Dom Pedro Conti

O novo Missal

 

Com o Primeiro Domingo de Advento iniciamos o novo Ano Litúrgico. No Brasil, a partir deste domingo, começaremos a usar, em nossas missas, o novo “Missal”. Para quem não sabe, este é o nome que damos àquele “livro” grande do qual o padre que celebra a missa tira as palavras que pronuncia, proclamando algumas e falando em voz baixa outras. Diferente é o livro do qual são lidas as leituras da Palavra de Deus, chamado de “Lecionário”. Todo padre deve seguir o que está escrito no Missal, não por mera obrigação, mas porque ele não está celebrando um ritual fruto de sua própria criatividade. Ele está dizendo palavras que, apesar de serem traduzidas e adaptadas para as diversas línguas do mundo inteiro, são as mesmas para todos os cristãos representando, assim, a mais firme unidade e a mais sólida comunhão. De fato, tudo começou com uma edição do Missal, chamada “típica” (escrita em latim!), ou seja, de referência para todos. Depois, coube a cada Conferência Episcopal a tradução e a escolha daquelas partes que serão próprias de cada país. Por exemplo, depois dos Santos e Santas que são venerados no mundo inteiro, têm Santos e Santas propriamente brasileiros, conhecidos somente por aqui. Outra questão diz respeito a certas expressões da linguagem, que assumem sentidos diferentes também se os países falam e usam a mesma língua. Toda língua viva, ou seja, falada por um povo, vai se modificando e se torna necessário introduzir palavras novas, justamente porque as mais antigas caíram em desuso e não expressam mais, como deveriam, o seu rico sentido. No entanto, o que é fundamental para a celebração permanece igual para todos em qualquer lugar. Poderíamos dizer que o novo Missal é mais uma atualização necessária da nossa maneira de rezar para que continuemos a vivenciar, com participação ativa e alegre, as nossas celebrações litúrgicas e, assim, sermos confirmados em nossa fé, conforme o antigo ditado: “Lex orandi, lex credendi”, o que rezamos é o mesmo que acreditamos. Rezar diferente, poderia parecer que cremos também diferente!

 

Quis explicar um pouco tudo isso, porque ouviremos muitos católicos dizer que “agora a Missa mudou”. Nada disso! As novas fórmulas de oração e de respostas foram introduzidas para ajudar a rezar melhor e, esperamos, entender melhor o que estamos dizendo e fazendo. Com certeza, serão essas novas palavras a chamar a nossa atenção e precisaremos de um tempo para nos adaptar. A Liturgia católica, porém, não é feita só de palavras, ela é um conjunto de muitas outras formas de participação do povo fiel, que nunca deve ser um mero expectador de uma representação ou encenação feita pelo presidente da celebração mais alguns ministros e cantores em destaque. Papa Francisco no n.42 de sua Carta Apostólica sobre a Liturgia “Desiderio desideravi” apresenta um breve elenco desses “elementos que são exatamente o oposto de abstrações espirituais: pão, vinho, óleo, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, corpo, palavras, sons, silêncios, gestos, espaços, movimento, ação, ordem, tempo, luz”.

 

Talvez alguns se perguntem se vai ter espaço para a criatividade das pessoas ou dos diversos grupos. Vai ter sim, porque alguns momentos, gestos e palavras são deixados sob a responsabilidade do presidente da celebração. No entanto, a Missa não pode ser pensada como algo a ser construído “a gosto do freguês”, porque o que estamos celebrando não é propriedade nossa, é de toda a Igreja, dela a recebemos e em comunhão com ela a realizamos. Por reservada que seja, nenhuma Missa é “particular” ou privativa, ela é sempre o memorial da Páscoa de Jesus Cristo, o evento daquela salvação que é oferecida e alcança a todos. Limitar a própria criatividade não quer dizer celebrar as Missas de forma mecânica, fria e impessoal. Significa acolher com confiança aquilo que nos é proposto no Missal dando ênfase às expressões que lá estão, preparadas por quem, com certeza, fez isso para nos ajudar a rezar melhor. Espero que o uso atencioso do novo Missal seja uma excelente oportunidade para todos, para redescobrir e valorizar mais a beleza e a alegria das nossas celebrações litúrgicas. Porque junto a isso vai sempre a nossa fé.

 

Folhas e frutos

 

Disse um velho sábio: “Quem tem palavras, mas não tem obras, é como uma árvore que tem folhas, mas não tem frutos. Contudo, como uma árvore com frutos tem muitas folhas, assim aquele que cumpre boas obras tem também palavras boas”.

