, a não julgar, condenar e apedrejar, mas a ter compaixão, perdoar, carregar os pesos dos outros solidários e fraternos. Quando rezamos, é melhor ter um coração sem palavras que tantas palavras sem coração.

Jesus, o enviado que nos envia

Com o Domingo de Pentecostes encerramos o Tempo Pascal e encontramos, novamente, a primeira parte da página do evangelho de João, que proclamamos no Segundo Domingo de Páscoa. Naquele momento, refletimos mais sobre os encontros dos apóstolos com Jesus ressuscitado. Agora, olhamos para o que virá depois. Jesus cumpriu a missão dele, obediente ao Pai até o fim, por amor a esta pobre humanidade necessitada de rumo e reconciliação. A vida dele foi limitada no tempo e no espaço. Foram poucos os anos de sinais e pregações gastados para anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus que chegou. As andanças de Jesus não passaram dos 70 Km no comprimento e os 40 de largura da Palestina. Como não pensar que a sua mensagem fosse destinada a ficar esquecida e confinada naqueles lugares para sempre? Igualmente, o número dos discípulos reunidos após os dias da Paixão nos espanta. Eram poucos, medrosos e trancados em casa. O que se podia esperar deles? Algo novo e surpreendente, porém, aconteceu.

Jesus ressuscitado doou a eles o Divino Espírito Santo e confiou àqueles homens a mesma missão que havia recebido do Pai. O pequeno grupo tomou coragem, saiu e não teve mais medo de falar do profeta da Galileia condenado à vergonhosa morte de cruz pelas autoridades religiosas, econômicas e políticas de Jerusalém. Os seus discípulos sustentaram que Deus Pai o tinha ressuscitado, que ele estava vivo e queria que esta vida nova fosse oferecida a todos aqueles que acreditassem nele. Ou seja: a missão de Jesus continuou, os seus seguidores foram enviados a todas as gentes e até os confins da terra. Um detalhe significativo: nos 21 capítulos do evangelho de João o “envio” de Jesus é lembrado 40 vezes! O evangelista João insiste, portanto, que foi Deus Pai que enviou o seu Filho. O próprio Jesus diz que foi “enviado” do alto e que deve comunicar o que ouviu do Pai. Tudo isso para nos confirmar que a novidade manifestada com a vida de Jesus foi mesmo querida por Deus. Foi a Palavra feita vida humana nele, que realizou a definitiva explicação daquilo que Deus é e quer de nós. Essa comunicação é mais que uma “doutrina”, um ensinamento; é a possibilidade de ver e experimentar em Jesus e com Jesus a própria realidade de Deus. Aqui está a radical diferença entre a fé-religião cristã e outras religiões.

Jesus não é o fundador de um novo culto, mas o anunciador da presença de Deus na história humana, fato que aconteceu e iniciou na sua pessoa e com a sua vida doada para a salvação de todos. É o que lemos no evangelho de João 3, 16-17: “De tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna, pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por meio dele”. Com o dom do Divino Espírito Santo, Jesus ressuscitado confirma a missão recebida do Pai e envia os discípulos para que continuem a mesma missão. A partir daqueles dias, somos nós, seguidores do Senhor, que devemos anunciar e testemunhar a presença salvadora de Deus em nossas vidas pessoais e na conturbada história humana. É uma missão entusiasmante, mas também extremamente exigente. Os que olham, também hoje, para os cristãos têm todo o direito de cobrar o cumprimento dessa missão. Quero dizer com isso que a novidade do Reino-presença de Deus, iniciado com Jesus deve ser visível e reconhecível não somente entre nós – o que nem sempre acontece – mas deve ser possível, vivível e experimentável nas diferentes situações da vida, para que, como disse Jesus, “o mundo creia” que Deus Pai o enviou” (Jo 17,23) e aqueles que o seguirem vivam na alegria plena que somente a presença de Deus em suas vidas pode garantir (Jo 15,11). Tudo isso significa que todas as vezes que nós cristãos brigamos, dividimo-nos, calamos ou nos apresentamos tristes e vazios por medo, covardia ou falta de compromisso, nós estamos negando o que deveríamos testemunhar com perseverança e entusiasmo. Rezamos para que o Divino Espírito Santo nos dê luz e coragem para cumprirmos a missão que Jesus nos entregou.

