Dom Pedro Conti

O mendigo da estrada

Um rei não tinha filhos. Mandou mensageiros para espalhar avisos. Os jovens aspirantes ao trono deviam ter duas condições: amar a Deus e aos seres humanos de todas as classes e raças. Aqueles que se achassem qualificados deviam apresentar-se para uma entrevista com o rei. Um jovem leu o aviso e pensou que podia participar. Amava a Deus, sempre ajudava em casa e os vizinhos quando precisavam. Logo, porém, desanimou: era muito pobre, não tinha nem roupa p ara apresentar-se ao palácio. Contudo tomou coragem, implorou ajuda, emprestou a roupa e conseguiu o necessário para a viagem. Todos gostavam dele. Estava quase para chegar quando, no caminho, encontrou um mendigo pedindo socorro.

– Tenho fome e frio. Por favor, ajude-me! – chorava o pobre.

O jovem ficou indeciso sobre o que devia fazer, mas a sua bondade falou mais alto. Deu ao mendigo o pouco que tinha. Quando chegou ao palácio, um criado foi ao encontro dele, o convidou a entrar e o conduziu direto à sala do trono. Quando levantou os olhos e viu o rosto do rei, mal conseguiu falar:

– O senhor é o rei? Mas…o senhor era o mendigo da estrada!
– Era mesmo – respondeu o rei – Se eu tivesse me apresentado com a coroa e as roupas reais, você teria feito qualquer coisa por causa do meu poder. Por isso, me disfarcei de pobre, para saber se você amava mesmo a Deus e aos seus semelhantes! Meu jovem, você passou no teste. Será o herdeiro do trono!

O evangelho de Marcos, deste domingo, continua com a cura de um leproso. Sozinho. Por que tanto privilégio? Porque não se juntou aos demais que Jesus curava andando pelos povoados da Galileia? Por medo do contágio, os leprosos não podiam entrar nas cidades, deviam ficar longe, afastados de tudo e de todos. Ainda eram vivos, mas eram considerados mortos. Esse leproso talvez tivesse ouvido falar de Jesus. Tomou coragem, foi ajoelhar-se aos seus pés e pediu a cur a. Mais coragem ainda teve Jesus em estender a mão, tocá-lo e, assim, purificá-lo da lepra. O gesto lhe custou caro, porque a notícia se espalhou e, por enquanto, sempre com a desculpa da terrível doença, Jesus teve que ficar fora das aldeias. Não podia mais entrar “publicamente”, diz o evangelho.
Como sempre, Marcos quer nos dizer algo mais. As doenças apresentadas parecem ser cada vez mais graves. Começou com o espírito mau, depois a febre da sogra de Pedro, diversas doenças e, enfim, a lepra. A próxima cura será de um paralítico, antes, porém, Jesus lhe disse que perdoava os seus pecados. Foi um escândalo, mas este é o ponto onde o evangelista quer nos conduzir. A pior doença é o mal instalado no cora&c cedil;ão humano, quando o orgulho e a disputa com Deus tomam conta de tudo. Junto, desaparece também a compaixão pelo próximo. Para Jesus, pecado é morte, um viver sem vida. Ele quer doar vida nova aos enfermos e aos pecadores. Ainda, porém, não é o tempo do entusiasmo e da divulgação. Falta a cruz. De novo, no Calvário, Jesus ficará fora da cidade.

O Deus Pai, que Jesus veio revelar, não quer ninguém fora, afastado, excluído do seu amor. As curas das doenças, a expulsão dos demônios e o perdão dos pecados, manifestam este projeto de vida nova. Para isso, Jesus está disposto a ficar, ele mesmo, “fora” da cidade. Nesta página do evangelho, é visível a troca de lugar entre ele e o leproso. Jesus, agora, é o excluído, solidário c om todos os excluídos, com as “massas sobrantes” do cinismo e da ganância humana. Um Jesus qualquer, pequeno, pobre, com fome e com frio. Um Jesus malfeitor, pregado na cruz, sem beleza e aparência de homem. Desfigurado, desumanizado. Precisa ter olhos limpos e coração misericordioso para reconhecê-lo. Não tem roupa de rei. Não tem poder algum. Não promete vantagens. Não manda, pede, como o leproso: “Se queres…”. O amor verdadeiro não é imposto ou negociado. Vale se for puro dom. A Quaresma que se aproxima pode ser um tempo bom para testar a nossa solidariedade ou o nosso egoísmo. Tomara que vença a fraternidade.

Já a fizemos

Num dia de mercado na cidade de Assis, Francisco, ao sair do convento, encontrou Frei Junípero. Era um frade simples e bom. Francisco gostava muito dele. Aproximou-se e disse-le:

– Frei Junípero, vem comigo, vamos pregar.

– Francisco, você sabe que tenho pouca imaginação. Como poderei falar às pessoas?

Mas, devido à insistência de Francisco, Frei Junípero obedeceu. Andaram por toda a cidade, rezando em silêncio por todos os que estavam trabalhando. Sorriram às crianças, especialmente às mais pobres. Trocaram algumas palavras com os idosos. Acariciaram os doentes. Ajudaram uma mulher a transportar um cântaro de água; outra, a arrumar a banca onde vendia hortaliças e que as crianças, nas suas brincadeiras, haviam derrubado. Depois de terem atravessado o mercado e a cidade, Francisco disse:

– Frei Junípero, está na hora de regressarmos ao convento.

