Dom Pedro Conti

A flor e a borboleta

Certa vez, um homem pediu a Deus uma flor e uma borboleta, mas Deus lhe deu um cacto e uma lagarta. O homem ficou triste, pois não entendeu o porquê do seu pedido vir errado. Daí pensou: “Também, com tanta gente para atender!”. E resolveu não questionar. Passado algum tempo, o homem foi verificar o pedido que deixara esquecido, e, para sua surpresa, do espinhoso e feio cacto havia nascido a mais bela das flores. E a horrível lagarta transformara-se em uma belíssima borboleta.

Já disse, domingo passado, que a espera da volta do Senhor deve ser vigilante, atenta e ativa. A parábola dos talentos continua essa questão. Ela é bem conhecida e todos poderíamos fazer muitas considerações a respeito, porque está, no seu conjunto, debaixo dos nossos olhos. Todos os dias, encontramos pessoas ocupadas que usam muito bem dos dons e das capacidades que a natureza e o seu esforço lhes proporcionaram. Algumas conseguem fazer isso superando, muitas vezes, deficiência físicas ou outras limitações. São admiráveis pela dedicação. Outras pessoas são diferentes: parecem ser tomadas pela indolência, a preguiça e nunca tomam iniciativa para nada. Carecem de autonomia, dependem das decisões dos outros. Têm medo de Deus? Não, na verdade têm medo de serem criticadas. É obvio! Somente quem faz alguma coisa pode fazer certo ou errado. Quem nunca faz nada, também nunca errará. Qualquer ação, qualquer decisão ou empreendimento exige um mínimo de coragem e de disponibilidade a correr algum risco.

Até aqui a vida do dia a dia, na variedade infindável dos seres humanos, dos seus gênios e temperamentos. Mas Jesus não contou a parábola dos talentos para incentivar a poupança em algum banco. Precisamos fazer uma leitura espiritual dessa parábola extraordinária. Mais uma vez Deus, o verdadeiro senhor dos bens, os entrega largamente aos seus “empregados”. Ele, não somente é generoso, ele confia e viaja, para deixá-los livres de decidir. É maravilhoso. Ele quer “empregados” responsáveis, conscientes do valor dos b ens recebidos. Os que assim entendem, ficam felizes, partem para o bom uso dos dons recebidos, trabalham e os dons se multiplicam.

Podemos pensar na nossa própria vida, nas nossas capacidades, no planeta Terra, na inteligência e criatividade humanas. Quantas coisas surpreendentes o ser humano já fez e ainda vai fazer. No entanto, nem tudo o que fazemos multiplica o bem comum e a alegria de todos. O homem já fez e faz também guerras, inventa armas e remédios para matar o seu semelhante, disputa o que é de todos, para seu uso particular, deixando povos inteiros sem alimentos e sem água para sobreviver. O servo da parábola, que enterrou o talento, foi chamado de “mau, preguiçoso e in útil”. Como poderíamos chamar aqueles que escravizam países por causa das dívidas, apavoram com a violência populações inteiras e as obrigam a deixar as suas casas, deixam morrer crianças inocentes pela fome e a miséria? Trabalham muito, mas só para aumentar sem fim o seu lucro. Quanto sofrimento no mundo depende do mau uso dos bens entregues à humanidade, herdados dos antepassados e construídos por outros. Bens que, afinal, todos teremos que deixar, um dia. Como cristãos, temos a obrigação de consciência de fazer bom uso das nossas forças e capacidades, seremos julgados sobre o bem feito aos irmãos necessitados.

Às vezes, porém, nós também desanimamos, parece-nos uma tarefa impossível ou uma exigência infindável. Temos a impressão de que seja o mal a se multiplicar e não o bem. Temos medo de estarmos no caminho errado vendo avançar o poder do dinheiro, das armas, das ideologias contrarias à vida, à dignidade humana e à liberdade das pessoas. Estamos esquecendo de que não tem vida nova, a ressurreição, sem a morte de cruz, sem abandono do homem velho egoísta e interesseiro, violento e rancoroso. O bem sempre afasta o m al, o belo apaga a feiura, a vida vence a morte. Somos somente pequenos colaboradores do grande projeto do reino de Deus. Um dia veremos o cacto florescer. Vai
perfumar! E a lagarta se tornará borboleta. Vai voar! Sem medo.

‘Ainda há muito tempo’

Certa vez, um rei organizou esplêndido festim. Para a alegre e feliz reunião convidou muitos dos seus súditos, mas não assinalou a hora em que deviam comparecer. Os mais perspicazes e previdentes vestiram, desde logo, seus trajes finos, adornaram-se com suas joias de maior realce e aguardaram pacientes o momento em que deviam ser recebidos no palácio do príncipe. Os tontos pensavam: – Ainda há muito tempo -, e se entregavam descuidados a seus insensatos caprichos. De improviso, soou a hora do festim e uns e os outros correram para a régia morada. O príncipe avistou os precavidos, que estavam decentemente vestidos e preparados, e os recebeu com alegria. Atentou, irrit ado, nos tontos, indecorosos e desasseados, e os expulsou de sua presença.

