Dom Pedro Conti

A paz do coração

Contam que São Teodoro era continuamente atormentado pelos demônios. Sobretudo durante os momentos nos quais costumava rezar. Certo dia, confessou ao seu diretor espiritual que tinha visto Satanás travestido de Anjo da Luz, que o lisonjeava com estas palavras:

– Eu amo os ambiciosos: eles serão minha propriedade! Tu és ambicioso e, por isso, te levarei comigo! Teodoro, afundado na escuridão do medo e do desespero gritou a Deus:

– Senhor, veja como os demônios me impedem de rezar. Diga-me, por favor, o que tenho que fazer para afugentá-los? O Senhor lhe respondeu:

– Os demônios não deixam de atormentar as almas orgulhosas. O santo se ajoelhou e suplicou:

– Senhor, diga-me. Quais pensamentos afastarão o Maligno e iluminarão a minha alma? Deus, na sua infinita paciência, o ensinou:

– Quando Satanás vier a ti, diga-lhe: “Eu sou o pior de todos!”. Assim começou a fazer São Teodoro e, a partir daquele dia, encontrou a paz do coração.

O trecho do evangelho de Lucas, deste domingo, começa com um pedido dos apóstolos: “Aumenta a nossa fé”. Uma oração singela que revela a dificuldade dos discípulos, mas também de todo cristão, para alcançar uma fé firme ou, ao menos, minimamente digna desse nome. A resposta de Jesus é, ao mesmo tempo, uma comparação e uma advertência. Para a fé, não existe uma medida humana que permita alguma medição em metros ou quilos. Em si, o grão de mostarda é uma semente muito pequena, quase imensurável. Também a fé não se mede por alguma coisa grandiosa que chame atenç&a tilde;o pela sua originalidade. Será que, se tivermos fé como um grão de mostarda poderíamos pedir a Deus qualquer coisa? Por exagerada ou estrambólica que seja? Sinceramente, não sei se uma amoreira plantada no mar, com raízes e tudo, sobreviveria e serviria mesmo para alguma coisa. O que Jesus queria dizer afinal?

Está claro que algumas palavras de Jesus nunca deixam de nos surpreender e que também alguns exemplos dele que, com certeza, podiam ser entendidos naquele tempo, hoje são difíceis para nós. As palavras também têm as suas limitações e o sentido delas pode mudar com as épocas. No entanto, acredito que seja necessário nos deixar questionar pela parábola que Jesus conta em seguida e que também não deixa de nos inquietar. Como é possível que um bom patrão seja tão exigente com o seu empregado e não reconheça também o cansaço dele, após um dia inteiro suado na roça? Será que som os mesmo servos inúteis que, simplesmente, cumprimos as nossas obrigações?

Jesus é um “senhor” exigente, mas não devemos ficar somente com as palavras do evangelho deste domingo, em outras páginas, ele falou também de festa e de recompensa para os “servos” fiéis. Como entender, portanto, essas palavras tão duras? A lição dele é sempre sobre a humildade. A nossa alegria não deve consistir no sucesso pessoal, em elogios ou promoções. A felicidade do discípulo-servo deve consistir, simplesmente, em ter consciência que está colaborando com algo de muito maior dos resultados que ele pode, ou não, ver. Todo discípulo é um simples “operário” do Reino que &eac ute; de Deus e, com isso, nunca comparável com os reinos humanos. Esses se medem pela extensão, pelas riquezas, pelo poder. O Reino de Deus não é uma “superpotência” disputando com outras. Não tem “Banco Central”. Dele, não conhecemos os limites, porque a misericórdia do Pai é infinita. Não conhecemos o patrimônio guardado, porque os tesouros do céu serão revelados somente no último dia; o dia da verdade, mas também do amor doado ou negado. A fé do discípulo deve crescer junto com a sua humildade. Devemos acreditar que até um copo de água será contabilizado, mas devemos lembrar que também isso foi um dom de Deus que nos ofereceu a possibilidade de fazer o bem, de trabalhar na imensa seara da sua bondade manifestada na história conturbada da humanidade. Ainda os servos “inúteis” pergu ntarão: “Quando foi Senhor?” Melhor sempre pensar que somos os últimos, os piores, para um dia, Ele, e somente Ele, nos chamar para a festa do Reino.

O resgate do avarento

Durante o império de Trajano, vivia em Roma um mercador avarento, que tinha acumulado com muito esforço, com o comércio e a usura, trezentos mil denários. Decidiu, então, descansar por um ano. Mal tinha concluído o último negócio, eis que se lhe apresentou o Anjo da Morte para tirar-lhe a vida. O avarento tentou todos os argumentos para dissuadir o Anjo, mas não teve jeito, ele não desistia de arrastá-lo para o Inferno. Por fim o homem disse:

– Mais três dias de vida e eu te darei um terço dos meus bens.

O Anjo não aceitou. De novo o avarento propôs:

– Se me concedes dois dias, te darei duzentos mil denários e dois terços do meu patrimônio. O Anjo não aceitou. O homem lhe ofereceu ainda os trezentos mil denários e todas as suas riquezas em troca de um só dia. O Anjo não quis escutá-lo. Então, o avarento suplicou:

– Por favor me deixe ao menos o tempo para escrever uma pequena frase.

