Dom Pedro Conti

A fuga

Na praia, o velho pescador tinha colocado a cesta com os caranguejos vivos ao lado dele e tinha caído no sono. Um senhor que passava o acordou:

– Veja, os seus caranguejos estão fugindo!

O velho, que sabia das coisas, lhe respondeu:

– Não se preocupe! Logo que um caranguejo consegue subir um pouco, outro o agarra e a este segundo caranguejo um outro vai se juntando. A fila começa a ficar pesada e todos caem novamente dentro da cesta. São eles mesmo que não deixam ninguém sair.

Acredito na experiência do velho pescador e fico pensando sobre o que, muitas vezes, nos impede de mudar de vida, de sermos cristãos melhores. Parece que alguma força nos puxa para trás. Assim continuamos na mesmice, convencidos de que já não tem jeito e que, talvez, nem valha mais a pena.

No evangelho deste segundo domingo de Advento, escutamos a vigorosa pregação de João Batista. Parece um profeta zangado, que reclama de tudo e de todos. Não era por menos. Multidões o procuravam, lá no deserto da Judéia, para o batismo de penitência que ele administrava na beira do rio Jordão. Eram moradores de Jerusalém, das redondezas, fariseus e saduceus. João chamava a todos de “raça de víboras” e cobrava deles “frutos de conversão”. Que culpa eles tinham? O que estavam fazendo de tão errado?

Entendemos que o evangelista Mateus quer nos falar, antecipadamente, da incapacidade deles de acolher aquele que virá depois: o próprio Jesus. No entanto, nesta página, João Batista revela a verdadeira razão da não acolhida: a falsa segurança que eles tinham. Pensavam que lhes bastasse ser “filhos de Abraão” para, digamos, agradar a Deus. No fundo, não importava tanto a vida real deles, porque só o privilégio de pertencer ao povo eleito era uma garantia mais que suficiente. Por isso, João cobrava frutos e ameaçava castigos. Sabemos que Jesus tomou atitudes mais misericordiosas. Todavia, nem por isso podemos pensar que o nosso “ser batiz ados” e o nosso afirmar que somos cristãos e que acreditamos – muitas vezes sem saber bem em que e em quem – nos garantam melhores condições perante às exigências grandes e bonitas do evangelho.

A Igreja, mãe e mestra, convida-nos todo ano a percorrer novamente o caminho da fé, principalmente através da memória dos eventos da vida de Cristo, das suas palavras e ações. Podemos achar que já sabemos tudo, que já estamos no caminho certo e que não precisamos mudar em nada. No fundo, nos consideramos bons cristãos ou, ao menos, melhores de tantos outros. São os nossos defeitos conhecidos: a acomodação, uma religiosidade formal, o nivelar tudo, pensando que uma crença valha a outra e que, portanto, não tenhamos que tomar demais a sério a “nossa” fé. Desse jeito nunca muda nada da nossa vida de cristãos.

Que Igreja queremos ser?

Neste final de semana, acontecerá no Centro de Pastoral e Cultura Dom José Maritano, em Macapá, a 22ª Assembleia Diocesana. É um momento importante para a nossa Diocese e marcará os rumos da nossa caminhada eclesial. Normalmente, a Assembleia acontece a cada quatro anos, acompanhando, quando possível, a frequência das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja (DGAE) propostas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Desta vez, porém, passaram-se cinco anos por causa do Congresso Eucarístico, realizado neste ano, e do Jubileu da Misericórdia. Sentimo-nos enriquecidos, também, pela experiência deste eventos.

Os participantes da Assembleia são o bispo, todos os padres presentes e atuantes na Diocese, os diáconos permanentes, alguns religiosos e religiosas representantes das respectivas comunidades, leigos e leigas representantes das paróquias, das pastorais, dos movimentos, dos grupos de serviço e das novas comunidades. Deveríamos chegar a cerca de trezentos participantes. O grupo mais numeroso será, justamente, dos leigos e das leigas que, de fato, formam a quase totalidade do Povo de Deus.

Para que serve uma Assembleia? Ela traça os rumos das principais vertentes da ação evangelizadora da Igreja: Palavra, Liturgia e Caridade. A Palavra se preocupa com a formação dos católicos desde as crianças, com a Iniciação Cristã, até a formação permanente de adultos. A Liturgia se interessa da participação ativa e consciente dos católicos nas celebrações litúrgicas, as Missas e os demais sacramentos. Por fim, a Caridade quer reunir e orientar todos aqueles e aquelas que se interessam das realidades sociais, da exclusão, da saúde, das atividades de promoção humana, da política . A Igreja não pode e não deve deixar de lado algo que seja verdadeiramente humano; a fé ilumina a vida e a vida dá testemunho da fé que afirmamos ter.

Uma Assembleia Diocesana é uma grande oportunidade para fazer um exercício real e singelo de comunhão e participação. O Povo de Deus é constituído por pessoas diferentes, com funções, ministérios e responsabilidades também diferentes. No entanto é fundamental nos conhecermos melhor uns aos outros, escutarmos mais e unirmos mais as forças. Hoje, o individualismo e o mundanismo – diria papa Francisco – entraram também na Igreja. Todos somos tentados a querer ser e fazer diferente dos outros. Buscamos algo que nos distinga em lugar de buscar o que nos una, acima e além das diversidades.

