Dom Pedro Conti

O filho mais querido

 

Perguntaram um dia a um sábio persa:
– Tu tens muitos filhos, a qual preferes? O homem respondeu:

– O filho que prefiro é o menor até que cresça; o que está longe até voltar; o que está doente até ficar curado; o que está preso até ser libertado; o que está sofrendo até ser consolado…
Neste 26º Domingo do Tempo Comum, continuamos com a leitura do evangelho de Mateus e também com as perguntas e respostas “polêmicas” dos sacerdotes e anciãos de um lado e de Jesus do outro. Desta vez, porém, a iniciativa é do próprio Mestre. Através de uma simples parábola ele nos deixa, como sempre, um ensinamento que vai além das circunstâncias e, assim, desafia a todos nós. A parábola fala de dois irmãos, filhos do mesmo pai. Ele manda ambos ir trabalhar na vinha da família. Nada de mais óbvio. Na medida do possível, os filhos devem colaborar com a economia da casa da qual fazem parte. No entanto, o pai recebe diferentes respostas verbais, mas sobretudo respostas diferentes no agir dos filhos.

O primeiro disse claramente que não queria ir trabalhar. Parece preguiçoso e desinteressado. Depois, porém, “mudou de opinião” (Mt 21,29) e foi trabalhar na vinha. O segundo filho recebeu a mesma ordem, logo respondeu que iria, sim, para a vinha. Contudo ele não foi. Jesus perguntou às autoridades presentes e, indiretamente, também a nós: “Qual dos dois fez a vontade do pai?”. Não tinha outra resposta a não ser: “O primeiro”, ou seja, aquele filho que, apesar de ter dito que não iria trabalhar, afinal, foi para a vinha. O outro, aparentemente obediente, na realidade desobedeceu ao pai. Logo em seguida, Jesus repreende os sumos sacerdotes e os anciãos, porque não acreditaram na pregação de João Batista. Ele faz uma afirmação, no mínimo, ofensiva e escandalosa para aquelas pessoas que, por causa da rigorosa obediência à Lei, consideravam-se justas e no direito de julgar os outros. Jesus diz que “Os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21,31) porque eles acreditaram no batismo de penitência que João pregava. Ou seja: os considerados pecadores e perdidos se entenderam como tais e acolheram a proposta de conversão. Ao contrário, os que se consideravam corretos – as pessoas de bem – achavam que não precisavam mudar em nada a própria vida. Indiretamente, Jesus fala dele mesmo, porque com esta atitude de cegueira e surdez à mensagem de João, aquelas pessoas “perfeitas”, em prática, fecharam-se à chegada daquele que, depois, teria batizado “em Espírito Santo e fogo” (Mt 3,11).

A mensagem da parábola é clara. Deus não precisa de filhos obedientes só com as palavras, exteriormente, nas aparências. Ele quer filhos que pratiquem os ensinamentos daquele Filho único que nos enviou: Jesus. Não importa se antes, por alguma razão, estavam bem longe e andavam por caminhos errados. Nunca é tarde para mudar de vida, de fato e seriamente. Autossuficiência, soberba e orgulho acabam nos afastando da mensagem do evangelho. Assim Jesus se torna inútil. Humildade, consciência dos próprios pecados e reconhecimento da bondade de Deus, fazem-nos admirar a sua misericórdia e experimentar a alegria do perdão. Jesus se torna nosso Amigo e Mestre.
Qual seria, então, o filho que o Pai celestial prefere? O perfeito e o orgulhoso de si mesmo? Provavelmente ele prefere o afastado com saudade da casa paterna, a “ovelha perdida” que se deixa carregar nos ombros do Bom Pastor, o errado que desce da árvore para abrir a sua casa, acolher Jesus e dar a metade dos seus bens aos pobres. Ou seja, o filho e a filha que confiam mais na misericórdia do Pai que nos próprios merecimentos e, sobretudo, não julgam os outros. Os filhos e as filhas que se alegram pelo bem que qualquer um pode fazer, sem fazer propaganda. Toda mudança de vida é sempre e antes de tudo um dom gratuito de Deus e não o resultado dos nossos presunçosos esforços. Todo lugar é a “vinha do Senhor”, toda situação precisa de trabalhadores do Reino que pratiquem o mandamento do amor.

 

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Eu lhe entrego a sua liberdade 

 

Hussein estava à mesa do jantar quando um dos seus escravos, acidentalmente, entornou uma vasilha quente sobre os joelhos de seu senhor. O escravo, visivelmente aterrorizado, recitou um verso do Alcorão:

 

– O céu pertence àquele que domina sua raiva.

 

– Não estou com raiva – disse Hussein. O escravo prosseguiu:

 

– O céu pertence àquele que perdoa ao seu irmão.

 

– Eu lhe perdoo – disse Hussein. O escravo concluiu a estrofe:

 

– Porque Alá ama a quem é benevolente! Hussein imediatamente respondeu:

 

– Eu lhe entrego a sua liberdade! Você não é mais um escravo. E lhe dou quatrocentas moedas de prata.