Essa história está no Talmude, livro dos judeus de explicação e comentário às Sagradas Escrituras. É fácil conferir a semelhança com a parábola de Jesus que encontramos no evangelho deste domingo. Na parábola, porém, as personagens são dez moças, cinco previdentes e cinco imprevidentes. Na espera do noivo, para entrar na festa do casamento, todas dormiram. As lâmpadas se apagaram. Quando o noivo chegou, somente as previdentes, que tinham trazido óleo de reserva, conseguiram acender novamente as lâmpadas e, assim, entrar na festa do casamento. A porta fechou e as imprevidentes, que tinham ido comprar o óleo, ficaram de for a.

Estamos nos últimos domingos do ano litúrgico e também concluindo a leitura do evangelho de Mateus. Jesus tinha prometido voltar, mas não disse quando. Nos evangelhos ficaram maneiras diferentes de entender a volta do Senhor. Alguns o aguardavam num curto prazo de tempo e interpretaram a destruição do Templo de Jerusalém como o sinal da brevidade deste tempo. Outros, com o passar dos anos, a morte dos apóstolos e dos seus imediatos sucessores, começaram a entender que as palavras de Jesus, mais que marcar uma data, indicavam a maneira de esperar o encontro com ele. Devia ser uma espera vigilante, atenta e ativa. Não seria um simples transcorrer do tempo.

A vida passa para todos. O fim dela é algo inevitável, não depende da nossa vontade. O que está ao nosso alcance, portanto, não são os prazos e nem a possibilidade de parar o tempo. O que nos cabe é decidir como gastar o tempo da nossa passagem neste mundo. Podemos passar os anos “dormindo” ou na ilusão de ter sempre muito tempo à nossa frente, ou… é aqui que se propõe a mensagem de Jesus. A vida é algo que não pedimos, mas também não é um castigo ou um destino pré-fixado fora do nosso alcance. A vida, apesar de toda a sua complexidade, é a possibilidade que temos de fazer algo, que tenha um sentido para n ós e, possivelmente, também para aqueles que as circunstâncias nos fizerem encontrar. Tem sempre uma “chama” que pode dar sentido à vida, em qualquer lugar e em qualquer situação, é a chama do amor. O segredo, porém, é manter essa chama acesa, dando amor, mais do que o recebendo, oferecendo alegria, mais do que a cobrando dos outros. Mas, se a chama do amor se mantém viva somente se for comunicada, por que, na parábola do evangelho, as moças previdentes não partilharam o óleo com as imprevidentes? Talvez seja por que cada uma e cada um de nós tem a sua parte de amor para dar e somente serve se a pessoa decide como usar esse tesouro.

Na infância, todos recebemos afeto, carinho e proteção. Depois, já no tempo da juventude, a nós é dada a possibilidade de tomar consciência do valor do amor e do sentido da vida. Podemos gastar muitas energias somente conosco, para aproveitar das forças que nos parecem inesgotáveis. Mas podemos, também, administrar bem esse enorme potencial de amor. Podemos decidir como e com quem fazer algo de bom, de útil, como tornar a vida mais bonita e feliz para tantos outros. Podemos, enfim, todo dia aprender a amar. Também com os cabelos brancos. A chama não acabará. Mas será sempre algo muito pessoal, porque o tempo da vida e a capacidade de amar serão sempre e somente nossos, únicos, intransferíveis.

A alma e o corpo

O príncipe Tavir colocou como vigias do seu belíssimo pomar um cego e um coxo. O cego, com o seu ouvido apurado, devia gritar ao mais leve rumor. O coxo devia sempre estar vigilante para surpreender qualquer intruso. Os dois deviam guardar, com todo cuidado, os frutos preciosos de uma ameixeira. O príncipe pensava: – Não serei roubado. O cego não pode ver os frutos maduros e o coxo não os poderá alcançar.

Durante as horas de vigília, porém, o coxo descreveu a delícia dos frutos maduros e se queixava de não poder apanhá-los. Logo, o cego encontrou a solução. Disse ao coxo para se arrastar até subir nas suas costas e, guiado por ele, colocou-se aos pés da árvore. Juntos, comeram muitas frutas. O príncipe não demorou a descobrir o roubo, mas os dois, cada um apresentando a própria deficiência, declararam-se inocentes. Intrigado, o príncipe não desistiu e resolveu fazer um teste: mandou dois guardas colocar o coxo nas cost as do cego e desmascarou o truque dos ladrões. De imediato, ordenou que fosse dada uma surra nos dois, juntos, pois haviam agido dessa maneira.

Assim, no Dia do Juízo, a alma dirá para justificar os seus erros: “Só o corpo é culpado; só ele cometeu o pecado. Quando nasci, voava puríssima como um pássaro”. O corpo, também, com medo do castigo dirá: “Senhor! Só a alma é culpada; nada fiz. Como eu poderia cair no erro se a alma não me animasse para isso?”. E Deus, supremo juiz, colocará de novo a alma dentro do corpo e dirá: “Eis como haveis pecado. E assim também será feita justiça”.