No 33º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do capítulo 25 do evangelho de Mateus e encontramos a parábola dos talentos, uma das mais conhecidas e comentadas. Lendo-a somos tentados de identificar cada personagem com alguém e os próprios talentos com qualidades e aptidões que, muitas vezes, reconhecemos em nós e nas outras pessoas. Podemos fazer isso e até imaginar que Jesus esteja nos convidando a multiplicar os talentos com uma visão interesseira de negócios lucrativos. Afinal, este patrão-Senhor chama de bons e fiéis os servos que dobraram o patrimônio recebido. Todas as parábolas correm este risco: ser lidas com o nosso olhar atual, preocupados em manter os nossos pontos de vista. Sem dúvida, a parábola é uma exortação à laboriosidade e não à preguiça e à acomodação. Contudo, a questão que deve chamar mais a nossa atenção é o relacionamento entre o patrão-Senhor e os servos e como eles o reconhecem de maneira tão diferente. O “homem” que vai viajar entrega os seus bens aos empregados e, dessa forma, manifesta uma extrema confiança neles. Distribui os seus bens “de acordo com a capacidade” de cada um (capacidade, não merecimentos) e não lhes dá nenhuma indicação sobre como devem usar aqueles bens. Por isso é bastante evidente que os três empregados agem livremente, mas, ao mesmo tempo, conforme o que pensam do patrão. Os dois primeiros entendem que foram agraciados com aqueles talentos e se sentem na obrigação de multiplicá-los, reconhecendo assim o valor do dom recebido com total gratuidade e confiança do patrão. Quando o Senhor volta, eles apresentam o resultado do seu trabalho com a mesma atitude de generosidade, não pretendem e nem reclamam recompensa. É o próprio patrão-Senhor que os elogia e diz que foram fiéis “na administração de tão pouco”, merecem mais confiança ainda. A relação de gratuidade e colaboração entre eles e o patrão continua na participação da alegria daquele Senhor.

Bem diferente é o pensamento do terceiro empregado que é de medo do patrão. Para ele o Senhor é “um homem severo” que colhe onde não plantou e ceifa onde não semeou (Mt 25,24-25). Esse último empregado não acolheu o talento como um dom, nem pensou na confiança do patrão que queria tê-lo, de fato, como parceiro na plantação e na colheita. Simplesmente ele não fez nada e pensou que o patrão, por sua vez, recebendo o talento inteiro de volta, não podia lhe cobrar mais nada. Assim, o servo “mau e preguiçoso” e ainda “inútil”, não participou da alegria do seu Senhor porque, afinal, não o reconheceu como alguém que lhe dava a maior confiança e a maior liberdade para corresponder com criatividade àquela imerecida gratuidade.

Não preciso juntar mais explicações. Talvez a parábola dos talentos seja, afinal, a parábola da nossa vida, de tudo aquilo que somos e temos e que recebemos da bondade de Deus. De maneira especial, como cristãos, quanto e quantas vezes continuamos a pedir a Deus mais coisas, mais bens, mais solução de problemas que nós criamos, como se nunca tivéssemos recebido nada, como se Deus nunca nos tivesse entregue a vida e o planeta no qual passamos os poucos dias da nossa existência. Quantos talentos desperdiçamos, usamos de forma egoísta e interesseira ou deixamos enterrados por não querer entender a única “cobrança” que o Deus-Pai que Jesus nos fez conhecer nos solicita. Justamente aquela de usar de tantos bens recebidos com tanta variedade, bens materiais e espirituais, para multiplicar a bondade, a solidariedade, a partilha e assim convocar todas as pessoas a participar da alegria do Senhor que nos quer todos irmãos porque todos somos seus filhos amados. Menos palavras inúteis e mais ações então. Ou mais palavras boas que sirvam para entender, amar e agradecer o único Pai de todos.

 

 

O ovo da ema

Um fazendeiro ganhou um casal de emas. Uma manhã, surpreendeu-se com alguns ovos dispersos no mato. Com receio de os ovos serem devorados por predadores, ele os recolheu no celeiro, esperando que a ema os chocasse ali. Dias se passaram sem que a fêmea fosse cuidar dos ovos que acabaram por se estragar. Decepcionado com a perda, o homem resolveu consultar um amigo veterinário que lhe explicou o ocorrido. Ele disse: “Quando a ema vai chocar os seus ovos, primeiro põe alguns no mato, distribuídos ao redor do local onde fará o seu ninho. Esses ovos não serão chocados pois servirão, posteriormente, de alimento para os futuros filhotes. A mãe ema já sabe onde encontrar os ovos abandonados que, nesta altura, já estarão podres. Ela bica a casca dos ovos e espera a chegada de pequenos insetos, atraídos pelo cheiro. É nesse momento que os filhotes aproveitam para se alimentar dos bichinhos”. Com esta explicação, o fazendeiro entendeu que a mãe ema não encontrando mais os ovos espalhados e prevendo a falta de alimento para os seus filhotes, não chocou mais ovo algum. Uma lição de planejamento da mãe natureza.

 

No 32º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do evangelho de Mateus e encontramos mais uma parábola sobre o Reino dos Céus. Como em outras páginas dos evangelhos, Jesus quer alertar os seus amigos sobre a volta do Filho do Homem para que fiquem atentos e vigilantes. No entanto, ele não define “o dia e nem a hora”. Significa que a espera deve ser constante e ativa. Algo novo, porém, aparece na parábola das dez jovens que aguardam a chegada do noivo para acompanhá-lo na festa de casamento. Logo no início da parábola, diz-se que cinco daquelas jovens eram “previdentes” e levaram uma reserva de óleo em vasilhas. As cinco “imprevidentes” não se preocuparam com isso. Por causa da demora do noivo, todas cochilaram e dormiram. Finalmente, no meio da noite, o noivo chegou e as dez jovens prepararam as suas lâmpadas. Surpreendentemente, as jovens previdentes não partilharam o óleo que  haviam trazido com as demais imprevidentes. Para essas últimas, a única possibilidades era ir comprar o óleo que lhes faltava com os vendedores. Com isso, demoram e, quando elas voltam e querem participar da festa, a porta já está fechada, e escutam as palavras duras do noivo-Senhor: “Em verdade eu vos digo: ‘Não vos conheço!’

