Dom Pedro Conti

Três coisas

Um estudante medíocre, de pouca vivacidade, reclamou com o seu mestre que lhe faltavam belas roupas, uma chácara bem produtiva e uma linda mulher, justamente as três coisas que, segundo o Talmude, o livro que interpreta, comenta e exemplifica a Lei judaica, servem para dilatar a inteligência.
– Veja bem, meu filho – respondeu-lhe o mestre com voz calma e suave – essas três coisas servem só para desenvolver a inteligência do ser humano e não para criá-la. No seu caso… não lhe adiantariam em nada.

Já refletimos, domingo passado, sobre a “inteligência” das coisas de Deus. Esta “sabedoria” é diferente dos saberes humanos, é dom do próprio Deus e não fruto esmerado de conhecimentos e raciocínios intelectuais. É dessa maneira que Jesus responde aos discípulos que lhe tinham perguntado por que ensinava em parábolas: “Porque a vós foi dado o conhecimento dos mistérios do reino dos céus, mas a eles não é dado” (Mt 13,10-11). As parábolas de Jesus são, portanto, em primeiro lu gar, uma revelação do próprio Deus que quer se fazer conhecer para poder ser amado. Contudo, nós continuamos a ser criaturas limitadas e nunca conseguiremos esgotar as maravilhas de Deus. Por isso, iniciando neste domingo a leitura do capítulo 13 do evangelho de Mateus, que é o chamado “discurso em parábolas”, podemos ficar entusiasmados pelas histórias, mas, ao mesmo tempo, apreensivos pela linguagem simbólica.

O que o Senhor, quer nos dizer afinal? É uma pergunta legítima que sempre pedirá uma resposta aberta, dinâmica, cheia de surpresas, porque Deus não se explica só com palavras humanas ou afirmações doutrinais. A condição para entender as parábolas é nos deixar envolver, nos deixar conduzir por dentro da sucessão dos acontecimentos. A resposta nunca será puramente intelectual, exigirá participação, risco, conversão, misericórdia. Ouso dizer que as parábolas devem ser vividas, experiment adas para dinamizar, também, a nossa fé. Assim é que se descortinam, para os que confiam em Jesus, “os mistérios do reino dos céus”. No “mistério” de Deus, entramos, navegamos, nunca chegamos ao fim, mas nunca cansamos. Ao contrário, ficamos mais felizes.

A parábola do semeador, que abre este capítulo do Evangelho de Mateus, é exemplar. Tem algo ilógico e inconveniente: onde se viu semear na beira da estrada, nas pedras ou no meio dos espinhos? Um empresário “inteligente” semearia só e exclusivamente em terra boa. Por que correr o perigo de desperdiçar semente, tempo e energias? Tudo é dinheiro! Evidentemente a “lógica” do reino dos céus é diferente. O Semeador semeia com fartura e se entendermos que esta semente, que brota logo mesmo em condições adversas, é ; a Palavra de Deus – como o próprio Evangelho explica – só podemos nos admirar da generosidade do Pai. A todos é oferecida, de mil maneiras, a possibilidade de acolher algo bom e fecundo: uma mensagem, uma proposta, um exemplo. Talvez tenhamos que reconhecer, objetivamente, que todos nós desperdiçamos sem dó infinitas possibilidade de bem, de aprender caminhos mais honestos, mais simples e humildes. Quantos cristãos adultos sepultam no esquecimento os bons sentimentos que aprenderam e experimentaram na infância e na juventude. A fé simples daquele tempo não vingou. A oração decorada não se tornou confiança e intimidade com o Pai. Quantas verdades, que outrora nos pareciam maravilhosas, foram jogadas fora, se não como lixo, talvez como algo de inútil e supérfluo. Confundimos ser adultos com deixar de crer; não fomos o bom terreno que multip lica as sementes. O que estou dizendo não é uma crítica, é um convite a um exame de consciência pessoal, mas, também, para as nossas comunidades que se esforçam para semear a fé e o amor de Deus no coração dos cristãos. Estamos convencidos, graças a Deus, que a semente da Palavra é excelente, insuperável, viva, pronta a enraizar. O que fazemos para que os terrenos das nossas vidas sejam mais acolhedores e mais fecundos? É o desafio da evangelização, mas talvez também da nossa “inteligência” e das nossas escolhas.

O valor do cavalo

Havia uma discussão entre amigos, porque certos assuntos dão sempre espaço à troca de opiniões. A questão era se as pessoas inteligentes têm maior ou menor dificuldade para retomar o caminho certo, depois de terem se desviado dele? O sábio Beraq convidou os presentes a responder primeiro à outra questão:

– Por que um cavalo ligeiro vale dez vezes mais do que um cavalo vagaroso?

– Obviamente porque corre dez vezes mais rápido – alguns logo responderam.

– Certo, mas – disse Beraq – se o cavalo se extraviar, também se perderá dez vezes mais de pressa.

– Quer dizer, amigo – continuou um colega – que este seria um grave defeito!

– Mas também, não se esqueça, meu caro, que o cavalo mais veloz, reencontrando o caminho certo, recuperará dez vezes mais de pressa o tempo perdido.
O sábio Beraq concluiu:

– Quando um homem inteligente se arrepende do mal que fez, volta para a situação anterior dez vezes mais de pressa do que o preguiçoso. O inteligente se reabilita dos seus erros mais rapidamente que o acanhado e o curto de imaginação.

