Dom Pedro Conti

Z: a máquina de escrever quebrada

“Emborz sejz zntigz, suz mzquinz de escrever zindz estz em bom estzdo e lhe prestz excelentes serviços se, como o senhor pode observzr, nzo tivesse umz dzs teclzs quebrzdzs. É fzto que restzm quzrentz e três normzis. Mzs bzstz que umz teclz nzo trzbzlhe normzlmente pzrz que hzjz diferençz com relzçzo z um trzbzlho bem rezlizzdo.”

 

Essa é claramente uma brincadeira. Para entender o que está escrito, basta substituir a letra “z” pela letra “a”. É verdade que ainda tem 43 letras boas, como diz o texto, mas…basta só uma delas errada para atrapalhar tudo. Talvez isso nos ajude a entender um pouco quanto “o pecado” torna a nossa vida mais difícil e menos feliz. No Segundo Domingo do Tempo Comum, encontramos um trecho do evangelho de João. Um outro João, o Batista, aponta a Jesus e o declara “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Temos assim uma referência antiga – o cordeiro pascal – e uma, absolutamente nova, aplicadas a Jesus. A consumação da carne do cordeiro na ceia ritual da Páscoa judaica era o memorial da saída do Egito e o sangue com o qual foram ungidos os dois umbrais e a viga da porta da casa dos israelitas (Ex 12,7). Para a fé cristã, expressa no evangelho de João, Jesus é o “novo” cordeiro, que imolado na cruz, uma vez por todas, libertou-nos da escravidão do pecado e da morte. O ressuscitado não morre mais. “A morte está vencida pelo Senhor da Vida”, cantamos na noite de Páscoa. A última palavra da história humana, portanto, não será aquela do pecado e da morte, mas do amor e da vida. Essa é a novidade que o evangelista João afirma chamando Jesus de o Cordeiro de Deus que “tira o pecado do mundo”.

 

Apesar de tantos sinais de violência e de morte que nos parecem dizer o contrário, a vitória final será da Vida; a raiz, a origem de todo mal – o pecado – está derrotado de uma vez por todas. A “Vida Nova” resplandece no rosto do Ressuscitado e se espalha na vida dos seus amigos e seguidores. Se “o pecado” era o afastamento de Deus e a infeliz disputa humana com ele, em Jesus, o Filho que o Pai não poupou, a humanidade reconhece quem é Deus de verdade. Com Jesus, ele se entrega em nossas mãos, não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva, porque Deus é Pai, é bondade, misericórdia e perdão. Essa “Vida Nova” já começou também para nós e tem nome: Espírito Santo, o Espírito do Senhor Ressuscitado. É com a força dele que nós podemos vencer os nossos pecados, tanto os pessoais como os que alimentamos juntos. Com efeito, o primeiro passo para vencer os nossos pecados é, justamente, enxergar onde, como, quanto e quando estamos errados. Somente se temos a coragem de nos deixar iluminar pela luz resplandecente do amor de Deus, o fogo luminoso do Espírito Santo, começamos a perceber a inutilidade do nosso mal, os frutos mortais do nosso egoísmo e da nossa indiferença. Junto com a compreensão dos nossos pecados, vem o desejo de mudar, de nos reaproximarmos de quem esquecemos ou apagamos: o próprio Deus, mas também os nossos irmãos mais pobres e desprezados nos quais Jesus se esconde. Para participar da vitória de Jesus sobre o mal e a morte não basta deixar os nossos pecados pessoais, precisamos também chegar às raízes das injustiças e de todas as causas de sofrimento, miséria e desumanização de tantos irmãos e irmãs. O Divino Espírito Santo não ilumina somente a nossa consciência para nos conduzir no fadigoso caminho da nossa conversão e santificação pessoal, ilumina também os povos, a história humana. Ele nunca deixa faltar evangelizadores e profetas, pessoas capazes de apontar caminhos novos. No entanto cabe a cada um de nós, lá onde vivemos, a fadiga da escuta, da busca, das escolhas, do reconhecimento dos sinais que Deus, na sua bondade, envia-nos.

 

Voltamos à máquina de escrever quebrada. Não dá para consertar? Se não conseguimos, ao menos sabemos que basta trocar a letra “z” pelo “a”. Sabemos por onde começar para que a Boa Notícia de Jesus possa ser entendida e acolhida. Nós ainda somos “mensagens” meio atrapalhadas, mas ele, o Senhor, não.

 

A Montanha da Paz 

 

Numa região rural, de natureza exuberante, havia um povoado cercado por uma serra muito bonita. Entre as montanhas havia uma, a mais alta, que se chamava Montanha da Paz pela suavidade das cores e formas da sua vegetação. Muitas pessoas subiam até o seu cume para desfrutarem da beleza natural do local. Sentadas lá em cima, elas percebiam as suas dificuldades diminuírem de proporção e quanto mais olhavam para baixo, mais se convenciam de que o seu problema era menor do que imaginavam. De lá de cima, tudo parecia ser pequeno e ter, praticamente o mesmo tamanho. Ao descerem da Montanha da Paz, as pessoas sentiam-se melhor. Tinham a percepção que toda dificuldade era pequena diante da grandeza de um mundo tão maravilhosos.