Dessa vez o Anjo concordou. O condenado escreveu com o seu próprio sangue: “Homem, aprende a contar os teus dias e faze bom uso da tua vida. Eu não pude comprar uma hora só com os meus trezentos mil denários”. O Anjo, em lugar de arrastar o pobre direto para o Inferno, resolveu poupar-lhe a vida. Com efeito, o Senhor, nunca deixa de acolher a menor fagulha de uma boa obra. Aquele avarento se chamava Mirko e morreu mártir, poucos dias depois de ter-se convertido à fé cristã.

Esta história está nas Acta Santorum, os primeiros mártires. Aquele rico avarento ainda teve a possibilidade de resgatar-se de uma vida gastada atrás do dinheiro. O mesmo não aconteceu com o rico, sem nome, da parábola do evangelho de Lucas, que encontramos neste domingo. Foi para os tormentos. O pobre, que se chamava Lázaro, foi acolhido no seio de Abraão. Podemos nos perguntar: por que o rico não teve uma segunda chance? Por que, parece que, neste caso, a misericórdia de Deus não funcionou? Ela não é maior de todos os nossos pecados e não nos alcança sempre?

O sentido da parábola do rico e do pobre Lázaro não está numa possível diminuição da misericórdia de Deus, mas na impossibilidade de inverter uma situação que nunca foi mudada, quando ainda tinha condição de ser corrigida, ou seja, durante os dias de nossa vida. Moisés e os profetas, que Abraão lembra, assim como o morto que ressuscita, são todos os claros alertas enviados para quem se dispõe a escutar a Palavra de Deus e a praticá-la durante a sua vida. Arrepender-se ou querer mudar as coisas, após a morte, não adianta. Deus não desiste e nem descuida de nos alertar, mas respeita a nossa liberdade. Quem quis entender aquelas mensagens somente para a própria vantagem, terá que arcar com as consequências das suas interpretações e decisões.

A primeira culpa daquele rico, com certeza, foi esta: apesar de conhecer a miséria do pobre Lázaro, sentado à porta da sua casa, nunca teve compaixão e não fez nada para amenizar a triste situação dele. Mas o rico da parábola teve outra culpa, muito mais grave e partilhada com muitos outros, ainda hoje, infelizmente. Esta é uma grave distorção da justiça-misericórdia de Deus: achar que a riqueza seja sinal de bênção e a pobreza castigo! Talvez, por isso, o rico se achou no direito “divino” de não interferir na situação do pobre. Talvez, por isso, ficou agradecido e imaginou qual crime horroroso tinha feito Lázaro para merecer tamanho sofrimento. Essa era a ideia, mesquinha e interesseira, da “justiça” de Deus, que muitos abastecidos e poderosos tinham nos tempos de Jesus. As riquezas, os bens e a s capacidades que temos são, é verdade, dons, gratuitos e imerecidos, da bondade de Deus, mas para serem administrados com responsabilidade “social”, solidariedade com os menos favorecidos e caridade compassiva com os sofredores. Não devem ser aproveitados de forma egoísta, porque Deus quer se servir da nossa capacidade de amor e justiça para continuar a exercer a sua infinita misericórdia. A verdadeira “bênção” que devemos pedir ao Pai não é para o nosso bem-estar individual, mas para que a humanidade inteira aprenda a partilhar os bens – inclusive do planeta! – que a generosidade de Deus nos confiou. Como irmãos. Isto é, “contar os dias” e fazer “bom uso” da própria vida.

A premonição do eremita

Sírio era um santo eremita, um homem de Deus que vivia afastado, longe da cidade, sempre ocupado em orações, jejuns e penitências. Os homens e as mulheres simples iam ter com ele confiando nas suas palavras de sabedoria e fé. Os únicos que não gostavam dele eram o rei e os seus cortesãos. Eles moravam num grande palácio no centro da cidade e consideravam Sírio um velho doido. Certo dia, quando estava orando, o santo homem teve a clara premonição que a cidade ia ser destruída pela erupção do vulcão que, havia séculos, estava adormecido. Disse isso ao prefeito da cidade que o considerava um homem verdadeiro.

– Tenho certeza que o senhor está prevendo o certo – disse-lhe o prefeito – mas o rei nunca vai acreditar, ele somente confia nos seus magos e astrólogos.

– Chame o primeiro ministro – ordenou Sírio. Quando o ministro chegou o eremita falou:

– Diga ao rei que, há muitos anos, me dedico ao estudo dos planetas e das estrelas. Elas me disseram que logo a cidade será destruída pela lava do vulcão, que está aqui perto. O rei acreditou na premonição dos astros e mandou evacuar a cidade. Quando o vulcão acordou, todos os habitantes estavam a salvo.

Uma pequena história de mentira; um subterfúgio para convencer quem não queria acreditar. Foi para o bem do povo e do próprio rei desconfiado. Não é um convite a sermos falsos, mas um exemplo de esperteza em vista de um bem maior. Assim, podemos ler a parábola que nos é apresentada no evangelho deste domingo. Um caso da vida, infelizmente, tão comum. Um administrador desonesto que, desmascarado, deve entregar a administração. A saída que ele encontra é dar mais um golpe no patrão rico e conquistar, assim, a simpatia de alguns devedores. O surpreendente da parábola é que o patrão “roubado” reconhece e elogia a esperteza inteligente do ecônomo. O ensinamento não é um incentivo à desonestidade, mas para usar dos bens deste mundo – do dinheiro injusto – para fazer amigos. “Amigos” esses, todos especiais, uma vez que, quando acabar o dinheiro, acolherão os “filhos da luz” nas moradas eternas. Jesus está falando dos pobres, dos pequenos, beneficiados pela caridade de quem resolveu usar dos bens que administrava para socorrê-los. Alguém que foi luz na escuridão do sofrimento alheio.