Uma historinha contada não para exaltar os inteligentes, tampouco para rebaixar os menos sabidos. O que interessa é a capacidade de corrigir o, mais rápido possível, os nossos próprios desvios. Permanecer no erro, sabendo que estamos errados, é sinal de burrice. No evangelho deste domingo, Jesus louva ao Pai, porque ele revela as coisas do Reino aos simples e pequenos e as esconde aos inteligentes e estudados. Nada contra os estudiosos, como também nenhum convite à ignorância ou ao comodismo intelectual. Jesus está falando de ou tra “compreensão”: a inteligência das coisas de Deus. O saber sobre elas não depende dos estudos e do nível de inteligência, depende somente da bondade do próprio Deus, que se revela a quem está disposto a acolhê-lo e a deixar-se transformar por Ele. Esta última é, evidentemente, a parte que nos cabe. Com efeito, para nada adiantaria a bondade e a generosidade de Deus em se fazer conhecer e encontrar, se nós não estivermos dispostos a nos deixar envolver pelas suas maravilhas. Aqui está, também, a diferença entre aqueles que Jesus chama de “sábios e entendidos” e aqueles que ele define como “pequeninos”. Fique bem claro que estamos falando de “coisas espirituais”, os “mistérios” de Deus, e não de ciências humanas ou de ganhadores de Prêmio Nobel.

No tempo de Jesus, os “doutores” eram aqueles que estavam por dentro das Sagradas Escrituras, que acreditavam ter entendido tudo da Lei e dos Profetas. É com eles que Jesus polemiza. A certa altura, ele os manda estudar melhor, porque não o escutam e não querem acreditar nele (Jo 5,39-40). A princípio, todo conhecimento, como qualquer coisa humana, não é nem bom e nem mal. Depende de como o usamos e as suas consequências em nossas vidas. Por exemplo, o conhecimento científico e tecnológico pode ser usado para explorar e ame açar os menos desenvolvidos, supervalorizando os próprios avanços, ou pode ser colocado a serviço do bem-estar de todos. Todo saber pode abrir horizontes para a felicidade e a vida como, infelizmente, para a tristeza e a morte. Quando o ser humano se enche de orgulho pela sua inteligência e as suas conquistas, acaba se fechando no próprio encantamento. Na sua cabeça e no seu coração não tem mais lugar nem para Deus e nem para os irmãos. O saber das “coisas de Deus” precisa da humildade, da consciência que sempre seremos muito pequenos, apesar de tantos progressos e conquistas. Deus não quer nos humilhar por causa de nossas limitações, porque não está disputando poder com ninguém. Não precisa. Está pronto a doar-se a quem lhe abre o coração, a quem sente que lhe falta ainda muito, a quem já entendeu que nenh um bem material pode preencher de alegria plena a sua vida. Mais “inteligente” para Jesus não é, portanto, aquele que tem um conhecimento enciclopédico, mas quem coloca o seu saber a serviço da vida e se dispõe sempre a aprender algo novo, a se maravilhar das surpresas da misericórdia infinita de Deus. É esperto aquele que, se estiver ainda longe disso, corre rápido para não perder mais nada da abundância do Amor que o Pai oferece aos pequenos.

Deus e os ídolos

Certa vez, em Roma, alguns idólatras astuciosos questionaram o velho Rabi Simeão, que tinha o apelido de “Muito Sábio”. Disseram-lhe:

– Se o vosso Deus não gosta que as pessoas adorem os ídolos, porque ele, o Todo-poderoso, não destrói esses ídolos todos de uma vez?

Respondeu com presteza o sábio Rabi: – Se os homens adorassem coisas inúteis que o mundo não precisa, de certo, Deus os arrasaria. No entanto, eles adoram o sol, a luz, os astros e os planetas. Deveria o Senhor destruir a sua criação por causa dos estultos?

Um dos romanos, querendo pegar o sábio em alguma contradição, indagou:

– Nesse caso, poderia pelo menos acabar com as coisas de que o mundo não precisa, e deixar as outras!

– Seria fortalecer a idolatria – retrucou Simeão – os idólatras diriam: “Vede: eis os verdadeiros deuses, porque os falsos foram destruídos”.

Neste domingo, a liturgia nos convida a celebrar a Solenidade de São Pedro e São Paulo. Rezaremos, de maneira especial, pelo Papa Francisco e, sem dúvida alguma, pela nossa Igreja Católica. Não fazemos isso por “culto à personalidade” (no caso do papa) e nem por mero “sectarismo” (no caso a Igreja Católica). Ao contrário, queremos lembrar a missão corajosa dos apóstolos, justamente para não nos fechar numa inútil e errada autocontemplaçã o. Ter consciência e estar felizes, porque amamos a nossa Igreja, não significa esquecer o resto do mundo e dos seus problemas. Papa Francisco sempre nos lembra que a Igreja não existe para si mesma e não acaba dentro dos seus templos e estruturas. A Igreja é enviada ao mundo, à humanidade inteira, porque está dentro da única história humana. O desejo de nos fecharmos num grupo de eleitos, de privilegiados, de pessoas que pensam estar já no limiar do céu, é uma grande tentação. As consequências disso sempre foram desastrosas. A Igreja corre o risco de tomar a atitude de quem julga e condena. No entanto, lemos no evangelho de João: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que seja salvo por ele” (3,17).