 

Com este domingo e sob a proteção de Maria, “Mãe de Deus”, iniciamos o novo ano civil. Também celebramos o 56º Dia Mundial da Paz. É bonito iniciar uma nova temporada com o pensamento e o desejo de paz, mas, olhando ao nosso redor e prestando atenção às notícias que chegam até nós, temos a impressão que ela seja cada vez mais difícil, para não dizer impossível. Sem dúvida alguma, a “paz” no sentido amplo da palavra será sempre algo em construção, um esforço “artesanal” feito de infinitos gestos, grandes e pequenos, capazes de apaziguar as relações entre as pessoas, os países, a humanidade inteira. Entendemos que estão em jogo interesses gigantescos, áreas de influências econômicas e militares das grandes potências, ódios antigos, questões nunca resolvidas, medo de uma guerra nuclear, preconceitos raciais e culturais. Soubemos, poucos dias atrás, que o planeta Terra chegou aos oito bilhões de habitantes. Para alguns analistas, isso significa que, se não mudarmos certos costumes, estamos perto de não ter mais condições de garantir alimentos e, em tempos breves, água doce para todos. As mudanças climáticas também vão influenciar a vida de povos inteiros com migrações em massa forçadas pela desertificação, pelos desastres naturais e o aumento do nível da água dos mares. Como se tudo isso não bastasse – ou por causa de tudo isso – sabemos que diversas guerras estão em curso, espalhadas pelo planeta, algumas mais publicizadas, outras quase escondidas, mas todas fatais para milhões de pessoas. Quantas crianças pelo mundo vivem na mais absoluta incerteza sobre o seu futuro… Se sobreviverem, qual e como será a “pátria” delas? Nesta altura, vale a pena ainda acreditar na paz, rezar e esperar que um dia ela chegue e faça de nós uma humanidade feliz?

 

Evidentemente não tenho propostas ou estratégias particulares para resolver questões tão grandes, no entanto não quero desistir de confiar no ser humano por transtornado, confuso, fanático ou sofrido que seja. Como sempre, o que faz notícia é o mal e a violência, mas o que muda a história é o bem construído aos poucos, na maioria das vezes, com “sangue, suor e lágrimas”, ou seja, com o compromisso e a paciente teimosia de tantos heróis pequenos ou grandes, anônimos ou famosos. Junto com as estruturas de injustiça e de morte, que nós mesmos criamos, precisamos sempre lutar para converter os nossos pensamentos e os nossos corações para que sejam de respeito e de diálogo. Igualmente, pequenas e grandes experiências de convivência pacífica e promoção dos mais necessitados fazem amadurecer em nós projetos de partilha, de mútua ajuda e solidariedade. Como discípulos do mestre Jesus, não podemos desistir do ser humano. A bem-aventurança dos “construtores de paz” (Mt 5,9) nos lembra que eles e elas “serão chamados filhos de Deus”. Mais uma vez, tudo depende de como é o Deus no qual dizemos de acreditar. Se for um Deus de parte, nos conduzirá a conflitos e disputas, mas se for o Deus Pai de todos, como Jesus nos fez conhecer, capaz de doar o seu próprio Filho para ensinar como se ama, temos mais uma missão a cumprir: ser homens e mulheres de reconciliação e de paz. A Montanha da Paz não existe, mas sempre podemos imaginar como Deus-Amor gostaria ver os seus filhos: brigando ou se abraçando?

 

 

Jesus, pessoa-fonte 

 

Santo Alberto Magno escreveu: “Existem homens e mulheres-vaso…que têm e retêm, porém, não dão, não compartilham; a água pode estancar e corromper-se. Existem as pessoas-canal, vala, tubo…em que o líquido passa através delas…porém, sem se reter, esvaziando-se totalmente. E têm as pessoas-fonte…que se dão sem nunca se esvaziar; elas oferecem ao sedento sua água, seu caudal…sem diminuí-lo, porque mana sempre. Jesus Cristo pertence ao terceiro grupo: É fonte inextinguível. É água que mata a sede. É água que acalma a febre. A água que restabelece o caminhante fatigado, suado, estressado. A água que refresca, limpa e dá novos brios para prosseguir… Jesus é o manancial que mana constantemente para o bem da humanidade. Sua água nos ajuda enormemente a viver melhor nossa vida e a fazer com que os demais também a vivam”.

 

Chegamos ao dia de Natal, com todas as suas tradições e formalidades, emoções e memórias. Por muitas razões, o Natal cria uma “atmosfera” diferente do resto do ano. Repetimos gestos, trocamos votos de felicidade, mas sempre tem algo novo. Também quem não acredita, quem não celebra o nascimento de Jesus, vive, a seu modo, os dias de Natal, porque só o Natal é “mágico”! O Menino Jesus com o seu nascimento nos dá a sensação que algo velho, passado, e que podemos sempre recomeçar, quase um renascer. Tudo isso é bonito e nos alegra. Precisamos de esperança, de coragem para abrir novos caminhos, mudar e jogar fora tanta bagagem “velha” que nos incomoda e que carregamos inutilmente.