O mundanismo é a ambição de querer ser melhores do que os outros a qualquer custo, de não precisar da colaboração de ninguém e de ficar só se olhando no espelho, se autoelogiando e se vangloriando. É fácil entender que essas “tentações” estão à raiz de toda divisão, disputa, isolamento. Dessa maneira gastamos muitas forças e energias humanas e materiais pensando de conseguir anunciar o Evangelho de Jesus. Na realidade, quando o nosso povo participa de outra paróquia ou outro grupo se pergunta se somos a mesma Igreja, tão diferente é o jeito de rezar, cantar e pregar o Evangelho do mesmo Senhor Jesus. União não significa uniformidade, mas também nunca será alcançada se nos deixamos guiar pelas modas, os gostos e os caprichos pessoais. Os melhores frutos de uma Assembleia devem ser sempre a comunhão, a fraternidade e a alegria de caminharmos juntos. Além desse compromisso, o maior desafio, hoje, para a Igreja toda, não é saber e decidir o que fazer. Não somos uma empresa de eventos, tomada pela frenesi de um incansável ativismo. Talvez tenhamos até trabalhos demais. O mais difícil é saber como fazer as coisas, com liberdade e fidelidade. Livres para sermos criativos na organização, com um jeito novo de ir ao encontro das pessoas, mas, ao mesmo tempo, extremamente fiéis a um Senhor que privilegiou os pobres e os pequenos, que nunca se escondeu no Templo ou nas Sinagogas. Os seus momentos de oração, também aquele a sós com o Pai, sempre foram para tomar grandes decisões e aprender a acolher a todos a começar pelos pecadores.

Queremos ser uma Igreja unida, viva e fiel ao Senhor, consciente das própria limitações, que não busque alianças espúrias, vantagens ou privilégios indevidos, que seja corajosa na sua missão, saiba dialogar com todas as forças e as pessoas de boa vontade, no respeito pela vida humana, a natureza e as culturas. Queremos ser uma Igreja profética que rega aonde já foi semeado, mas não tenha medo de desbravar novas roças, para plantar alegria e esperança. Uma Igreja que olhe mais para fora de si do que para dentro, jovem, leve e generosa, sempre pronta a perdoar a todos e a corrigir as próprias rusgas e manchas. Bonita e resplandecente aos olho s dos pequenos e dos pobres, dos puros de coração e dos misericordiosos. A Igreja que Jesus quis.

“Ainda hoje estarás comigo no paraíso”

Neste final de semana, o papa Francisco fechará a Porta Santa na Basílica de São Pedro e encerrará, assim, o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, iniciado no dia 8 de dezembro de 2015. O mesmo acontecerá em todas as dioceses do mundo. Não será diferente em Macapá. Será neste sábado, 19 de novembro, junto aos nossos irmãos e irmãs das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reunidos no Encontrão anual. Penso poder dizer que trabalhamos bastante nesse tempo de graça. Abrimos muitas Portas Santas, rezamos e refletimos sobre a Misericórdia do Pai manifestada com as palavras e os gestos de Jesus, com a sua compaixão e a sua vida doada na cruz.

Na Festa de São José, lembramos o “pão de cada dia”, junto ao “Pão da Eucaristia”, mas também o pão da união das famílias, da acolhida dos pobres, da partilha solidária. A primeira experiência da misericórdia e do perdão deve acontecer em nossas casas. No Congresso Eucarístico, as paróquias todas colocaram as Obras de Misericórdia Corporais e Espirituais nas faixas e nas camisetas. Cantamos a Eucaristia “Pão da unidade, alimento da missão”. Nos orientaram as palavras de Jesus na Última Ceia, após ter lavado os pés dos discípulos, “Dei-vos o exemplo” e a despedida do mestre da Lei seguidas à parábola do Bom Samaritano: “Vai e faze a mesma coisa”. No Círio, chamamos Maria de Rainha e Mãe de Misericórdia. Não faltaram retiros, momentos de espiritualidade e, sobretudo, ocasiões para experimentar o perdão do Pai, através do Sacramento da Reconciliação ou Penitência, que ainda chamamos de “confissão”. Para quem soube aproveitar, ficarão boas lembranças. Tudo foi bonito: evangelização, gestos e eventos. Devemos agradecer ao Pai misericordioso e ao papa Francisco por esse tempo de bênçãos. É neste momento, porém, que devemos nos perguntar o que ficará para a nossa vida de cristãos. A nossa memória é curta e parece que sempre precisamos de algo diferente, algo que pareça novo para lembrar algo bem antigo e que nunca de veríamos ter esquecido. Não foi o papa Francisco que inventou a misericórdia de Deus, fomos nós que, talvez, a tínhamos deixada de lado.

Não foi assim para o evangelista Lucas que, ainda no final do seu evangelho, coloca palavras de bondade e misericórdia na boca de Jesus na cruz, prometendo ao ladrão arrependido o perdão e a acolhida no céu. Essa é a página do evangelho de Lucas que encontramos neste domingo da solenidade de Cristo Rei com a qual, também, concluímos o ano litúrgico. Já refletimos, muitas vezes, que o trono de Jesus é a cruz e que a sua coroa é de espinhos. Os grandes das nações “dominam sobre elas e os que exercem o poder se fazem chamar de benfeitores”. Para Jesus, ao contrário, o maior é aquele que serve a todos. Foi o que ele fe z em toda a sua vida terrena: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve” (Mt 22,27).