O trecho do evangelho continua com outros ensinamentos que ao nosso entender lembram que a parábola foi dirigida “aos discípulos”. Para Jesus as coisas grandes são aquelas do Reino de Deus: a esperança e a vida plena que ele nos trouxe. As coisas pequenas são as riquezas deste mundo. Os cristãos devem ser exemplares nessas coisas menos valiosas para poder administrar as coisas “santas”. Devem dar testemunho de crer, acima de tudo, no valor inestimável do amor de Deus e na sua misericórdia sempre oferecida a todos.

Basta pouco para atualizar a parábola. Quantas energias de inteligência e esperteza são gastas para aumentar os lucros nesta nossa sociedade de consumo, de desperdício, de prazer e diversão! Não é questão de sobrevivência, mas de ganância mesmo. O coração humano fica insaciável, quando está a serviço do dinheiro. Estamos construindo uma sociedade, cada vez mais, desumana e excludente. As massas “sobrantes” de migrantes, empobrecidos e desempregados aumentam. Às vezes, até ações humanitárias são exploradas para enriquecimentos ilícitos e vergonhosos, às costas de multidões de sofredores sem terra, sem casa, sem pátria. É urgente que os cristãos se unam mais e aprendam a usar a inteligência da caridade, a esperteza da solidariedade e a argúcia da fraternidad e para encontrar caminhos novos. “Novos” ou antigos como a partilha e uma maior simplicidade de vida. Um grito por socorro nos vem, também, do Planeta Terra incapaz de sustentar tamanha produção de bens supérfluos, poluição, envenenamento da água e do ar, guerras e destruição. Não têm premonições de vulcões acordando. Não precisa contar mentiras sobre astros. Bastaria escutar mais a nossa consciência de cristãos e de seres humanos.

A alegria do céu

Com o evangelho deste domingo chegamos ao coração do próprio evangelho e também do Jubileu da Misericórdia, que está chegando ao fim. Vamos deixar que as três parábolas da misericórdia, que encontramos no capítulo 15 do evangelho de Lucas, falem ao nosso coração e marquem a nossa vida de cristãos chamados a ser misericordiosos como o nosso Pai é misericordioso. Começamos com a ovelha desgarrada, depois com a moeda perdida e, finalmente, com os dois filhos, cada um surpreendido, também se de maneira muito diferente, pela compaixão e o perdão do pai.

Os entendidos dizem que o costume dos pastores do tempo de Jesus era ir atrás da ovelha que se tinha afastado do resto do rebanho. Uma ovelha era sempre um bem que não podia ser desprezado. No entanto, quando a encontravam, quebravam uma perna dela. Não era por castigo e nem por maldade, era simplesmente para que a ovelha, tendo ficada aleijada, talvez conseguisse se lembrar e não abandonasse mais as outras. O pastor da parábola age de maneira diferente: carrega a ovelha desgarrada nos ombros e faz festa.

Os Padres da Igreja fazem uma leitura interessante da parábola da moeda perdida. Por que a mulher a procura com tanto cuidado? O que tinha de extraordinário aquela moeda de prata, além do seu valor material? Basta lembrar que, naquele tempo, as moedas traziam a imagem do rei ou do imperador. Cada pessoa é imagem de Deus. O pecador pode ter se esquecido disso, mas quando a moeda-pessoa é colocada novamente com as outras, volta a entender a sua beleza, o seu verdadeiro valor. Também a mulher faz festa.

Chegamos, enfim, à maravilhosa parábola do pai e dos dois filhos. Se o filho “pródigo” é aquele que mais chama atenção, na realidade, no centro da parábola está o pai. No texto original a palavra “pai” aparece doze vezes. Naquela família não tem mãe. Dá para entender que Jesus quis falar mesmo daquele Pai que ele veio nos fazer conhecer. O pai da parábola não deixa de surpreender a todos, ao filho mais novo e ao mais velho também. Primeiro aceita de dividir a herança antes de sua morte. Pela lei, o filho mais novo ficava com um terço da herança e o mais velho com dois terços. Por isso, o pai pode dizer ao filho mais velho: “Tudo o que é meu é teu”. Era o que t inha ficado da herança.

A casa paterna não é uma prisão para ninguém, nem para o filho mais novo, que quer ir embora iludido pela liberdade, nem para o filho mais velho, que lá permanece, porém, mais por interesse nos bens materiais que pelos laços familiares. O pai da parábola surpreende o filho mais novo, quando corre ao seu encontro, o abraça e o beija. De fato, esse filho, que tinha esbanjado tudo, não voltou por amor ao pai, mas pela fome, disposto a ser um simples empregado contanto que tivesse o que comer. No entanto, para este pai tão diferente, um filho, por errado que seja, nunca poderá ser um empregado. Logo é acolhido com todos os seus direitos: a melhor veste, o anel no dedo e as sandálias nos pés. Além disso, o pai organiza uma grand e festa com música e danças. Está feliz, mas não se esqueceu do filho mais velho que tinha ficado com raiva e não queria entrar em casa. De novo, sai e insiste para que este outro filho também participe da festa.