O que vale para o mal, vale, igualmente, para o bem. Na festa de Todos os Santos e Santas lembramos seus exemplos, assim como reavivamos o chamado de todos nós, batizados, à santidade. É muito importante entender que também os que a Igreja nos propõe como modelos de santidade, foram seres humanos como nós, não foram “anjos”, puros espíritos ou almas desencarnadas. Foram pessoas bem concretas e viveram numa época bem precisa. Fizeram tantas coisas boas dentro das condições e limitações humanas, no tempo que passaram neste mund o terreno e material. Tiveram fome e sede, precisaram descansar, adoeceram e morreram, como todos. Lutaram e venceram tentações. Tiveram fraquezas, momentos de desânimo, decepções e dúvidas. Para todos, o caminho da santidade foi trilhado aos poucos. Nas quedas, levantaram. Nos sucessos, continuaram humildes. Nunca desistiram, foram fieis até o fim. Todos tiveram “defeitos”. Alguns tiveram mesmo deficiências físicas, corporais. Também questões psicológicas e temperamentais devem ser levadas em conta. Tudo isso, porém, não foi empecilho para a santidade. Ao contrário, muitos se santificaram apesar desses defeitos ou na superação dessas limitações. Para alguns, o corpo foi “o irmão asno”, uma prisão da qual, às vezes, pediam para serem libertos. Para outros, apesar de tudo, foi o instrumento indispens&aa cute;vel para abrir novos caminhos na missão evangelizadora, no saber, na busca da verdade, para irem ao encontro de quem ainda não conhecia Jesus Cristo. Para todos, a vida foi material e espiritual ao mesmo tempo. Uma vida só. Bem-aventurados, alegres, felizes, por servir a Deus e aos pobres.

É muito bom perceber os Santos e as Santas mais parecidos conosco para acreditar que a santidade é possível. Do jeito que viemos ao mundo, no momento histórico, no pais, no meio das transformações de uma época, sem medo de viver o mesmo Evangelho dos primeiros chamados, dos mártires, dos Santos e Santas, grandes e pequenos, homens e mulheres, casados e solteiros, virgens, pais e mães. Não existe um modelo pré-determinado de santidade. Cada um deve encontrar o seu caminho seguindo os passos de Jesus do Natal até a Páscoa, olhando a Maria Santíssima, aprendendo com os que nos precederam. Desculpas? Só para quem acha inútil fazer o bem, ser bons, perdoar, amar. Mas, nesse caso, é o sentido da vida que está em jogo, não somente a santidade.

O homem certo na hora certa

No dia 19 de maio passado, aos 78 anos, faleceu, no mais completo esquecimento, o Sr. Stanislav Petrov, ex-tenente-coronel do exército soviético. Eram os anos da “guerra fria” e, no dia 26 de setembro de 1983, ele tomou uma decisão que salvou o mundo da terceira guerra mundial. Stanislav estava no turno de madrugada, no refúgio subterrâneo, trabalhando no computador Krokus, que monitorava todas as atividades dos mísseis americanos. Se Krokus desse algum sinal de movimentação, ele devia avisar imediatamente os superiores, os quais iniciariam o contra-ataque. Ele mesmo não teria aperta do o temido “botão vermelho”, mas contribuído para “armar” a mão de quem o faria. Tudo parecia tranquilo, mas, de repente, o computador central assinalou que um míssil tinha partido de uma base no Montana rumo à União Soviética. Petrov manteve a calma e procurou ganhar tempo: tinham-lhe dito que, se os Estados Unidos atacassem, o fariam de forma maciça. Portanto, aquele míssil solitário não o convenceu: podia ser um falso alarme. E não o convenceram, nem os sucessivos quatro que apareceram na sequência. Dos radares de terra também não chegavam confirmações. Aguardou mais um pouco, mesmo se não restava muito tempo: um míssil intercontinental empregava menos de meia hora para alcançar o objetivo e restariam só poucos minutos para contra-atacar. Por fim, sob os olhares aterrorizados dos outros presentes, Petrov assumiu a enorme responsabilidade de não dar o alarme. Teve razão, felizmente. Em seguida, descobriu-se que o “infalível” Krokus tinha se enganado. O ocorrido foi silenciado. Por sua ação, Stanislav não recebeu reconhecimentos na pátria. Já teve sorte de não receber punições por ter desobedecido às ordens. Quando, enfim, a história se tornou pública, ele recebeu algum prêmio no exterior. Já idoso, repetia: “O que fiz? Nada de especial, só o meu trabalho. Fui o homem certo na hora certa”.

O que tem a ver essa história verdadeira com o mandamento do amor que encontramos no evangelho de Mateus deste domingo? Talvez nada. Não conhecemos as motivações que levaram esse “salvador da humanidade” a agir assim. Não sabemos se teve consciência da sua responsabilidade; se desejava a paz mundial ou, simplesmente, não gostava de briga. Também não sabemos se acreditava, ou não, em Deus. No entanto, podemos tirar algumas lições. A primeira é que o amor verdadeiro nunca é simplesmente um sentimento ou uma boa intenção; ao amor sempre corresponde alguma maneira de agir. A segunda lição é que, em geral, as nossas ações têm consequências, para bem ou para o mal, mesmo quando Deus e o próximo parecem não ter nada a ver, e o nosso agir insignificante, porque ninguém está vendo ou vai saber.