Todo cristão é chamado a servir. Talvez possa ser este o recado deste Ano Santo extraordinário: sermos servidores da Misericórdia, testemunhas vivas da bondade, da compaixão do perdão do Pai. “Misericordiosos como o Pai” foi o lema deste Jubileu. Vivemos numa sociedade complexa, onde sobram violência, corrupção, desinteresse e ganância e faltam acolhida, honestidade, solidariedade e generosidade. Se não queremos desperdiçar o que aprendemos no Ano Santo da Misericórdia precisamos viver a bondade. Papa Francisco pede às dioceses algum sinal, algum gesto que faça essa memória. Veremos o que será possível fazer p ara nós como Igreja local, mas todos poderemos fazer, pessoalmente, algum gesto simples de perdão e reconciliação. Talvez algo desejado e adiado há muito tempo. Também com o Senhor será sempre possível nos reconciliarmos. A porta do seu coração nunca será fechada. Se depois conhecemos alguma situação de pobreza e desemprego e uma ajuda real está ao nosso alcance, por que não aproveitar ainda deste tempo de compaixão? “Hoje” disse Jesus mais uma vez lá na cruz. O “hoje” dos servos da misericórdia que não deixam para amanhã o bem que podem fazer agora. Um hoje, um já, que pode valer o paraíso para sempre.

O segredo da coragem

Uma antiga lenda da Ásia Menor conta a história de Manuela, uma jovem que teria estado com outras mulheres aos pés da cruz de Jesus no Calvário. Manuela era muito tímida. Ficava calada o tempo todo, era muito difícil lhe arrancar algumas palavras. Também estava sem coragem para qualquer iniciativa. Tinha medo de tudo e de todos. Ficava parada, só escutando. Um dia, escutou também Jesus na beira do lago de Tiberíades. Ficou encantada com as palavras que saíam de sua boca. Todas elas suscitavam confiança e coragem. Assim, quando soube da ressurreição do Senhor, não precisou de aparições ou confirmações. De repente, levada por uma audácia nunca experimentada antes, transformou-se numa peregrina que anunciava a Boa Notícia de Jesus a todos os que encontrava. Tinha sido ele a lhe ensinar “o segredo da coragem”. Agora, não tinha mais medo de nada. Andava de aldeia em aldeia e reunia as mulheres. Os homens, pensava, não a teriam entendido. Não buscava as praças, mas lugares afastados: de baixo de uma árvore, perto de um forno para assar o pão, à beira de um poço ou de um riacho onde as mulheres lavavam a roupa. As palavras saiam fortes e claras da sua boca. Nunca preparava os discursos. Sabia que não era ela a escolher as palavras, mas o Espírito Santo. Certo dia, uma mulher, impressionada por tanta força, perguntou-lhe:

– Diga-me, qual é o segredo da sua coragem?

– A humildade, como ensinou Jesus – respondeu Manuela.

– Mas o que é a humildade? – insistiu a mulher.

– É ser a primeira a dizer: “Eu te amo”.

Sempre, chegando ao final do ano litúrgico, encontramos evangelhos que nos falam de acontecimentos pavorosos. O grandioso Templo de Jerusalém será destruído. Haverá guerras, revoluções, terremotos, fomes e pestes. Os discípulos serão odiados e perseguidos, aprisionados e levados perante os tribunais. Haverá muita confusão e alguém se apresentando como o novo Messias. Como não ter medo de tantas provações? No entanto, Jesus diz para não duvidar, para permanecer firmes. “Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé”. “É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida”.

Para entender as palavras de Jesus, que ficaram nos evangelhos, precisamos lembrar que muitas partes deles foram escritas após a destruição do Templo de Jerusalém, acontecida no ano de 70 d.C., e ainda durante várias perseguições aos cristãos. Aqueles discípulos apavorados e duvidosos que arriscavam a própria vida para ser fiéis a Jesus, precisavam de palavras de exortação e conforto. Os resultados foram surpreendentes: a fé cristã não foi abafada e nem apagada. Desde aquele tempo até hoje, podemos dizer, sem medo, que o sangue dos mártires é, de verdade, semente de novos cristãos. Aquelas palavras de Jesu s ficaram nos evangelhos não para afastar da fé e do seguimento dele, mas, ao contrário, para lembrar aos cristãos que críticas, perseguições e martírio, os acompanharão sempre. Afinal, todo cristão é discípulo de Alguém que foi crucificado!