Isso não significa que o Papa Francisco e a Igreja Católica com ele, não tenham posições claras e firmes sobre certos assuntos. O que a Igreja não faz mais é ameaçar do inferno os que pensam e agem diferente. Ser tolerantes e acolhedores significa dialogar e não excluir, mas também não desistir das próprias convicções. Quem não tem ideias, princípios, valores e exemplos para dar, é sempre tentado a impor o próprio pensamento com a fo rça, com as artimanhas da retórica, com o abuso da mídia e da propaganda. Quem procura viver e praticar a sua fé não precisa de muitos outros recursos. Confia mais na força do Espírito Santo, que se antecipa nos corações das pessoas, do que nas próprias capacidades e conquistas. Trabalha com humildade e, sobretudo, alegremente, porque está feliz de ter encontrado, conhecido e amado o Senhor Jesus. Esse é o verdadeiro tesouro que encontrou na vida e faz de tudo para não perdê-lo.

Veneramos São Pedro e São Paulo, assim como tantos outros mártires e testemunhas que deram as suas vidas por causa do Evangelho de Jesus. Com eles, queremos aprender a ser mais corajosos sem pretender impor as nossas ideias, mas com a paciência do semeador que acredita na bondade da semente e na fecundidade do coração humano, quando se abre confiante ao mistério do amor divino. Por isso, neste domingo agradecemos a Deus, também, pelo pontificado do Papa Francisco, uma voz surpreendente e pacificadora no meio de tantas disputas, contradições e conflitos sociais. Rogamos a Deus que faça dele um homem “Muito Sábio” não somente para encontrar respostas a tantas dúvidas e perplexidades, mas para poder ser uma voz crível para todos os homens e mulheres de boa vontade e de paz. Sejamos, também nós católicos capazes de ecoar as mensagens do Papa Francisco, com a mesma franqueza, simplicidade e cordialidade. Acompanhar o papa é sinal de comunhão e de fé. Um bom sinal.

O verdadeiro inimigo

A velha rata mandou o filho atrás de comida; recomendou-lhe, porém, que se guardasse do inimigo. O ratinho, após a primeira curva, viu um galo. Voltou correndo junto à mãe e descreveu o inimigo como um bicho soberbo, de crista enorme e vermelha.

– Não é esse o nosso inimigo – falou a rata. E mandou o filho de volta. Desta vez, o pobre ratinho esbarrou num peru. De novo correu para o regaço da mãe e, tremendo-se todinho, descreveu o peru como um animal enorme e de olhar terrível, pronto para matar.

– Também este não é o nosso inimigo – tranquilizou-o a mãe – O nosso inimigo caminha silencioso, de cabeça baixa como uma criatura muito humilde; é macio, discreto, de aparência amável e deixa a impressão de ser inofensivo e bondoso. Se topares com ele, meu filho, toma cuidado!

Já sabemos quem é o inimigo dos ratos. Mais difícil é reconhecer o “nosso” inimigo. Com efeito, nós todos procuramos nos defender quando percebemos a agressividade ou a maldade do adversário. Mas, se aquele que quer a nossa ruina se apresenta sob as aparências de um companheiro cativante e simpático, fica difícil reconhecer a sua armadilha.

No evangelho deste domingo, Jesus quer ajudar os seus discípulos, que enviou em missão no mundo, a discernir de quem devem se guardar e de quem não precisa. Na nossa maneira de pensar, nós sempre temos muito medo, em primeiro lugar, de quem pode nos machucar e até nos tirar a vida. Jesus pensa diferente. O nosso verdadeiro inimigo não é aquele que pode nos matar, mas aquele que, junto com a vida deste mundo, pode nos afastar para sempre do amor de Deus e do próximo. Aquele que pode destruir “a alma e o corpo”. Com certeza, Jesus não quis nos dizer que devemos ser incautos e irresponsáveis, arriscando a vida à toa. Ele nos convida a sermos simples como as pombas, mas também prudentes como as serpentes (Mt 10,1). O que aqui está em jogo, não é, portanto, a vida corporal, mas a outra Vida que somente Deus pode dar porque, afinal, é ele mesmo que se doa.

Nesta altura, precisamos nos perguntar, honestamente, se acreditamos nas palavras de Jesus. Todos nós estamos dispostos a defender, com unhas e dentes, a nossa pele e o nosso bolso que, parece, estar grudado nela. “Unhas e dentes” evoluíram; hoje são o poder econômico, a corrupção, as mentiras, as falsas promessas, as bombas atómicas, as bombas de efeito “moral” (leia-se: para amedrontar) e assim por adiante. Se compararmos as despesas mundiais com os armamentos e aquelas com a saúde pública, a saúde dos pobres, j& aacute; sabemos de que lado vai cair o prato da balança. Quantos hospitais poderiam ser construídos com o preço de um míssil? Quantos pratos de comida correspondem ao custo de um drone guiado por computadores? Ao contrário, quase nada gastamos para promover a paz, a fraternidade, para defender o planeta da poluição, para garantir alimentos saudáveis às próximas gerações.