 

Nos encontros das nossas famílias temos a possibilidade de sorrir novamente a todos, de abraçar e olhar nos olhos aqueles e aquelas com os quais, ao longo do ano, só falamos pelo celular, às pressas, para resolver questões urgentes. Nos dias de Natal parece que o tempo se torna mais longo, que podemos nos dar ao luxo de jogar fora conversas, sem a escravidão do relógio. Tudo isso é muito bom. Somos verdadeiramente humanos somente quando nos comunicamos; por isso precisamos escutar e ser ouvidos, trocar ideias, sentimentos, anseios e preocupações. Nas conversas com os amigos lembramos de promessas feitas no ano anterior, de algum compromisso esquecido, de acordos que nunca saíram do papel. Isso também é interessante, porque serve para reconhecer o que, sinceramente, consideramos importante e o que não passa de palavreado ocasional. O Natal é tudo isso e muito mais; marca a vida de cada um, deixa a memória de lugares e pessoas, daqueles com quem estávamos no ano anterior e agora, talvez, não estejam mais conosco. Natal é também saudade, recordações. No entanto, temos certeza que estamos celebrando o Natal de Jesus ou simplesmente nos deixando envolver pelo “clima” do momento, pelas luzes, as ofertas especiais, as ceias e os presentes? Não tenho medo de afirmar que, para nós que nos consideramos cristãos, o Natal deve ter algo diferente porque deve ser, em primeiro lugar e antes de tudo o mais, o Natal de Jesus. Cabe a nós, em todos os momentos e em todas as oportunidades, lembrarmos quem estamos festejando: a mensagem, a vida, a pessoa daquele que agora, criança, contemplamos deitado na manjedoura, mas, um dia, levantaremos os olhos para vê-lo pregado na cruz e, depois, reconhecê-lo ressuscitado e vivo para sempre. É nosso compromisso colocar Jesus no lugar certo na festa do seu Natal. De outra forma, podemos vibrar por mil emoções natalinas, mas sem o verdadeiro festejado.

 

É Jesus a “fonte” das palavras de paz que trocamos no Natal, das felicidades que nos desejamos uns aos outros. É ele a fonte dos gestos de bondade e de solidariedade do Natal. É ele a fonte que nos faz sentir melhores quando perdoamos, abraçamos, socorremos. Os dias de Natal vão passar, mas Jesus deve continuar a ser a fonte do amor que transforma as vidas, coloca o bem onde o mal parecia dominar, espalha alegria onde tudo era triste e desanimado. Com Jesus, fonte de vida nova, nós podemos aprender a ser também pessoas-fontes, que não seguram para si, mas doam sempre, doam tudo, por amor. Como fez Jesus. Feliz Natal para todos!

 

O sonho    

 

“Sonho com um mundo no qual o homem já não despreze o homem. Onde reine o amor na terra, onde a paz adorne os caminhos. Sonho com um mundo em que todos percorram as sendas doces da liberdade. Onde a cobiça não cubra de sombras nossos dias. Sonho com um mundo em que brancos e negros, seja qual for a sua raça, compartilhem os dons da terra. Onde todo homem seja livre. Onde a miséria vergonhosa abaixará a cabeça. E a alegria, como uma pérola preciosa, preencherá os anseios da humanidade. Aqui está o mundo com que sonho. (James M. Lagston Hughes (1902-1967) foi um poeta e escritor negro).

 

Chegamos ao último domingo do Tempo de Advento. Neste dia sempre encontramos o “anúncio” do nascimento de Jesus feito a Maria ou a José. O evangelho de Mateus deste ano litúrgico nos apresenta o “sonho” de José. Ele já estava comprometido com Maria, mas ainda não a tinha recebido como sua esposa. Era um homem “justo”, ou seja, fiel cumpridor da Lei de Moisés. Por causa disso, ao tomar conhecimento da gravidez inesperada de Maria, devia abandoná-la. Resolveu fazer isso “em segredo” para não expô-la à vergonha pública e relativos castigos. “Em sonho” recebe a mensagem de não ter medo de desobedecer à Lei e de acolher Maria na sua casa. Ele mesmo, José, dará o nome de Jesus à criança quando nascer.

 

Como é comum na Bíblia, o nome da pessoa escolhida revelava a missão que Deus lhe confiava. “Jesus” significa “Deus (Javé) salva!”. O evangelho lembra também a profecia de Isaias: “Eis que a virgem conceberá e dará luz um filho” (Is 7,14). Outro nome é lembrado: “Ele será chamado de Emanuel, que significa: Deus está conosco”. Assim a “anunciação” a José – e a nós – se completa: nascerá uma criança que se chamará Jesus e terá como missão: “salvar o seu povo dos seus pecados” (Mt 1,21).

 

O “sonho” indica uma comunicação especial: é Deus que dá a notícia daquilo que ele mesmo vai fazer. Um compromisso real e, ao mesmo tempo, misterioso porque não é algo simplesmente humano, é uma promessa do Altíssimo. José acredita e, quando acorda, obedece; este “sonho-revelação” merece toda a sua confiança. Estamos em plena linguagem bíblica. Anjos e sonhos eram usados para que fosse conhecido e levado em frente o projeto de Deus, uma espécie de assinatura dele. Nada de brincadeiras ou de fantasiosas imaginações humanas. Está em jogo a fidelidade de Deus à sua própria palavra, é o Pai que envia o seu Filho para salvar a humanidade. “Pecado” é tudo o que nos afasta do amor a Deus e ao próximo. Jesus, com suas palavras e com sua vida doada na cruz, obedecendo ao Pai e nos amando até o fim, nos oferece a possibilidade de nos reconciliar com Deus, com os irmãos e, hoje entendemos, também com a própria criação. O “sonho-projeto” de Deus é de vida, de paz, de alegria.