Bastaria olhar um pouco para a história da humanidade e a contribuição que os cristãos deram à civilização e à humanização da sociedade para entender, mais ainda, os alertas dos evangelhos. Se depois abrimos o horizonte para tantas outras situações de perseguição de pessoas, de grupos, de povos inteiros – ameaçados e mortos por causa das crenças religiosas, das raças e da cobiça de invasores e colonizadores – reconhecemos a luta incansável entre o bem e o mal. Já aprendemos que, muito dificilmente, a verdade está do lado dos vencedores. Eles, depois, contam os fatos conforme o seu poder e as suas ideologias. É fácil, porque a voz dos mortos já foi silenciada. Só que “um morto ressuscitou” e a força do bem e da verdade não se cala mais. É uma força diferente. Cresce com a fraqueza e a humildade. Não mata, prefere morrer. Não persegue, aceita ser perseguida. Vence pelo testemunho do amor, da misericórdia e do perdão. Por isso, é invencível. Temos a coragem de acreditar? Chega de medo e timidez!

O pão e o sinal da cruz

Maria levantou cedo. Como sempre, começou a prepara a massa do pão. Em silêncio e bem devagar para não acordar José e o menino Jesus. Depois iria levar a massa para assar no forno da pequena aldeia. Estava com o coração pesado, porque naquele dia o pão seria bem pequeno para toda a família. Quando chegou ao forno, outras mulheres já estavam lá, conversando e reparando o que cada uma tinha trazido. Os pães seriam assados todos juntos, como de costume. Uma vizinha viu o pouco que Maria carregava e zombou: “Vocês não são mais três em casa?”. Não houve resposta. A mesma vizinha pensou maliciosamente que, na hora que o p&a tilde;o saísse do forno bem assado, Maria pudesse trocar o seu pequeno pão com o dela, muito maior. Assim, num momento de distração de Maria, ela traçou, com uma faca, um grande sinal de cruz sobre o pequeno pão que Maria tinha trazido. Isso para que não houvesse engano. Todos os pães foram para o forno. De vez em quando, o homem encarregado do serviço dava uma espiada para ver se tudo estava certo. Algo chamou a atenção dele e disse: “Tem um pão que está crescendo mais de que todos os outros. É uma maravilha, nunca vi nada igual!”. A tal de vizinha pensou logo no pão dela e disse para si mesma que, evidentemente, ninguém sabia preparar a massa tão bem como ela. Grande foi a surpresa de todas quando, finalmente, os pães saíram do forno. O maior de todos era aquele com o sinal da cruz. O sinal da inveja e do orgulho tinha-se transfor mado num sinal de generosidade e fartura. A notícia do prodígio se espalhou rapidamente e as mulheres começaram a marcar os seus pães com o sinal da cruz. Ainda hoje, muitas senhoras traçam sobre os pães caseiros um sinal de cruz. Junto à gratidão do alimento vai a bênção do Senhor.

No domingo da festa de Todos os Santos, uma pequena lenda de Nossa Senhora, para não fazer diferenças entre tantos santos e santas. Na semana que passou, lembramos também os nossos entes queridos falecidos. A memória das pessoas, dos exemplos que tivemos e ainda temos nos caminhos da vida, são muito importantes. Vivemos numa sociedade de notícias e informações rápidas e, na maioria das vezes, superficiais. Todos somo atraídos pelas novidades, sobretudo quando vem apresentadas com imagens que chamam a nossa atenção. Essas podem ser tocantes, mirabolantes, encantadoras. Outras vezes são tão chocantes que nos fazem sentir vergonha desta nossa humanid ade confusa.

As perguntas mais frequentes de quem consegue parar para pensar são: o que está acontecendo? Para onde vai este mundo? Muitos respondem: Falta Deus! Mas eu também digo: qual Deus? Nunca tivemos tantos templos, tantas opções religiosas, tanta propaganda do “nome de Jesus” e tantas bênção gratuitas e pagas. Há quem diga que também a religião virou comércio. Na sociedade do consumo, qualquer produto bem embalado e propagandeado dá lucro. Com certeza, uma luz nos vem dos santos e das santas que a Igreja nos propõe como exemplos de vida cristã. Todos e todas procuraram praticar o Evangelho de Jesus. Morreram pobres. Se orga nizaram obras e instituições não foi para benefício próprio, foram para os pequenos do seu tempo: crianças, enfermos, peregrinos, sobras da sociedade, povos inteiros a serem evangelizados. Muitos deles e delas foram mortos por causa da fé. Outros e outras se trancaram no silêncio de mosteiros para espalhar uma luz diferente, sem alarde, no escondimento e na oração.

Não buscaram novidades, anunciaram o Evangelho de sempre. Aquele bem antigo de Maria e José, de Pedro e de Paulo, de João e dos demais apóstolos. Antes de querer mudar a vida dos outros, mudaram as suas vidas. Com certeza, nós conhecemos alguns desses santos. Alguns caminharam e outros ainda caminham conosco. Acolheram as novidades e os desafios do seu tempo, mas pareciam e parecem ter certeza do rumo das coisas, do sentido de suas vidas. Confiaram e confiam no seu Senhor, crucificado e ressuscitado. Ele, Jesus, ontem, hoje e sempre.

Deixe para amanhã

Neste século de encontros e congressos, também os demônios convocaram uma assembleia. Seu objetivo era estudar novos métodos, mais eficientes para aumentar a sua freguesia, isto é, o número de sócios e candidatos ao inferno. Os palpites choveram de todos os lados:

– Vamos intensificar os programas de sexo e violência nos meios de comunicação.

– É preciso endurecer o coração do povo. Nada de fazer caridade. Formar a mentalidade que pobre é preguiçoso e que velho é peso morto.