 

Podemos dizer, então, que o assunto desta parábola mais do que o fato de ficar vigiando – já que todas as moças dormem – é o “óleo” de reserva que algumas tinham pronto e as outras tiveram que ir atrás para conseguir. Um “óleo” que, misteriosamente, não é possível partilhar, porque ficaria “insuficiente” para todas as jovens. O óleo da parábola pode nos dizer, simplesmente, que sempre nas questões da nossa fé e do nosso compromisso com Deus e com os irmãos tem algo muito pessoal, uma decisão somente nossa pela qual somos responsáveis e teremos que prestar conta. É muito fácil nos escondermos  atrás dos outros ou até jogar a culpa de certas escolhas em quem nos mandou fazer, ensinou-nos, iludiu-nos e fez a nossa cabeça. Com certeza podemos ter muitas desculpas e justificativas a respeito do nosso agir, mas, afinal, cada um de nós é um sujeito único, com personalidade e responsabilidade própria. Acreditamos que Deus dá a todos liberdade e capacidades suficientes para escolher o rumo da própria vida, os valores que considerar mais ou menos importantes, a possibilidade de decidir em quem confiar, a quem obedecer ou desobedecer. A Palavra de Deus chama o conjunto desses saberes, conhecimentos e opções de “sabedoria” que, iluminada pela fé, constitui aquela “bagagem” pessoal que carregamos na viagem da vida. Todos somos tentados a trocar essa bagagem por outras diferentes, mais fáceis, mais atrativas, porque liberdade e responsabilidade pesam. “Vendedores” de pacotes já prontos de conselhos e soluções têm muitos. Mas quando o noivo-Senhor chegar e abrir a porta teremos ainda a lâmpada acesa e, sobretudo, ele nos reconhecerá? Melhor planejar bem as coisas, como fez a mãe ema.

 

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Ele viveu como um santo e morreu como um herói

 

No dia 26 de outubro de 2007, o Papa Bento XVI proclamou bem-aventurado Franz Jägerstätter, que o próprio Papa definiu como um jovem objetor de consciência que lutou contra o nazismo, durante a segunda guerra mundial, e pagou com a vida a sua não-colaboração com o regime que havia ocupado a pátria dele, a Áustria. Franz era casado com Franziska com quem tinha três filhas. Desde o começo, ele compreendeu o quanto a humanidade estava ameaçada pelo totalitarismo. Com coragem, decidiu não ter nada a ver com o regime. Por isso, votou contra a anexação da Áustria ao Reich, não aceitou o cargo de prefeito da sua cidade, rejeitou todas as contribuições para a sua família e se recusou a fazer parte do exército nazista. O sacerdote que o acompanhou ao suplício assim comentou a morte dele: “Ele viveu como um santo e morreu como um herói. Tenho certeza que este homem simples é o único santo que tenha encontrado na minha vida”.

Neste primeiro domingo de novembro, celebramos a solenidade de Todos os Santos. Mais uma vez, somos convidados a assumir com mais coragem e determinação a nossa “vocação”. Todos nós, batizados, somos chamados à santidade, ou seja, a buscar sempre uma prática melhor da nossa vida cristã. Por isso, é muito bom que a Igreja nos aponte homens, mulheres, jovens e crianças como modelos de santos e santas nas mais diversas situações da vida. Tudo para nos dizer claramente que o anseio de santidade não deve ser entendido como algo extraordinário, reservado a poucos. O contrário da santidade é a mediocridade, ou seja, a desistência de antemão de acreditar mais na força e na gratuidade do amor de Deus do que nas nossas próprias capacidades. Os santos e as santas, que a Igreja nos apresenta, foram também pecadores cheios de defeitos como todos, mas não ficaram só se lamentando das próprias fraquezas para se fechar numa tristeza improdutiva. De fato, quanto mais ficamos pensando nas nossas dificuldades, mais deixamos de enxergar as situações de tantos irmãos e irmãs que, de alguma forma, pedem o nosso testemunho. Sem experimentar a solidariedade, a gratuidade, a fadiga de carregar os pesos uns dos outros, murchamos como cristãos. Apesar das nossas manifestações religiosas, deixaremos de entender quão grande foi o amor do Pai que enviou o seu Filho, o qual, por sua vez, assumiu a nossa condição humana até a morte, numa comunhão universal com todas as criaturas viventes.

Muitos santos e santas, também se hoje são famosos, nunca foram valorizados durante as suas vidas. Alguns foram desprezados, outros silenciados, outros suportaram a mais absoluta indiferença. Somente depois – e às vezes muito depois – as pessoas perceberam a coragem deles e delas, a “profecia” que o seu jeito e as suas escolhas representavam. Somente eles e elas encontraram, no silêncio das suas consciências e na intimidade com o Senhor, a luz que o Divino Espírito Santo nunca deixa faltar a quem nele confia. Muitos, como o bem-aventurado Franz, perceberam os riscos que corriam, passaram pela amargura do abandono dos demais, foram considerados insanos ou loucos, mas não desistiram daquilo que a sua fé e a sua consciência lhes diziam. Quantos homens e mulheres, ainda hoje, em tantos lugares diferentes, continuam sendo os pobres, os aflitos, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos por causa da justiça, os injuriados por causa do nome de Jesus. É deles o Reino dos Céus! Foram, e são, eles e elas que não deixaram, e não deixam, morrer a esperança de uma humanidade melhor. A Igreja nos convida a lembrar Todos os Santos e Santas, não para aplaudi-los simplesmente, mas para reavivar em todos nós o desejo de seguir os seus exemplos. Nenhum deles procurou a fama e o sucesso. Sabiam, como nós sabemos, que o único prémio para o qual vale a pena amar e dar a vida é o próprio Senhor que guarda os tesouros de bondade acumulados quase sempre no silêncio, no escondimento e até na ingratidão. Nunca é tarde para trilhar o caminho da santidade.