 

No evangelho de Mateus do 24º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do “Sermão da Comunidade”. Depois do ensinamento sobre a “correção fraterna”, Jesus responde de maneira nova e original a uma das questões mais debatidas naquele tempo e, talvez, de todos os tempos: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?” (Mt18,21). Perdoar a quem nos ofendeu ou prejudicou não é patrimônio somente dos cristãos. Toda pessoa religiosa ou simplesmente humana e compreensiva sabe que o perdão tem a força de mudar o relacionamento raivoso entre as pessoas, corrige mal-entendidos, pacífica os corações e afasta pensamentos de vingança e de ódio. O perdão é um “santo remédio” para muitas situações que parecem sem solução e se arrastam no tempo envenenando a vida de tantas pessoas. “Até sete vezes?” Esse seria o número de vezes considerado mais do que justo. Perdoar além disso podia parecer tolerância com o pecado e, portanto, o irmão nunca seria corrigido. A sombra ameaçadora do castigo pairava sempre atrás da aparente magnanimidade do perdão. O chamado “bom senso”, no fundo, ainda hoje, não acredita tanto assim no remédio da misericórdia.

 

A resposta de Jesus surpreende, não tanto pelo número em si, evidentemente simbólico (setenta vezes sete) – para dizer sempre – mas pela parábola que o Mestre contou e que explica, maravilhosamente, a verdadeira motivação do perdão ao irmão. O caso dos dois devedores não se encaixa em nenhuma norma. Nunca funcionará como uma lei a ser obedecida. Somente se entende à luz da gratidão que se esperava do grande devedor após o extraordinário “patrão” lhe ter perdoado “uma enorme fortuna”. Na prática, o “patrão” deu exemplo de uma “justiça” diferente, capaz de cobrar, mas também de perdoar se o irmão endividado demonstrar a absoluta impossibilidade de saldar a dívida. Aquele “patrão” tão generoso iniciou uma corrente de misericórdia que podia, ou devia, continuar. Em Israel, quem não conseguia pagar uma dívida não era propriamente “vendido” no sentido de se tornar propriedade do credor para sempre. O inadimplente era obrigado a trabalhar para o credor o tanto que fosse necessário até zerar a dívida. Era possível, também, que algum parente ou amigo pagasse aquela dívida, resgatando assim a liberdade e a dignidade do endividado. Com isso, entendemos que perdoar uma dívida não era simplesmente dispensar um dinheiro, era, sobretudo, valorizar a pessoa porque, liberta do peso da dívida, voltava a gozar livremente da própria vida. O patrão da parábola fica indignado, porque o primeiro devedor não soube usar da mesma compreensão e bondade com o seu próprio irmão que, afinal, devia-lhe infinitamente menos. O Pai de quem Jesus fala no evangelho não é um bonachão que finge de nada e deixa passar tudo, só porque perdoa. Ele é, digamos, um “cobrador”, não para castigar os desobedientes, mas para exigir que façamos o mesmo que ele. Deixando de perdoar “a quem nos ofendeu” acabamos humilhando e desprezando o irmão. Será que nós somos tão superiores assim? Nunca erramos? Com o perdão, talvez, ganhamos um amigo, alguém agradecido, que, esperamos, saberá por sua vez perdoar. Escrevi “talvez”, porque o caminho do perdão é longo e nem sempre surte o efeito desejado. A própria parábola dá a entender isso. No entanto, entre as várias opções – vingança, castigo, cobrança, perdão – cabe a cada um escolher o que dará paz ao seu coração e… “liberdade” a quem errou, como fez Hussein.

 

 

Não posso receber a sua oferta

Um rico senhor ofereceu mil rúpias a um pobre religioso indiano. Ele perguntou ao homem rico:

– Você está me dando mil rúpias. Quanto é que você tem para si mesmo?

– Muitos, muitos milhares de rúpias – foi a resposta.

– Você ainda deseja mais?

– Sim, certamente – respondeu o rico.

– Então, eu não posso receber a sua oferta – disse o religioso – porque um homem rico não deve receber de alguém mais pobre do que ele!

– Não estou entendendo – disse o homem rico. Então o pobre explicou:

– Muito embora eu não tenha nada, nada desejo. Você tem fartura e mesmo assim deseja ainda mais. Seguramente, o homem que ainda deseja é mais pobre do que o homem que está satisfeito com aquilo que tem!

Com o evangelho deste 23º Domingo do Tempo Comum, iniciamos a leitura de alguns trechos do capítulo 18 do evangelho de Mateus, conhecido como “o sermão da comunidade”. É evidente que o autor desse evangelho foi lembrar o ensinamento de Jesus sobre a “correção fraterna” justamente porque preocupado com a situação da própria comunidade.

Poderíamos nos perguntar: porque interessar-se pelos erros dos outros? Por que buscar sanar as divisões entre os irmãos? A resposta está nos últimos versículos do trecho que será proclamado. Lá está a promessa de Jesus: ele disse que bastariam duas ou três pessoas reunidas por sua causa para ele mesmo estar presente junto a elas.