– Vamos convencer o povo que missa e oração não enchem barriga. Religião é só para anestesiar as consciências.

– O povo deve aproveitar mais da vida. Mais prazer, mais drogas, mais bebidas, mais diversão. Os palpites continuavam, mas o chefe dos demônios sacudia a cabeça a cada nova sugestão.

– Isso tudo já estamos fazendo – dizia. Levantou-se, enfim, um demônio muito velho e experimentado que, pausadamente, deu a sua opinião:

– Vamos ensinar ao povo a fazer o que os padres ensinam, mas…comecem amanhã. Por exemplo: é necessário ir à missa e frequentar a comunidade, mas deixem para começar amanhã. É preciso corrigir os vícios, mas deixem para amanhã. Todos devem fazer o bem, mas deixem para fazer amanhã.

Essa opinião foi aprovada por unanimidade pela assembleia. E esta ficou sendo a tática diabólica: elogiar todas as boas iniciativas, mas sempre adiar para amanhã a sua execução.

Deixar as decisões para amanhã faz parte das famosas boas intenções das quais, dizem, é feito o piso do inferno. De fato, quando não se faz nada, ou pouco demais, nunca as coisas erradas vão mudar. Nesse sentido, é bom nos deixarmos surpreender, mais uma vez, pela insistência do evangelista Lucas em colocar nos lábios de Jesus a palavra “hoje”. Já a encontramos ao longo deste ano litúrgico e ainda a encontraremos no último domingo. “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é filho de Abraão” é a resposta de Jesus à declaração de Zaqueu, o chefe dos co bradores de impostos de Jericó: “Senhor, eu dou a metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais”.

Na página do evangelho, deste domingo, tudo parece acontecer às pressas. Na realidade, dá para perceber a longa inquietação de Zaqueu. A decisão dele não é um repente de loucura, mas a chegada de um longo caminho, após a superação de alguns obstáculos. Se alguém tem pressa é Jesus. É a pressa de quem ama. Com efeito, Zaqueu buscava ver quem era Jesus. Não sabemos o que Zaqueu pensava ou o que lhe tinham contado sobre o “profeta de Nazaré”. Devia ser um homem prático, acostumado na administração de bens palpáveis. Nada de conversa. Por isso, agora ele quer conhecer pessoalmente a Jesus. M as é baixo de estatura, a multidão atrapalha, é difícil ver o Mestre. Poderia desistir. Mas não, insiste, quer porque quer. Soube numa árvore. Agora dá para enxergar, mas antes quem o vê é o próprio Jesus que o chama pelo nome e se autoconvida para ir à casa dele.

A arte narrativa de Lucas é maravilhosa e profunda. Antes de Zaqueu procurar a Jesus fica claro que já era o próprio Jesus a querer encontrá-lo. Assim, aquela casa de cobranças, negócios, enganos, roubos e exploração se torna “casa de salvação”, porque qualquer lugar pode ser transformado – qualquer coração, qualquer intimidade – quando deixamos Jesus entrar. Zaqueu que tinha gastado tantas energias para acumular a sua fortuna agora fica feliz em doar metade dos seu bens aos pobres. Devolve quatro vezes mais a quem tinha defraudado. A falsa euforia de acumular desaparece; instala-se a pura alegria de poder fazer felizes os outros, os pob res, os injustiçados. Esta é a salvação. Aquele “hoje” foi um grande dia de festa na casa de Zaqueu. Como na casa do Pai, quando o filho perdido voltou; como na casa do Bom Pastor, quando a ovelha desgarrada foi encontrada. Todos nós buscamos a felicidade; muitas vezes por caminhos errados e com voltas infinitas. O único jeito certo para dar sentido à nossa vida é fazer o bem, amar como Jesus amou. Mas é para “hoje”, viu?

O angelim e o bambu

O angelim disse ao bambu: “Tu não tens sorte na vida. Os passarinhos não fazem seus ninhos contigo e basta um pouco de vento que tens que baixar a cabeça. Olha para mim! Eu fico sempre de cabeça erguida contra o sol, resisto como as montanhas e desafio os ventos. Para ti, cada pé de vento é uma tempestade, para mim cada tempestade é um pé de vento. Ainda mais: o Céu não te fez nascer ao abrigo da minha sombra. A natureza te fez nascer na beira dos igapós, no meio do vento e da lama”.

Estava ainda falando, quando se levantou uma tempestade sem igual, com um vento que mexia com força todo o mato. O bambu não ficou muito prejudicado, baixou a cabeça, curvou as costas ao vento e resistiu. O angelim, porém, resistiu às primeiras rajadas, mas depois o vento acabou com a árvore: as folhas e os ramos voaram longe e as raízes ficaram no ar.

Domingo passado, Jesus nos ensinava a não desistir da oração. Desta vez, com a parábola do fariseu e do cobrador de impostos, que vão ao templo para rezar, ele nos diz qual deve ser a melhor atitude, quando nos colocamos perante a grandeza e a misericórdia de Deus. A própria situação humana deveria nos orientar para a humildade, no entanto, até na hora de levantar os olhos para o alto, em lugar de reconhecer as nossas fraquezas, aparece o demônio do nosso orgulho. Nada de mais errado; pensamos em nos aproximar de Deus e, na realidade, com a oração arrogante, ficamos mais longe dele.