Esta, porém, é a maravilha e a grandeza do amor. Não precisa ser algo de extraordinário para ter valor. Basta acreditar que o bem sempre vale por si mesmo, que o respeito à vida, a promoção da dignidade humana, a sobrevivência de qualquer espécie e do planeta inteiro, sempre são importantes e valem em qualquer momento e em qualquer lugar. Os gestos heroicos, de quem salva vidas, são exemplares e merecem a nossa admiração, porque nos lembram que sempre devemos estar atentos e prontos a fazer o bem. Não precisa que pegue fogo uma creche para defender a vida das crianças de mil outras amea& ccedil;as. Não devemos aguardar um terremoto para reconstruir, depois, casas dignas e antissísmicas. Nem esperar o deslizamento de uma encosta para desmascarar a especulação imobiliária. Não serve ficar apavorados com as estatísticas do câncer para proibir, sempre tarde demais, o uso de certos remédios e venenos. O amor ao próximo se aprende aos poucos, através de pequenos gestos de amizade e solidariedade. Quando amamos a Deus de verdade aprendemos a pensar grande, porque ele ama a todos também através do nosso pequeno amor. Naquela hora, Stanislav Petrov, talvez, pensou simplesmente na vida dele e da sua família; sabia que uma guerra nunca seria boa, para ninguém. Pensou grande, porque pensou na vida. E Deus é sempre o Deus da Vida.

O par de sapatos

Um homem, já de certa idade, entrou no ônibus. Enquanto subia, um dos seus sapatos escorregou para o lado de fora. Mas a porta se fechou e o ônibus saiu às pressas. Não foi possível recuperar o sapato. Tranquilamente, o homem retirou seu outro sapato e jogou-o pela janela. Um rapaz, vendo o que acontecera, perguntou: – Eu vi o que aconteceu e o que o senhor fez. Por que jogou fora seu outro sapato? – – Eu agi de forma que quem o encontrar possa usá-los. Provavelmente, apenas alguém necessitado dará importância a um sapato usado, encontrado na rua. Porém, de nada lhe adiantará ter somente um deles. Talvez, juntando os dois, possam ter alguma serventia. Para mim também, um só sapato teria ficado inútil.

Foi um pequeno gesto de generosidade, desprendimento ou, simplesmente, de bom senso. A ninguém serviria mesmo ter um sapato só. No entanto, em geral, preferimos juntar coisas, bens e riquezas, muitas das quais, de fato, nunca iremos usar.

O evangelho de Mateus deste domingo nos traz uma palavra de Jesus bem conhecida: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Muitas questões estão em jogo: o pagamento de impostos, nunca agradável para ninguém; a figura e a inscrição do imperador romano na moeda, algo escandaloso para os judeus. Para entender isto é só lembrar que “César” era considerado um deus e, portanto, a disputa pode ser colocada entre o Deus verdadeiro e os “deuses” falsos, ou ídolos, imortalizados pelos homens. No entanto, com sua resposta, Jesus, nos ensina a ir além destas controvérsias. Não é q uestão de verdade ou de mentira, de obedecer ou desobedecer, de legalidade ou ilegalidade. É questão mesmo de identidade…de Deus.

O “deus” César – o imperador de outrora e os poderosos de todos os tempos – cobrava os impostos e ai de quem não pagava. Ao contrário, o Deus, Pai de Jesus, doa tudo, até o próprio Filho. Ele faz isso não porque não precisa de riquezas materiais, mas porque é amor em si mesmo, nunca cobrança ou acumulo. O que ele nos pede, no máximo e ainda respeitando sempre a nossa liberdade, é uma resposta amorosa à sua generosidade.

Nós, por medo de ficar sem o conforto, escolhemos guardar o supérfluo e não o partilhamos com quem não tem nem o necessário. Quantos “tesouros”, de muitos tipos, são simplesmente guardados para o orgulho dos que se consideram os donos. Ficam trancados a sete chaves, por medo dos ladrões; na realidade já estão sendo subtraídos à alegria de quem nem imagina que existam. Quais frutos de bem, paz e justiça, produzem?

Também se falamos de impostos, entendemos que deveriam ser para o bem comum, para os serviços essenciais aos mais pobres, no respeito do direito à vida digna para todos. Todo imposto desviado da sua finalidade é roubado aos pequenos. Todo imposto que alimenta privilégios e discriminação é uma afronta à fraternidade. Exigir o uso correto do dinheiro público não é implorar favores, mas cobrar que se cumpra a obrigação de devolver a que tem direito o que de todos. Obras públicas inúteis, inacabadas, superfaturadas, lucros e salários astronômicos, são “pecados sociais”, verdadeiras injustiças porque, afinal, toda a s ociedade contribui, direta ou indiretamente, com os seus tributos e aguarda a justa administração deles. Além disso, como cristãos já deveríamos ter entendido que só é possível “dar” a Deus alguma coisa se a doamos aos nossos irmãos famintos, sedentos, desabrigados, doentes, presos e marginalizados. Com eles Jesus, o enviado do Pai, se identifica. Quando fechamos olhos, ouvidos e coração estamos servindo mais aos “Césares” deste mundo, que ao Deus da Vida, ao Deus Amor, que dizemos adorar. As obras de misericórdia podem ter rostos novos, mas nunca vão deixar de existir. Sobre elas seremos julgados. Continuamos a guardar o sapato velho. Um só, inútil. Ninguém mais vai usar, nem nós. Mas não o doamos. Por que?