 

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Mister Smile

 

O chamam Mister Smile, o embaixador do sorriso, porque, faz muitos anos, percorre o mundo para doar sorrisos às crianças nos orfanatos, nas ruas das favelas, nos hospitais de áreas em guerra do Iraque até a Ucrânia. Já passou por mais de 100 países e a sua fama chegou à ONU onde, em 2016, foi convidado a falar por ocasião da Jornada Mundial da Felicidade. O nome dele é Andrea Caschetto, 33 anos, nascido na Sicília (Itália). Quando Andrea tinha 15 anos, foi submetido a uma cirurgia para retirar um câncer no cérebro. Isso reduziu a sua capacidade de memória. Do que viveu de 15 a 19 anos não lembra quase nada e pensou até em tirar a sua própria vida. Depois, com outros jovens com problemas, visitou uns orfanatos no Sul da África. O encontro com aquelas crianças mudou a vida dele. Começou a viajar pelo mundo. A pouca memória não lhe impediu de formar-se em Comunicação e conseguir um mestrado em Cooperação Internacional. Pela atividade que desenvolve, não recebe dinheiro e dos direitos autorais dos livros que escreveu (três) uma parte é gasta em beneficência e outra é investida nas viagens. Prepara com afinco os encontros e sabe lidar, maravilhosamente, com as crianças “descalças” a quem chama de “meus professores”. É uma pessoa feliz, porque consegue fazer felizes os outros.

 

Achei conveniente introduzir a minha reflexão sobre a página do evangelho de Mateus deste 30º Domingo do Tempo Comum, apresentando uma história real de alguém que, apesar das próprias limitações, decidiu gastar a sua vida em prol de outros também sofredores. Desta vez, não para lamentar ou reclamar juntos, mas para comunicar alegria, felicidade e esperança, bens que só podem estar juntos com muito amor e generosidade. É sobre o mandamento do amor que nos fala o evangelho. Os fariseus decidiram “experimentar” Jesus querendo saber qual era o maior mandamento da Lei. A resposta, ou as respostas, eram objeto de disputas acirradas entre os doutores da Lei. No entanto, teria sido difícil não reconhecer a total superioridade do amor devido ao próprio Deus. Em Deuteronômio 6,5 estava escrito para amar a Deus “de todo o teu coração, de toda a tua alma e com toda a tua força”. O próprio Jesus reconhece isso. (Mt 22,38). Podia ainda sobrar amor? Verdade que em Levítico 19,18 estava escrito “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, mas até na formulação os dois mandamentos eram muito diferentes e nunca acabava a discussão sobre quem era, afinal, o próximo a ser amado.

 

Jesus, o Mestre, consegue a proeza e a novidade de juntar os dois mandamentos. Eles são “semelhantes”, ou seja, só o compromisso real de amar a Deus e ao próximo pode dar unidade à nossa vida como pessoas e como cristãos. De outra forma, corremos o perigo de nos considerar muito amorosos com Deus por obedecer, rigorosamente, àquelas que acreditamos serem suas ordens e, talvez, depois, mantemos atitudes ou sentimentos de desprezo, indiferença ou coisas piores com os nossos irmãos feitos de carne e ossos como nós. Reparemos que a Bíblia não fala de “amor”, como uma ideia ou um conceito, mas de “amar” a Deus e ao próximo: uma ação, um fazer, um construir. De fato, não existe o amor em si, andando por aí, mas pessoas que amam e, com isso, fazem a experiência dos frutos do bem vivido, doado, partilhado. Somos nós que criamos complicações, separando os dois mandamentos e vivendo, assim, uma vida cristã dupla. O fazemos por comodismo, porque o próximo nos inquieta e corremos para Deus. Ou, simplesmente, porque temos uma ideia mesquinha do Altíssimo, de um juiz e cobrador mais que de um Pai misericordioso e compassivo, um Deus que somente ama. Por isso, o próprio Jesus se identificou com os famintos, os desamparados, os sofredores: “foi a mim que o fizestes” (Mt 25). Continuamos a não conhecermos bem a Deus e a aquele que veio para nos fazer compreendê-lo melhor, uma vez por todas, Jesus Cristo. Continuamos pensando que Deus julgue e avalie as realidades humanas com os nossos critérios de merecimentos, aparências, sucessos e resultados. Não, ele reconhece o coração de quem ama, porque é ali mesmo que todos somos, ou não, “semelhantes” ao nosso Criador.

 

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Poderia dar conta sozinho?