A “sinodalidade” e a consulta ao Povo de Deus

Neste final de semana, a nossa Diocese realizará uma pequena e breve Assembleia para chegar à síntese das respostas às perguntas da “consulta”, que iniciamos em nossas paróquias e comunidades desde os meses de março e abril deste ano. Em outubro de 2023, acontecerá em Roma um Sínodo da Igreja Católica sobre a “sinodalidade”. Essa palavra significa “caminhar juntos”. O grande questionamento, então, é se de fato estamos ou não praticando isso. Cada um de nós tem a sua sensibilidade e o seu jeito de pensar e avaliar a Igreja como um todo e, de maneira especial, a comunidade da qual participa mais ou menos ativamente. No entanto são, sobretudo, as duas palavras “caminhar” e “juntos” que deveriam iluminar a nossa reflexão.

“Caminhar” para uma Comunidade significa ser uma realidade viva, preocupada com o anúncio da Boa Notícia do Evangelho, com atenção aos sofredores, aos últimos, afastados e excluídos da sociedade. Em geral, estamos bastante envolvidos com as nossas atividades. Fazemos promoções para a manutenção das nossas estruturas ou para chamar atenção e convencer as pessoas com a finalidade de que venham participar e colaborar. Organizamos lindas celebrações e vibramos quando as nossas igrejas ficam cheias de gente. Nem sempre, porém, estamos dispostos a “sair” para conhecer, encontrar irmãos e irmãs nas periferias dos nossos bairros ou em situações e lugares diferentes daqueles que estamos acostumados a frequentar. Não se trata de arrebanhar pessoas, conseguir adeptos ou fazer pregações e eventos arrebatadores. A questão é não gastar todas as nossas energias só para falar sempre entre nós mesmos e, assim, acabar fechados na contemplação das nossas próprias obras. Parece que tenhamos medo de apresentar a Boa Notícia de Jesus a outras pessoas, principalmente com a nossa maneira de viver e nos relacionar, e assim testemunhar a alegria de ter sido alcançados pelo Senhor.

A outra palavra é “juntos”. É bonito gostar de participar de um grupo, de um movimento, de uma nova comunidade, sentir-se atraídos por algum carisma ou ação específica, mas com a condição de que isso nos ajude a praticar mais os ensinamentos de Jesus. Todo batizado, antes de declarar a sua pertença a um ou outro grupo, movimento ou carisma, deveria compreender-se simplesmente como cristão, que vive a sua fé em comunhão com os demais. Se insistimos muito sobre o que nos distingue acontece que os que não se reconhecem em nenhum grupo, movimento ou carisma, acabam pensando ser cristãos de segunda classe, como se pudesse haver classificações na vida cristã. Os serviços, ministérios e responsabilidades, a pertença a um grupo, movimento ou carisma, não tornam alguém mais cristão do que o outro. O chamado à santidade é igual para todos. O que nos faz diferentes é o jeito de responder a esse chamado com a nossa vida. O cristão, digamos “comum”, sem alguma pertença específica, deveria ser, portanto, a referência certa, porque o modelo para todos é o único Mestre e Senhor: Jesus Cristo. Igualmente únicas são, para todos, a Palavra e a Eucaristia. Nenhum batizado deveria ter uma meta menor que a santidade ou considerar-se, por algum motivo, inferior ou à margem da Igreja. Jesus deu preferência aos pobres, aos desvalidos, aos pecadores e a muitos outros que eram considerados indignos pela religião oficial.

Caminhar juntos significa procurar ser uma Igreja de comunhão, participação e missão, nunca uma Igreja de elite, excludente ou fechada, preocupada com a sobrevivência de si mesma, das suas estruturas e organizações. A Igreja existe para evangelizar os pobres, anunciar o Reino de um Deus amor e misericórdia. A variedade dos dons, serviços e carismas é uma riqueza extraordinária em prol do cumprimento desta missão que Jesus entregou aos seus seguidores. O resultado da nossa Assembleia será unido às respostas das outras Dioceses do Brasil e do mundo inteiro. Em primeiro lugar, porém, servirá para reconhecer se nós estamos “caminhando juntos” ou não e o que seria urgente fazer para que consigamos o maravilhoso objetivo de sermos “sinais de comunhão” numa sociedade cada vez mais dividida e incapaz de paz, diálogo e fraternidade.