 

Nós todos sonhamos, às vezes dormindo, muitas mais vezes acordados, imaginando e fazendo planos. Algumas vezes conseguimos realizar os nossos sonhos, outras não; eles ficam guardados no baú da memória dos nossos desejos e anseios. Uma lição muito importante nos vem do “sonho” de José. O que parecia um casamento comum, na realidade foi o início de uma nova história, onde Deus estará presente junto à humanidade. Jesus e Emanuel são os nomes da criança anunciada: Deus salva porque Está conosco ou Está conosco porque quer nos salvar? Com Jesus, Deus não veio para impor o seu projeto, mas para que ao conhece-lo e segui-lo nós pudéssemos participar do seu sonho de amor para com todos. A salvação que Jesus consiste em sair dos nossos projetos individuais, egoístas e gananciosos, para sonhar, juntos com ele, um mundo de paz e fraternidade, onde o próprio Deus –  com as religiões para nos entender – não seja motivo de divisão ou de ódio, mas de reconciliação, misericórdia e comunhão. No Natal voltamos a sonhar juntos o “sonho” de Deus, com José, o homem justo, com Maria a virgem-mãe, com todos os homens e mulheres de boa vontade.

 

O camelo e o beduíno

Um beduíno, muito obeso, pediu a um eremita, pele e ossos, um conselho para emagrecer. O eremita respondeu:

– Experimente fazer longas corridas junto ao seu camelo. Após mais ou menos um mês, o beduíno voltou para visitar o eremita. Este lhe perguntou se havia conseguido algum benefício, seguindo o seu conselho.
– Ó certamente! – respondeu o beduíno – O camelo perdeu vinte quilos num mês.

No evangelho do Segundo Domingo de Advento, encontramos a pessoa de João Batista e a sua pregação. João vivia no deserto da Judeia de maneira muito austera, jejuando e vestindo roupa grosseira. O que logo chama a nossa atenção são as palavras que ele usa para convidar à conversão: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (Mt 3,2). Mais tarde, depois que João foi preso, Jesus iniciou a pregação dele exatamente com palavras iguais (Mt 4,17). Muitos ficaram confundidos, até Herodes achou que Jesus era o João Batista ressuscitado (Mt 14,2).

Precisamos aprofundar essa questão. Sem dúvida, João Batista preparou o caminho para Jesus e antecipou algumas das suas palavras. De fato, eram tempos de grande espera, falava-se muito do “messias” que devia chegar. Fazia muito tempo que os profetas o tinham anunciado, mas ninguém sabia quando, como e onde iria aparecer. Daí o convite a ficar atentos, a mudar de vida, a fazer penitência, para estar prontos na hora da grande chegada. No entanto se prestarmos melhor atenção à pregação do Batista e a confrontarmos com as palavras de Jesus, logo percebemos as diferenças. João usa palavras fortes, fala do “dia da ira”, ira de Deus evidentemente, e ninguém poderá escapar disso. Ele fala do machado que está colocado à raiz das árvores para cortá-las se não produzirem

frutos. Aquele que virá, o “esperado”, limpará a sua eira, guardará o trigo no celeiro, mas queimará a palha “no fogo que não se acaba”. Também Jesus usará algumas frases “de efeito” como estas do Batista, chamando alguns de hipócritas e “raça de víboras”, mas, na prática, ele teve uma atitude de compaixão e misericórdia com os pecadores que frequentava sentando à mesa com eles e elas. Por isso, Jesus foi chamado de “comilão e beberrão” (Mt 11,19).

Podemos entender que, às vezes, amedrontar alguém ou ameaçar com um castigo pode surtir o efeito de fazer a pessoa desistir de tomar certas atitudes naquele momento. No entanto o medo é passageiro e não convence ninguém. Quando quem falou se afasta ou vira as costas, o temor desaparece. O perdão também não é sucesso garantido. Contudo, o objetivo da misericórdia não é garantir que o erro nunca mais se repita, mas ajudar quem agiu mal a tomar consciência das consequências da sua ação e, ele mesmo, decidir não mais fazer sofrer alguém. Quando isso acontece, a experiência é de alegria e de alívio de ambos os lados: de quem fez o mal e de quem o recebeu. Sem rancores e vinganças, surge a chance de uma vida nova e diferente para todos. É isso que chamamos de “conversão”.

Quem agiu errado resolve se corrigir, e quem teve compaixão percebe que o seu coração está em paz. Por isso, o convite à conversão e ao exercício da misericórdia são sempre para todos. É questão de educação e treinamento. Poucos se tornam bons de uma hora para outra. Igualmente o perdão exige algo nada fácil: reconhecer antes os nossos pecados e defeitos e assim parar de julgar os outros e de condená-los.

Sessenta anos atrás, o santo Papa João XXIII, no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, disse claramente que havia chegado a hora em que a Igreja, depois de ter, por séculos, apontado os erros da humanidade, devia usar de misericórdia e mostrar a todos o caminho de reconciliação e de paz. Muitos fazem como o beduíno que devia emagrecer e que correu junto ao seu camelo. Pelo jeito, porém, o fez montado no animal e não o acompanhando no esforço. O exercício valeu para o camelo, mas não para ele.