– E a nossa pregação? – Francisco sorriu e respondeu:

– Já a fizemos, já a fizemos.

Para a nossa reflexão sobre o evangelho deste domingo, o quinto do Tempo Comum, eu poderia, simplesmente, repetir o que escrevi a semana passada. O evangelista Marcos continua a sua “catequese” nos apresentando a maneira de Jesus agir, encontrando as pessoas e fazendo o bem. Como já disse, em Jesus, palavras e ações andam juntas. Jesus “prega” com a sua própria vida e, vivendo, anuncia a boa notícia do amor do Pai para com todos, de maneira especial os doentes e excluídos. No entanto está claro que, a cada página do evangelho, algo novo aparece e vale a pena ser colocado.

O primeiro gesto de Jesus é sair da sinagoga e entrar numa casa. Parece óbvio, mas não é. Depois, na frente da casa se reúne “a cidade inteira”. Exagero do evangelista? Ou um convite para todos os pobres e sofredores? De madrugada, Jesus se afasta de todos e vai rezar num lugar deserto. Por fim, continua a sua missão andando “por toda a Galileia”. Jesus fez um gesto – uma cura – na sinagoga, mas agora anda pelas aldeias, no meio do povo. Dá para entender que a boa notícia não ficará “fechada” em algum lugar privilegiado ou reservado. No templo ou na igreja, para entender. Vai se espalhar.

Jesus é livre e a sua palavra liberta, cura e transforma a vida. Jesus também não é um curandeiro ou um mágico de profissão. Não cobra, não faz negócios. Doa a si mesmo, a sua jornada toda e, sobretudo, a sua compaixão. Prega o amor com a sua vida. Somente se reserva às madrugadas para encontrar o Pai, no silêncio e na oração. É um homem para os outros. Inteiramente entregue à missão. Mas não numa atividade frenética, fazendo qualquer campanha ou promovendo a si mesmo. É uma pessoa “ocupada”, mas, ao mesmo tempo, não esquece de onde lhe vem tanta disponibilidade e generosidade. O Espírito acompanha Jesus, desde o batismo no Rio Jordão, depois no deserto e, agora, na vida pública. É o Espírito Santo que o ajuda a conti nuar na comunhão com o Pai celestial, apesar de estar no meio da humanidade, plenamente humano, em carne e ossos. Discretamente, o evangelista nos apresenta o mistério maravilhoso da Santíssima Trindade.

As lições para a nossa vida de cristãos se resumem numa palavra cara ao papa Francisco: “Saiamos, saiamos” (EG 49). A saída mais difícil para todos, porém, não é só aquela de sair do templo e mergulhar na sociedade para “pregar” o evangelho com a nossa vida. É sair de nós mesmos, ir ao encontro das pessoas com o olhar mais fraterno e o abraço mais solidário. Devemos sair para nos tornarmos próximo dos irmãos! Não tem melhor evangelização que o serviço generoso, a paciência da transformação, a liberdade da indignação e a não colaboração com o mal. Duas vezes, Marcos fala que Jesus “expulsava” muitos demônios. Seria bom que cada um de nós reconhecesse qual “espírito mau” nos impede de ser um evangelizador com a sua vida. A acomodação? O medo de se comprometer? O desencanto? O que entendi é que não saber falar não é desculpa. São Francisco já sabia. Frei Junípero aprendeu. Todos nós “pregamos” muito mais com o exemplo do que com as palavras. Também quando menos pensamos.

Muitas leis, nenhuma lei

A classe política está pagando pela sua falta de atenção na elaboração das leis que pretendem regulamentar o processo eleitoral. Assim, ao longo dos anos já fizemos dois Códigos Eleitorais, que ninguém cumpre e estão no rol daquelas leis de que os brasileiros dizem que “não pegou”, e milhares de dispositivos modificando-os. Resoluções, súmulas, portarias, jurisprudência se modificam mutuamente, criando um verdadeiro caos jurídico.

Começamos por ter para cada eleição uma resolução geral do TSE, que introduz dispositivos novos e novos procedimentos, impedindo que se consolidem na pratica e o exercício, em cada pleito, de normas estáveis. Quem mais lucra com isso são os “comentadores” desses dispositivos, que imediatamente publicam livros para explicar o que devia estar explicado pela lei.

Numa democracia constitucional, isto é, aquelas cujos direito e deveres estão expressos numa Carta Magna, o que primeiro devíamos buscar era a estabilidade das leis. Mas o que ocorre é outra coisa, sua instabilidade. Para dar um exemplo dessa febre legiferanda, basta citar que só resoluções do TSE (pasmem!) existem mais de 23 mil — para ser exato 23.527 é o último número que encontro — o que certamente levaria um candidato a passar a vida inteira lendo essas resoluções, deixando para concorrer a uma eleição qualquer que se realizasse no inferno.

Vivemos todo dia essas dificuldades. Nossa Constituição já tem 106 Emendas, que, com seus artigos, têm uma extensão superior à dos artigos da própria Constituição original. O que mais se pede e mais se exige são “reformas”, que têm sido demasiadas na área constitucional. E o que ocorre no mundo da legislação infraconstitucional?