A fome do lucro está matando as nossas “almas”, entorpecendo os nossos sentimentos, esfriando a nossa sensibilidade. De sobra, ela engorda a nossa indiferença, o nosso medo de perder a vida biológica numa disputa inútil e egoísta pela sobrevivência. Pensando que vamos salvar o corpo, acabamos perdendo, junto com ele, também a alma, o sentido e os valores da vida. Corpo e alma somos cada um de nós. Não nos salvamos ou nos perdemos em pedaços, mas numa única vida, sopro da Vida de Deus. Para ele nós somos mui to preciosos. O Pai não quer perder nada e ninguém, porque nos ama a todos e “deu” seu Filho para nos salvar. Somos nós que desvalorizamos tanto este amor de Deus, que não temos medo de perdê-lo. Gastamos tempo e saúde para correr atrás de coisas pequenas e desperdiçamos as grandes. Deus e o seu amor passaram em último plano. Temos medo de um Crucificado. Assim, o inimigo triunfa. Mata-nos no corpo e na alma no maior conforto, na maior mordomia, na maior diversão. De barriga cheia e de coração de pedra, sempre insatisfeitos. Deveríamos tomar cuidado. Muito cuidado ainda é pouco.

O todo-poderoso

Ao voltar vitorioso de uma guerra, o imperador romano Adriano convocou a corte e, em tom extremamente solene, declarou:
– Dado o meu poder e a força incalculável que eu tenho, exijo, de agora em diante, que me considerem um deus!
Mal acabou de falar, um dos nobres presentes, que também era comerciante, aproximou-se e disse:
– Ó celestial imperador, já que sois deus, imploro o vosso poderoso auxílio.
– O que aconteceu? Em que posso ajudar o amigo? – respondeu lisonjeado o imperador.
– Estou tendo um grande prejuízo, porque os meus navios carregados de mercadorias estão parados a três milhas da costa e não conseguem chegar até o porto.
– Muito simples – respondeu o imperador – enviarei uma frota com bons remadores e eles trarão os navios.
– Ó todo-poderoso, não se incomode tanto assim – continuou o cortesão – com duas ou três rajadas de vento os navios chegarão.
– Mas… – disse o grande Adriano – onde irei buscar essas rajadas de vento?
– Ó sublime e divino soberano, se não podeis mandar num pouco de vento, como pretendeis arrogar-vos os atributos de Deus? Muito fraco é o vosso poder!

No evangelho deste domingo, Jesus chama os doze apóstolos e os envia em missão. Terão que proclamar a chegada do “reino dos céus” a começar pelas “ovelhas perdidas da casa de Israel”. Foi com o mesmo anúncio da proximidade do reino de Deus que Jesus iniciou a sua pregação. Reino e conversão. Agora, os primeiros operários vão trabalhar junto à messe grande. O Bom Pastor envia “pastores” para cuidar de quem anda cansado e abatido. São palavras de compromisso, mas também de esperança: algo novo está começando. Os sinais do “reino” são aqueles muitas vezes apresentados pelos profetas, quando avistavam e prometiam os tempos messiânicos: “expulsarem os espíritos maus e curarem todo tipo de doença e enfermidade”. Expressamente, Jesus envia os discípulos com as palavras: “Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios”. Tudo isso com “poder”! Mas também com gratuidade: “De graça recebestes, de graça deveis dar!”

Dá vontade de nos perguntar: onde ficaram o poder e a gratuidade? Sejamos sinceros: pensamos logo que o poder desapareceu – não ressuscitamos mais os mortos, não curamos mais tanto assim os doentes… – devemos reconhecer, porém, que também a gratuidade sumiu ou, ao menos, deixou de ser prioritária. Quantas vezes, antes de fazermos alguma coisa, já pensamos o que vamos lucrar, ganhar ou faturar. Pode ser por dinheiro ou, simplesmente, pelo gosto de aparecer, de chamar atenção e de ter, cad a vez mais, fiéis seguidores. Por definição, a “gratuidade” é dom puro, sem pretender ou cobrar nada de volta, nem a gratidão. Por isso, o verdadeiro “poder” de Jesus e o “poder” que ele entrega aos seus discípulos está muito mais no amor oferecido e doado do que na possibilidade de fazer “milagres”. Esses são sinais do amor de Deus, de Alguém que se interessa por nós, ainda, “ovelhas” cambaleantes nos caminhos da vida. Mas a maior cura que deveríamos almejar é a expulsão do demônio do interesse, da ganância, de quem pensa somente na sua vantagem. Exatamente o contrário da gratuidade! Quem aprende a doar algo de si com generosidade, de coração, torna-se uma pessoa nova, transformada pelo amor de Deus, capaz de amar como Jesus ensinou e deu o exemplo. A ciência, graças a Deus, est&a acute; curando e ainda vai curar muitas doenças, mas quase tudo virou negócio; às vezes, é exploração do doente e da sua família, outras, engano e ilusão. Já tem medicamento certo para morrer suavemente e para matar populações inteiras. O poder devia ser para a vida, não para a morte. Somente a gratuidade e a fraternidade mudarão o coração humano. Não é o poder que diminuiu, é o amor que enfraqueceu. Uma vida bem vivida, na paz do coração, na partilha e na generosidade, não tem tanto medo assim da morte. Acredita na vida plena, amorosa do Pai, sabe que o bem vale por si mesmo e nos faz felizes neste mundo e no outro. Não adianta ter poder sobre o vento, se não temos poder sobre o nosso coração, porque não sabemos mais amar.

Obrigado!

Um homem sábio vivia numa casinha afastada da vila. Certa noite, um ladrão, armado com faca, entrou e disse ao homem para não se mexer. Começou a revirar tudo, procurando por dinheiro. Depois de alguns minutos, o sábio, que continuava a ler o seu livro, disse ao ladrão:

– Por favor, não desarrume tanto assim. O dinheiro está na gaveta daquela mesinha. Pode pegar o que lhe serve. Aceite-o como um presente meu.