Para juntar multidões, pequenas ou grandes, serve somente uma motivação que as atraia, que suscite entusiasmo, a vontade de torcer por alguma causa. Pode ser um show de algum artista famoso, um jogo decisivo de um campeonato, o comício de um candidato que promete mudar mundos e fundos. Depois, porém, ao apagar das luzes, todos voltam para as suas casas e ninguém mais, ou bem poucos, interessam-se pela vida particular dos demais. De fato, não estavam reunidos para se ajudarem em alguma coisa e menos ainda para “caminhar juntos” rumo a alguma meta comum. O espetáculo acabou. As vaias que gritaram, os cantos que acompanharam e as palmas que bateram juntos não criaram nenhum laço duradouro entre eles. Bem diferente devia ser a comunidade reunida em nome do Senhor Jesus. Como os de fora podiam saber se o que acontecia lá, dentro da comunidade, era algo novo e capaz de transformar a vida das pessoas, se a fé, a esperança e o amor entre eles os uniam cada vez mais? A correção fraterna não tinha como objetivo envergonhar alguém ou chegar a “desligar” quem estava errado. A finalidade era – e sempre deve ser – a “comunhão fraterna”. Sem essa “comunhão” nem Jesus mais está presente, nem o Pai e nem o Espírito Santo. Somente a comunidade unida pode ser um sinal da perfeita comunhão da Santíssima Trindade. Divisões, brigas, invejas e indiferenças tornam inúteis palavras bonitas, cerimônias sofisticadas, enfeites caprichados. Não é por acaso que chamamos a santa Eucaristia, que repartimos nas missas, de “comunhão”. Jesus não se doa a cada um de nós sozinho, isolado ou, talvez, separado. Ele quis ser dom para todos. Rezou ao Pai para que os seus amigos fossem “um”, a fim de que o mundo cresse que ele era o enviado (Jo 17,21). “A comunidade dos fiéis era um só coração e uma só alma” lemos nos Atos dos Apóstolos 4,32.

A “correção fraterna”, feita por amor, continua sendo um grande desafio para todos nós. O nosso orgulho nos impede de aceitar as observações caridosas dos irmãos e irmãs. Se for o responsável a repreender é acusado de autoritarismo. Se for alguém que não tem cargo algum a nos corrigir logo pensamos que não sabe de nada e exigimos respeito. Quantos acabam se “desligando” por conta própria da comunidade por causa de uma palavra dita por alguém numa hora inoportuna. Ou por causa de uma palavra não dita, quando era aguardada para um conforto ou simplesmente por amizade. Somos todos demais sensíveis nesse sentido. Bem fez o religioso indiano em não aceitar a oferta do rico. Ensinou-lhe, a partir da sua pobreza, a não desejar cada vez mais e mais. Apontou-lhe o caminho da humildade e, assim, se acreditamos, também da felicidade.

 

 

“Morrerei, mas não te deixarei entrar na Igreja”

 

Essas são as últimas palavras de Akash Bashir, um jovem paquistanês de 20 anos, mártir de Cristo, a caminho da beatificação. Por causa dos inúmeros atentados contra as igrejas na cidade de Lahore, no Paquistão, alguns voluntários deviam formar uma barreira a certa distância e controlar os fiéis que chegavam aos poucos. Akash, porém, naquele 15 de março de 2015, quis ficar bem na porta do templo onde já estavam de 1.200 a 1.500 pessoas. Percebeu que um homem com jeito ameaçador se aproximava. Era um kamikaze com um cinto de explosivos ao redor do corpo. Poucas palavras nervosas para tentar fazê-lo desistir. Inutilmente. Então Akash abraça o homem. Um abraço para parar a loucura do ódio, mas que lhe pode custar a vida. O terrorista se explode e Akash morre com ele. No atentado morreram 17 pessoas e 70 ficaram feridas. Sem o sacrifício de Akash, muito maior teria sido o número das vítimas. Um dia, quando a mãe dele lhe manifestou o seu medo de que algo ruim lhe pudesse acontecer, Akash respondeu: “Se Deus me desse essa oportunidade talvez eu salvaria muitas pessoas oferecendo a minha vida. A senhora não seria feliz?”.

O evangelho de Mateus, deste 22º Domingo do Tempo Comum, é a continuidade do trecho que encontramos domingo passado. Após de ter ouvido as palavras de Pedro “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, Jesus começa a falar abertamente da sua ida para Jerusalém onde terá que sofrer muito, encontrará a morte e, no terceiro dia, ressuscitará. Palavras ainda enigmáticas para os discípulos, mas suficientes para desencadear a reação imediata de Pedro. O apóstolo não consegue imaginar um “messias” perdedor, rejeitado pelos sacerdotes e os mestres da Lei. É verdade que o profeta Isaías já tinha falado do “Servo sofredor”, mas a memória das promessas de Deus se confundia com os anseios de grandeza, de poder e de vitória daquele povo que experimentava, mais uma vez, a opressão de algum império poderoso. A resposta de Jesus a Pedro é contundente. Ele ordena que se afaste. A “pedra” da Igreja pode ser uma pedra de tropeço no caminho que o aguarda. A motivação é clara: “Tu não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens”. Que “coisas” são essas? Para nós humanos, são aquelas que escolhemos para preencher e dar um sentido à nossa vida. Algumas podem ser, de fato, bem materiais, como as riquezas, o sucesso e o prestígio. Outras só alimentam o nosso orgulho, quando nos achamos melhores que os outros, os julgamos e até desprezamos. Sem falar da inveja, do ciúme, da vingança que ocupam tanto espaço em nosso coração. No entanto, nem tudo é negativo.