 

O santo rei Enrique II da Baviera, junto com a esposa Cunegonda, toda manhã ia à igreja para participar da missa e receber a comunhão. Alguns dos mais importantes membros da Corte disseram para ele:

 

– Majestade, não é necessário ir à igreja todo dia; precisa mais cuidar dos negócios do Estado que são numerosos e difíceis de serem resolvidos… Ele respondeu:

 

– Justamente por isso eu vou à missa: para consultar o Senhor e lhe pedir ajuda. Pensam mesmo que eu poderia dar conta de tudo sozinho?

 

No evangelho de Mateus deste 29º Domingo do Tempo Comum é a vez dos fariseus arquitetarem “um plano para apanhar Jesus em alguma palavra” (Mt 22,15). Está clara, portanto, a maldade deles, também se a conversa inicia com um elogio bem enfeitado. O Mestre é reconhecido como alguém que ensina o caminho de Deus e não se deixa influenciar por ninguém, porque não julga as pessoas pelas aparências. A teia da armadilha está lançada, falta a pergunta traiçoeira: “É lícito ou não pagar o imposto a César?” (Mt 22,17). Os fariseus eram rigorosos no cumprimento dos preceitos da Lei de Moisés e, por isso, falam de “licitude”. No entanto, neste caso, a obediência seria devida nada menos que ao imperador romano, um pagão, estrangeiro e opressor, que extorquia as populações submissas. Se Jesus tivesse respondido que sim, que era lícito, seria acusado de colaboracionista e traidor do povo. Se tivesse respondido que não, teria sido denunciado como um agitador subversivo. De fato, essa foi uma das falsas acusações contra ele quando foi apresentado a Pilatos (Lc 23,2). A resposta de Jesus, não somente é surpreendente como também abre o caminho para uma das afirmações dele mais lembradas: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22.21). Ao pedir que lhe apresentem a moeda do tributo que levava a figura e a inscrição do imperador, Jesus deixa entender que aquele dinheiro e tudo o que ele representa são bens de responsabilidade do próprio César, ou seja, de quem os fez e com eles administrava os negócios humanos. A respeito de Deus, diz Jesus, estamos num outro plano que não deve ser confundido com os projetos deste mundo. Isto, não porque Deus esteja longe ou desinteressado pelas vicissitudes humanas, mas, simplesmente, porque a nossa história – para quem diz acreditar em Deus – só pode ser entendida e vivida à luz da bondade e da misericórdia do próprio Deus, se quisermos que ela tenha um sentido além do imediato e do vantajoso e não seja uma disputa sem fim pelo poder passageiro.

 

Para entender melhor, usando das palavras de Jesus: o que podemos “dar” – ou devolver – a Deus que ele já não nos tenha dado? Deveríamos ser muito agradecidos e “zelar”, com responsabilidade e carinho, por tudo aquilo que ele nos entregou de graça. De fato, como vimos na parábola dos vinhateiros, mas sobretudo por aquela história que chamamos “da salvação”, Deus é um cobrador todo especial. Os frutos que ele pede são os mesmos que nós todos deveríamos desejar porque são as características do Reino dos Céus: “reino da verdade e da vida, reino da santidade e da graça, reino da justiça, do amor e da paz” (Prefácio da Festa de Cristo Rei). Evidentemente, não é a este o reino que os Césares, que se sosseguem nos séculos, ambicionam. Mas nós, que falamos tanto de Deus, a quem estamos servindo afinal? Desde o início, ou seja, dentro de cada um de nós, existe a tentação – consequência da liberdade que também Deus nos deu – de colocar alguém ou algo no lugar de Deus e adorá-lo com todo o coração. Assim nos tornamos escravos “felizes” por estarmos presos numa rede de consumo, de ganância e diversão sem saída! O nosso Deus que é Amor não acorrenta ninguém, ao contrário, liberta, porque com ele, no lugar certo em nossa vida, percebemos quanto e como servimos aos interesses de seres ambiciosos que, cada vez mais, conseguem distorcer o “sonho” do Reino de Deus. A fé cristã não é um expediente para sobreviver nas travessias da vida, é uma luz que pede escolhas corajosas para seguir, mesmo, o único Senhor ao qual vale a pena servir e amar.

 

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O amor não é amado

 

Neste domingo, realizaremos mais um Círio em honra a Nossa Senhora de Nazaré. De novo, Maria nos convoca para rezarmos e cantarmos juntos os louvores a Deus, Pai de bondade, que olhou com especial predileção para aquela jovem e viu a pureza do seu coração. O “sim” dela, livre e generoso, colaborou com a obra do Divino Espírito Santo e ela se tornou a mãe do Filho de Deus que assumiu em tudo, menos no pecado, a nossa natureza humana. A obediência humilde e feliz de Maria contrasta com a página do evangelho que proclamaremos neste 27º Domingo do Tempo Comum. A parábola que Jesus contou aos sumos sacerdotes e anciãos do povo foi mais uma denúncia clara e inequívoca da recusa que ele mesmo estava sofrendo. Jesus retoma a imagem da vinha cara aos profetas para representar o zelo e a preocupação de Deus com o povo de Israel. Como nos lembra a primeira leitura do profeta Isaías, deste domingo, Deus desejava que a vinha por ele cuidada com tanto trabalho produzisse “uvas de verdade”, mas ela produziu “uvas selvagens” (Is 5,4). Na parábola de Jesus, mais do que de uva, fala-se de “vinhateiros”, ou seja, daqueles a quem a vinha tinha sido entregue. A sorte dos enviados pelo dono da vinha para cobrar os frutos devidos foi triste e chegou ao ponto que os vinhateiros decidiram matar nada menos que o filho do dono, o herdeiro, para poder ficar, definitivamente, com a vinha e não ser mais cobrado pelo arrendamento. Para os ouvintes da parábola, o mais certo que o dono da vinha deveria fazer com aqueles vinhateiros assassinos seria um castigo cruel. No entanto, Jesus comenta a própria parábola com uma citação do Salmo 118,22 onde se diz que a pedra descartada pelos construtores se tornará a pedra angular de uma nova construção, evidentemente, entregue a outros construtores. Não se fala mais da vinha, mas do Reino de Deus oferecido, agora, a um povo novo que produzirá frutos” (Mt 21,43).