Ninguém sabe por que ninguém é capaz de lê-las em sua totalidade. Quando presidente do Senado, cargo que ocupei quatro vezes, certa vez reclamei de uma Medida Provisória cuja ementa (a síntese que encabeça toda lei) ocupava toda a primeira página do avulso (publicação da matéria durante sua tramitação) e era toda dedicada as alterações que se fazia em leis anteriores. Mais ou menos assim: Ementa “Esta lei modifica o art. 5º da Lei no 5.567, que modifica o art. 3º § 3º, inciso IV, da Lei no 8.320, que por sua vez altera o art. 5º da Lei no…” e assim por diante, uma lei modificando outra, que modifica outra, que altera outras, o que impossibilita qualquer pessoa, mesmo que seja advogado ou jurista, de pesquisar só as leis que foram citadas na ementa e mesmo de saber o que verdadeiramente se deseja legislar. A verdade é que nossa legislação é totalmente casuísta.

Para que ninguém pense que estou só especulando, vou transcrever o caput do artigo 8º do Código Eleitoral como está reproduzido no site do Palácio do Planalto: “Art. 8º O Brasileiro nato que não se alistar até os 19 anos ou o naturalizado que não se alistar até um ano depois de adquirida a nacionalidade brasileira, (sic) incorrerá em multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o valor do salário-mínimo da região, imposta pelo juiz e cobrada no ato da inscrição eleitoral através de selo federal inutilizado no próprio requerimento. (Redação dada pela Lei no 4.961, de 1966) (Vide Lei no 5.337, 1967) (Vide Lei no 5.780, de 1972) (Vide Lei no 6.018, de 1974) (Vide Lei no 6.139, de 1976) (Vide Lei no 7.373, de 1985).” O site do TSE acrescenta resoluções, outras leis, portarias…

Mas meu testemunho é que os chamados “penduricalhos”, “jabutis”, “cacos” que são descobertos quando a lei é aplicada mostram apenas que ninguém lê a lei. Passa no Congresso sem a devida atenção. Muitas vezes reclamei disso e clamei da necessidade de se acabar com isso.

O que resulta é o que estamos vendo neste caso do julgamento do Lula. Os que defenderam uma lei que passou por cima de muitos direitos individuais, inclusive a coisa julgada, estão agora desdizendo o que disseram. É como dizem na França, parece que citando Montesquieu: “Beaucoup de lois, pas de loi.” Muitas leis, lei nenhuma.

Até o diabo obedece

Certo dia, uma senhora foi numa emissora de rádio para pedir ajuda. O esposo estava doente e desempregado. Em casa faltava comida e roupa para os filhos pequenos. Um ouvinte escutou o apelo e logo pensou que fosse a choradeira de sempre. Como acreditar em tanta desgraça? Porém teve uma ideia. Anotou o endereço da pobre mulher e, como de costume, mandou a sua empregada ao supermercado fazer as compras. Disse-lhe para comprar tudo em dobro. Depois, mandou que a empregada fosse na casa da família que estava passando dificuldade. Lá entregaria a metade das compras. Se a mulher pergun tasse quem estava enviando o “rancho” devia responder:

– Foi o diabo que mandou.
No entanto, a pobre senhora recebeu as sacolas e, muito agradecida, disse simplesmente:
– Deus lhe pague!
A empregada, titubeando, perguntou:
– Mas a senhora não quer saber quem mandou tudo isto?
Sorrindo a mulher falou:
– Sei que foi alguém tocado pelo amor de Deus e se Deus manda, até o diabo obedece!
Continuamos a leitura do evangelho de Marcos. Jesus foi um judeu obediente e cumpridor das leis religiosas. De sábado foi à sinagoga de Cafarnaum onde o povo se encontrava para rezar, proclamar e comentar as Escrituras. O evangelista nos diz que Jesus “ensinava” de um jeito diferente dos mestres da lei. Ele falava de coisas novas e como alguém que tinha autoridade. A nova “doutrina”, porém, não é explicada. Em resposta a esta possível curiosidade, o evangelista apresenta a queixa de um “espírito mau” e a ordem de Jesus: “Cal a-te e sai dele!”. Jesus “ensinava”, mas o espírito mau fala mais do que ele e faz uma declaração de fé, diz que Jesus é “o santo de Deus”. Com isso, deve ficar claro que não será a quantidade das palavras, ou somente o que é dito, que vai valer, mas quem fala. A atenção passa, portanto, das palavras em si à pessoa que fala. Ou seja: para entender o valor e o sentido das palavras ditas, precisa, antes, prestar atenção a quem as pronuncia. “O ensinamento novo dado com autoridade” é uma pessoa: é Jesus e ele ensina com palavras, gestos e ações. Não dá para separar as palavras de Jesus da sua maneira de agir. A manifestação humana de Deus, no Filho Jesus, não se deu simplesmente numa “doutrina”, mas numa maneira de viver. De fato, é a vida toda de uma pessoa qu e dá sentido às suas palavras e estas somente se entendem se colocadas na vida – e na morte – daquela mesma pessoa.