Início e conclusão

Certo dia, um jovem padre foi visitar o seu antigo diretor espiritual e lhe perguntou:

– Como devem ser as homilias?

– Uma boa homilia – respondeu o velho padre – deve ter um bom início e uma boa conclusão. Depois você terá que dar um jeito para que o início e a conclusão estejam o mais perto possível!

A página do evangelho de João, deste Sexto Domingo da Páscoa, é tirada da longa conversa que Jesus teve com os seus discípulos durante a última ceia. Ao evangelista interessa partilhar com os cristãos que virão um pouco depois daquela singular experiência de vida dos primeiros seguidores que caminharam com Jesus pelas estradas da Palestina. É possível para nós participar e continuar essa “experiência”? Acompanhando a página do evangelho, entendemos que a primeira condição para que isso aconteça é amar a Jesus e, portanto, guardar a sua palavra como algo muito precioso para nós. “Guardar”, aqui, não significa conservar a palavra em algum museu ou cofre inviolável, mas, ao contrário, fazer que continue sendo fonte e proposta de vida para quem se dispõe a acolhê-la. A palavra de Jesus é bem guardada, quando é praticada com perseverança e fidelidade. Mais ainda, quem “guarda” essa palavra se torna “morada” do Pai e do Filho, ou seja, familiar de Deus e, assim, participa da vida dele. Quem garante a possibilidade de guardar a palavra de Jesus é o Divino Espírito Santo, o Defensor, que o Pai enviará. Ele “ensinará” tudo e “recordará” tudo o que o Mestre falou.

Podemos dizer que tudo é “dom” de Deus. Por amor à humanidade, o Pai enviou o Filho não para condenar, mas para salvar (Jo 3,16-17). O Filho, Palavra que se fez carne conforme o evangelho de João, realizou o seu ensinamento “com ações e palavras” como acreditamos que Deus sempre se fez conhecer. Para nós cristãos, a “Palavra de Deus” é viva e eficaz (Hb 4,12), ela é muito mais do que um conjunto de livros escritos num período de mais de mil anos. É a partilha de um encontro entre Deus e o povo por ele escolhido. O humano e o divino estão entrelaçados. Encontramos fidelidades e traições, promessas e realizações, sofrimentos, esperanças, alianças, perdão e misericórdia. Como o Divino Espírito Santo “inspirou” os autores que colocaram por escrito a experiência da fé do Povo de Israel, assim o mesmo Espírito acompanha e ilumina o entendimento das Sagradas Escrituras para nós hoje. Esse é o sentido da promessa de Jesus a respeito do “Defensor” que o Pai enviará em nome do Filho. Com efeito, com a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus e com as suas palavras chegou à plenitude a revelação de Deus e, portanto, todas as Escrituras podem ser entendidas somente à luz daquilo que o próprio Jesus fez e ensinou. Ele é a Palavra definitiva de Deus, mas para que essa palavra continuasse viva e capaz de transformar a vida dos crentes enviou o Divino Espírito Santo. Esse “dom” é dado a cada batizado, mas sobretudo a toda a Comunidade Igreja no seu conjunto. Por isso, as Sagradas Escrituras podem ser lidas individualmente e, sem dúvidas, produzem bons frutos, mas a compreensão mais segura e atual que podemos ter delas é aquelas leitura e explicação que Igreja faz em seu conjunto, de maneira especial quando celebramos a fé comum a todos na Sagrada Liturgia. Nesses momentos, quando a Palavra é proclamada deveríamos dizer o mesmo que, naquele tempo, o povo falava de Jesus: “Nunca alguém falou assim” (Jo 7,46).

Cada vez mais, compreendemos como um bom entendimento da Palavra de Deus seja decisivo para a nossa vida de cristãos, sobretudo se nos dispomos a deixar que a Palavra transforme a nossa vida para que sejamos verdadeiros seguidores de Jesus. No trabalho de comunicação, têm uma grande responsabilidade os pais com os seus filhos, os padres, pastores das nossas comunidades, as e os catequistas, todos os animadores de grupos, pastorais e movimentos. Não será a duração das nossas homilias ou as nossas muitas palavras a explicar melhor a Palavra de Deus, mas a busca da fidelidade à mensagem do Evangelho. Isso porque, afinal, a recepção alegre e renovadora da Boa Notícia será sempre obra do Divino Espírito Santo.