Se queremos atualizar a parábola de Jesus para nós, hoje, podemos pensar que não há nada ou muito pouco para nos dizer. Jesus já foi morto na cruz naquele tempo e nós não corremos mais o perigo de repetir aquele acontecimento. No entanto, não é difícil entender que existem muitas maneiras de “matar” Jesus; basta, por exemplo, continuar a excluí-lo da nossa vida, deixando-o fora mesmo ou colocando-o como enfeite ou suporte para as nossas ideias e os nossos projetos. Hoje, entendemos que, ao longo da história, até guerras foram feitas usando, ou abusando, do nome do Senhor. Outros tempos, dizemos, mas se não tomarmos cuidado a tentação de domesticar o Evangelho é sempre muito grande. É o antigo pecado: querer ser nós os donos da situação e não aceitar a nossa condição de criaturas. Sobretudo não aceitar ter recebido, como dom de Deus totalmente gratuito, a vida e o planeta Terra no qual temporariamente moramos. Deus é “o dono” sim, mas nos entregou toda a responsabilidade daquilo que recebemos. É demais entender que ele nos cobra paz e fraternidade, partilha e dignidade para todos? Isso corresponde a dizer que não queremos um Deus que nos ama sempre e que nunca desistiu e nem desiste de nos procurar de tantas maneiras. Ele enviou o seu próprio Filho na carne humana para que fosse ouvido e seguido. Contam que São Francisco concluiu o seu encontro com o Saladim, lá na Terra Santa, com estas palavras: “Ó rei, o amor não é amado”.

O Amor neste mundo é sempre crucificado. Não julguemos, então, aqueles vinhateiros. Olhemos para Maria com confiança e gratidão. Se pela recusa do amor de Deus vem o mal e a morte, quando nos deixamos amar por ele e praticamos confiantes a sua Palavra, frutos maravilhosos aparecem. Maria “cheia de graça” obediente aceitou ser amada e, sempre por amor, ofereceu com o Pai celestial aquele, também seu Filho, na cruz. Tudo porque o próprio Deus, que é Amor, não pode deixar de amar nem aqueles que o rejeitam e escarnecem ainda hoje. Aprendamos com Maria a acolher o amor de Deus, a imitá-lo, a transmiti-lo, a partilhá-lo. Somente praticando o bem seremos “missionários da vida e da fé” como Nossa Senhora sempre nos lembra e ensina.

 

 

O filho mais querido

 

Perguntaram um dia a um sábio persa:
– Tu tens muitos filhos, a qual preferes? O homem respondeu:

– O filho que prefiro é o menor até que cresça; o que está longe até voltar; o que está doente até ficar curado; o que está preso até ser libertado; o que está sofrendo até ser consolado…
Neste 26º Domingo do Tempo Comum, continuamos com a leitura do evangelho de Mateus e também com as perguntas e respostas “polêmicas” dos sacerdotes e anciãos de um lado e de Jesus do outro. Desta vez, porém, a iniciativa é do próprio Mestre. Através de uma simples parábola ele nos deixa, como sempre, um ensinamento que vai além das circunstâncias e, assim, desafia a todos nós. A parábola fala de dois irmãos, filhos do mesmo pai. Ele manda ambos ir trabalhar na vinha da família. Nada de mais óbvio. Na medida do possível, os filhos devem colaborar com a economia da casa da qual fazem parte. No entanto, o pai recebe diferentes respostas verbais, mas sobretudo respostas diferentes no agir dos filhos.

O primeiro disse claramente que não queria ir trabalhar. Parece preguiçoso e desinteressado. Depois, porém, “mudou de opinião” (Mt 21,29) e foi trabalhar na vinha. O segundo filho recebeu a mesma ordem, logo respondeu que iria, sim, para a vinha. Contudo ele não foi. Jesus perguntou às autoridades presentes e, indiretamente, também a nós: “Qual dos dois fez a vontade do pai?”. Não tinha outra resposta a não ser: “O primeiro”, ou seja, aquele filho que, apesar de ter dito que não iria trabalhar, afinal, foi para a vinha. O outro, aparentemente obediente, na realidade desobedeceu ao pai. Logo em seguida, Jesus repreende os sumos sacerdotes e os anciãos, porque não acreditaram na pregação de João Batista. Ele faz uma afirmação, no mínimo, ofensiva e escandalosa para aquelas pessoas que, por causa da rigorosa obediência à Lei, consideravam-se justas e no direito de julgar os outros. Jesus diz que “Os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21,31) porque eles acreditaram no batismo de penitência que João pregava. Ou seja: os considerados pecadores e perdidos se entenderam como tais e acolheram a proposta de conversão. Ao contrário, os que se consideravam corretos – as pessoas de bem – achavam que não precisavam mudar em nada a própria vida. Indiretamente, Jesus fala dele mesmo, porque com esta atitude de cegueira e surdez à mensagem de João, aquelas pessoas “perfeitas”, em prática, fecharam-se à chegada daquele que, depois, teria batizado “em Espírito Santo e fogo” (Mt 3,11).