Com efeito, a alegria de um pai só pode ser plena não porque todos os filhos estão simplesmente recolhidos em casa, mas porque eles se acolhem entre si como irmãos, unidos pelo mesmo abraço misericordioso do único pai. Jesus termina assim a parábola; com a possibilidade ou não da reconciliação dos irmãos. Uma festa bonita, mas com um final incerto.

O Pai que Jesus veio nos fazer conhecer é bondoso, misericordioso, compassivo; sempre pronto a fazer festa por um filho que volta. Nós, infelizmente, continuamos como os dois filhos. Ás vezes fugimos para longe, atrás de uma liberdade que não existe. Outras vezes ficamos em casa, mas sem entender a bondade do Pai, prontos a cobrar dele mais castigos que perdão, cegados por uma justiça sem misericórdia. Falta muito ainda para aprendermos com o Pai a ser mais filhos e irmãos entre nós. Seria bonito, já experimentar na terra um pouco da alegria do céu.

A resposta

Um jovem queria entrar num mosteiro onde, tinha ouvido dizer, o superior era um grande santo. Apresentou-se na portaria e pediu para falar com o dito superior. Este mandou perguntar o que ele queria.

– Entrar no mosteiro – foi a resposta do jovem.
– Se for por isso, fique sabendo que todos aqueles que quiseram entrar tiveram que superar uma prova muito difícil. Deve encontrar a resposta ao quesito que lhe será proposto. Quando souber responder, poderá voltar, e o superior ficará bem feliz de acolhê-lo.

Logo que lhe foi colocada a pergunta, o jovem partiu em busca da resposta. Leu livros, consultou homens sábios e cultos, mas sem encontrá-la. Anos se passaram. Quando já tinha quase perdido a esperança, resolveu juntar as últimas forças para uma última tentativa e, finalmente, numa terra longínqua, encontrou a resposta ao quesito. Voltou para o mosteiro. Entregou a resposta para o porteiro que, rapidamente, deu-lhe o recado do santo superior. A resposta estava certa, mas agora ele devia esperar ainda mil e um dia; só depois seria admitido no mosteiro. O aspirante a monge ficou feliz, também se decepcionado pelo novo prazo. Curioso, perguntou ao porteiro:

– O que teria acontecido se não tivesse trazido a resposta certa?

– Neste caso – respondeu o monge – você teria sido acolhido imediatamente. Se tivesse desejado mesmo, de coração, entrar no mosteiro, teria deixado de lado o seu orgulho e teria dado o primeiro passo rumo à sabedoria.

O evangelho deste domingo pode nos deixar com alguma dúvida. De um lado, Jesus parece ser totalmente radical. Fala de um desapego geral: renunciar a tudo, aos laços primários de todo ser humano como os afetos familiares e, espantoso, até à própria vida. Do outro lado, parece nos convidar a sermos prudentes, a pensar bem, a calcular e a negociar. A dúvida está, portanto, na escolha decisiva – por que tanta exigência? – e também na nossa capacidade de dar conta, ou não, do compromisso assumido.

A resposta talvez esteja no primeiro versículo da leitura: “grandes multidões acompanhavam Jesus”. Nós, talvez, ficaríamos felizes de ter tantos seguidores. Sempre somos tentados a medir o valor de uma pessoa pelo número dos admiradores, dos fãs, dos torcedores ou dos votos ganhos em tempo de eleição. Nas redes sociais, basta digitar poucas palavras para nos tornarmos “seguidores” de alguém. Até do próprio Papa Francisco, se quisermos. No entanto, a Jesus não interessavam as multidões. Não porque não quisesse seguidores. Ele mesmo chamou pessoas a segui-lo, incluindo Judas, o traidor. Mas não discípulos de qualquer jeito. Multidões para hoje aplaudi-lo e, amanhã esquecê-lo, ou crucifica-lo, não! Simplesmente porque Jesus não buscava o seu sucesso pessoal. O que ele queria era ajudar os possíveis discípulos a, eles mesmos, fazerem uma escolha que desse sentido pleno às suas vidas. Algo de tão importante e valioso que iluminasse todo o seu agir.

Falando de nós, que tentamos ser discípulos de Jesus. Existe um amor que explique todos os nossos amores? Uma esperança que motive todos os nossos esforços? Uma certeza que não se abale apesar das traições, decepções, fracassos, desistências nossas e dos nossos companheiros de caminhada? Neste mundo tudo passa, por isso, nada de puramente humano, nenhuma criatura, pode satisfazer plenamente a nossa sede de amor, de alegria, de sentido da vida. Somente Deus pode nos amar sem nunca desistir ou decepcionar. Jesus nos pede a entrega total porque ele quer nos devolver toda a beleza da existência humana, sem os limites, as incertezas, as infidelidades que condicionam as nossa s decisões e os nossos compromissos, para amar como ele amou. Esta “decisão”, porém, que parece tão nossa, é também um dom que devemos pedir. Negociar ou calcular é reconhecer que se fosse somente por nós, nunca daríamos conta. Mas, se formos humildes, se aceitarmos as nossas fraquezas, se pedirmos a sua ajuda, não somente ele nos chama a segui-lo a cada dia, ele nos dá também um coração livre e corajoso, capaz de amar até o fim. Sem perder tempo.