Temos ambições boas que nos fazem crescer em bondade, temos desejos de ajudar, de sermos mais compassivos e solidários, lutamos pelos direitos, pela paz, pela justiça, deixamo-nos tocar pelo sofrimento dos pequenos e desamparados. Sabemos também ser bons, mas tudo tem limite, parece que temos medo de ser generosos demais. Assim, por querer salvar ao menos um pouco da nossa vida, corremos o risco de segurar mais do que o necessário, de querer o bem dos outros, mas sempre muito depois do nosso. Afinal, pouco tempo sobra para nos doarmos de verdade, pouco do nosso coração fica livre e feliz para amar sem reservas. Jesus não nos pede para sermos heróis, mas para aprendermos a amar o nosso próximo “como” a nós mesmos (Mt 19,19). Não mais, mas também, nem menos: “como”. E as “coisas” de Deus, quais são? É uma só, bem sabemos, é o amor, porque “Deus é amor” (1Jo 4,8). Ele não fica mais pobre porque ama, não fica triste porque se doa, não se arrepende porque perdoa, nunca fica indiferente porque é rico em misericórdia e compaixão. A “cruz” de Jesus sempre será um mistério de amor grande demais para nós fracos e interesseiros, no entanto, se quisermos seguir a Jesus precisamos aprender aos poucos as “coisas” de Deus. Nunca saberemos quantas vezes Akash tinha imaginado a possibilidade de morrer para salvar a vida de outros irmãos e irmãs. Na hora certa, porém, estava preparado. Por amor, perdeu ou ganhou a vida?

 

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A criança pulou de alegria

 

Santa Teresa de Calcutá, mais conhecida como “Madre Teresa”, queria que todas as irmãs fossem alegres e sorridentes. Ela dizia: “Lembrem-se de que, numa comunidade, a religiosa alegre é como o sol. A alegria é o sinal da pessoa generosa. O que seria da nossa vida sem a alegria e a jovialidade? Seria uma escravidão! A alegria é contagiosa e é importante que os nossos pobres e os nossos doentes aprendam a sorrir. Procurem, por isso, sorrir sempre, em qualquer lugar estejam”.

 

Neste domingo de agosto, celebramos a Solenidade da Assunção de Nossa Senhora. Muitos chamam isso de “glória de Maria”. “Glória”, essa, mais do que merecida. Em Maria, contemplamos a obra do Divino Espírito Santo, mas também a possibilidade oferecida às criaturas humanas de corresponder, prontamente e generosamente, ao chamado divino. Cantamos o hino “Maria do sim” para lembrar aquela primeira e decisiva resposta de Nossa Senhora. Ela, porém, sempre foi confiante. Ela disse muitos outros “sins” a Deus Pai, repetidos ao longo de toda a sua vida através da sua capacidade de guardar no coração os acontecimentos, até chegar aos pés da cruz onde morria o seu filho Jesus. A liturgia deste domingo está cheia de alegria e exultação, também se não esconde a luta constante entre o bem e o mal, representados na página do Apocalipse pela mulher e o seu filho de um lado e o dragão, “cor de fogo” (Ap 12,3) do outro. Contudo a vitória final será da Vida e não da morte, esta é a nossa fé confirmada com a ressurreição do Senhor Jesus.

 

Neste domingo de agosto, lembramos também os nossos irmãos e irmãs da Vida Consagrada, neste mês vocacional, de maneira especial neste ano de reflexão sobre todas as vocações. Papa Francisco não perde a oportunidade de lembrar aos religiosos e as religiosas que manifestem publicamente a alegria da própria consagração. Em 2014, o Ano da Vida Consagrada, o documento que devia iluminar aquele tempo tinha como título a exortação: “Alegrai-vos”. Fique bem claro que não estou falando de uma euforia qualquer, mas daquela alegria que nasce da certeza de ter respondido a um chamado e de estar gastando a própria vida por algo grande, por uma causa que vale muito: o Reino de Deus, que é, com certeza oferecido a todos, mas dá preferência aos pobres, aos pequenos, aos excluídos. É justamente a essa humanidade sofrida que muitos consagrados e consagradas dedicam a própria vida, sem esquecer, claro, que também a obra de evangelização é um verdadeiro serviço de caridade. Muito se fala dos votos de pobreza, castidade e obediência dos religiosos. com isso, a Vida Consagrada corre o perigo de ser compreendida por muitas pessoas como uma renúncia aos próprios bens, à família, aos projetos individuais. Parece que, ao se tornar religioso ou religiosa, a pessoa só tenha a perder. Isso acontece, porque pouco se fala daquilo que os consagrados ganham: a liberdade de se colocar a serviço de quem precisa, de pensar nos outros e amar ao próximo – desconhecido ou nunca antes encontrado – antes dos próprios interesses. Evidentemente, quem acha impossível ser feliz neste mundo doando a própria vida a serviço das grandes obras da evangelização e da caridade deve considerar o que acabo de dizer de pouco valor. Os consagrados e as consagradas não são nem super-homens e nem supermulheres, são pessoas como todos nós, que carregam as suas dúvidas e fragilidades, mas que, apesar de tudo, confiam mais na bondade e na força do Senhor que nas próprias qualidades ou merecimentos. Precisa ter olhos e coração para ver e entender o que tantos religiosos e religiosas fazem sem aparecer e sem tocar a trombeta, no silêncio da oração ou no humilde serviço de cada dia. Nossa Senhora, com certeza “perdeu” alguma coisa com o sim dela, mas o que “ganhou” foi mais, foi melhor. Foi ou não foi? Maria canta a sua alegria, canta as maravilhas que o Senhor fez nela, mas, também, lembra a grande misericórdia dele, a atenção aos famintos e humilhados, a fidelidade às suas promessas. A alegria de Maria é dom de Deus, é fruto da esperança e da fé. E a nossa alegria, de onde vem?