Hospitalidade para os cavalos

Dois jovens, dotados de grande saber, peregrinavam pelos caminhos da terra, mal trajados e obscuros. Certa noite, chegaram numa cidade e ninguém quis dar-lhes pousada, exceto um pobre homem chamado Aarão. Anos depois, os dois tinham colocado a bom fruto os seus saberes e chegaram novamente naquela cidade. Dessa vez, porém, numa carruagem bonita e bem trajados. O homem mais rico da cidade logo ofereceu-lhes hospitalidade, mas os dois recusaram e se dirigiram à casa do pobre Aarão. O ricaço protestou, mas eles responderam: “Somos as mesmas pessoas a quem não destes a menor atenção, quando passamos por aqui, alguns anos atrás. Dá para entender que o vosso acolhimen to, hoje, não é propriamente para nós, mas para a nossa roupa e a nossa carruagem. No entanto, estamos dispostos a aceitar a vossa hospitalidade para os nossos cavalos”.

No evangelho deste domingo, encontramos mais uma parábola de Jesus. É bastante complexa na sua apresentação, visto que, talvez, confluam nela várias mensagens com objetivos diferentes, além da polêmica com os sumos sacerdotes e os anciãos do povo, que já encontramos nos domingos passados. Afinal, foram eles que condenaram Jesus. O pano de fundo é a festa de casamento do filho do rei. A festa, em si, é sinal do reino dos céus que só pode ser algo bom, alegre, com fartura de alimentos e bebidas. Uma festa também que, além de ser das mais requintadas, devia ser a mais cobiçada, por ser o convite a participar um sinal de honra e des taque. Digamos que somente pessoas seletas podiam entrar na festa. No entanto, eis aqui a primeira surpresa, os convidados não quiseram participar, não deram a menor atenção. Cada um continuou cuidando dos seus negócios e alguns maltrataram os que levavam os convites. Nessa versão da parábola, o rei considera a recusa e a violência dos primeiros convidados como uma afronta e manda destruir as cidades daqueles assassinos. “Eles não foram dignos”, comenta o rei.

A festa de casamento está pronta e, assim, outros são chamados a participar. Dessa vez, eis a segunda surpresa: nada de privilégios ou condições especiais. Todos vão ser convidados – os maus e os bons. Tal é a magnanimidade do rei, quer que a sala da festa fique cheia. No entanto eis a terceira surpresa, uma exigência: o traje de festa. Foi um pedido inesperado ou algo óbvio? Como pretender entrar na festa do casamento do filho do rei sem o traje adequado? À pergunta do rei, o “amigo” não sabe responder. Por isso, será severamente punido. Por fim, a frase enigmática: “Porque muitos são chamados, e poucos os escolhidos” (Mt 2 2,14).

Como já adiantei, nessa parábola confluem diversas mensagem: a recusa do povo eleito – os primeiros convidados – e o anúncio do evangelho feito aos pagãos, a todos: maus e bons. Esta era, provavelmente, a experiência da comunidade onde foi escrito o evangelho de Mateus: conviviam cristãos, que vinham do judaísmo, e outros do paganismo. Convivência nada fácil, cheia de avanços e recuos: saudade do rigor da Lei de um lado e conversões sinceras e livres do outro. Talvez o “traje” nos ajude a entender, digamos, o fio da meada. Afinal, o chamado é oferecido a todos, o Pai quer a sua “casa” cheia e alegre. A resposta, porém, cabe a cada um dos convidados. É possível recusar por achar o convite inútil ou, simplesmente, não entender nada do que aconteceu, não perceber a grandeza do convite, a maravilha de estar na festa do reino. Podemos pensar naqueles que não querem nada com Deus e com sua proposta de vida; acham que outras ocupações são mais importantes. Pensamos também naqueles que se consideram cristãos, católicos, mas, no fundo não gostam, acham tudo sufocante, exigente, enjoado. Estão na missa, distraídos e sempre olhando o relógio. O conforto é mais importante que a Palavra de Deus. A animação, vale mais que a Eucaristia. No fundo, não fazem o menor esforço para entender o que está acontecendo. O “traje” pode representar as condições mínimas para responder ao chamado do Pai com a gratidão de quem recebeu u m grande presente e não como alguém empurrado, conduzido por lá pelas circunstâncias da vida, sem graça, sem entusiasmo, sem consciência.

O “traje” distingue os homens que pensam dos animais. Aos cavalos da história interessavam somente o feno e a palha, qualquer lugar era bom. Os sábios buscavam algo mais: a acolhida sincera. Por isso, mostraram gratidão ao pobre que os acolheu a primeira vez.

A festa do Círio

O Círio é sempre uma festa. A multidão acompanha, reza, canta, muitos choram. Outros estendem as mãos para a pequena imagem que passa. Todos têm um pedido, uma oração, para fazer à Maria. Difícil resistir. Algo de mais forte nos leva a dizer abertamente ou no silêncio do nosso coração: Nossa Senhora, ajude-nos, ajude os seus filhos! Pedir, não é humilhante. Menos, ainda, quando suplicamos a quem nos conhece, nos ama e na qual podemos confiar. É reconhecer o tamanho das dificuldades e admitir a nossa fragilidade. É uma maneira também de dizer a nós mesmos que não queremos desistir, que ainda acreditamos num mundo melhor. Às vezes, porém, falta-nos coragem e clareza nos rumos a serem tomados. Por isso imploramos. De cabeça erguida, porque não queremos soluções milagrosas, algo de extraordinário, que nos dispense do nosso compromisso de lutar pelas causas justas.