O cruzado e o peregrino

No tempo das cruzadas, um peregrino, que chegava de Compostela, cansado da viagem, decidiu ficar por um tempo na praia de Ribeira, abrigando-se numa gruta. Depois, intencionava prosseguir rumo à Terra Santa. Os pescadores espanhóis, que passavam por aí, davam-lhe pão e alguns peixes. Em troca o andarilho contava as suas aventuras e a história daquele Jesus por causa do qual tinha começado as suas andanças de penitência. Morava nas redondezas um malvado cavaleiro, que tinha lutado contra os mouros na Espanha e os turcos na Terra Santa. Talvez mais pelos espólios do que pela fé. Ele não gostava de peregrinos, considerava-os vagabundos. Assim, quis colocar à prova o pobre homem. Decidiu convidá-lo para o almoço. Mas, quando o peregrino chegou, o mandou embora. O mesmo fez no dia seguinte e continuou por um mês inteiro. Enviava um servo para convidá-lo e depois o despachava sem nenhuma comida. No final, foi tocado pela humildade do andarilho e lhe pediu perdão. O santo homem lhe disse: “Meu jovem cavaleiro, eu sou um peregrino e caminho em sinal de penitência. Ando por onde o Senhor me chama e nesses dias ele me chamou por trinta vezes até a tua casa. Entendi que, se o Senhor me mandava interromper a minha viagem para te encontrar, esta era a sua vontade. Era para te mostrar que a alma do peregrino não retém nada para si e confia somente no amor de Deus”. O cavaleiro deixou tudo e seguiu o andarilho rumo à terra de Jesus. Desta vez sem a espada, somente com o bastão de peregrino.

A humildade é, sem dúvida, a grande lição do evangelho deste domingo. Juntas vão também a gratuidade e a generosidade. Devemos reconhecer que as coisas não mudaram muito desde os tempos de Jesus e os seus ensinamentos são de uma atualidade espantosa. O conselho para participar de um evento ocupando o último lugar é tão simples que parece óbvio. Não está certo nos considerarmos sempre os mais importantes com direito ao destaque. Nunca deveríamos ser nós mesmos a nos achar os tais. Que sejam os outros – ou quem nos convida – a nos colocar no lugar apropriado, mas nunca nós mesmos. Tudo com simplicidade, sem ostentação. Com discrição, sem soberba. No entanto, sempre somos tentados a estar na frente e não nos preocupamos com a vergonha de, talvez, te r que deixar o lugar para outro mais importante ou querido do que nós.

Nem se fala de convidarmos em nossa casa os pobres. É perigoso. Podem se acostumar, podem exigir mais ainda. É muito melhor que o nosso grupo de “amigos” continue restrito e fechado. Entre nós nos conhecemos; temos os nossos segredinhos, as nossas articulações, os nossos negócios. Além disso, é mais fácil falar bem de nós e falar mal dos outros. Tudo, ou quase, funciona com a troca de favores: uma mão lava a outra, hoje eu ajudo, amanhã você me devolve. Nada é de graça, tudo tem preço ou compromisso de vantagens futuras. Vivemos num Estado de Direito, mas até na fila dos pobres, sempre aparece alguém mais pobre que passa na frente, mas não porque o seja de verdade. Simplesmente conhece alguém que conhece a pessoa certa para abrir as portas, nem que seja o faxin eiro do escritório do doutor. Vale tudo. Pobre mesmo é aquele que não conhece ninguém a quem pedir e prometer algo em troca.

Como ressoam desafiadoras para nós cristãos as palavras de Jesus: “Então tu serás feliz! Porque eles – os pobres mesmo – não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos” (Lc 14,14). Seria muito bom, neste bendito Ano Santo da Misericórdia, fazer a experiência da compaixão, da solidariedade e da gratuidade, sem preconceitos, sem clubes fechados, sem pensar no que poderemos pedir e receber em troca. Precisamos aprender a confiar nas palavras do Senhor, quando seremos surpreendidos por ele. Jesus nos dirá: “Foi a mim que o fizestes!”. E nós, esquecidos, a questionar: “Quando, Senhor?” Que tal começarmos a fazer isso por um mês. Um mês só passa rápido, mas pode valer uma eternidade e, quem sabe, consigamo s tomar gosto com a bondade. Seremos felizes.

O Rio da Paz

Fulgêncio era um bom pai e um excelente esposo. Num dia triste de desventura, a jovem esposa dele partiu para sempre. Ele chorava, inconsolável. Certa noite, quando estava recolhido em sua cama e chorando baixinho para não acordar as crianças, Nossa Senhora das Lágrimas teve compaixão dele. Era uma visão calma e consoladora. Maria o tomou pela mão e lhe disse:

– Vem comigo, meu filho, iremos até o Rio da Paz. Andaram por muitos dias e atravessaram lugares tão escuros, que não era possível distinguir o dia da noite. Finalmente, Fulgêncio começou a escutar o ruído de águas correndo. Um rio imenso de águas puras e claras estava à frente deles.

– Mergulha no Rio da Paz, peregrino da dor – ordenou-lhe a Virgem – as suas águas vão derreter a tua pena e a tua angústia. Fulgêncio entrou na água. Sentiu no seu corpo todo uma grande paz e um novo vigor. Todas as suas feridas estavam sendo curadas. Quando saiu da água, perguntou a Nossa Senhora:

– De onde vêm as águas benfazejas deste rio?