O malandro pegou o dinheiro e, depois, reparou um vaso de jade muito bonito. Quis levar também o vaso. Quando viu que não tinha mais nada que valesse a pena roubar, resolveu sair. Naquele momento, o sábio lhe disse:

– Seja educado, me agradeça! – O assaltante agradeceu e saiu na noite.

Alguns dias depois, os guardas do imperador prenderam o ladrão, arrastaram-no até o sábio para que lhe devolvesse o vaso. Ele tinha confessado o roubo. Bastava confirmar o caso para que fosse condenado à morte. O sábio, calmamente, explicou o acontecido:

– Sim, este homem veio aqui de noite. Eu dei de presente para ele um pouco de dinheiro e este vaso de jade. Tanto é verdade que ele, ao se despedir, disse-me: Obrigado! Os guardas ficaram surpresos, mas tiveram que soltar o ladrão. Ele, por sua vez, agradeceu mais ainda o sábio e nunca mais esqueceu a palavra maravilhosa que lhe tinha salvo a vida: Obrigado!

No domingo da Santíssima Trindade, todos percebemos a grandeza do “mistério” de Deus. Ele é tão grande que vai além de todos os nossos raciocínios e explicações. Nós, seres humanos, temos algo de “divino”. Fomos criados à “imagem e semelhança” d’Ele. No entanto, continuamos “criaturas” limitadas, mas com saudade do nosso “criador”. Experimentamos, e não só por curiosidade, o desejo e a esperança de participar, de alguma forma, das maravilhas de Deus. Um caminho possível seja, talvez, o de agradecer. Deus se deu a si mesmo como presente para nós e se fez conhecer como perfeita unidade na diversidade, num “mistério& rdquo; de total comunhão de amor. O que nós podemos fazer é colocar essa maravilha como modelo e meta da nossa própria vida. Devemos agradecer muito a Deus. Quanto mais contemplamos a Trindade, mais somos encorajados a buscar a comunhão entre nós e na sociedade. Em lugar das nossas especulações, que – fique claro – não são a mesma coisa dos esforços dos teólogos de explicar um pouco o “mistério” da Trindade, vamos aprender com Ela a superar divisões e individualismos para construir a unidade pelo amor, a reconciliação e a paz.

Pensamos logo nas nossas famílias. O que podem aprender com a Santíssima Trindade? A diversidade das pessoas, das gerações e dos temperamentos, muitas vezes, são motivos de oposições, brigas e indiferença. Ao contrário, o diálogo, a escuta e a valorização recíproca, fazem crescer os membros da família no respeito e na mútua colaboração. Todos podem ajudar de alguma forma porque todos têm algo para doar e receber. O amor verdadeiro sempre cresce nos dois sentidos: amar e ser amados. Vamos falar também da nossa Igreja, das nossas comunidades, grupos, pastorais e movimentos. Como é difícil caminhar juntos! A tentação de querer mandar, julgar, ser melhor es do que os outros ou ser diferente a qualquer custo é muito grande. Passamos em segundo plano o batismo, a fé e a Eucaristia que nos unem, para salientar as diferenças, o específico que nos distingue. Unidade não é uniformidade, mas também diversidade não pode ser disputa e afastamento. Por fim, se olhamos para o mundo, para a sociedade na qual vivemos, dá mesmo vontade de desistir.

Hoje, pensar em “comunhão” com tantos interesses, confusões e mentiras, parece só ilusão. Mas poderia ser esperança! Talvez seja esta a missão desafiadora dos cristãos: não uma fachada de abraços e sorrisos, mas um sério esforço de colaboração. Toda cultura, toda civilização e toda religião, tem algo de bom, de humano, que pode enriquecer a todos. A unidade verdadeira não será a colagem ou a mistura de tudo e de todos, mas uma convivência respeitosa das diversidades. Quem conheceu um Deus-Amor-Trindade nunca desiste da unidade e agradece muito por acreditar n’Ele.

Morrer por dentro

Uma criança de doze anos escreveu: “Eu vivi e cresci junto aos meus pais. Acreditava que o amor deles nunca morresse. Imaginava que fosse como uma grande árvore capaz de desafiar qualquer tempestade e, muito mais, o passar do tempo. No entanto, descobri que não era bem assim. Também uma grande árvore pode perder, aos poucos, os seus ramos e tornar-se uma árvore seca. Me contaram que os grandes amores, como as árvores, não morrem por uma rajada de vento ou um pouco de água a menos. Morrem se os deixamos morrer por dentro, como a conteceu com o amor de meu pai e minha mãe.”

No domingo de Pentecostes, cinquenta dias após a Páscoa, celebramos o dom do Espírito Santo como Jesus tinha prometido. Para o evangelista João, Jesus doa o seu Espírito já na cruz (Jo 19,30) e o comunica aos apóstolos, como ressuscitado, soprando sobre eles, ao anoitecer do dia de Páscoa, o “primeiro dia da semana” (Jo 20,22). Para Lucas, a maneira de contar e explicar as coisas é diferente. Quarenta dias após a Páscoa, Jesus é elevado ao céu e, dez dias depois, os discípulos “reu nidos no mesmo lugar” recebem o dom do Espírito Santo numa forma visível (línguas de fogo) e estrondosa (a ventania). A partir daquele momento, a comunidade assume com coragem a missão de espalhar o Evangelho pelo mundo a fora. Lucas escreve, para isso, o livro dos Atos dos Apóstolos. O que interessa para nós é acreditar e perceber a presença do Espírito Santo na vida da Igreja, no seu conjunto e na vida pessoal de cada um.