Jesus não escolhia por acaso as personagens das suas parábolas. Os fariseus foram seus inimigos declarados, sempre polemizando e acusando-o de ser um desobediente escandaloso. Jesus também não poupou os fariseus “hipócritas” nas suas pregações. A causa de tantas controvérsias era, sabemos, a interpretação da Lei de Moisés. Para os fariseu devia ser obedecida ao pé da letra, nos mínimos detalhes, alguns deles quase impossíveis de serem cumpridos. Jesus, aos olhos dos fariseus, se apresentava livre. Capaz de obedecer a algumas normas, mas decididamente contrário aquelas regras que pretendiam julgar e condenar quem não as cumpria. Para Jesus a misericórdia do Pai estava muito acima de tod a lei, vinha antes de toda normativa, porque Deus ama a todos e a todos quer oferecer o seu perdão. Mais chocante, ainda, para os fariseus, era que Jesus acolhia os pecadores e falava da alegria do Céu pela volta de um só deles. Tudo isto incomodava os fariseus, fazia cair o seu castelo de preceitos que, segundo eles, devia-lhes garantir o prêmio eterno. Não cabia na mente e no coração deles que Deus pudesse ser tão generoso e que a salvação fosse, afinal, um dom gratuito da sua bondade e não a consequência de direitos adquiridos pela simples e fria obediência a uma Lei.

Os fariseus tinham medo do perdão; achavam que isso podia parecer um prêmio para os pecadores e, com isso, incentivá-los a pecar. A experiência de Jesus nos encontros com os cobradores de impostos e as prostitutas, apresentados nos evangelhos, provam claramente o contrário: é a misericórdia que aproxima e faz mudar de vida, não o rigor e a punição da Lei. É porque já fomos muito amados que acabamos reconhecendo que o melhor é amar.

Entendemos, com isso, que a oração do cristão deve ser mais semelhante àquela do cobrador de impostos, não por termos necessariamente grandes pecados, mas simplesmente para nos dispormos a acolher com humildade o amor misericordioso do Pai. Um coração orgulhoso, de quem se considera melhor do que os outros, que julga e condena, afasta de Deus. Ao contrário, o reconhecimento da nossa urgente necessidade da bondade do Pai, aproxima-nos dele, coloca-nos na condição também de sermos “misericordiosos como o Pai é misericordioso”. O cobrador de impostos não é um exemplo para nós pelos seus pecados, mas pela humildade e a sinceridade em reconhece-los e, assim, poder ser perdoado. Dobrar a cabeça e p edir perdão a Deus e aos irmãos, que ofendemos e ignoramos, não é tão mal assim. É questão de vida plena na fraternidade ou de orgulho inútil na autocontemplação. Vida ou morte. Como o bambu. Nas tempestades e…Sempre.

O lobo e a cegonha

O lobo engoliu um osso que ficou preso na sua garganta. A dor, muito grande, amansou o lobo, que começou a convidar todos os bichos, um por um, para curá-lo, fazendo muitas promessas. Afinal, depois de muita negociação, a cegonha aceitou. Colocou seu longo pescoço dentro da garganta do lobo e conseguiu fazer aquela operação tão arriscada. Depois, pediu a paga que havia combinado. Aí o lobo respondeu: “És muito ingrata! Tu tiraste da minha boca a tua cabeça sem prejuízo, e ainda tens coragem de me falar em recompensa?”.

Uma pequena história para duvidar se pode haver justiça entre desiguais. No entanto Jesus, no evangelho deste domingo, surpreende-nos com uma parábola onde um juiz, que ele mesmo afirma ser injusto porque não temia a Deus e não respeitava homem algum, acaba julgando a favor de uma pobre viúva, que insistia demais com ele a ponto de aborrecê-lo. A perseverança da mulher dobrou a insensibilidade do juiz corrupto.

Muitas vezes, ouvimos falar da morosidade da justiça, da facilidade com a qual, entre recursos e apelos, esgota-se o prazo para o julgamento. A espera de quem aguarda justiça e não tem meios para defender os seus direitos, contra alguém maior e mais poderoso, é sempre sofrida. Às vezes, o lado mais pobre acaba desistindo de antemão da questão, pela simples razão de achar impossível ser atendido, tão grande é a desigualdade entre os adversários. Nem todo Davi tem coragem para enfrentar Golias.

Jesus, porém, ensina-nos hoje a não desistir nunca e, não de uma disputa judicial, mas nada menos que da oração. Oração dirigida a Deus. Esse é o único “juiz” justo que não adia sem fim a resposta a quem grita por ele dia e noite. Por isso, é necessário rezar sempre, nunca desistir. Deus irá atender depressa os seus escolhidos.