 

 

Longitude e latitude

Durante a aula de geografia, uma criança, em sua simplicidade, respondeu às perguntas da professora e disse: “A vantagem da longitude e da latitude é que quando estamos afogando podemos gritar em que longitude e latitude estamos e, assim, poderão nos encontrar”.

 

O evangelho de Mateus, deste 19º Domingo do Tempo Comum, apresenta-nos uma situação inusitada e surpreendente, cheia de simbolismos e de mensagens. Com a costumeira arte narrativa dos evangelhos, as coisas vão acontecendo. Jesus decide se despedir das multidões depois de ter satisfeito a fome delas. Pede aos apóstolos que o precedam, de barco, para a outra margem do lago de Tiberíades. Ele fica sozinho para orar. Aquela que devia ser uma simples travessia ameaça se tornar uma tragédia. Uma súbita ventania contrária agita as ondas e o barco dos discípulos não alcança a terra firme. Era mesmo para ficar com medo. Os experientes pescadores, porém, não gritam por causa das ondas. Ficam apavorados, porque na escuridão da noite enxergam uma figura humana caminhando ao encontro deles por cima das águas. Estava acontecendo algo evidentemente impossível para eles. O evangelista nos diz que o “fantasma” visto por eles era Jesus. O Mestre se aproxima e pronuncia palavras confortadoras: “Coragem! Sou eu. Não tenham medo!” (Mt 14,27). Mas isso não basta para eles acreditarem. Assim, Pedro desafia o desconhecido e pede para poder também caminhar sobre a água. Jesus aceita, mas o apóstolo ainda não venceu a insegurança e o medo e começa a afundar. Contudo Pedro consegue dizer palavras que são um verdadeiro grito de fé: “Senhor, salva-me!” (v.30). Em resposta, Jesus o repreende porque foi fraco na fé e duvidou. No final os discípulos reconhecem quem é Jesus: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (v.33).

 

Desde quando Jesus chamou os primeiros seguidores e disse que faria deles “pescadores de homens”, foi fácil comparar aquela pequena comunidade – que hoje chamamos de Igreja – com um barco enfrentando as ondas, mansas ou agitadas, na travessia dos tempos. Muitas obras artísticas buscaram representar isso. Em geral, na proa do barco está Pedro e, às vezes, os seus sucessores. No entanto, fica a pergunta à qual o evangelho deste domingo nos ajuda a responder: Jesus onde está? Não é ele o único, verdadeiro e “bom” pastor que conduz a sua Igreja? Sem dúvida alguma é assim! Contudo, depois da Ressurreição, o próprio Jesus entregou o dom do Espírito Santo e enviou os apóstolos para continuar a missão que o Pai lhe tinha confiado. Desde então a Igreja de Jesus Cristo, animada pelo Espírito Santo, singra os mares da história enfrentando as inevitáveis turbulências da fragilidade humana. Devemos ser realistas e não ter medo. A comunidade Igreja sempre será formada por pessoas – hoje somos nós – que, ao mesmo tempo, são santas e pecadoras. Ambas essas realidades são visíveis, não só porque experimentamos isso todos os dias em nossas vidas, mas também como conjunto de irmãos e irmãs. Somos chamados à santidade, mas ainda temos que fazer as contas com as nossas imperfeições humanas. A “outra margem” não se alcança tão facilmente. Mais uma vez, o segredo para continuar a travessia é ter fé. Nunca ter receio de gritar a Jesus nas horas difíceis e nas horas de alegria também: “Senhor, salva-me”. Tem até um canto que diz: “Segura na mão de Deus e vai…”. O que acontece é que muitas vezes esquecemos disso. Preferimos confiar mais nas nossas próprias forças ou recorrer a outros “salvadores” que se apresentam como capazes de solucionar todos os nossos problemas e, assim, confundem a nossa cabeça e esfriam a nossa fé. Segurar na mão do Senhor não significa que sempre vai acontecer o que nós pensamos e que ele vai fazer tudo o que nós pedimos. Não, não foi isso que Jesus prometeu e não é esta a Vida Nova daquele Reino que começa neste mundo, mas não acaba por aqui. Ter fé significa acreditar que nunca estamos sozinhos, ele está sempre conosco. Jesus não precisa de latitude e longitude para nos encontrar e salvar. Basta gritar com fé: “Senhor, salva-me!”

 

 

Tinham direito ao almoço 

 

No início do século passado, uma pobre família do Sul da Europa decidiu emigrar para os Estados Unidos. As viagens eram de navio e duravam muitos dias. Levaram consigo bastante pão e queijo; era o que tinham para se alimentarem durante a viagem. O dinheiro não dava para comer no restaurante do navio. Com o passar dos dias e das semanas, porém, o pão ficou duro e o queijo mofou. A certa altura, o filho do casal começou a chorar porque não aguentava mais aquela comida velha. Os pais, então, juntaram o pouco dinheiro que tinham e decidiram pagar um almoço para o filho. Este foi, comeu e voltou chorando mais ainda, mas, desta vez, de raiva e amargura. Os pais, preocupados, perguntaram por que, depois de ter feito tudo o que podiam, não estava satisfeito e chorava tanto. Entre os soluços, o filho respondeu: “O almoço no restaurante estava incluído no preço da passagem e nós comemos pão e queijo todos estes dias!”.