Ao longo da história da humanidade, sempre apareceram e vão aparecer pessoas fascinadas pelos ensinamentos de Jesus. Muitas das palavras dele são consideradas patrimônio universal da sabedoria humana, insuperáveis. Nunca lhes foram poupados elogios. Ainda são usadas e abusadas. Reinterpretadas e reviradas, pretensiosamente atualizadas e modernizadas. No entanto, tudo isso não tem nada a ver com a fé em Jesus. Acreditar nele é muito mais do que ser tocados pelas suas palavras, chorar ou vibrar com elas. O cristão pode decorar os ensinamentos do Mestre, mas sabe que o que deve fazer mesmo é viver como ele viveu. Por isso, o evangelista Marcos coloca esta “libertação” do homem possuído pelo espírito mau como primeiro gesto de Jesus no seu evangelho. Tudo, palavras e gestos de Jesus, são para que o ser humano volte a ser bom, muito bom, como Deus o tinha criado com a sua palavra original. O “espírito mau” do evangelho conhece quem é Jesus, mas mantem em seu poder a pessoa. Nós todos já deveríamos saber que têm palavras que encantam, mas amarram e escravizam. Têm palavras que parecem revelações, mas não comprometem a vida. Têm palavras que emocionam, mas só fazem voar, nunca aterrissar. Não fazem crescer o cristão, porque não o responsabilizam. Jesus não precisa de muitas palavras. Ele é a Palavra de Deus que se fez carne, vida, amor. Não diminuiu a autoridade dele. São a escuta sincera e a prática amorosa por parte dos cristãos que faltam. Por causa da sua palavra os espíritos maus gritam, mas obedecem. Mais do que nós. Já nem reclamamos e nem obedecemos. Estamos ficando indiferentes. Uma pena!

Borboletas e coelhos

Dois jovens foram ao rio para pescar. Um deles vendo uma borboleta voando, largou a vara e saiu atrás dela. Quando voltou, de mãos vazias, viu que o amigo tinha pescado um peixe muito grande. Pouco depois, novamente, o jovem se levantou e correu atrás de um coelho que estava ali por perto, mas não conseguiu alcançá-lo. Quando voltou, viu que o colega tinha pego outro lindo peixe e disse:

– Por que eu não consigo pegar nem um peixinho?

O outro respondeu: Se deves pescar, pesca! Precisas decidir o que queres pegar: a borboleta, o coelho ou o peixe? Assim que decidires, deves empenhar-te com todas as tuas forças.

Ao ouvir e refletir sobre as palavras do amigo, o jovem empenhou-se na pesca. A borboleta e o coelho voltaram a passar por ali, mas ele não deu mais atenção. Pouco depois, também ele, com grande satisfação, pegou o seu peixe e agradeceu ao amigo pela lição recebida.

O evangelho de Marcos, deste domingo, apresenta-nos a pregação inicial de Jesus, o chamado dos primeiros discípulos e a disponibilidade deles em deixar tudo para segui-lo. Fica bastante claro que se Pedro, André, Tiago e João responderam tão prontamente ao chamado, é porque o anúncio de Jesus os tocou de maneira especial. Chegou o tempo do “reino de Deus”! Valeu a pena deixar as redes, o pai, o barco, os empregados. “E partiram, seguindo Jesus” (Mc 1,20). Algo grande, desejado, esperado, mexeu no coração deles. Ainda não sabiam bem o que aconteceria. Seguiram aquele pregador itinerante que lhes disse que fazia deles “pescadores de homens”. Não será uma nova profissão, um novo ganha-pão, talvez mais lucrativo. Não. Será uma missão. Aprenderão, com Jesus, a fazer acontecer o reino de Deus na vida das pessoas. O Mestre curará doentes, perdoará pecados, dará pão aos famintos. Ensinará coisas nunca ouvidas. Será acolhido e rejeitado, amado e odiado. Eles mesmos ficarão entusiasmados e decepcionados. Para serem grandes, aprenderão a servir. Para ter cem vezes mais, terão que viver despojados e de maneira simples. Somente assim serão irmãos dos pobres que os acolherão em suas casas. O tesouro deles será estar com Jesus. Terão alegria e medo. Homens fracos! Um dia fugirão, mas depois entregarão também as suas vidas &agrav e; causa do reino de Deus. Felizes; sem arrependimentos.

“Imediatamente” é uma palavra que nos espanta. Será que pensaram bem e avaliaram os riscos? A decisão deles foi só empolgação, busca de novidade? Os evangelhos não se preocupam com isto; não foram escritos para enaltecer aqueles primeiros apóstolos, mas para os seguidores de Jesus que viriam depois. Para todos nós, afinal. O “imediatamente” é mais do que uma questão de tempo. É questão de profundidade. O que está em jogo não é uma profissão ou outra, mas o ganhar ou perder o sent ido da própria vida. O desafio de toda existência humana é reconhecer o que vale mais e o que vale menos, o que se pode, ou se deve, largar uma vez por todas e aquilo que, se for jogado fora, nos fará falta para sempre. Os evangelhos foram escritos para nos ajudar nesta escolha. Aqueles primeiros, aprenderam a deixar mais que as redes e o barco. Eles mesmos deviam ser os primeiros a se converterem. Caminhando com Jesus, perguntando e sendo questionados, começavam a conhecer um Deus diferente. Ele era um Pai compassivo, um Senhor da Vida, além de todos os preconceitos e de todas as exclusões. Sabiam que Deus tinha criado o mundo com a sua palavra. Agora, Jesus ensinava com autoridade, libertava doentes e pecadores, criava novamente a humanidade de irmãos e amigos. O “reino de Deus”, o seu projeto originário, estava ali, estava acontecendo, era possível vê-lo, tocá-lo. Estavam aprende ndo a ser pescadores de homens. Deviam se concentrar na nova missão. Que passassem borboletas e coelhos, fama e riquezas. Agora não lhes interessavam mais.