– São as lágrimas do mundo – respondeu a Virgem – todas as lágrimas chegam aqui. Lágrimas amargas de medo, de dor, de decepção, de derrota, de raiva. Mas também lágrimas doces, aquelas derramadas por amor, pela volta de uma pessoa querida, por um perigo afastado. Fulgêncio percebeu os gemidos de todos os que lá tinham derramado lágrimas e compreendeu que, também, as suas agora faziam parte daquele único rio. Sentiu-se em comunhão com toda dor e alegria do mundo.

Naquele momento, Maria, a mãe de Jesus, falou-lhe da dor do seu filho. Fulgêncio escutou o choro de Jesus na frente do túmulo de Lázaro, o choro no Horto das Oliveiras, o choro da cruz. Lá estavam juntas, também, as lágrimas de Nossa Senhora. Naquele momento, Fulgêncio acordou. O travesseiro ainda estava molhado, mas uma paz profunda estava tomando conta dele. Não era mais o filho da dor, mas o filho da compaixão.

Acredito que Nossa Senhora da Assunção, que celebramos neste domingo, vai me perdoar se hoje a chamei de Nossa Senhora das Lágrimas. O nome não muda a santidade da pessoa e nem diminui a glória merecida. A Igreja nos convida a contemplar a glória de Maria, mas não para diminuir a sua humanidade; ao contrário, o faz para aproximá-la mais de todos nós e nos indicar, assim, o caminho do céu. Junto ao Filho Jesus ressuscitado, Maria, com a sua realidade corporal, lembra-nos a meta final da nossa busca e peregrinação terrena: a alegria de estar com Deus.

Esquecemos que estamos neste mundo só de passagem. Algo melhor, uma vida mais plena e feliz nos atende. Nós todos deveríamos desejar e preparar esta vida que é a própria vida de Deus Trindade. O Caminho para chegar e a Porta para entrar é Jesus. O segredo? O amor. Os indicadores? As lágrimas de dor e de compaixão. Assim foram as lágrimas de Jesus, pela sua infinita misericórdia com a nossa pobre humanidade, desfigurada pela violência, ódio, ganância que produzem infelicidade, sofrimento e morte. Foram também as lágrimas de Maria, quando, aos pés da cruz, entregou o seu filho nas mãos do Pai, sem poder fazer nada a não ser chorar e confiar. Como tantas m&atil de;es que choram, ainda hoje, os seus filhos. Somente se aceitamos não ser os donos da nossa vida e da vida dos outros, conseguimos suportar as separações que a morte nos traz.

Todos somos, em primeiro lugar, filhos amados pelo Pai. Ele nos permite nos amarmos por um tempo. Todos somos dons dele uns pelos outros. Dons que deveriam ser bem aproveitados e nunca desperdiçados. Deus não brinca de nos fazer sofrer. Não seria o Deus-amor. Chora conosco e, um dia, enxugará as nossas lágrimas, naquela vida plena de reencontro e comunhão que somente ele pode oferecer. Sem essa dimensão de fé, amor e esperança, é difícil suportar os sofrimentos. Parecem injustiças e castigos. Podem se tornar percursos de amor e compaixão. Nossa Senhora da Assunção já andou por esses caminhos e chegou à glória. Basta lembrar que não existem somente l&aacu te;grimas de dor; tem também lágrimas de alegria, esperança, solidariedade e, sobretudo, de compaixão. Um grande rio.

O herdeiro e as favas

O filho mais velho do duque de Turingia era considerado o mais poderoso e sortudo jovem de toda a Alemanha. Quanto antes, herdaria o ducado, as terras, as riquezas e o poder do pai. No entanto, era odiado pelos irmãos e primos que também queriam uma parte da herança. Certo dia, durante uma caçada, ficou separado dos seus companheiros. Viu um sinal de fumaça e cavalgou até onde estava o fogo. Lá encontrou um peregrino que estava cozinhando algumas favas. O jovem disse para o desconhecido:

– Tu hoje tens a honra de ter o futuro duque de Turingia como hospede. O que estás cozinhando no fogo?

O peregrino, sem levantar os olhos da panela, respondeu:

– Uma sopa de favas.

Então o príncipe pediu:

– Queres dar-me um pouco da sopa?

– Não – respondeu o homem – tem sopa somente para mim. Quando tu voltares ao castelo, terás toda a comida que quiseres. Eu não quero nada de ti e para mim o teu reino não vale quanto estas favas. Tu, talvez, desejas estas favas, mas eu não desejo nada do que tens. Reparas quantos inimigos juntaste. Querem roubar-te posses e riquezas. Eu sou pobre, mas livre e benquisto por todos e tenho as minhas favas. O herdeiro do trono olhou para o legítimo dono das favas. Pensou em todos os seus domínios, ao ódio dos seus irmãos e chorou.

Com certeza o evangelho deste domingo vai nos surpreender. Estamos demais acostumados a pensar num Jesus meigo e adocicado. Não é ele o “príncipe da paz”? Então por que fala de “fogo” e de divisão? Se por “paz” entendemos não poder falar e engolir tudo para fingir que está tudo bem. Essa não é a paz de Jesus. Pode ser a “paz” de quem não aceita críticas, de quem manda calar a boca, de quem ameaça e amedronta. Essa “paz” é só de fachada, é feita de gritos travessados na garganta, de mágoas guardadas, de mentiras a fim do bem, de suspiros de quem gostaria mudar as coisas, mas não sabe como. Essa “paz” é triste, cheira a indiferença e desânimo. É falsa.