Depois dessas minhas palavras, vejo muitos sorrindo desconfiados. Escuto muitos dizendo que cansaram de rezar, porque não foram atendidos. Jesus mentiu? Iludiu a todos nós com falsas promessas? Temos direito de duvidar das suas palavras ou precisamos entender melhor o seu ensinamento? A nossa cabeça e o nosso coração estão cheios de pedidos a Deus, alguns são sinceros e honestos. Rezamos pelas nossas famílias, pela vida e a saúde de todos, pela paz, pelo fim da violência, da fome e das guerras. Outras vezes os nossos pedidos são mais interesseiros, desejamos o nosso bem-estar, a vitória nossa ou do time do nosso coração. No fundo, somos nós que decidimos o que consideramos bom e útil para nós e para quem nos interessa. Poucas vezes nos preocupamos de nos questionar sobre o que ele, Deus, gostaria nos oferecer, nos dar com fartura se tivéssemos a fé e a perseverança de pedir, insistindo na oração, como a viúva da parábola insistiu com o juiz.

A “justiça” de Deus é o seu amor, a sua consolação. Não necessariamente é a nossa saúde, o prevalecer dos nossos interesses, o nosso bem-estar. O grande presente que ele quer nos dar, em primeiro lugar e acima de tudo, é ele mesmo. Não quer ser trocado por coisas materiais e passageiras; quer entrar a fazer parte das nossas vidas, porque começamos a pensar e a agir como ele pensa e age. Nada de egoísmos, patrimônios particulares, áreas reservadas, muros de separação. Ele nos pede uma justiça que nasce da fraternidade e não da disputa; uma partilha do necessário para todos e não o acúmulo de alguns e a miséria de outros. Quer a nossa gener osidade na doação daquilo que vale e não a esmola das sobras daquilo que descartamos. Nós continuamos a não acreditar nele, a não confiar que tudo pode mudar com o amor fraterno, com uma justiça aliada à misericórdia, incluindo também os bens materiais necessários para uma vida mais digna e mais humana para todos. Jesus conclui este trecho do evangelho com uma pergunta assustadora: “Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?”. Com certeza vai encontrar muito medo de perder dinheiro, bens e privilégios. Rezemos para que o bom Deus, justo e misericordioso, aumente a nossa fé e o nosso amor e não somente o nosso patrimônio.

Rogai por nós pecadores

O fato de celebrar o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, neste domingo, já seria suficiente para refletir e agradecer. Chamamos Maria, de Nossa Senhora e, com mais carinho ainda, a declaramos “mãe de misericórdia”. Acreditamos na sua proteção, na sua intercessão junto a Jesus, como mãe amorosa que nunca desampara os seus filhos. No entanto encontrei uma história tocante. O beato Tito Brandsma foi um padre holandês, morto no dia 25 de julho de 1942, após longos sofrimentos no campo de concentração nazista de Dachau. Quem deu esse depoimento foi nada menos que a própria enfermeira que, naquele triste dia, injetou-lhe, na veia, o ácido fênico que o mataria. A enfermeira já havia reparado que aquele preso era diferente de outros; sofria em silêncio e a tratava bem, apesar dela usar maus-tratos com ele e com os demais. Foi a ela que padre Tito entregou o terço de madeira e arame antes de receber a injeção fatal. A princípio, ela recusou o presente, porque disse que não sabia rezar. Padre Tito lhe respondeu: “Não é preciso dizeres toda a Ave-Maria, mas diz apenas: Rogai por nós, pecadores”.

Aquela enfermeira estava acostumada a injetar o líquido mortal nos presos condenados, tinha feito isso centenas de vezes, mas, dessa vez, sentiu-se mal durante todo aquele dia. Nos processos canônicos para a beatificação do padre Tito Brandsma, a mesma senhora explicou que o rosto daquele velho padre tinha ficado impresso na memória dela, para sempre, porque nele havia lido algo que nunca tinha visto. Disse simplesmente: “Ele tinha compaixão de mim!”. Ela contou que o médico do campo chamava aquela injeção de “injeção da graça” porque acabava, com a morte, todos os sofrimentos daqueles presos. Mas naquele dia, enquanto a enfermeira a injetava, a oração de padre Tito d erramava sobre ela a graça de Deus. Deus lhe concedeu esse último milagre. Ela aprendeu a crer e a rezar “Rogai por nós pecadores”.

Pedimos sempre muitas graças e favores a Maria. Não sei se imploramos, também, a cura dos nossos pecados, porque misericórdia é também perdão, reconciliação, cura do ódio e das vinganças, abraços de reencontro. Por que é tão difícil pedir perdão? Porque é muito difícil nos reconhecermos pecadores, aceitar que erramos e nos deixamos levar por maus sentimentos. Ou ainda, admitir o medo que os bons sentimentos – de compaixão e solidariedade – comecem a habitar em nosso coração. Assim, refugiamo-nos na indiferença, na insensibilidade, fechando olhos e ouvidos. Talvez não façamos tantas coisas erradas, tanto mal, n&atild e;o sejamos causa de sofrimento e lágrimas para os outros, mas também não nos deixamos incomodar pelas injustiças, pela exclusão social, pelas carências dos irmãos. É triste dizer isso, mas parece que temos medo de ser bons, misericordiosos, compassivos. É o bem dado e recebido que muda os relacionamentos, transforma os corações, gera paz, vida nova, alegria. Só o amor abre caminhos novos, faz renascer a esperança. O mal afasta, entristece, fecha-nos na amarga solidão.