Para entender a ação do Espírito Santo, faço algumas considerações elementares, meio filosóficas e meio existenciais. O pressuposto é que nós, seres humanos, somos inteligentes e, portanto, não agimos simplesmente obedecendo aos instintos da natureza. É como dizer que ninguém nasce já programado. Temos, sim, uma herança biológica, cultural, histórica, ligada à situação e ao tempo no qual vivemos no mundo, mas temos também uma boa margem de possibilidades. Po r isso, é comum dizer que todo ser humano é um ser em construção. Esse trabalho é fadigoso, exige paciência e aprendizagem, é feito de avanços e recuos, de reviravoltas, retomadas e estagnações. Se esse, porém, é o desafio da vida humana é, também, o fascínio da sua aventura. Tem o gosto da caminhada, da conquista, da superação. Esse entusiasmo não está reservado à juventude. Acompanha a vida toda. A cada idade, quase, precisamos reaprender a viver, a gostar das alegrias e a superar as agruras. Nem tudo é maravilhoso na juventude e nem tudo é tristeza na idade avançada. Novos horizontes se abrem a cada passo dado, a cada etapa vencida, a cada nova condição experimentada. Falo, evidentemente, de quem sabe descobrir tudo isso, de quem se questiona sobre o sentido da vida, de quem tem a coragem de parar par a pensar. Todas coisas que parecem fora de moda, mas que somos obrigados a fazer, e fazemos, mesmo sem perceber.

Desde que nascemos, cada um de nós continua a ser a mesma pessoa, mas, ao mesmo tempo, torna-se diferente. O mais visível é o aspecto exterior. O nosso físico muda continuamente. E o interior? É aqui que entra o Divino Espírito Santo com os seus dons “espirituais”. Os que os outros percebem de nós é o que fazemos, o nosso agir. O que os outros não conhecem são as razões, os valores, as esperanças, a fé, que motivam esse nosso agir. É o que não se vê, o que está escondido no mais secreto do nosso coração, que faz com que sejamos o que somos, falamos e agimos do jeito que decidimos. Ninguém, nunca, poderá medir o tamanho da nossa fé. No máximo irão dizer se fizemos ou não fizemos certas coisas ou vivenciamos ou não certas práticas religiosas. Mas o nosso interior…Só Deus sabe, até mais do que nós. A opção da fé, da confiança, do amor a Deus, é sempre ao mesmo tempo algo de nosso, porque envolve a nossa liberdade, e é dom do Espírito Santo. Se vive, se realiza, o que está vivo por dentro. Se morre também, antes, por dentro. Não serve fingir estar vivos por fora, se estamos mortos por dentro, sem mais a alegria do amor. Bem-vindo Espírito Santo Vida de Deus!

Tu és Jesus?

Três jovens empresários tinham participado de um congresso e estavam voltando para casa, correndo, para não perder o voo. Na proximidade do aeroporto, alguns ambulantes tinham colocado malas, disfarçando assim os seus produtos que ofereciam aos passantes. Café, docinhos, frutas. Na confusão do vai e vem, arrastando as suas bagagens, eles acabaram batendo numa mala sobre a qual a vendedora, uma criança, oferecia algumas maçãs. Todas rolaram pelo chão. Logo perceberam o que tinha acontecido, mas somente um deles parou para ajudar a criança a juntar, novamente, as frutas. Os outros continuaram apressados para não perder o avião. O homem reparou que a criança procurava as maçãs apalpando o chão com as mãos, mas não acertava nenhuma. Era cega. Quando ele acabou de recolher as maçãs, viu que a maioria delas estava suja e batida. Seria difícil vendê-las. Assim, tirou do bolso uma nota de cinquenta reais e a colocou nas mãos da criança, pedindo-lhe desculpa por aquilo que tinha acontecido. Quando estava saindo, já pensando no voo que talvez tivesse perdido, a criança disse: “Senhor, tu és Jesus?”. Com esta pergunta na mente e no coração, o homem esperou o próximo voo.

Parece uma frase de efeito, mas depois da Ascensão somos todos Jesus. Somos chamados a continuar a missão que o Pai lhe entregou, como ouviremos no próximo domingo de Pentecostes e a fazer “coisas ainda maiores”, como escutamos no evangelho do quinto domingo de Páscoa. A Solenidade da Ascensão de Jesus ao céu não é uma festa de despedida, mas um envio, um grande compromisso até a volta do Senhor. O Espírito Santo vai nos ajudar nesta “missão”, também se, muitas vezes, a esquecemos ou a achemos impossível.