A mensagem da parábola é clara. Deus não precisa de filhos obedientes só com as palavras, exteriormente, nas aparências. Ele quer filhos que pratiquem os ensinamentos daquele Filho único que nos enviou: Jesus. Não importa se antes, por alguma razão, estavam bem longe e andavam por caminhos errados. Nunca é tarde para mudar de vida, de fato e seriamente. Autossuficiência, soberba e orgulho acabam nos afastando da mensagem do evangelho. Assim Jesus se torna inútil. Humildade, consciência dos próprios pecados e reconhecimento da bondade de Deus, fazem-nos admirar a sua misericórdia e experimentar a alegria do perdão. Jesus se torna nosso Amigo e Mestre.
Qual seria, então, o filho que o Pai celestial prefere? O perfeito e o orgulhoso de si mesmo? Provavelmente ele prefere o afastado com saudade da casa paterna, a “ovelha perdida” que se deixa carregar nos ombros do Bom Pastor, o errado que desce da árvore para abrir a sua casa, acolher Jesus e dar a metade dos seus bens aos pobres. Ou seja, o filho e a filha que confiam mais na misericórdia do Pai que nos próprios merecimentos e, sobretudo, não julgam os outros. Os filhos e as filhas que se alegram pelo bem que qualquer um pode fazer, sem fazer propaganda. Toda mudança de vida é sempre e antes de tudo um dom gratuito de Deus e não o resultado dos nossos presunçosos esforços. Todo lugar é a “vinha do Senhor”, toda situação precisa de trabalhadores do Reino que pratiquem o mandamento do amor.

 

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Eu lhe entrego a sua liberdade 

 

Hussein estava à mesa do jantar quando um dos seus escravos, acidentalmente, entornou uma vasilha quente sobre os joelhos de seu senhor. O escravo, visivelmente aterrorizado, recitou um verso do Alcorão:

 

– O céu pertence àquele que domina sua raiva.

 

– Não estou com raiva – disse Hussein. O escravo prosseguiu:

 

– O céu pertence àquele que perdoa ao seu irmão.

 

– Eu lhe perdoo – disse Hussein. O escravo concluiu a estrofe:

 

– Porque Alá ama a quem é benevolente! Hussein imediatamente respondeu:

 

– Eu lhe entrego a sua liberdade! Você não é mais um escravo. E lhe dou quatrocentas moedas de prata.

 

No evangelho de Mateus do 24º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do “Sermão da Comunidade”. Depois do ensinamento sobre a “correção fraterna”, Jesus responde de maneira nova e original a uma das questões mais debatidas naquele tempo e, talvez, de todos os tempos: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?” (Mt18,21). Perdoar a quem nos ofendeu ou prejudicou não é patrimônio somente dos cristãos. Toda pessoa religiosa ou simplesmente humana e compreensiva sabe que o perdão tem a força de mudar o relacionamento raivoso entre as pessoas, corrige mal-entendidos, pacífica os corações e afasta pensamentos de vingança e de ódio. O perdão é um “santo remédio” para muitas situações que parecem sem solução e se arrastam no tempo envenenando a vida de tantas pessoas. “Até sete vezes?” Esse seria o número de vezes considerado mais do que justo. Perdoar além disso podia parecer tolerância com o pecado e, portanto, o irmão nunca seria corrigido. A sombra ameaçadora do castigo pairava sempre atrás da aparente magnanimidade do perdão. O chamado “bom senso”, no fundo, ainda hoje, não acredita tanto assim no remédio da misericórdia.

 

A resposta de Jesus surpreende, não tanto pelo número em si, evidentemente simbólico (setenta vezes sete) – para dizer sempre – mas pela parábola que o Mestre contou e que explica, maravilhosamente, a verdadeira motivação do perdão ao irmão. O caso dos dois devedores não se encaixa em nenhuma norma. Nunca funcionará como uma lei a ser obedecida. Somente se entende à luz da gratidão que se esperava do grande devedor após o extraordinário “patrão” lhe ter perdoado “uma enorme fortuna”. Na prática, o “patrão” deu exemplo de uma “justiça” diferente, capaz de cobrar, mas também de perdoar se o irmão endividado demonstrar a absoluta impossibilidade de saldar a dívida. Aquele “patrão” tão generoso iniciou uma corrente de misericórdia que podia, ou devia, continuar. Em Israel, quem não conseguia pagar uma dívida não era propriamente “vendido” no sentido de se tornar propriedade do credor para sempre. O inadimplente era obrigado a trabalhar para o credor o tanto que fosse necessário até zerar a dívida. Era possível, também, que algum parente ou amigo pagasse aquela dívida, resgatando assim a liberdade e a dignidade do endividado. Com isso, entendemos que perdoar uma dívida não era simplesmente dispensar um dinheiro, era, sobretudo, valorizar a pessoa porque, liberta do peso da dívida, voltava a gozar livremente da própria vida. O patrão da parábola fica indignado, porque o primeiro devedor não soube usar da mesma compreensão e bondade com o seu próprio irmão que, afinal, devia-lhe infinitamente menos. O Pai de quem Jesus fala no evangelho não é um bonachão que finge de nada e deixa passar tudo, só porque perdoa. Ele é, digamos, um “cobrador”, não para castigar os desobedientes, mas para exigir que façamos o mesmo que ele. Deixando de perdoar “a quem nos ofendeu” acabamos humilhando e desprezando o irmão. Será que nós somos tão superiores assim? Nunca erramos? Com o perdão, talvez, ganhamos um amigo, alguém agradecido, que, esperamos, saberá por sua vez perdoar. Escrevi “talvez”, porque o caminho do perdão é longo e nem sempre surte o efeito desejado. A própria parábola dá a entender isso. No entanto, entre as várias opções – vingança, castigo, cobrança, perdão – cabe a cada um escolher o que dará paz ao seu coração e… “liberdade” a quem errou, como fez Hussein.