A paz de Jesus é diferente. Não é barata, porque não pode ser fingida. Exige clareza. A verdade desmascara a superficialidade e os interesses espúrios. Por que fazer declarações de amor, quando, talvez, daquela pessoa nós somente desejamos o dinheiro dela e o conforto que a riqueza compra? Nenhuma família se sustenta só com presentes de Natal, festas de aniversários ou churrasquinhos e cervejas de final de semana. Essa é vida social; bem aproveitada, quem sabe, por medo de mexer mais a fundo e quebrar os equilíbrios concordados no silêncio.

A paz de Jesus nasce do “conflito”. Sim, porque existem “conflitos” que só podem gerar brigas e “conflitos” que, resolvidos, fazem acertar os passos e geram uma vida melhor. É o confronto – dolorido, é verdade – de quem precisa escutar e dialogar mais porque a alegria e a felicidade nossas e dos outros não podem ser impostas. São uma conquista que passa pela acolhida amorosa das limitações de cada um. Passa pela tolerância, o perdão, a partilha. Cresce com o esforço de não repetir erros, de não abusar da autoridade, de aprender a limitar a liberdade e o egoísmo próprios, para respeitar os direitos e o espa& ccedil;o vital dos outros.

As nossas famílias sofrem pela ideologia individualista da sociedade de hoje. Cada um busca o seu prazer, quer satisfazer os seus gostos – ou os seus caprichos – e pouco ou nada se importa com o respeito dos direitos dos outros. Assim os pais são bons somente quando compram tudo que os filhos desejam e os filhos são bons somente quando realizam os sonhos mais impossíveis dos pais. Ninguém escuta ninguém. Exige, cobra, quer ganhar. Raramente se pergunta se o outro pode, sabe ou consegue fazer o que pedimos. Os “conflitos” diminuem, amenizam-se e até desaparecem quando nos aceitamos – e nos amamos – por aquilo que somos e não por aquilo que temos. Quando todos juntos nos ajudamos a ser cada dia melhores. Sem ódios, invejas, ciúmes, indiferença. Quando aprendemos a conviver, a nos olhar, falar e escutar e não, simplesmente, a nos cruzar na cozinha, no quarto ou na frente da televisão. Essa é a paz humilde e sincera que desejo a todas as nossas famílias no Dia dos Pais. É a paz difícil de Jesus, mas verdadeira.

Setímio e o bandido

Muitos séculos atrás, caminhava pelo mundo um velho peregrino chamado Setímio. Quando não estava andando, ele parava em lugares afastados rezando e se alimentando com folhas e frutas. Toda noite, um anjo do Senhor descia do céu para lhe falar do paraíso. Num dia de chuva, aconteceu que o andarilho de Deus não conseguiu sair para encontrar comida. Estava com fome e com frio. Perdeu a paciência e disse:

– Que dia horrível!

Por nove dias, o anjo não compareceu. No décimo dia, veio e disse a Setímio:

– O Senhor está triste porque perdeste a paciência. Terás que fazer penitência. Crava e teu velho bastão no chão. Todo dia descerás três vezes ao rio, encherás a boca de água e assim molharás o bastão. Quando este florescerá, eu voltarei e te levarei para o paraíso.

– Setímio obedeceu. Certo dia, chegou por lá um perigoso bandido que estava fugindo dos que o caçavam. Viu o vaivém do peregrino e quis saber o porquê. Deu uma gargalhada e disse:

– Crês de verdade que o teu bastão um dia florescerá? E não achas a tua penitência pesada demais por uma culpa tão pequena? Imagina eu; qual seria a minha penitência por tudo o que aprontei?

Respondeu Setímio:

– A misericórdia de Deus é infinita.

Fazia alguns tempos que o ladrão sentia a dor do remorso pelo mal cometido e assim falou:

– Vou acreditar em ti. Ficarei contigo e seguirei o teu exemplo. Ele também cravou o seu bastão no chão e começou a rezar e a carregar a água, de manhã, ao meio dia e à tarde. Cada dia crescia o seu arrependimento, mas não acreditava que o bastão de um pecador, com o qual tantas vezes tinha batido e se defendido, iria mesmo florescer. Uma manhã, porém, Setímio chamou o bandido e lhe disse:

– Olha, o teu bastão floresceu e o meu não!

No mesmo dia, veio um anjo do céu e levou o ladrão para o paraíso. O bastão do velho andarilho floresceu muitos anos depois. Setímio não tinha se arrependido tão profundamente como o bandido e, algumas vezes, quando descia para o rio a buscar a água ainda se queixava que, afinal, aquela penitência era pesada demais por uma culpa tão pequena.

No evangelho deste domingo, Jesus nos lembra que os bens mais seguros são aqueles colocados nos cofres do céu: as obras de misericórdia, de compaixão e generosidade. Somos todos administradores da vida que recebemos em dom, do tempo que nos é dado para agir da melhor maneira. Ser encontrados acordados pelo dono da casa não significa simplesmente não dormir, mas não deixar entorpecer a nossa consciência pelos ídolos cativantes deste mundo. Ficar acordados é não perder o sentido mais profundo do nosso agir, das nossa escolhas, todo dia e toda hora. Ninguém sabe a hora em que o senhor vai voltar para abrir-lhe imediatamente a porta. O emprega do-discípulo deve estar sempre pronto e será feliz se for encontrado vigiando. Será premiado. Ao contrário, o servo que aproveitar da ausência do patrão para abusar da sua liberdade será punido, porque desobedeceu, apesar de conhecer a vontade do seu senhor.