Em primeiro lugar, devemos acreditar que com a Morte e Ressurreição de Jesus tudo mudou. O mal está vencido uma vez por todas. A morte não é mais a última palavra da nossa existência. Deus Pai, que ressuscitou Jesus, é o Senhor da Vida. Vida plena, vida de amor, e é rumo a esta Vida que o Filho quer nos conduzir. É tudo ainda muito novo, parece tão longe. No entanto, com o olhar da fé e do amor, podemos acreditar nas mudanças, pequenas e grandes, pessoais e da sociedade. O “chefe deste mundo” (Jo 14,30) nos promete felicidades egoístas. Ele se serve do nosso medo de perder juventude, saúde, dinheiro e bens materiais, do nosso pavor da morte, para nos manter presos nas coisas que passam. Brigamos dema is por elas. Assim, deixamos de sair de nós mesmos para ir ao encontro de Deus e dos irmãos, fechamos olhos e ouvidos, endurecemos o coração, desistimos de procurar os tesouros da bondade e da paz. Trocamos o caminho da Vida, pelos caminhos da morte. Mas a vitória do Bem sobre o Mal é definitiva, não vai ter virada. Nós, cristãos, somos chamados a participar e a provar com as nossas vidas esta vitória.

Tudo começa no dia do nosso Batismo. Nos tornamos “homens novos” refeitos pelo amor de Jesus, amigos novamente de Deus, irmãos de todos sem ódios e divisões. O mundo precisa de sinais vivos de esperança. Somos enviados a testemunhar que algo diferente da lógica do lucro, da violência e da indiferença já está acontecendo. A coragem de colocar generosidade, compaixão e solidariedade nos nossos encontros todos os dias, toda hora, sempre, deve ser real, concreta, visível. É a “autoridade” do amor; não da força ou da imposição. A mesma autoridade que foi dada a Jesus, “no céu e sobre a terra”, porque o bem não precisa de propaganda, é luminoso por si mesmo, contagiante, atraente. O Amor tem força própria, vai se espalhar “até os confins da terra”. A missão de todo batizado é ser sinal do Reino de Deus que Jesus já começou; onde e no momento que está vivendo; com consciência e responsabilidade, com tremor e entusiasmo, na comunhão e na humildade, dando o melhor de si, porque todos devemos ser como Jesus, ser Jesus hoje. Também se para isso perdemos o voo. Vale a pena.

Onde está o meu beijo?

Regiane era uma criança alegre e inteligente. Lhe faltava algo, mas ela ainda não sabia. O pai e mãe dela trabalhavam muito. Era uma bela família e viviam felizes. Certa vez, quando Regiane tinha dez anos, foi passar uma noite na casa de uma amiga, colega da escola. Antes de dormir, a mãe da colega ajeitou os lenções delas e deu o beijo de “boa noite” às duas. Junto ao beijo, a senhora disse à filha dela: – Eu te amo, filha – e a criança respondeu: – Eu também, mamãe -. Nunca, nem a mãe e nem o pai de Regiane tinham feito isto com ela. A menina ficou intrigada, matutando. Não conseguiu dormir; estava cheia de raiva com seus próprios pais. Voltou para casa e continuava a se perguntar: – Por que os meus pais não me beijam e não me dizem que me amam? -. Ficou calada por alguns dias. Depois decidiu tomar a iniciativa. Correu para a mãe, lhe deu um beijo e disse: -Eu te amo, mamãe -. Fez o mesmo com o pai. – Os dois adultos, no começo, tentaram se esquivar e pensaram: – Coisa de criança -. Mas tiveram também que beijá-la e responder: – Eu também te amo, minha filha! -. Assim, todo dia, antes de dormir, de ir para a escola ou chegando em casa, Regiane corria para beijar os pais. Certa noite se esqueceu. Então, a mãe, bem devagar aproximou-se da cama dela e disse: – Onde está o meu beijo? – – Ó mãe, esqueci – respondeu Regiane – – Não se esqueça nunca mais – continuou a mãe – Eu te amo muito – – Eu também, mamãe, não irei mais me esquecer, pode ter certeza -.

Para dizer que amamos alguém não precisamos de grandes discursos e de gestos teatrais. Muitas vezes a nossa aproximação, um sorriso e um abraço, são suficientes. Faz bem nos acostumar a gestos simples e sinceros. Porém, a condição essencial para que um gesto, comum ou extraordinário, revele um amor verdadeiro é que ele venha do nosso coração. De outra forma estaríamos enganando ao outro, ou à outra e, pior, a nós mesmos. Fingir, não é bom para ninguém.

No evangelho deste Sexto Domingo da Páscoa, Jesus começa a falar do Divino Espírito Santo. O chama de “defensor”, de Espírito da verdade; alguém que permanecerá sempre com os discípulos. O mundo, ou seja, os que não conhecem e não seguem Jesus, não o podem ver e nem imaginar, mas, para os discípulos, o Espírito Santo estará “dentro” deles. Claro que a nossa curiosidade e o nosso desejo de entender as palavras de Jesus querem saber “dentro” onde e como? Se responder “no coração” pode parecer uma resposta muito sentimental. Se disser “na inteligência”, é dizer bem pouco. Se ainda disser que é a nossa “consciência”, tem gosto de culpas e arrependimentos. Vou responder, mais ou menos, com as palavras de Santo Agos tinho: o Espírito Santo estará no mais íntimo do nosso íntimo. Este, é o “lugar” – que não é um lugar – onde travamos diariamente a luta entre o bem e o mal, onde tomamos as mais importantes decisões da nossa vida, onde experimentamos as alegrias mais puras e os sofrimentos mais marcantes.