À caça do Paraíso

O santo eremita Macedônio foi, um dia, surpreendido na sua solidão por um príncipe que, com um séquito numeroso, andava caçando na floresta vizinha.

– Que fazeis nesta solidão, neste deserto? Perguntou o príncipe ao eremita.

– Permita-me – replicou o eremita – que vos pergunte primeiro: Que fazeis aqui?

– Como vedes, eu vim caçar.

– E eu também, disse o eremita, eu também vim à caça. O que eu procuro, porém, é um bem eterno: ando à caça do Paraíso. O príncipe despediu-se e partiu, meditando seriamente naquelas estranhas palavras do santo eremita: “ando à caça do Paraíso”.

Neste domingo, celebramos a festa de Todos os Santos e Santas, os famosos e venerados e os conhecidos somente por Deus. Quando encontrei o diálogo acima, num livro escrito há mais de sessenta anos, pensei colocá-lo aqui. Pergunto: será que, hoje, ainda entendemos a vida cristã como uma “caça ao Paraíso” ou, dito com outras palavras, a busca da santidade – e também do “Paraíso” – interessam ainda aos cristãos de nossos dias? Espero que sim, obviamente, mas talvez precisamos refletir um pouco sobre o que entendemos com essas palavras fascinantes para alguns e desafiadoras para todos.

Provavelmente, aprendemos que a santidade é a condição para chegar ao Paraíso. Certo. Mas quem julga a santidade de uma pessoa e se ela merece ou não estar no Paraíso? Já aconteceu,  muitas vezes, que o povo cristão considerasse alguém santo ou santa ainda em vida. Para outros, porém, foi a Igreja a reconhecer oficialmente as “virtudes heroicas” deles e eventuais fatos extraordinários considerados como frutos da intercessão daquela pessoa junto de Deus. No entanto é bastante fácil entender que, afinal, somente Deus, na sua infinita misericórdia, pode julgar quem merece ou não estar no Paraíso. Essa meta nunca será um direito adquirido, fruto das nossas obras; sempre será mais do que um prêmio, será um verdadeiro dom, com certeza, muito acima do esperado.

Por isso, o Papa Francisco costuma convidar os jovens a serem, hoje, os santos de “calça jeans”, gastando a própria vida fazendo o bem com o seu jeito juvenil e a novidade que cada geração traz. Igualmente, ele fala sempre para prestarem atenção aos “santos da porta de lado”, ou seja, aqueles vizinhos ou vizinhas dos quais pouco ou nada sabemos, que nunca serão famosos, mas que, de fato, vivem uma autêntica santidade nas suas famílias, nos seus sofrimentos, nos seus serviços humildes e silenciosos. E o Paraíso? Também sobre isso podemos estar muito equivocados , sobretudo quando pensamos que seja algo que vai acontecer somente após a nossa morte, na outra vida, se ainda nela acreditamos, ou se for questão de ter do bom e do melhor, de “sombra e água fria”, ou seja, afinal, somente uma fartura de bens materiais e prazerosos.

A “vida plena”,  que novamente só Deus pode oferecer, será a plenitude daquilo que todos desejamos, mesmo sem ter plena consciência e até quando o buscamos por meios e caminhos errados. Falo da plenitude daqueles “frutos” do Espírito Santo que São Paulo apresenta na carta aos Gálatas e que já deveríamos produzir nesta vida; eis os primeiros três: amor, alegria e paz. Se gastamos a vida para multiplicar o desamor, a tristeza e as intrigas, estamos planejando o “inferno” para nós e para os que já tornamos infelizes neste mundo. Mas se praticamos o amor, espalhamos alegria e construímos a paz, já estamos antecipando um pouco daquilo que será a Vida Nova do Paraíso. Os bens materiais são dádiva de Deus, dos quais devemos ser sábios e fiéis administradores, ou seja, deveríamos usá-los e multiplicá-los para o bem nosso e dos nossos irmãos. Se for somente para nos enriquecer, quem sabe, até enganando e explorando os nossos semelhantes, talvez, possamos pensar  ter já alcançado o “paraíso” nesta vida, mas, bem sabemos, que nada levaremos das riquezas acumuladas na terra. As nossas mãos só poderão apresentar os tesouros de bondade doados aos pobres e desvalidos. Eles mesmos nos abrirão as portas do céu. Afinal, somos todos “caçadores” de felicidade. Onde? Já agora, por aqui, praticando o bem, mas incomparável e surpreendente será a felicidade do Paraíso. Ainda acreditamos e esperamos nisso?

 

Eu não uso sabão

Certo dia, nos anos sessenta do século passado, no auge do movimento hippie, o arcebispo Fulton Sheen cruzou com um deles. O rapaz estava deitado no chão, maltrapilho, barba e cabelos compridos. Quando viu passar o religioso, que era famoso pelos seus programas televisivos, o hippie lhe disse:

 

– Reverendo, o senhor ainda acredita em Deus? São dois mil anos que existe o cristianismo e veja em quais condições se encontra o mundo! O bispo, com a sua calma costumeira,  respondeu-lhe:

 

– Há três mil anos existe o sabão e veja em que situação você se encontra. O hippie deu uma risada e acrescentou:

 

– A questão é que eu não uso sabão. Dom Fulton respondeu:

 

– É o que acontece no mundo: não estamos usando o Evangelho!