A maior riqueza

Certo dia, uma criança se perdeu em uma montanha. Depois de muito andar, bateu na porta de uma casa enorme, no meio da floresta. O velho que veio abrir, vendo o menino ficou surpreendido: – Andas perdido, pequeno?

– Sim, e não sei voltar para casa.

– Entra, então, descansa comigo esta noite e come da minha ceia. Enquanto jantavam, puseram-se a conversar.

– Eu sou – disse o velho – um sábio e quero salvar o mundo. Propus-me essa missão e está quase terminada. Descobri como se fabrica o ouro e, assim, todos os homens poderão ter um tesouro e ser felizes.

– Ouro? Para que ouro? Eu não preciso dele. Eu sou rico, meu senhor. Tenho pai, tenho mãe e até um irmãozinho. Sou muito rico de amor!

Ao ouvir essa resposta, o velho ficou pensando. Olhou para os seus instrumentos de fazer ouro e depois para o céu. E numa voz muito doce, disse murmurando: – Tu sabes mais do que eu.

Antes de se iniciar o Tempo da Quaresma, temos alguns domingos do Tempo Litúrgico chamado “Comum”. Em geral, nos evangelhos dominicais, encontramos o início da missão de Jesus, os seus primeiros gestos e palavras e os primeiros discípulos chamados a segui-lo. Começamos com um trecho do evangelho de João. É, outro João, o Batista, que aponta o “Cordeiro de Deus” para os seus seguidores. Com isso, já entramos na “linguagem” própria desse evangelista que n os acompanhará, neste ano, nos Círculos Bíblicos da nossa Diocese. João usa palavras que somente se entendem se conseguimos fazer a ligação com as promessas e os fatos do Antigo Testamento, com referência, sobretudo, aos livros do Êxodo e dos Profetas.

Outro detalhe desse evangelho são as perguntas. Os estudiosos as contaram: são mais de 160! São perguntas de Jesus, questionamentos dos adversários, dúvidas de quem quer entender o que está em jogo. Perguntas pedem respostas, questionamentos servem para esclarecer, dúvidas para conduzir a uma decisão. É difícil ficar indiferentes na frente de uma pergunta. Se sabemos a resposta ficamos contentes. Uma luz se acende em nossa mente e em nosso coração. Se não sabemos resp onder ou nos sentimos insatisfeitos com a resposta, no mínimo, ficamos incomodados. Isso é bom também; faz-nos participar do debate, obriga-nos a olhar dentro de nós, para reconhecer a que ponto está a consciência e a vivência da nossa fé. O evangelista João quer cristãos testemunhas luminosas da verdade, mais luz que escuridão.

No trecho evangélico deste domingo duas perguntas chamam a nossa atenção. Uma é de Jesus: “O que estais procurando?”. A outra é dos dois discípulos que começaram a segui-lo: “Mestre, onde moras?”. A primeira é, sem dúvida, uma pergunta existencial, porque todos nós procuramos algo em nossa vida. A segunda revela o desejo profundo do coração humano, quando percebemos que para encontrar o que buscamos, precisamos conhecer, além da meta, tamb&eacu te;m a direção e o lugar. É nessa procura que os caminhos se confundem e podemos nos perder. Por exemplo, se buscamos as riquezas deste mundo, qual será o caminho mais fácil? Temos mestres de sobra. Mas se buscamos um sentido mais profundo em nossa vida, se deixamos sobressair a nossa sede de Deus, como conseguir encontrá-lo? Eis a resposta de Jesus: “Vinde ver”. É um convite a ficar junto dele, escutá-lo, descobri-lo. Essa “familiaridade” vale para todos nós, seres humanos sociais, para nos conhecermos, aprendermos a conviver e nos amarmos. Muito mais, tudo isto, vale para Jesus, que na sua humanidade revela a grandeza da divindade. Se queremos ser cristãos mais felizes da nossa fé, precisamos “demorar” mais com Jesus, na oração, na escuta da sua palavra, na comunidade dos irmãos. Muito depende do que realmente buscamos em nossa vida. Riqueza s, bem-estar, prosperidade, saúde…Ouro? Talvez Jesus tenha muito mais do que tudo isso para nos dar com generosidade, sem limites: ele mesmo, o seu amor sem fim. Mas será que nós o buscamos mesmo?

A alegria da verdade

Alguns dias atrás, li numa revista que, nos Estados Unidos, bem longe daqui, foi feita uma pesquisa sobre as mentiras. O resultado foi que 91% das pessoas reconheceram que mentem ao menos uma vez por semana. Obviamente é possível que tenha mentido também o 9%, que disse que nunca mente. Os principais motivos para “não” dizer a verdade foram: conseguir alguma vantagem, esconder algum erro cometido, enfeitar uma conversa, falar mal de alguém e, sobretudo, encobrir outra mentira. Hoje, através das redes sociais, sabemos que existem muitos tipos de mentira: aquelas infantis, facilmente descobertas pela própria cara das crianças, as mentiras sociais e políticas propagandead as sempre para o bem do povo e, também, as duvidosas “delações premiadas”, onde a verdade revelada parece mais um quebra-cabeça do que algo seriamente esclarecedor. Não devemos esquecer que a “verdade” muitas vezes é a “nossa” verdade, ou seja, algo que nós mesmos afirmamos ou entendemos como tal. Nada de novo. A busca da verdade sempre será fadigosa; exigirá esforço, confrontação, talvez alguém que nos ajude a reconhecê-la. A condição fundamental, porém, sempre será aquela de querer encontrá-la, de não desistir, de ter paciência e coragem para procurá-la, custe o que custar.