Todos temos em nós este “lugar”, antes ou depois descobrimos a sua existência; também aqueles que parecem insensíveis e sem escrúpulos. A questão é saber se lá, no “lugar” mais secreto da nossa vida, está também o Espírito Santo, o dom de Jesus morto e ressuscitado. Importa-nos que ele seja mesmo o nosso “Mestre Interior” como os grandes Padres da Igreja o chamaram? “Mestre” é alguém que deve ser escutado, um guia que nunca cansa de nos ajudar. Responder, agora, “como” tudo isto aconteça é um pouco mais fácil: tudo isto acontece na oração. É orando que abrimos o nosso coração ao Pai amoroso e nos sentimos amparados, acolhidos, amados por ele sem condições. É lá que o Pai, que tem um coração de Mãe, sempre repete: – Eu te amo, meu filho -. Somos nós, pessoalmente e também como Igreja Comunidade, que, amarrados demais com as nossas preocupações, muitas vezes, não respondemos ou não ligamos. Esquecemos. Achamo-nos tão “adultos” e autossuficientes de não precisar de alguém que nos afague com seu carinho. Talvez seja algo que nos falta e ainda não descobrimos bem: o amor de Deus.

Onde está o meu beijo?

Regiane era uma criança alegre e inteligente. Lhe faltava algo, mas ela ainda não sabia. O pai e mãe dela trabalhavam muito. Era uma bela família e viviam felizes. Certa vez, quando Regiane tinha dez anos, foi passar uma noite na casa de uma amiga, colega da escola. Antes de dormir, a mãe da colega ajeitou os lenções delas e deu o beijo de “boa noite” às duas. Junto ao beijo, a senhora disse à filha dela: – Eu te amo, filha – e a criança respondeu: – Eu também, mamãe -. Nunca, nem a mãe e nem o pai de Regiane tinham feito isto com ela. A menina ficou intrigada, matutando. Não conseguiu dormir; estava cheia de raiva com seus próprios pais. Voltou para casa e continuava a se perguntar: – Por que os meus pais não me beijam e não me dizem que me amam? -. Ficou calada por alguns dias. Depois decidiu tomar a iniciativa. Correu para a mãe, lhe deu um beijo e disse: -Eu te amo, mamãe -. Fez o mesmo com o pai. – Os dois adultos, no começo, tentaram se esquivar e pensaram: – Coisa de criança -. Mas tiveram também que beijá-la e responder: – Eu também te amo, minha filha! -. Assim, todo dia, antes de dormir, de ir para a escola ou chegando em casa, Regiane corria para beijar os pais. Certa noite se esqueceu. Então, a mãe, bem devagar aproximou-se da cama dela e disse: – Onde está o meu beijo? – – Ó mãe, esqueci – respondeu Regiane – – Não se esqueça nunca mais – continuou a mãe – Eu te amo muito – – Eu também, mamãe, não irei mais me esquecer, pode ter certeza -.

Para dizer que amamos alguém não precisamos de grandes discursos e de gestos teatrais. Muitas vezes a nossa aproximação, um sorriso e um abraço, são suficientes. Faz bem nos acostumar a gestos simples e sinceros. Porém, a condição essencial para que um gesto, comum ou extraordinário, revele um amor verdadeiro é que ele venha do nosso coração. De outra forma estaríamos enganando ao outro, ou à outra e, pior, a nós mesmos. Fingir, não é bom para ninguém.

No evangelho deste Sexto Domingo da Páscoa, Jesus começa a falar do Divino Espírito Santo. O chama de “defensor”, de Espírito da verdade; alguém que permanecerá sempre com os discípulos. O mundo, ou seja, os que não conhecem e não seguem Jesus, não o podem ver e nem imaginar, mas, para os discípulos, o Espírito Santo estará “dentro” deles. Claro que a nossa curiosidade e o nosso desejo de entender as palavras de Jesus querem saber “dentro” onde e como? Se responder “no coração” pode parecer uma resposta muito sentimental. Se disser “na inteligência”, é dizer bem pouco. Se ainda disser que é a nossa “consciência”, tem gosto de culpas e arrependimentos. Vou responder, mais ou menos, com as palavras de Santo Agos tinho: o Espírito Santo estará no mais íntimo do nosso íntimo. Este, é o “lugar” – que não é um lugar – onde travamos diariamente a luta entre o bem e o mal, onde tomamos as mais importantes decisões da nossa vida, onde experimentamos as alegrias mais puras e os sofrimentos mais marcantes.

Todos temos em nós este “lugar”, antes ou depois descobrimos a sua existência; também aqueles que parecem insensíveis e sem escrúpulos. A questão é saber se lá, no “lugar” mais secreto da nossa vida, está também o Espírito Santo, o dom de Jesus morto e ressuscitado. Importa-nos que ele seja mesmo o nosso “Mestre Interior” como os grandes Padres da Igreja o chamaram? “Mestre” é alguém que deve ser escutado, um guia que nunca cansa de nos ajudar. Responder, agora, “como” tudo isto aconteça é um pouco mais fácil: tudo isto acontece na oração. É orando que abrimos o nosso coração ao Pai amoroso e nos sentimos amparados, acolhidos, amados por ele sem condições. É lá que o Pai, que tem um coração de Mãe, sempre repete: – Eu te amo, meu filho -. Somos nós, pessoalmente e também como Igreja Comunidade, que, amarrados demais com as nossas preocupações, muitas vezes, não respondemos ou não ligamos. Esquecemos. Achamo-nos tão “adultos” e autossuficientes de não precisar de alguém que nos afague com seu carinho. Talvez seja algo que nos falta e ainda não descobrimos bem: o amor de Deus.