 

 

Não posso receber a sua oferta

Um rico senhor ofereceu mil rúpias a um pobre religioso indiano. Ele perguntou ao homem rico:

– Você está me dando mil rúpias. Quanto é que você tem para si mesmo?

– Muitos, muitos milhares de rúpias – foi a resposta.

– Você ainda deseja mais?

– Sim, certamente – respondeu o rico.

– Então, eu não posso receber a sua oferta – disse o religioso – porque um homem rico não deve receber de alguém mais pobre do que ele!

– Não estou entendendo – disse o homem rico. Então o pobre explicou:

– Muito embora eu não tenha nada, nada desejo. Você tem fartura e mesmo assim deseja ainda mais. Seguramente, o homem que ainda deseja é mais pobre do que o homem que está satisfeito com aquilo que tem!

Com o evangelho deste 23º Domingo do Tempo Comum, iniciamos a leitura de alguns trechos do capítulo 18 do evangelho de Mateus, conhecido como “o sermão da comunidade”. É evidente que o autor desse evangelho foi lembrar o ensinamento de Jesus sobre a “correção fraterna” justamente porque preocupado com a situação da própria comunidade.

Poderíamos nos perguntar: porque interessar-se pelos erros dos outros? Por que buscar sanar as divisões entre os irmãos? A resposta está nos últimos versículos do trecho que será proclamado. Lá está a promessa de Jesus: ele disse que bastariam duas ou três pessoas reunidas por sua causa para ele mesmo estar presente junto a elas.

Para juntar multidões, pequenas ou grandes, serve somente uma motivação que as atraia, que suscite entusiasmo, a vontade de torcer por alguma causa. Pode ser um show de algum artista famoso, um jogo decisivo de um campeonato, o comício de um candidato que promete mudar mundos e fundos. Depois, porém, ao apagar das luzes, todos voltam para as suas casas e ninguém mais, ou bem poucos, interessam-se pela vida particular dos demais. De fato, não estavam reunidos para se ajudarem em alguma coisa e menos ainda para “caminhar juntos” rumo a alguma meta comum. O espetáculo acabou. As vaias que gritaram, os cantos que acompanharam e as palmas que bateram juntos não criaram nenhum laço duradouro entre eles. Bem diferente devia ser a comunidade reunida em nome do Senhor Jesus. Como os de fora podiam saber se o que acontecia lá, dentro da comunidade, era algo novo e capaz de transformar a vida das pessoas, se a fé, a esperança e o amor entre eles os uniam cada vez mais? A correção fraterna não tinha como objetivo envergonhar alguém ou chegar a “desligar” quem estava errado. A finalidade era – e sempre deve ser – a “comunhão fraterna”. Sem essa “comunhão” nem Jesus mais está presente, nem o Pai e nem o Espírito Santo. Somente a comunidade unida pode ser um sinal da perfeita comunhão da Santíssima Trindade. Divisões, brigas, invejas e indiferenças tornam inúteis palavras bonitas, cerimônias sofisticadas, enfeites caprichados. Não é por acaso que chamamos a santa Eucaristia, que repartimos nas missas, de “comunhão”. Jesus não se doa a cada um de nós sozinho, isolado ou, talvez, separado. Ele quis ser dom para todos. Rezou ao Pai para que os seus amigos fossem “um”, a fim de que o mundo cresse que ele era o enviado (Jo 17,21). “A comunidade dos fiéis era um só coração e uma só alma” lemos nos Atos dos Apóstolos 4,32.

A “correção fraterna”, feita por amor, continua sendo um grande desafio para todos nós. O nosso orgulho nos impede de aceitar as observações caridosas dos irmãos e irmãs. Se for o responsável a repreender é acusado de autoritarismo. Se for alguém que não tem cargo algum a nos corrigir logo pensamos que não sabe de nada e exigimos respeito. Quantos acabam se “desligando” por conta própria da comunidade por causa de uma palavra dita por alguém numa hora inoportuna. Ou por causa de uma palavra não dita, quando era aguardada para um conforto ou simplesmente por amizade. Somos todos demais sensíveis nesse sentido. Bem fez o religioso indiano em não aceitar a oferta do rico. Ensinou-lhe, a partir da sua pobreza, a não desejar cada vez mais e mais. Apontou-lhe o caminho da humildade e, assim, se acreditamos, também da felicidade.