Podemos gastar a vida inteira, ter companheiros de caminhada, mas ninguém poderá nos substituir nessa busca. Na prática, quer sejamos conscientes ou não, essa procura coincide com aquilo em que cada um de nós acredita e para o qual está disposto a arriscar a própria existência. Podemos chamá-lo de sonho, ideal, sorte, ilusão ou, se me permitem, também de fé. Ninguém consegue viver sem buscar, sem ter algo em que está convencido que valha a pena acreditar e esperar. Tudo isso pode parecer inútil filosofia, mas é só pensar quanto gastamos de tempo e energias atrás do dinheiro, por exemplo, para entender como seja verdade o fato de ter algo que motive o nosso agir.

No evangelho de Mateus do domingo da Epifania sempre encontramos os famosos “sábios magos” vindo do Oriente, guiados por uma misteriosa estrela que aparece e desaparece. Encontramos também Herodes, o mentiroso, que declara querer adorar o novo rei, quando, na verdade, está com medo e inveja dele. Os sumos sacerdotes e os mestres da lei, com as Escrituras em mão, têm as suas certezas e chegam bem perto da verdade, mas não a reconhecem. Por fim, também os “sábios magos” preferem esconder aquilo que encontraram e voltam para casa por outro caminho. Mas isso, depois de experimentar uma “alegria muito grande”, quando encontram o menino com Maria sua mãe.

É essa “alegria” plena que somente a “verdade” verdadeira, se podemos dizer assim, pode nos oferecer. A aventura daqueles sábios é a história de cada pessoa humana: um caminho em busca de uma verdade que deve ser procurada, encontrada e reconhecida. A questão é que, ao longo dos caminhos da vida, encontramos muitas verdades, algumas tão brilhantes e fascinantes, que nos parecem já o fim da busca. É o brilho do ouro, do sucesso, da fama, da posição social. Por aí paramos, mas nenhum ser humano e nenhum bem material pode satisfazer plenamente a sede de luz e de sentido que precisamos em nossa vida. Bem sabemos que nada vamos levar deste mundo; no enta nto, agarramo-nos a “estrelas” de brilho passageiro, salva-vidas que afundam junto conosco. O nosso Deus não se impõe, simplesmente brilha para quem o sabe ver. É o brilho do amor sem limites, sem falsidades, sem interesses. É puro dom. É uma oferta tão especial, tão “promocional” que nós, pequenos e gananciosos, duvidamos. Estamos tão acostumados a mentir, a enganar e a sermos enganados que os nossos olhos já enxergam mal, suspeitam do engano e da mentira onde não deveriam. Um brilho temporário nos parece mais confiável do que a verdadeira luz. E o “ouro” dos sábios magos? Eles o deixaram lá, o doaram. Voltaram para casa livres, leves e felizes.

Acolher, proteger, promover e integrar

Novamente, neste final de semana, além do início do ano novo civil de 2018, algumas celebrações importantes do Ano Litúrgico se juntam. Para nós, católicos, o último dia de 2017 coincide com o domingo da Sagrada Família e o dia 1º de janeiro com a Solenidade de Maria Mãe de Deus. Também já faz 51 anos que Papa Paulo VI proclamou o primeiro dia de cada novo ano civil como Dia Mundial da Paz. A partir daquele 1º de janeiro de 1968, todos os Papas que o sucederam continuaram a manter essa tradição. Em homenagem aos 50 anos do Dia Mundial da Paz, completados em 2017, o Presépio da nossa Catedral está com algumas frases das mensagens dos Papas, sempre divulgadas nessas ocasiões. Todas elas s&atild e;o bonitas, têm denúncia e profecia; convidam os cristãos a serem bem-aventurados, porque construtores de paz. Talvez porque as palavras dos Papas, de alguma maneira, sempre incomodam católicos e não católicos, poucas pessoas se preocupam de lê-las integralmente e, na maioria das vezes, elas acabam no esquecimento.

A mensagem do Papa Francisco para 2018 tem como título: “Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz”. Irei refletir um pouco sobre esse assunto, porque entre tantos nomes que foram dados à Maria está, também, o de Nossa Senhora do Desterro, lembrando aquele momento da vida da Sagrada Família que, no evangelho de Mateus, é apresentado como “a fuga para o Egito” (Mt 2,13-15). É bom nos lembrarmos disso. Entre os milhões de migrantes e refugiados tem famílias inteiras com seus filhos, muitos ainda crianças de colo. Tantas outras crianças crescem nos acampamentos ou, quando acolhidas, em países totalmente novos, com costumes e culturas bem diferentes dos seus lugares de origem. Como será essa no va humanidade, dividida entre as tradições, também religiosas, das suas famílias e o novo ambiente onde crescerão?