Me quer bem ou não?

Rabi Moisés Leib ensinava: “Como se deveria amar é algo que eu aprendi com um camponês. Ele estava sentado numa taberna com outros camponeses e estava bebendo. Ficou calado por muito tempo, mas, de repente, animado pelo vinho, perguntou a um dos homens sentados com ele:
– Me diga: você me quer bem ou não? O outro respondeu:
– Sim. Te quero muito bem. Mas o camponês replicou:
– Você diz que me quer bem, mas não sabe do que eu preciso. Se me amasse de verdade, deveria sabê-lo. O outro não tinha mais nada para dizer e todos caíram no silêncio como antes. No entanto, eu tinha entendido. Conhecer as necessidades dos outros e carregar o peso do seu sofrimento, este é o amor verdadeiro. Aquele homem não tinha aprendido aquilo na escola e sim na taberna, no calor do vinho, quando as emoções transbordam e as palavras saem sem controle”.

No evangelho de João, deste Quinto Domingo de Páscoa, encontramos o bem conhecido mandamento novo de Jesus: “amai-vos uns aos outros” e, em seguida, as palavras: “Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34). A novidade, portanto, não está tanto no amor em si, mas no jeito e na radicalidade do amor com o qual Jesus nos amou. Além disso, essa “nova” forma de nos amar uns aos outros será o sinal compreensível e inconfundível dos discípulos dele. Como cristãos seguidores do Senhor Jesus temos, assim, duas grandes responsabilidades: a primeira é obedecermos ao mandamento e, portanto, praticarmos o amor fraterno e a segunda é que, se falharmos com esse amor, será muito difícil reconhecer os verdadeiros discípulos dele. Não adianta fazer declarações maravilhosas de amor a Jesus ou de fé nele. O que vale mesmo e que deve distinguir os cristãos é o amor fraterno. Não que as palavras de fé, as explicações, escritas ou faladas, as rezas, curtas ou intermináveis, sejam inúteis, mas se às palavras bonitas de fé não corresponde o compromisso da vida, elas ficam somente palavras.

Nós cristãos, antes de sermos seguidores de um Mestre cheio de sabedoria, acompanhamos as pegadas de um Crucificado, de alguém que foi fiel até o fim à sua mensagem e a selou com o seu próprio sangue. Por sua vez, o Divino Pai confirmou a total entrega do Filho, feito homem por amor a toda a humanidade, ressuscitando-o dos mortos e dando-lhe “um nome que está acima de todo nome” (Fl 2,9). O modelo de amor que está à frente dos cristãos sempre será o do próprio Jesus e de todos aqueles que gastaram as suas vidas na busca do Reino de Deus e da sua justiça (Mt 6,33). De fato, a existência humana de Jesus foi aquela de uma vida totalmente doada a quem o procurava. Ele foi o primeiro que praticou o que havia anunciado na sinagoga de Nazaré no início da sua vida pública; sobretudo, entre outras coisas, o “anúncio da boa notícia aos pobres”. Um “evangelho” feito de palavras e ações, exortações e sinais, explicações e exemplos.

Tudo isso nos espanta? Será que o seguimento de Jesus é tão exigente? Nunca Jesus disse que caminhar com ele seria algo fácil ou banal. No entanto se é verdade que nos deixou a medida alta do amor – “como” ele nos amou – igualmente, porém, ensinou-nos que a grandeza e o valor do amor está no próprio compromisso de amar, com a condição que amemos para responder às necessidade do outro e não para a nossa satisfação ou gratificação. Todos somos carentes de amor, de atenção, de proximidade. Somente se reconhecemos o amor que já recebemos e praticamos nas nossas famílias, nas amizades, no companheirismo, na solidariedade e na generosidade, conseguiremos agradecer e compreenderemos as necessidades dos outros. Se não percebermos a nossa pobreza de amor, dificilmente saberemos doar desta nossa pobreza. As necessidades de cada ser humano são parecidas com as nossas. Todos gostamos de pessoas sorridentes, amáveis, capazes de escutar, prontas para ajudar. Faltam semeadores de paz, comunhão e confiança. Todos precisamos muito amar e ser amados. Por isso, Jesus nos amou tanto, sabia muito bem o que nos faltava.