 

No evangelho de Mateus, deste 17º Domingo do Tempo Comum, encontramos mais três parábolas sobre o Reino dos Céus. Duas delas se assemelham, apresentam a busca por um tesouro escondido e por uma pérola de grande valor. A terceira parábola compara o Reino a uma rede lançada ao mar que apanha peixes bons e peixes que não prestam. Essa última pode ser entendida à luz da parábola do joio e do trigo, que encontramos domingo passado. O final do trecho é curioso. À pergunta de Jesus se os discípulos tinham compreendido o que ele acabava de ensinar, eles disseram que sim. A resposta permitiu ao Mestre fazer mais uma comparação entre os discípulos e um pai de família que “tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52). É a conclusão do discurso em parábolas e serve para nos lembrar da dinamicidade das mesmas. As parábolas não são simples casos para contar, elas nos envolvem e sempre suscitam mais perguntas que respostas. Nesse sentido, as duas parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa são exemplares. Em ambos os casos, estamos à frente de pessoas que sabem dar o valor merecido àquilo que encontraram. Para o que descobre o tesouro escondido no campo pode ser simplesmente um caso de muita sorte. Contudo ele guarda o segredo antes de comprar aquele campo, porque sabe quanto vale o que encontrou. No caso da outra parábola, o comprador de pérolas está atrás mesmo de uma de grande valor. Ou seja: nenhum dos dois pensa duas vezes ou despreza e descarta o achado. Ambos vendem logo “todos os seus bens” para adquirir o campo e a pérola preciosa. A mensagem é evidente: o tesouro e a pérola são o próprio Reino dos Céus. Pelo jeito, os dois consideraram tão valioso o que encontraram que eles decidiram se desfazer de qualquer outro bem. Por que uma decisão tão radical? Não seria, talvez, uma loucura ou uma imprudência? Obviamente não é assim para o Senhor como ele ensinou no Discurso do Monte: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33).

 

A lição vale para todos nós. Muitas vezes falamos bonito de Deus, da sua bondade e misericórdia, mas resistimos a arriscar algo da nossa vida por causa do Reino dos Céus. Admiramos e falamos bem daqueles e daquelas que fazem escolhas mais radicais, que empregam os seus talentos a serviço dos pobres, que gastam a sua vida por causa do Evangelho. No entanto, parece que a maioria dos cristãos continua desconfiando do valor inestimável do Reino e prefira preciosidades mais mundanas e passageiras, mas que se possam contar e guardar no cofre. Sem dúvida, a disposição de fazer escolhas mais corajosas é um dom de Deus que podemos pedir, mas as parábolas, desde domingo, convidam a todos nós a superar o comodismo, o medo de ser julgados esquisitos e fanáticos ou, pior, de sermos enganados pelo próprio Senhor. Enfim, continuar comendo pão e queijo, quando os passageiros tinham direito ao almoço, foi burrice. Por que não se informaram antes? O Reino dos Céus está próximo (Mt 3,2), é oferecido a todos, basta reconhecer o seu valor e buscá-lo de verdade.

 

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As sementes não selecionadas

 

Um irmão falou para o antigo Pai Poimen:

 

– Quando dou um pouco de pão ou algo diferente ao meu irmão, os demônios desvalorizam a minha ação: teria sido dado para agradar o ser humano. O ancião disse:

 

– Mesmo que isso ocorra pela vontade de agradar, não deixemos de dar o necessário ao irmão. E lhes contou a seguinte parábola:

 

– Dois agricultores moravam na mesma cidade. Um deles só semeou poucas sementes, e essas não estavam selecionadas; já o outro desistiu de semear e não colheu absolutamente nada. Quando, pois, surgir o flagelo da fome, quem dos dois terá o suficiente para viver? O irmão respondeu:

 

– Aquele que semeou pouco e sementes não selecionadas. Então lhes disse o ancião:

 

– Deixa que semeemos pouco, mesmo que com sementes não selecionadas, para que não morramos de fome.

 

No evangelho de Mateus, deste 16º Domingo do Tempo Comum, encontramos três parábolas do “discurso” de Jesus que iniciamos a ler no domingo passado. Todas elas são importantes e seria bom poder refletirmos sobre todas. No entanto, a mais famosa, que ganha uma explicação ainda no próprio evangelho, é a do joio e do trigo. Se identificamos o bem com o trigo e o mal com o joio, o Senhor quer nos dizer, em primeiro lugar, que eles estão juntos nos acontecimentos da história pessoal e da humanidade inteira. Ou seja, devemos levar em conta a realidade do mal que também cresce, dentro e fora de nós, muitas vezes sem ser logo percebido como algo de errado. Isso significa que, em certas situações e em certos tempos, o bem e o mal podem ser confundidos. De fato, as espigas do joio são bastante semelhantes às espigas do trigo. Essa é a segunda consideração que devemos fazer. Porém, à medida que as espigas se tornam maiores, é mais fácil distinguir o joio do trigo. Jesus disse isso também de outra forma, quando ensinou que a árvore boa se reconhece pelos frutos bons e o contrário para a árvore má (Mt 7,15-20). Nesta altura, não é mais possível duvidar tanto e confundir o joio com o trigo, mas o que fazer? De acordo com a parábola, a vontade dos empregados seria arrancar logo o joio para salvar o trigo. O final da parábola surpreende. A separação do joio e do trigo, do bem e do mal, não será agora, quando ainda as plantinhas estão crescendo, mas somente na hora da colheita. Naquele momento, sim, haverá o julgamento e a separação definitiva. A motivação do dono da roça para não deixar cortar logo e de vez o joio deve chamar a nossa atenção: cortando às pressas o joio, pode ser que os ceifadores acabem cortando também o trigo. Essa última consideração nos lembra que o julgamento final entre o bem e o mal será tarefa do “dono” da messe, mas, sobretudo, nos ensina a paciência, ou, talvez muito mais, a própria misericórdia de Deus que, até o fim, espera para não decidir só pelas aparências. Talvez o que parecia joio na realidade era trigo ou vice-versa. Teria sido cortado e jogado fora antes do tempo e punido injustamente.