O veremos nos próximos anos. Será uma geração mundial capaz de diálogo e tolerância entre si e com os demais ou cada etnia buscará, além da própria justa sobrevivência, a supremacia numa disputa acirrada por direito à terra, à água, à tecnologia e ao poder econômico? Não devemos ter dúvidas de que a humanidade toda colherá o que está semeando nestes anos que estamos vivendo, nesta onda de migrações que, segundo a mensagem do Papa Francisco, alcançam os 250 milhões de seres humanos. São muitos e não podem ser esquecidos. É urgente, portanto, uma “corrente de apoios e beneficência”, diz o Papa.

O problema é mundial e nenhum país deve pensar de estar isento de responsabilidade ou, pior, achar que muros, arames farpados e metralhadoras, resolvam a questão. A paz é sempre uma conquista laboriosa e “artesanal”. Deve ser construída com as mãos e os corações ao mesmo tempo.

Papa Francisco denuncia o medo e aqueles que fomentas esse medo contra os migrantes e refugiados, ou seja, todos aqueles que veem somente o tamanho da responsabilidade na acolhida deles. Os migrantes e refugiados “não chegam de mãos vazias”, trazem também as suas capacidades de trabalho, a sua coragem e os seus sonhos de paz. Após tantos debates e infindáveis discussões, é preciso ação. Segundo o Papa Francisco a estratégia deve combinar quatro ações: acolher, proteger, promover e integrar. É fácil perceber que todas essas “ações” devem ser de fato interligadas. Colocar em campos de refugiados milhares de pessoas não resolve a vida delas e nem da região onde estão hospedados.

Sem acompanhamento e proteção de leis adequadas, muitos migrantes, para sobreviver, ficam vítimas da exploração, do trabalho escravo, do tráfico internacional de drogas, armas, órgãos e pessoas. A promoção humana dos migrantes e refugiados pede também a integração, a inculturação e o diálogo. Somente assim as diferenças de línguas e costumes podem ser superadas e a paz construída. O contrário disso seria “a capitulação – da política internacional – ao cinismo e a globalização da indiferença”. Vamos unir as forças. Uma nova humanidade desponta. O planeta pode ser, sim, a “casa comum”, a casa de todos, mais felizes com a paz mundial.

“Na plenitude dos tempos” (Gl 4,4)

No Natal, nós, cristãos contemplamos e celebramos o nascimento de uma criança que, acreditamos, ser o Filho de Deus Pai, obra do Espírito Santo no seio da virgem Maria. Jesus é verdadeiramente Deus e homem, sem mistura ou confusão. Uma só pessoa, a divina, mas com duas naturezas: a divina, desde sempre, e a humana, assumida na encarnação. Tudo isso aconteceu na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4) ou, em outra tradução: “quando se completou o tempo previsto&rdquo ;. Foi somente por amor à humanidade que Deus Trindade realizou essa obra uma vez por todas. João, no seu evangelho, diz: “Deus amou tanto o mundo que enviou o seu Filho…não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,16-17). O tempo de hoje, também é “salvo”. Não tem tempos piores ou melhores, só para reclamar ou ter saudade. Para nós cristãos, qualquer momento, qualquer época é ocasião de salvação, de transformação e de esperança. O “reino de Deus” que Jesus veio inaugurar acontece, aqui e agora, porque já está entre nós (Lc 17,20-21). A todos os batizados, a todos aqueles e aquelas que entendem o que significa ser “sal da terra e luz do mundo”, aos que buscam o reino antes de tudo (Mt 6,33), cabe a missão de torná-lo visível, experiment&aa cute;vel, acreditável.

Alguns entre nós, os saudosistas, acham que o tempo bom foi só no passado. A eles, eu pergunto: se fosse possível voltar atrás, topariam fazê-lo? Era mesmo tão bom assim? Tudo funcionava a contento? A humanidade avançou em muitos campos e, talvez, piorou em outros, mas pode ser que estejamos idealizando demais os tempos de outrora, que deixaram também marcas de sofrimentos e exclusão. Outro grupo de pessoas vive já no futuro, naquele mundo imaginário, onde a tecnologia faz aco ntecer coisas inacreditáveis. Já enxergam uma humanidade onde os robôs, máquinas com inteligência artificial, tomarão conta do trabalho e da produção. Os seres humanos verdadeiros, não terão mais nada para fazer, servidos com todas as mordomias por escravos cibernéticos. Deixaremos também de pensar e sonhar? Seremos livres? Quem decidirá por nós? Enfim, tem uma boa turma que já construiu o seu mundo virtual. São aqueles que vivem conectados 24 horas por dia, trocam mensagens a todo instante, têm mais amigos “virtuais” que em carne e ossos. Esses correm o perigo de achar que também as suas famílias, os doentes e os pobres sejam virtuais. Nenhum desses mundos existe.

Na “plenitude dos tempos”, Jesus se encarnou num mundo real, que também não era perfeito. Aliás, foi justamente por isso que veio no meio de nós, para transformar esta realidade e reconduzi-la ao primeiro projeto do Pai com o ser humano, criado a imagem e semelhança dele. Jesus não se conformou. Denunciou o pecado, mas perdoou os pecadores. Rejeitou a falsa apresentação de Deus, juiz implacável, que premiava os cumpridores de uma lei fria e sem compaixão e castigav a os infratores com doenças e pobreza. Exultou de alegria e louvou ao Pai, porque se revelava aos pequenos e aos humildes e se escondia dos soberbos e orgulhosos. O seu sangue na cruz não foi ficção, foi igual ao sangue de todos os mártires do bem, da justiça e da verdade. A sua ressurreição, iluminada pelo dom do Espírito Santo, transformou um pequeno grupo de homens e mulheres apavorados, numa comunidade de irmãos e irmãs, exemplo de partilha e fraternidade.