Três coices

Num zoológico, uma girafa se preparava para dar à luz. Muitas pessoas queriam presenciar o evento. A girafa permaneceu em pé e, para surpresa de todos, o filhote nasceu caindo de uma altura de quase dois metros. No chão, a girafinha, debatia-se toda. Depois de alguns minutos de tentativa para erguer-se, a filhota conseguiu ficar em pé. O povo começou a aplaudir, mas a mãe deu-lhe um coice que a levou de volta para o chão. A filhota, com muito esforço, conseguiu se levantar mais uma vez. De novo, mamãe girafa colocou a girafinha no chão dando-lhe mais um coice. Os espectadores ficaram sem saber o que estava acontecendo e alguns chamaram a girafa de “mãe desnaturada”. Antes que acontecesse um tumulto, o diretor do zoológico apareceu para dar explicação. Ele disse: “O que a mãe girafa faz, parece um ato agressivo e de desamor, mas esta é a maneira que ela tem de fortalecer as pernas da sua cria. Somente assim ela poderá acompanhá-la e mesmo fugir se algum predador avançar. Normalmente ela dá três coices e quando a cria levanta pela terceira vez lambe-a com carinho. Os presentes olharam e era isso mesmo que a girafa mãe estava fazendo com a sua filhota”.
Uma historinha de mãe, para lembrar o dia dedicado a elas. Todas as mães são merecedoras da nossa gratidão e carinho. Ser mãe, gerar e doar vida, é um grande e sublime chamado. É muito mais que algo meramente natural ou para a simples continuidade da espécie. As mães são as primeiras educadoras dos seus filhos.
Falamos agora do evangelho deste Quarto Domingo de Páscoa. Todo ano, lemos um trecho do capítulo 10 do Evangelho de João. Jesus se apresenta como o “bom” pastor, sempre pronto a proteger e defender as ovelhas que o Pai lhe entregou. Também, neste dia, rezamos pelas vocações, para que não faltem ao Povo de Deus padres pastores, irmãos e irmãs consagrados e consagradas ao serviço da evangelização, da missão e da caridade.

Duas afirmações do evangelho chamam a nossa atenção. A primeira diz respeito à “voz” do pastor que as ovelhas escutam. Elas o seguem porque são “conhecidas” por ele. Para a Bíblia em geral, mas de maneira particular para o evangelista João, “conhecer” significa mais do que uma simples informação, indica familiaridade, intimidade. Neste caso é o próprio pastor que conhece as suas ovelhas. O encontro entre o ser humano e Deus, antes de ser uma atitude nossa, é iniciativa dele. Ou seja: é ele que nos procura, é ele que se interessa por nós, é ele que nos ama por primeiro. Nós não conseguiríamos conhecê-lo se antes não fôssemos já conhecidos e nem o amar se já não fôssemos amados por ele.

A segunda afirmação é uma defesa: ninguém vai arrancar as ovelhas da mão do Bom Pastor ou arrebatá-las da mão do Divino Pai. Em outros versículos do mesmo capítulo, fala-se de lobos e de mercenários que fogem em lugar de defender as ovelhas. Proponho que cada um de nós procure dar um rosto e, talvez, até um nome a esses lobos ferozes que querem nos afastar do amor de Deus. Não é tão difícil consegui-lo. Basta ensinar que Deus é coisa velha, assunto de outros tempos, um conjunto de normas e obrigações das quais é melhor nos livrar. Desse jeito, Deus não protege, oprime. Os piores lobos são os que nem parecem sê-los. Eles vêm travestidos de ovelhas, usam palavras mansas, cativantes, prometem pastagens mais fartas. Aos poucos, porém, dividem as ovelhas. Dizem que precisamos ser diferentes, autônomos, independentes, que devemos construir uma imagem de Deus mais vantajosa, que faça mais a nossa vontade e os nossos gostos, que possamos escolher aqueles que nós queremos amar, os que pensam como nós, somente os amigos. Quantas ovelhas descobrem, depois, que estão ficando sozinhas, perdidas, cheias de coisas materiais e vazias de alegria, que não sabem mais doar, socorrer, que desprezaram os laços mais simples da vida. O Bom Pastor nunca desiste das suas ovelhas. Vai sempre atrás delas até encontrá-las. Se permitiu que caíssem foi para que reconhecessem a falta dele e dos irmãos e levantassem com as pernas mais fortes para poder segui-lo com mais coragem e firmeza.