 

No evangelho de Lucas, deste domingo, encontramos uma parábola que Jesus contou para “mostrar a necessidade de rezar sempre e nunca desistir” (Lc 18,1) e duas perguntas que nos devem preocupar. A primeira é sobre a capacidade de Deus de satisfazer os pedidos dos seus “escolhidos” e a segunda, muito séria : “Mas, o Filho do Homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” A parábola conta o caso de uma viúva que pedia justiça a um juiz. Nada mais comum. A quem pedir justiça se não aos juízes? No entanto esse juiz não praticava de jeito nenhum aquela, que nós pensamos, deveria ser a justiça. Era um juiz corrupto que “não temia a Deus e não respeitava homem algum” (Lc 18,2). No entanto a viúva nos é apresentada como uma pessoa tão insistente na sua cobrança que acaba vencendo a indiferença do juiz. A pobre mulher, sem força e poder algum, consegue do juiz aquilo que nenhuma lei o obrigava a cumprir.

 

O comentário do evangelho à parábola é simples: se até o juiz injusto, afinal, fez justiça para a viúva perseverante, quanto mais o próprio Deus “fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele?”(Lc 18,7). Entendemos também que a “justiça” em questão não é simplesmente uma controvérsia, que deve ser resolvida na base de leis humanas, mas o próprio amor de Deus que torna o ser humano, que acredita e confia nele “justo” e bom, capaz de fazer o bem e vencer as armadilhas do mal. Nesse sentido, a insistência na oração revela a plena confiança do crente naquele Deus ao qual apresenta o seu pedido. Igualmente, “nunca desistir” da oração que manifesta a certeza da bondade de Deus, também se a demora na resposta pode gerar dúvidas  e ser capaz de abalar qualquer relacionamento.

 

Acreditar não significa simplesmente acolher um conjunto de doutrinas para que as guardemos em nossa memória. Ter fé, mesmo, é experimentar um relacionamento com a pessoa de Deus, com Jesus, como alguém que nós admiramos, que nos atrai a ponto de nos sentirmos familiares, amigos, amados por ele. Assim podemos entender a pergunta final de Jesus, sempre desafiadora para nós. A questão não está em saber “quando o Filho do homem vier”. Ele já veio e sempre vem, todo dia e de muitas formas bate à porta da nossa vida e pede para deixá-lo entrar. Ele nos fala com a sua palavra, pede ajuda com a voz e o grito dos pobres. Questiona-nos no segredo da nossa consciência quando conseguimos cair em nós mesmos e temos a coragem de procurar respostas às grandes perguntas da vida. A fé verdadeira é para a nossa vida inteira, não se deixa enfraquecer e nem surpreender pela demora, supera a prova do tempo, das decepções nossas e dos outros.

 

Não podemos saber se o Filho do homem encontrará a fé sobre a terra quando vier, mas podemos saber de nós, se nos encontrará acordados ou adormecidos, atentos ou distraídos, ativos ou parados. O que podemos fazer, todos juntos, é nos ajudarmos a não desanimar, a nos levantarmos quando caírmos, a carregar quem não consegue mais andar sozinho. A fé verdadeira nunca é uma experiência individual. Alguém nos ajudou a encontrá-la, outros a mantê-la viva, outros ainda nos exortam a testemunhá-la. Três mil anos de sabão de nada serviram para limpar quem não queria. Em dois mil anos, a fé cristã transformou a vida de tantos. Agora é a nossa vez de provar que praticamos o Evangelho.

 

Um vinho novo e melhor

Finalmente, após dois anos por causa da pandemia, podemos realizar publicamente o Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Estamos alegres e animados. Iremos cantar e rezar atrás de uma imagem? Não. Nós católicos não “adoramos” as imagens; elas simplesmente nos ajudam a lembrar e a “imaginar” – isso sim – aqueles e aquelas que buscamos conhecer melhor para aprender a viver um pouco mais da santidade e das virtudes deles e delas. No Círio deste ano, iremos em procissão atrás de muitos anseios e de uma grande esperança, confiantes na intercessão maternal e amorosa de Nossa Senhora que chamamos, nestes dias, de Virgem de Nazaré.

 

O primeiro grande anseio que está em nossos corações é o mesmo grito dos dez leprosos do evangelho de Lucas deste domingo. À distância, eles pedem que Jesus, o mestre, tenha compaixão deles. Imploram a cura da doença, mas também a possibilidade de voltar a viver junto aos demais cidadãos, com os mesmos direitos e a mesma dignidade. A exclusão social dos pequenos, dos mais pobres e esquecidos, daqueles que podem ter errado na vida, é a lepra que ainda marca a existência de tantos irmãos e irmãs. A cura está ao nosso alcance todas as vezes que superamos as distâncias e nos tornamos próximos dos caídos nos caminhos da vida. Outro anseio que o Círio pode nos ajudar a expressar, mas que nem todos percebem, é o desejo de agradecer. Com efeito, dos dez leprosos curados, somente um voltou para fazer isso atirando-se aos pés de Jesus. No entanto manifestar a nossa gratidão é a maneira mais simples de reconhecer a total gratuidade do dom recebido. É urgente aprender a agradecer a Deus também quando nem tudo acontece como nós gostaríamos . O Deus Pai bondoso,  que Jesus veio nos fazer conhecer, não é alguém bom ou mau conforme a “nossa” vontade. Ele não é Deus para nos agradar e realizar os “nossos” planos. Ele quer nos conduzir pelos caminhos certos, para o nosso bem, assim que possamos aprender a sermos mais fraternos e misericordiosos também quando passamos por provações e dificuldades. Talvez os anos da pandemia nos tenham ensinado a transformar o medo em paciência, confiança e solidariedade. Todos precisamos ser curados da lepra do egoísmo e da indiferença. Faz bem nos sentirmos limitados, menos poderosos do que pensamos, todos iguais: peregrinos, de passagem neste mundo, mortais. Somente assim motivamos e alimentamos a grande esperança de podermos ser melhores, como pessoas humanas e cristãs.