Não é para ter medo (Lc 12,32), mas para colaborar alegremente e com responsabilidade com a obra que nos foi entregue. Estão em jogo os valores do Reino de Deus; este é o tesouro inestimável que nos foi entregue para administrar na história real da humanidade. Este é o “muito” que recebemos. Cabe aos cristãos fazer acontecer o Reino da justiça, da paz e do amor; de fato, na vida, de dia e de noite, sempre. Sem parar, porque o amor de Deus não descansa e os pobres não podem esperar, clamam ao seu Senhor. “Administrar” é usar bem dos recursos que temos à disposição. Não estamos neste mundo para e xplorar o planeta e transformá-lo em deserto, mas para fazê-lo florescer para a alegria de todos os seus habitantes, para um bem que seja grande e “comum”, porque administrado e repartido entre todos. Uma grande fraternidade. Sem exclusões e sem privilégios. Sem escravos e patrões. Nunca é tarde para se arrepender. E a penitência? Se reclamar, será pesada. Se acreditarmos, será o Reino acontecendo: mesa farta, festa, alegria para todos e…o Senhor “servindo”!

Um pobre morto

Em 1916, morreu Francisco José, imperador da Áustria. Por muitos anos, ele soubera conservar, sob o poderio paternal do seu cetro, muitos povos que antes viviam em contínuas guerras. O féretro foi levado à cripta da igreja dos Padres Capuchinhos de Viena, onde jazem outros reis e imperadores. O mestre de cerimônias bateu à porta.

– Quem é – perguntou do lado de dentro, segundo o cerimonial, um padre capuchinho.

Os cortesãos responderam: – Francisco José, imperador e rei.

Lá de dentro, a mesma voz austera do frade respondeu: Não o conheço.

Um momento de silêncio dentro da cripta. Do lado de fora, à porta, deliberavam os senhores e políticos. Batem outra vez. E outra vez insiste de dentro o guardião daquelas tumbas:

– Quem é?

– Francisco José de Habsburgo – respondem de fora os que sustentam em seus ombros o régio féretro. E de novo ouve-se a voz do frade:

– Não o conheço.

Mais um momento de silêncio. Mais um instante de deliberação. Urge, porém, entregar aqueles restos mortais que foram ontem de homem tão grande e que hoje ninguém os quer em parte alguma. Por isso, após um instante de imponente silêncio, outra vez a voz do Capuchinho interroga:

– Quem é? –

E o que responde em nome da política e da grandeza do império austríaco diz agora:

– Um pobre morto.

A voz serena e imutável do guardião daqueles túmulos responde imediatamente:

– Entre! Abrem-se as portas, entra o cadáver e, ali, como pobre morto, foi enterrado o celebre Francisco José, rei e imperador da Áustria. É certo que a morte nivela tudo.

Tem assuntos que nos incomodam. Não gostamos de enfrentá-los. Preferimos sempre deixá-los para depois, achando que será possível evitá-los. Só que eles são tão reais quanto a nossa própria vida. Um deles é a morte, certa para todos. O outro, objeto de tantos conflitos entre os herdeiros, também não oferece opções: nada carregaremos deste mundo, teremos que deixar tudo. Tudo mesmo. Desde quando nascemos e começamos a entender alguma coisa sabemos desta condição humana, no entanto, continuamos a querer acumular bens e dinheiro numa guerra contra os nossos semelhantes ou, como dizem os psicólogos, contra a nossa própria morte. Já somos perdedores antes de começar o jogo. Mas se a vida n&atil de;o serve para provar que somos os melhores, que somos mais inteligentes e poderosos, para que serve? Que gosto teria uma existência sem o prazer de enganar os outros, sem a mola da ganância e do lucro? Ou simplesmente sem ambições, sem pódios, sem medalhas, sem reis e rainhas, sem campeões? Será que Jesus, contando a parábola do rico “louco” queria esvaziar o sentido da nossa vida tão ocupada com os nossos negócios e disputas? O que nos resta, então?

As respostas estão no próprio evangelho deste domingo. Jesus nos apresenta um alerta e uma conclusão clara: “Assim acontece com quem junta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus” (Lc 12,21). A chamada de atenção é sobre “todo tipo de ganância”. Simplesmente porque “a vida de um homem não consiste na abundância de bens”. Esse é o grande engano: fazer coincidir o sentido da vida com a fartura. Ele mesmo, Jesus, seria o maior fracassado da história; não morreu somente pobre, mas também condenado e desprezado. A beleza da vida que ele ensinou e viveu foi muito diferente. Ele doou esperança e alegria aos excluídos. Mostrou aos pecadores o rosto misericordioso de um Deus Pai que n ão condena ou castiga, mas ama a todos e festeja o reencontro com quem estava perdido. Com uma vida simples e fraterna, feita de convivência e partilha, ensinou que a felicidade pode ser encontrada somente junto aos outros, carregando, solidários, alegrias e tristezas. Sentiu compaixão e chorou pelo sofrimento dos irmãos; exultou pelo entusiasmo dos pequenos que confiam em Deus. Também de Jesus disseram que estava fora de si. Também ele foi sepultado como um pobre morto. Mas Deus Pai o ressuscitou. Não podia ficar no túmulo aquele que, por amor, tinha doado tudo, até a própria vida. A loucura do amor é o único tesouro que vence a morte.