A sua Vida Nova e Plena começou a correr nas veias de uma nova humanidade. Este nosso tempo não é nem melhor e nem pior do que os outros, é o “nosso” tempo, é o tempo atual, da nossa vida que passa. Cabe a nós torná-lo um tempo bom, o tempo do Reino, o hoje do amor. Não serve nos refugiarmos no passado, lamentando o presente. É inútil pensar de viver num mundo im aginário só porque temos novas tecnologias ou muros que nos separam da situação pobre e sofrida dos demais. Como cristãos somos responsáveis, devemos ser “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5,13-14). Desta época, desta terra, deste país. Porque foi neste mundo que Jesus nasceu, viveu, morreu e ressuscitou. Ele é a nossa luz e a nossa esperança.
Feliz Natal de Jesus!

A gota d’água

Era uma vez uma gotinha de água que morava numa nuvem sobre os Mares do Sul. Ela vivia muito satisfeita e se orgulhava de sua força porque, mesmo nas maiores tempestades, era uma das poucas gotas que conseguiam se segurar e não cair. Outras gotas iam e vinham, mas ela se mantinha firme, pois gostava muito da sua nuvem, a qual nunca se dissipava por completo. Em certa tarde muito quente, a gotinha encontrou na nuvem outra gota, sua conhecida que não via há algum tempo. Ela quis saber por onde a outra tinha andado.

– Acabei de chegar – respondeu a amiga – sabes como é: nós caímos, mas depois com o calor, acabamos por evaporar e voltamos para cá.

– Isso eu não sabia – falou a primeira gotinha com orgulho – eu nunca saí daqui. Sempre me segurei.

A gota recém chegada olhou para ela com piedade e não com admiração. Isso incomodou a gotinha orgulhosa, que quis saber o porquê daquele olhar travessado. A outra retorquiu:
– É que me causa muita pena ver alguém, que foi criada com o potencial para ser o oceano, continuar a insistir em ser apenas uma gotinha solitária. Naquela mesma tarde, teve uma chuva torrencial e aquela nuvem, finalmente, dissipou-se até à última gota.

O terceiro Domingo do Advento é chamado “o domingo da alegria”. A conversão e o perdão dos pecados anunciados por João Batista, apesar de serem exigentes, já são uma boa notícia. A certeza da misericórdia de Deus é sempre uma alegria. No entanto, além dessa notícia, tem outra mais importante ainda: a chegada do Messias, o esperado, o Ungido, aquele que selará para sempre a nova aliança de Deus com o seu povo. Somente assim entendemos a insistência e a angústia dos que cobravam de João Batista uma definição: quem ele era, afinal? Por que batizava, se não era o Cristo? João respondeu dizendo que ele era somente a “voz” que gritava no deserto. Aquele que chegará será a Palavra, revelação de Deus, feita carne para ser ouvida, vista, acolhida e, assim, transformar-se em vida divina, vida nova, presente e operante na história da humanidade.

“Quem és tu?” “O que dizes de ti mesmo?” São as perguntas repetidas inúmeras vezes no Evangelho deste domingo. Não valem somente para o Batista, valem também para nós. Saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos não é uma curiosidade de criança, mas o questionamento sério de quem queira ir além dos simples fatores naturais e biológicos. Tem algo mais – ou alguém mais – que dá sentido à nossa vida? Hoje vivemos numa sociedade que exalta o indivíduo. Muito importante, único, sem dúvida, mas não tanto a ponto de pensar ser o centro do universo e da história. É infantil e doentio achar que os outros existam para atender às nossas necessidades e aos nossos caprichos. Adoramos bater selfies, porque nos consideramos os mais bonitos e nunca nos cansamos de olhar e enaltecer a nós mesmos. Isso, na Psicologia, chama-se narcisismo. Medimos as pessoas pelas vantagens ou os lucros que nos trazem, não por aquilo que elas são por si mesmas. Amigos são aqueles que promovem os nossos planos; inimigos aqueles que os atrapalham. Os demais nos são simplesmente indiferentes. Pobre ser humano!

Bastaria olhar para o céu para perceber o tamanho da nossa grandeza e a escuridão do nosso estrelismo. No entanto, todos temos um valor inestimável; não por nós mesmos, mas por aquele que se dignou de partilhar a nossa natureza e elevá-la às alturas dele: o Deus feito criança, que contemplaremos no Natal. É o amor dele, semeado em nossos corações, que torna grande o menor gesto de solidariedade, carinho e afeto sincero. Para que isso aconteça, precisamos sair de nós e aprender a olhar para os outros. Não fomos feitos para segurar a todo custo a nossa vida, abraçados a nós mesmos. Fomos criados para fazer parte do oceano do amor que é o próprio Deus. A nossa gotinha não aumentará o bem infinito dele, mas nós mergulharemos no seu mar sem fim de bondade. Tornamo-nos grandes pela humildade e a doação, pela coragem de apostar no amor. Somente assim seremos o que devemos ser: imagem e semelhança do Amor.