 

A mensagem desta parábola é sempre extraordinária. É uma lição para os intolerantes, aqueles cristãos que apontam sem piedade os pecados dos outros a partir da própria suposta perfeição. Se déssemos ouvido a eles, na Igreja só teríamos os puros e os “santos” porque os pecadores seriam expulsos ou, de alguma forma, deixados às margens. A parábola, porém, é uma lição também para aqueles e aquelas que querem desistir da luta do bem contra o mal, por desânimo, por não ver logo os frutos do bem, por ter que fazer sempre as contas com as fraquezas humanas próprias e dos demais. A parábola não é um incentivo para fechar os olhos ou fingir que está tudo bem, quando não está. É um grande impulso a continuar a fazer o bem sempre, por pequeno, mal feito, limitado que seja. Se for bem, mesmo, no final aparecerá. Gastamos muitas energias para apontar e querer corrigir os defeitos dos outros quando, ao contrário, deveríamos aprimorar mais a nossa fraternidade, a nossa comunhão, praticar o bem da melhor maneira possível. Sempre abertos à surpresa da bondade dos outros que, talvez, julgávamos já condenados. Não fiquemos “selecionando” o bem, nosso e dos outros, vamos praticá-lo.

 

 

Precisa salvar a semente

 

Num velho filme, daqueles ainda em preto e branco, o padre Camilo conversa abertamente com o seu amigo, o Senhor Jesus, pendurado no grande crucifixo da Igreja paroquial. É bonito, porque entre eles tem muita familiaridade. O padre reclama da situação. A humanidade está enlouquecendo, está indo de mal a pior. Jesus responde que se, ao final, a maldade dos homens fosse mais forte que a bondade de Deus, a sua missão no mundo teria sido um grande fracasso. Padre Camilo concorda, claro, mas rebate que, apesar de tanto progresso, o ser humano se parece ainda com aquele das cavernas. Então, ele pergunta a Jesus o que pode fazer. O Crucifixo responde com um suspiro e diz: “Padre Camilo, o que tem que fazer é aquilo que os camponeses sempre fazem quando acontecem as enchentes dos rios. Eles guardam as sementes. Eles sabem que, quando as águas baixarem, poderão plantar novamente e tudo florescerá e dará os seus frutos no tempo certo”. Conclui Jesus: “Precisa salvar a semente! E a semente é a fé!”.

O evangelho de Mateus do 15º Domingo do Tempo Comum nos apresenta a primeira parte do discurso de Jesus em parábolas. Continuaremos com ele também nos próximos domingos, mas, por enquanto, precisamos entender a novidade desta forma tão particular que Jesus usou e que os evangelistas “sinóticos” conservaram. De imediato, podemos dizer que as parábolas são um jeito popular de explicar as coisas. Nesse caso, “popular” não significa banal ou superficial. Ao contrário, por não precisar de grandes conhecimentos, mas aproveitando simplesmente da experiência da vida comum das pessoas, as parábolas conseguem alcançar a todos, a começar pelos “pequeninos”, sem excluir os “sábios e entendidos” dispostos a lhes prestar atenção. Já sabemos que o assunto principal das parábolas é nada menos do que o “Reino dos Céus” do qual Jesus repete que “é semelhante a…” e apresenta um fato, uma situação, um acontecimento. Em lugar de dar alguma definição do Reino, Jesus prefere as comparações. Não é que assim o Reino se torne indefinito ou indescritível, não. Ele é apresentado de maneira dinâmica, como justamente deve ser porque é algo que já está acontecendo e sempre vai acontecer, também em situações impensadas ou imprevisíveis. O Reino “surpreende” quem se deixa envolver, pelo bem ou, às vezes, pelas conclusões desastrosas. As parábolas não respondem a perguntas específicas, mas abrem à participação dos ouvintes, convidam a buscar as respostas, abrem novos horizontes.