No evangelho deste domingo, ao único leproso curado que volta para agradecer, ajoelhado aos seus pés, Jesus diz: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou”. Salvou de quê? Já não estava curado da lepra? A “cura” de Jesus vai muito além da doença física. Essa, muitas vezes, não se realiza como nós pensamos, mas a nossa oração não é inútil, nunca está perdida. Sempre é ouvida. Se confiamos e acreditamos, acontece a cura espiritual, a capacidade também de sermos misericordiosos, de termos compaixão, de darmos amor. É isto que está faltando na nossa oração. Quando rezamos as Ave-Marias, deveríamos pedir, tam bém, a cura do egoísmo e da indiferença. Deveríamos pedir a força e a coragem de nos amar mais, de nos doar mais, de sermos mais humanos e fraternos.

No Círio, neste Ano Santo da Misericórdia, repetimos todos: Salve Rainha, mãe de misericórdia, rogai por nós pecadores! Somos pecadores, mas pedimos para ser curados, perdoados, salvos. E agradeçamos pelo perdão. Misericórdia e gratidão andam juntas.

A paz do coração

Contam que São Teodoro era continuamente atormentado pelos demônios. Sobretudo durante os momentos nos quais costumava rezar. Certo dia, confessou ao seu diretor espiritual que tinha visto Satanás travestido de Anjo da Luz, que o lisonjeava com estas palavras:

– Eu amo os ambiciosos: eles serão minha propriedade! Tu és ambicioso e, por isso, te levarei comigo! Teodoro, afundado na escuridão do medo e do desespero gritou a Deus:

– Senhor, veja como os demônios me impedem de rezar. Diga-me, por favor, o que tenho que fazer para afugentá-los? O Senhor lhe respondeu:

– Os demônios não deixam de atormentar as almas orgulhosas. O santo se ajoelhou e suplicou:

– Senhor, diga-me. Quais pensamentos afastarão o Maligno e iluminarão a minha alma? Deus, na sua infinita paciência, o ensinou:

– Quando Satanás vier a ti, diga-lhe: “Eu sou o pior de todos!”. Assim começou a fazer São Teodoro e, a partir daquele dia, encontrou a paz do coração.

O trecho do evangelho de Lucas, deste domingo, começa com um pedido dos apóstolos: “Aumenta a nossa fé”. Uma oração singela que revela a dificuldade dos discípulos, mas também de todo cristão, para alcançar uma fé firme ou, ao menos, minimamente digna desse nome. A resposta de Jesus é, ao mesmo tempo, uma comparação e uma advertência. Para a fé, não existe uma medida humana que permita alguma medição em metros ou quilos. Em si, o grão de mostarda é uma semente muito pequena, quase imensurável. Também a fé não se mede por alguma coisa grandiosa que chame atenç&a tilde;o pela sua originalidade. Será que, se tivermos fé como um grão de mostarda poderíamos pedir a Deus qualquer coisa? Por exagerada ou estrambólica que seja? Sinceramente, não sei se uma amoreira plantada no mar, com raízes e tudo, sobreviveria e serviria mesmo para alguma coisa. O que Jesus queria dizer afinal?

Está claro que algumas palavras de Jesus nunca deixam de nos surpreender e que também alguns exemplos dele que, com certeza, podiam ser entendidos naquele tempo, hoje são difíceis para nós. As palavras também têm as suas limitações e o sentido delas pode mudar com as épocas. No entanto, acredito que seja necessário nos deixar questionar pela parábola que Jesus conta em seguida e que também não deixa de nos inquietar. Como é possível que um bom patrão seja tão exigente com o seu empregado e não reconheça também o cansaço dele, após um dia inteiro suado na roça? Será que som os mesmo servos inúteis que, simplesmente, cumprimos as nossas obrigações?

Jesus é um “senhor” exigente, mas não devemos ficar somente com as palavras do evangelho deste domingo, em outras páginas, ele falou também de festa e de recompensa para os “servos” fiéis. Como entender, portanto, essas palavras tão duras? A lição dele é sempre sobre a humildade. A nossa alegria não deve consistir no sucesso pessoal, em elogios ou promoções. A felicidade do discípulo-servo deve consistir, simplesmente, em ter consciência que está colaborando com algo de muito maior dos resultados que ele pode, ou não, ver. Todo discípulo é um simples “operário” do Reino que &eac ute; de Deus e, com isso, nunca comparável com os reinos humanos. Esses se medem pela extensão, pelas riquezas, pelo poder. O Reino de Deus não é uma “superpotência” disputando com outras. Não tem “Banco Central”. Dele, não conhecemos os limites, porque a misericórdia do Pai é infinita. Não conhecemos o patrimônio guardado, porque os tesouros do céu serão revelados somente no último dia; o dia da verdade, mas também do amor doado ou negado. A fé do discípulo deve crescer junto com a sua humildade. Devemos acreditar que até um copo de água será contabilizado, mas devemos lembrar que também isso foi um dom de Deus que nos ofereceu a possibilidade de fazer o bem, de trabalhar na imensa seara da sua bondade manifestada na história conturbada da humanidade. Ainda os servos “inúteis” pergu ntarão: “Quando foi Senhor?” Melhor sempre pensar que somos os últimos, os piores, para um dia, Ele, e somente Ele, nos chamar para a festa do Reino.