À Maria, a pequena mulher de Nazaré, pedimos a força de acreditar no Deus que nunca abandona os seus amigos, que sempre realiza as suas promessas, que faz a sua parte, enviando o seu próprio Filho Jesus, pronto a morrer na cruz, para resgatar uma humanidade confusa e infeliz. Nossa Senhora, Maria de tantos nomes, respondeu com alegria o seu sim ao projeto de Deus, à vontade dele, conforme a sua palavra. Esse é o caminho certo, o caminho da vida plena. Precisamos de um pouco mais daquela clareza e daquela coragem que ela teve. Talvez seja esse o legado que o Ano Nacional Mariano, que está chegando ao seu fim, possa nos deixar.

Clareza não é só saber para aonde ir, é saber, antes, para aonde não ir. Os caminhos da corrupção e da violência devem ser deixados de vez. Se alguém ganhou com as propinas – talvez um dia ainda saibamos quem e quanto – com certeza o povo perdeu, as instituições perderam, todos ficamos mais pobres. Uma dinheirama sumiu e a busca da justiça não está ficando barata. Também projetos e medidas que ferem os direitos dos trabalhadores, dos povos indígenas e o equilíbrio da floresta, podem ser atos violentos ou abusivos. Para reverter certos costumes poluídos, pr ecisa implantar outros, baseados na honestidade e no bem comum. Vale para todos, grandes e pequenos.

Parece que estejamos esquecendo alguns dos mandamentos fundamentais para uma convivência social pacífica e saudável, como: “não matarás, não roubarás, não levantará o falso”. Antes de qualquer lei humana, que abre tantas brechas, deve ser a nossa consciência a respeitar a vida, a verdade e os bens dos outros. Quando a mentira se torna propaganda, o desvio de dinheiro público é quase legalizado e a vida vale menos do que um celular, é sinal que está faltando luz para enxergar as metas do nosso avançar. Para aonde queremos ir, afinal? É possível encontrar o caminho sozinhos ou só é possível acertá-lo juntos? Precisamos de muita coragem para abrir trilhas novas. Urgem desbravadores para abrir estradas na selva de indiferença das nossas cidades; trabalhadores para construir pontes que nos façam encontrar de novo os irmãos; tocadores que nos lembrem a gratuidade e a poesia da natureza, dom do Criador para os seus filhos.

O Papa Francisco nos lembra que a paz, a justiça e o bem, são trabalhos artesanais. São feitos pelas mãos e os pés de muitos, alcançados com os pequenos passos dados no dia a dia, com o cuidado, a paciência, o bom gosto e muitos sorrisos. Todo artesão sabe que precisa trabalhar, suar, acreditar que as situações erradas podem mudar e algo novo vai surgindo. Na realidade, para nós cristãos, o “novo” é sempre o mandamento de Jesus, o amor. É antigo e está escrito no coração de cada ser humano que tenha vontade de se olhar por dentro e tenha a coragem de sair e m busca dos seus irmãos.

Nazaré, Fátima, Aparecida, qualquer seja o “nome” que damos a Nossa Senhora, qualquer seja a devoção e o carinho que temos por ela, pedimos a sua intercessão. Queremos que o Círio do Ano Nacional Mariano, seja o Círio do “sim” da esperança para os pequenos, da força para os desanimados, da coragem para retomarmos juntos o caminho certo. Forte como o “sim” de Maria.

O cavalo bravio

Um camponês simples, sincero e de bom coração, foi desabafar com o seu pároco. Estava triste porque sentia um mau impulso que o dominava e o arrastava sempre ao pecado.
– Sabes montar a cavalo? – perguntou-lhe o padre.

– Sei – respondeu prontamente o homem – e sou muito bom nisso. Sei até lidar com cavalos bravios.
– O que fazes se, por acaso, cair do cavalo, vais desistir?
– Nunca! Eu monto nele outra vez – rebateu o camponês, tranquilamente e com certo orgulho, como alguém acostumado com a lida.

– Pois bem: faz de conta que o teu mau impulso seja o cavalo – falou o padre com ar de inteligência – se caíres, outras vezes, nunca desiste, começa sempre tudo de novo. Deus tem mais paciência do que nós. Um dia amansarás o teu impulso!

Neste domingo, encontramos mais uma parábola de Jesus. De novo alguém precisa trabalhar numa vinha. Dessa vez, os trabalhadores convidados são os dois filhos de um homem. O primeiro, pelas suas palavras, recusa-se a ir para a vinha, mas, depois, arrepende-se e vai. O segundo declara prontamente a sua obediência, mas não sai para trabalhar. A parábola acaba aqui. Jesus a complementa com uma pergunta polêmica aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo, seus ouvintes: “Qual dos dois fez a vontade do pai?” Eles, sempre em busca de pegar Jesus em alguma contradição, percebendo ou não a esperteza dele, respondem o certo: “O primeiro”. Com efeito, esse filho, apesar de ter declarado o contrário, foi o único a obedecer ao pai. Jesus aproveita da resposta deles e não perde a oportunidade para desmascarar a dureza dos seus corações. Eles se parecem mesmo com o segundo filho. Disse palavras bonitas, mas, na prática, não deu ouvido ao chamado do pai. Ao contrário, os cobradores de imposto e as prostitutas, julgados por eles tão pecadores, acreditaram na pregação de João Batista, arrependeram-se e mudaram de vida.