 

Relendo a página das Bodas de Caná e aproveitando da sua mensagem simbólica, nós não nos sentimos humilhados em pedir ajuda, em invocar a intercessão de Maria. Ela sempre diz por nós a Jesus: “Não tem mais vinho”. Ela confia plenamente naquilo que o Filho irá fazer. Ele não deixará acabar a festa da aliança entre Deus e a humanidade, porque o Pai é fiel às suas promessas. Houve, porém, uma grande surpresa: o vinho “novo” de Jesus  não foi simplesmente o mesmo de antes, foi melhor em qualidade e quantidade. Como cristãos temos a missão de sermos homens e mulheres de esperança. Isso exige de nós muito mais do que continuarmos a fazer o que sempre fizemos, talvez vivendo uma fé tradicional só de alguns momentos da semana, de cada ano ou da vida inteira.

 

Neste domingo do Círio, resgatamos a memória dos nossos irmãos e irmãs que perdemos, mas também de tudo aquilo de que mais sentimos falta no tempo da pandemia: saúde, liberdade, amizade, coragem, aproximação, alegria. Quantas vezes, naqueles dias, nos perguntávamos sobre quando tudo aquilo ia acabar, mas também pensávamos: como será depois? O “depois da pandemia” chegou e temos a obrigação de transformar tudo o que refletimos e aprendemos em algo melhor. Cabe a nós preencher a vida nossa e dos nossos irmãos e irmãs com tudo aquilo do qual sentimos falta. O sinal milagroso do vinho melhor vai acontecer se praticarmos o que Maria disse e sempre nos repete: “Fazei o que ele vos disser”. Colocamos paz, crescerá a alegria; semeamos amor, florescerá a vida.

 

A última banana

Um jovem voluntário, num grande acampamento de refugiados na África, contou a sua experiência no momento da distribuição dos alimentos. A situação era confusa e perigosa. Quando ele percebeu que as reservas estavam para acabar, a fila ainda era comprida e alguns davam sinais de desespero. No final da fila, havia uma menina de mais ou menos nove anos. Quando chegou a vez dela, restava somente uma banana e a entregaram para ela. A menina tirou a casca da banana, deu metade para o irmãozinho, a outra metade para a irmãzinha e lambeu o interno da casca da banana. O jovem confessou que, naquele instante, nasceu nele a fé em Deus.

 

No evangelho de Lucas, deste 26º Domingo do Tempo Comum, encontramos mais uma parábola de Jesus. Os protagonistas são dois homens. Um deles era muito rico e gastava com roupas finas e banquetes. O outro, ao contrário, era muito pobre, não tinha nem o que comer e esperava, sentado no chão, que lhe dessem alguma sobra da fartura daquelas festas. Mas isso não acontecia. Todos dois morreram. O pobre, chamado Lázaro, foi acolhido junto a Abraão. O rico foi para a região dos mortos, no meio de tormentos, sofrendo a sede. Viu Lázaro e pediu que o pai Abrão o mandasse até ele, ao menos, com uma gota de água. Abraão respondeu que era impossível, porque um grande que, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (Lc 16,33).

No texto evangélico, a parábola está muito mais cheia de detalhes. O primeiro que chama a atenção é que Lucas faz questão de dizer que Jesus contou essa parábola “aos fariseus”. Sabemos que esse grupo religioso era formado por pessoas que seguiam, rigorosamente, as normas da Lei e, com isso, consideravam-se justos e com o direito às recompensas de Deus. Muitas vezes, acabavam desprezando aqueles que, por alguma razão, não podiam satisfazer a todos os preceitos. Com certeza, o pobre Lázaro, cheio de feridas e familiarizado com os cachorros, não cumpria tudo o que as normas pediam. No entanto esse pobre foi levado para o seio de Abraão. O rico ficou do outro lado do “abismo” que, é fácil entender, ele mesmo tinha preparado já neste mundo com a sua indiferença com Lázaro ou, também, pelo receio de se contaminar com as impurezas das feridas do pobre. Mais uma vez, Jesus surpreendeu os seus ouvintes descrevendo uma situação impensável para os fariseus legalistas.