A primeira parábola é a que dá o tom e a direção às demais. É a do semeador. Esse agricultor não é alguém que desperdiça a semente, mas alguém que confia na força da própria semente. O resultado, portanto, não dependerá da má qualidade do que foi semeado, mas dos terrenos dispostos a acolhê-la. Quando o terreno é bom, a colheita é extraordinária, naquele tempo e ainda nos dias de hoje. O próprio evangelho explica o sentido da parábola do semeador, e a semente é identificada com a palavra do Reino que pode ser acolhida ou não. As causas da falta de frutos também são bem exemplificadas. Pouco mudou. Sempre encontramos inúmeras dificuldades e desculpas para jogar de lado ou, até manipular, a Palavra e assim não a deixar produzir os frutos abundantes que poderia oferecer. Talvez sejamos tentados a dizer que hoje ficou pior, que a surdez e a indiferença humanas ou o barulho das nossas confusões abafaram a mensagem. Seria muita falta de fé. A própria parábola ensina que a Palavra continua a ser semeada e que uma parte sempre cai em terra boa e produz fruto. O que cabe a nós é sermos o melhor terreno possível e reconhecermos que nada nos garante que não exista terra boa, além dos limites dos nossos julgamentos. Nos faz bem olhar ao nosso redor e ver não só o mal e os erros. Tem também muita bondade e amor que crescem por causa daquela semente boa que só Deus sabe como chegou lá. Em qualquer situação, devemos conservar a fé, porque o Semeador continua a semear, até onde nós menos pensamos. Graças a Deus!

 

 

Totaliter aliter

 

Quando ainda a língua latina era em uso, uma lenda medieval conta que dois monges de nome Rufo e Rufino, fizeram um juramento entre si: o primeiro que morresse devia voltar para dizer ao outro como era Deus. Combinaram que a explicação consistiria em pronunciar uma só palavra: taliter! (tal e qual) se Deus fosse como eles o tinham pensado. Se, porém, Deus fosse diferente de como eles o tinham imaginado, a palavra devia ser: aliter! (outro, diferente). Uma tarde, quando estava tocando o órgão, o coração de Rufino parou. O amigo Rufo ficou de vigília, rezando e esperando a mensagem do companheiro. Não aconteceu nada e Rufo continuou rezando, jejuando, esperando nas semanas e nos meses seguintes. Finalmente, no aniversário de sua morte, Rufino apareceu, circundado de luz, na cela do amigo. Rufo, vendo que o amigo ficava calado, perguntou: taliter? (é tal e qual?). Rufino abanou a cabeça em sinal negativo. Ansioso, Rufo perguntou: aliter? (é diferente?). De novo recebeu um sinal negativo. – Então, como é Deus? Rufino respondeu: Totaliter aliter! (totalmente diferente).

 

Peço desculpa pelo latim, mas achei que aquela antiga lenda pudesse nos ajudar a refletir sobre o evangelho deste domingo. O evangelista Mateus, depois do discurso missionário e antes do discurso em parábolas, que iniciaremos a ler a partir do próximo domingo, coloca dois capítulos com vários questionamentos a Jesus por parte dos enviados de João Batista e dos fariseus. As curas dele também suscitam dúvidas. Mateus quer nos preparar para entender que a novidade do Reino dos Céus, que Jesus ensinava e apresentava com as suas palavras e com os sinais que realizava, não recebeu toda aquela acolhida que se esperava. O jeito de Jesus foi, de fato, muito diferente e não se encaixou em nenhum dos “messianismos” em auge entre os grupos religiosos daquele momento. Quem sobrou para entender Jesus? Ele exulta e louva ao Pai porque são os pequenos e os simples que o acolhem. Tinha algo que impedia aos “sábios e entendidos” de compreender a novidade daquilo que estava acontecendo e, acreditamos, sempre acontecerá.

 

Quem acha de ter a resposta sobre tudo, de saber tudo aquilo que Deus pensa e quer, quem se considera dono da verdade, quem pensa de poder manipular a história e a vida das pessoas com as próprias ideias, se exclui de antemão de qualquer surpresa, sobretudo se tem medo que a novidade possa prejudicar o seu prestigio, o seu poder, o seu saber. Por isso, os primeiros a acolher a Boa Notícia do amor de Deus foram os pequenos, os sofredores, os excluídos, os errados, os “fadigados e cansados” que finalmente fizeram a experiência de alguém que cuidava deles, os curava e, sem pedir nada em troca, lhe doava a possibilidade de uma vida nova mais humana e mais digna. Os “pequeninos” se sentiram amados. Este é o único caminho para compreender um pouco mais de Deus, assim como Jesus veio nos fazer conhecer. Quem continua pensando que Deus só pode estar do lado dos perfeitos, dos melhores, dos que tem sucesso, dos ganhadores, e considera tudo isso “benção de Deus”, ainda não entendeu a missão reveladora de Jesus.

 

Ele não foi um “vencedor” deste mundo, foi condenado como malfeitor, rejeitado e descartado. No entanto, o que os “sábios e entendidos” consideram um jugo, um peso, uma desgraça, se transforma em força para pequenos quando aprendem a caminhar juntos na paz e na simplicidade, na fraternidade e na partilha solidaria. Quando o “jugo” das fraquezas humanas, das nossas limitações e egoísmos, é carregado junto com compaixão, misericórdia e bondade, sempre se torna mais leve. Sabemos que o caminho da nova humanidade, do Reino dos Céus, é longo, mas a mansidão e a humildade podem fazer de cada um de nós um construtor deste Reino e não um ganancioso promotor do seu próprio “império” individual e passageiro. Jesus não pode nos deixar quietos. Deve continuar a nos surpreender a todos, grandes e pequenos, abastecidos e pobres, cultos e analfabetos, porque sempre será “totaliter aliter”, muito diferente de como o gostaríamos controlar e medir. O amor dele é grande demais, sempre será como deve ser: o “Outro”.