Daqui para frente, o embate entre Jesus e os chefes do Templo e do Sinédrio se fará, cada vez mais, acirrado. O desfecho será a condenação à morte dele na Cruz. Uma briga desigual que a Jesus, porém, não interessa vencer. No Calvário, perdoará a todos. O Filho que o Pai enviou aceitará ser contado entre os malfeitores, será vítima inocente de um processo manipulado, “pecado” com os pecadores e morrerá por amor para salvar a todos. Ele tomará o remédio amargo da Paixão para que os doentes pudessem ser curados uma vez por todas. O que preocupa Jesus, também quando usa palavras duras e polêmicas, é a incredulidade daqueles que deviam ser os mais atentos, os mais próximos e preparados. A questão é que, para procurar o médico e pedir a cura, todos precisamos reconhecer que estamos doentes. Quem só vê os erros dos outros e os condena sem piedade em nome de uma Lei divinizada, dificilmente reconhecerá as suas próprias dificuldades, desobediências e hipocrisias.

O interessante da parábola é que os dois são igualmente filhos, porque só assim pode ser para um pai. Nem o desobediente deixa de ser filho. As palavras de Jesus sempre foram, e sempre serão, para todos. O convite é dele, mas a resposta é nossa, de cada filho. A diferença entre os filhos depende das nossas respostas para participar do Reino. Ninguém é forçado ou obrigado. O Pai não é um patrão explorador, deixa livres os seus filhos. Tão livres que podemos aceitar ou não, mas também podemos nos arrepender e fazer, outra vez, o que, no momento, tínhamos recusado. Só a Paciência e a Misericórdia do Pai podem ser tão grandes e nos dar tantas chances. Que bom seria sempre responder ao chamado com presteza e gratidão. Que bom seria abraçar a causa do Reino, sem julgar os acomodados e os atrasados, mas também sem nos achar indignos por causa dos nossos defeitos e pecados. Na vinha do Senhor tem trabalho para todos. A participação na comunidade de Jesus já é cura, é ar novo, horizonte novo para quem vivia afastado, às margens, porque se considerava melhor do que os outros ou, ao contrário, inútil para o serviço do Reino. A experiência de cair faz parte da vida de todos. O que vale é nunca desistir e sempre recomeçar.

O cantar do galo

Um ganso pertencia a um dono pobre e despreocupado. Sofria muita fome, porque se esqueciam de lhe dar de comer. Um dia, o dono comprou um galo e o fechou no mesmo galinheiro. O ganso ficou assustado ao ver o novo companheiro e, todo triste, disse-lhe:

– É agora que vou morrer de fome! Seremos dois a repartir a minha pobre ração.

– Não chore não – respondeu o galo – quando tenho fome eu sei cantar para lembrar ao dono a hora da ração. Assim, ambos comeremos!

O evangelho deste domingo nos traz a parábola do patrão que chamou operários para trabalhar na sua vinha. Até cinco horas da tarde, ainda convidou homens para o trabalho. Quando chegou o momento de pagar os trabalhadores, o dono deu a todos a mesma moeda de prata, a recompensa estabelecida por uma diária de serviço. Os primeiros operários, contratados de madrugada, reclamaram pelo o que eles achavam ser uma injustiça. Quem trabalhou menos, devia receber menos. Que justiça era aquela do patrão? A resposta do senhor da vinha não foi uma justificativa. Foi uma declaração de liberdade. Os primeiros não podiam reclamar, tinham sido contratados por uma moeda e estavam recebendo o certo, se, depois, o dono queria dar o mesmo aos demais trabalhadores, que haviam chegado depois, não estava ele livre de fazer o que queria com o seu dinheiro? A sua generosidade não deveria ser motivo de inveja, mas de surpresa e admiração.

Já disse que as parábolas de Jesus nunca são a simples apresentação de uma experiência ou de um costume daquele tempo. Sempre tem algo de novo que devemos descobrir e que torna as parábolas sempre atuais e desafiadoras. Nesse caso, a contraposição está entre um tipo de justiça, que nós chamamos de retributiva, e o jeito do dono da vinha agir. O que parece injusto, no critério do mérito, serve para tornar ainda mais surpreendente a bondade daquele patrão tão diferente e por nada aprisionado em medidas legalistas. Isso não quer dizer que as leis do trabalho não devam ser respeitadas e que o esforço de quem fadigou mais não mereça mais recompensa. A questão é outra , porque a vinha, os trabalhadores, os horários e o pagamento são todas comparações para entendermos a novidade do reino dos céus. Jesus quer nos dizer que os critérios do Pai, o dono da vinha, são diferentes das leis comuns e daquilo que, normalmente, esperamos. No “reino”, todos são filhos do Pai e ele gostaria muito que todos entrassem na sua vinha, nem que fosse na última hora. Na “vinha” estão a vida e a paz, o encontro entre todos os diferentes, primeiros e últimos. Pouco importa. O que vale é o estar juntos ao coração amoroso, misericordioso e compassivo do Pai. Não tem melhor recompensa e a comunhão com Deus será a única alegria igual para todos, superando todas as nossas mesquinhas divisões, separações e discriminações. Todos “filhos” amados pelo Filho e no Filho que o Pai enviou a chamar, a convocar, a servir e a dar a vida pela causa do “reino”.