 

Nós, cristãos de hoje, já não temos toda essa preocupação, contudo não é dito que saibamos dar mais atenção aos pobres que encontramos nos caminhos da vida. Quantos “abismos” continuam a nos separar! Alguns são muralhas verdadeiras de tijolos, ouriços de ferro e arames farpados. Outros são feitos de medos de se misturar, preconceitos desfavoráveis, orgulho de quem se sente superior, porque tem mais condição ou ocupa alguma posição de destaque na sociedade. Com essa parábola, Jesus quer nos lembrar que, se somos nós mesmos que cavamos os abismos, podemos também preenchê-los para que, enfim, possamos todos nos encontrarmos e nos abraçarmos já neste mundo. De maneira especial, gostaria de convidar os meus irmãos cristãos católicos a refletir sobre possíveis obstáculos que nós mesmos criamos em nossas comunidades. Já falamos e falaremos mais de “sinodalidade”. Para “caminhar juntos”, precisamos nos educar à fraternidade e ao respeito para todos e todas. As nossas diversidades não devem ser motivo de divisões ou afastamentos. Devem servir para nos enriquecermos uns aos outros com tantos dons e carismas que o Espírito Santo continua a distribuir com fartura. Mas nem todos, individualmente, como famílias ou como grupos, gostam de escutar e conhecer melhor os demais. Uma pena! Perdemos a possibilidade de dar um exemplo de comunhão a uma sociedade tão cheia de separações. Talvez precisemos aprender a partilhar “a última banana” para chegarmos a viver mais juntos a mesma fé, a mesma esperança e, sobretudo, a mesma caridade. Porque tudo começa pelo amor, a partilha e a solidariedade.

As flores

Certo dia, um carro luxuoso parou na frente do cemitério e o motorista desceu para procurar o vigia. Este chegou e viu, sentada no banco de trás, uma senhora idosa visivelmente doente e triste. Ela lhe disse:

– Eu sou aquela que toda semana envio dinheiro para as flores no túmulo de meu filho. Os médicos me disseram que tenho pouco tempo de vida e, por isso, vim para uma última visita e para agradecer ao senhor. O vigia ficou perturbado e respondeu:

– Me desculpe, senhora, mas nunca colocamos flores no túmulo do seu filho.

– Como é possível isso? – interveio a senhora.

– Veja – continuou o homem – as flores duram pouco e aqui não tem ninguém que lhe dê valor. Eu faço parte de um grupo que visita os doentes nos hospitais. Ali, sim, precisa de flores! Os doentes apreciam o perfume e ficam alegres.

A senhora fez sinal ao motorista para ir embora. Meses depois, aquele carro novamente chegou e era a própria senhora que o dirigia.

– Venho do hospital – disse sorrindo – Agora sou eu que levo as flores para os doentes. O senhor tinha razão. Eles se sentem felizes e me ajudam a melhorar. Os médicos não sabem explicar como é que eu fiquei boa. Mas eu o sei. Encontrei uma razão de vida. Levo as flores na lembrança do meu filho e isso me dá força.

No evangelho de Lucas deste 25º Domingo do Tempo Comum, escutamos Jesus falar, novamente, da administração de bens materiais. Dessa vez, é-nos apresentado o caso de um administrador denunciado como desonesto. Ele tem certeza de que será despedido do emprego e, para ganhar a amizade dos devedores do patrão, por conta própria, falsifica a contabilidade reduzindo, sensivelmente, a dívida de cada um. Era para se esperar uma insatisfação ou uma cobrança, ainda maior, por parte daquele rico senhor, que teve tanto prejuízo por culpa daquele administrador. No entanto, surpreendentemente, ele elogiou a expertise do administrador, porque afinal ele usou o dinheiro para conseguir os favores de outras pessoas. Terminada a parábola, Jesus conclui: “Eu vos digo: Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas” (Lc 16,9). O ensinamento dele, portanto, não está na imitação da esperteza dos filhos deste mundo, que usam dos bens materiais para a própria vantagem, mas na capacidade de usar desses bens para promover amizade, vida, justiça e paz. Aí está o grande desafio: é possível que a humanidade consiga, um dia, administrar as riquezas deste mundo sem gerar tantas desigualdades e exclusões, mordomias de um lado e exploração do outro? As palavras de Jesus seriam uma receita possível de ser aplicada à economia mundial?

Evidentemente, eu não tenho resposta e não sei se alguns dos mais ilustres economistas do mundo a teriam. A situação do planeta e do seu funcionamento com bilhões de seres humanos, que devem ao menos sobreviver e se alimentar todo dia, é bem difícil, complexa e, podemos dizer, complicada por causa dos múltiplos interesses em jogo. Contudo estou convencido que as palavras de Jesus apontam o rumo certo de uma economia planetária mais humana e fraterna. As riquezas deveriam tornar a vida de todos mais alegre e feliz. Não deveriam ser motivo de brigas, guerra, morte e destruição. A história ensina que todas as vezes que prevaleceram os interesses particulares, só de um continente, de um país ou de um povo, outras populações, inteiras, ficaram gravemente prejudicadas. Os cientistas de muitas disciplinas dizem que o planeta Terra não aguenta mais tanto consumo e desperdício de bens e energia por parte das populações dos países mais ricos, quando tantos outros seres humanos passam apertos vergonhosos. No evangelho, Jesus chama os seus discípulos de “filhos da luz”. Talvez precisemos acreditar mais em pequenas experiências alternativas de fraternidade e partilha, que poderão servir de modelo para outras e mais outras. O Reino novo sempre começa pequeno. Muitos anos se passaram desde quando os jovens cantavam que era preciso colocar flores nos canhões. Hoje, os mísseis são cada vez mais sofisticados e destrutivos. Então, desistimos de oferecer flores? Nunca é tarde. Como aquela senhora que reencontrou vida e saúde.