Atualizando a Palavra. Por que a inveja dos primeiros operários? Por que acharam que mereciam mais? É porque cada um queria desfrutar sozinho o pagamento, o prêmio. O dono viu a divisão entre eles e não lhe restou que dizer a cada um: “Toma o que é teu e volta para casa!”. Mas não era isso o que ele queria. O Pai teria gostado muito que, ao final daquela jornada fadigosa, todos se abraçassem e pudessem celebrar juntos o fruto do seu trabalho, sem mais últimos ou primeiros. Só irmãos, na difícil missão de construir o reino dos céus, o reino do amor. Continuamos egoístas e gananciosos. Continuamos a pensar que a festa da vida será mais bonita se festejarmos sozinhos. Temos medo de ficar sem comida, s em conforto, sem privilégios. Continuamos invejosos uns dos outros. Deus nos entregou um jardim que daria para todos o necessário e algo mais. Bastaria partilhar mais as riquezas do planeta, da tecnologia e das conquistas da ciência. Usamos tudo isso para construir armas, para matar, não para festejar! A ração cotidiana não é tão fraca e o dono não é tão esquecido. Quem o galo deve acordar não é o dono, somos nós.

A esposa obediente

Certa vez, um sábio e bom mestre voltava para a sua casa, acompanhado por alguns dos seus discípulos. Eles conversavam, descontraídos, sobre os acontecimentos daqueles dias. Ao dobrar uma esquina, uma mulher saiu ao seu encontro e despejou na cabeça do mestre um balde de água suja. A agressora foi logo reconhecida como a esposa daquele que todos sabiam ser o maior inimigo do sábio, o mais rancoroso e vingativo. Os discípulos ficaram revoltados e sugeriram ao mestre punir exemplarmente a atrevida. O mestre, porém, não deixou e lhes disse: “Não castigueis essa mulher. Com certeza ela agiu assim contra mim por ordem do marido; logo, reconheçamos que ela é uma esposa obe diente. Apesar de tudo, devemos admirá-la!”.

Com o evangelho deste domingo continuamos a refletir sobre o ensinamento de Jesus a respeito do perdão. Ele responde à pergunta de Pedro: “Senhor, quantas vezes devo perdoar se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (Mt 18,21). Antes de contar a parábola do servo cruel, Jesus responde a Pedro propondo o estranho número de “setenta vezes sete”. Para entender essa quantia, precisamos voltar atrás na Bíblia. Encontramos algo semelhante em Gênesis 4,23-24. Lamec diz aos seus familiares: “Matei um homem por uma ferida, um jovem por causa de um arranhão. Se Caim for vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes”. A matemática b&ia cute;blica pode não bater com a nossa, mas o sentido é o mesmo, com a diferença que, no caso de Lamec, o assunto é o castigo e a vingança, ao passo que Jesus está falando de perdão. Aquela punição tão desproporcional deve ser substituída por uma misericórdia igualmente sem cálculos.

Sabemos, também, que a “justiça” que Jesus propõe no discurso do monte vai além do “olho por olho, dente por dente” (Mt 5,33-37). A “justiça” de Deus se chama misericórdia e o seu perdão é grande, sem limites. Essa é a novidade do evangelho. Não é uma justiça “sem lei”, onde tudo parece ficar impune. O pecado continua algo de errado, nunca vai se tornar um bem! É a justiça que é nova. O remédio para o erro e o pecado não será mais a punição, mas será o perdão. É um caminho longo e difícil, mas não tem outro se acreditamos na possi bilidade real da nova humanidade dos filhos do Pai Misericordioso. Esse Pai está pronto a perdoar todas as “dívidas” – os nossos pecados – também quando são de tamanho e gravidade diferente. No entanto, Ele nos pede para aprender, também, a perdoar aos nossos devedores. Só implorar o perdão dele para os nossos pecados e não saber exercer a compaixão e a misericórdia com os irmãos é oração interesseira e dureza de coração. Todos devemos perdoar, porque já fomos muito perdoados. Esse é o sentido da parábola dos dois servos endividados. Ao primeiro é perdoada uma dívida inimaginável e, portanto, impagável: algo como trezentas toneladas de ouro ou de prata. Um absurdo! A dívida do companheiro era somente de alguns meses de trabalho, valendo a diária de uma moeda de prata. A irrita&cc edil;ão do rei é compreensível, porque o primeiro empregado não soube, por sua vez, perdoar a dívida bem pequena do colega. Infelizmente, não aprendeu nada com a bondade desfrutada.

Acredito que, a cada dia, descobrimos como a justiça humana é difícil de ser praticada e administrada. É costume dizer que a “justiça de Deus tarda, mas não falha”, mas o que pensar da justiça humana que, além de demorar, ainda nos parece tão falha, cheia de meandros, entraves e justificativas? Como cristãos, porém, não podemos desistir. Buscaremos leis mais justas e equânimes, procuraremos educar a consciência dos cidadãos ao respeito dessas leis, contribuiremos para a recuperação dos encarcerados, através de um sistema penitenciário capaz de redimi-los e reintegrá-los nas suas famílias e na sociedad e. No entanto nunca deixaremos de acreditar na possibilidade do ser humano de retomar o bom caminho. O perdão sempre será o início de uma nova etapa de vida, fruto do infinito amor de Deus e do nosso, ainda tão limitado e vagaroso. Em todos devemos reconhecer algo de bom, também se obedeceram a algo de errado? Quem sabe?