Dom Pedro Conti

Tomé perdeu o orgulho, mas ganhou a fé

Um rei sentindo a necessidade de preparar sua sucessão, chamou os três filhos. A cada um entregou um pacote com sementes e avisou que partiria para uma viagem que duraria dois anos. Disse-lhes: “Quando eu regressar, gostaria que vocês me devolvessem as sementes. Aquele que cuidar melhor delas, será meu sucessor”. E viajou. O primeiro filho procurou um cofre de alta segurança e lá depositou as sementes. O segundo pensou que, se as guardasse, poderiam morrer sufocadas ou secar. Por isso, foi à feira da cidade, vendeu-as e guardou o dinheiro com o intuito de comprar sementes mais novas na volta do pai. Finalmente, o terceiro filho foi para os jardins, ao redor do palácio, preparou a terra e as semeou. Os dois anos se passaram, o pai voltou e quis ver as sementes. Quando o primeiro filho abriu o cofre, as suas sementes estavam secas. O pai lhe disse que, agora, elas eram inúteis. O segundo filho chegou com outras sementes iguais as recebidas, mas o pai lhe disse que, dessa forma, não tinha conseguido nada de novo. O terceiro filho levou o pai para os jardins, onde centenas de plantas cresciam, cheias de flores e perfumes. “Estas são as sementes que o senhor meu pai me deu”, disse o terceiro filho. O pai não teve dúvida e, feliz, respondeu: “E tu, meu filho, serás o meu sucessor”.

No segundo domingo de Páscoa, a leitura do evangelho de João nos apresenta sempre a segunda aparição pós-pascal de Jesus ressuscitado. O apóstolo Tomé estava ausente na primeira aparição e duvidou daquilo que os demais afirmavam: tinham visto o Senhor! Quando, porém, na segunda aparição, Jesus convida Tomé a reconhecê-lo e a colocar os seus dedos nas feridas – sinais da paixão -, o apóstolo faz uma maravilhosa profissão de fé e o proclama: “Meu Senhor e meu Deus”. A fé da primeira comunidade está se consolidando. Jesus não é mais só “o Crucificado” e que, em vida, fez tantos “sinais”. Agora ele é reconhecido como a manifestação, sempre prometida, mas nunca, antes, imaginada do próprio Deus. A luz da fé começa a iluminar o mistério do amor insondável com a humanidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No entanto, o que fazer desta fé, desta luz? A que serve acreditar? Vale a pena? A comparação com as sementes é sempre útil para entendermos o que podemos fazer com o dom da fé.

Existem cristãos que se consideram os tais, porque chegaram a organizar uma explicação lógica e inabalável de algumas verdades indiscutíveis. Decoraram o “Credo” e o guardaram a sete chaves. Nunca mais questionaram a própria fé, nunca mais se perguntaram o porquê de tudo aquilo. São os cristãos do “já sei”. Receberam dos seus pais o pacote e o guardaram. Talvez nem chegaram a abri-lo para ver o que tinha dentro. Nem olham mais, por medo de serem incomodados nas “suas” verdades tão seguras.

Outros acham que todas as crenças, mais ou menos, são iguais. Podem ser trocadas, negociadas, misturadas, esquecidas. Pior seria não acreditar em nenhum Deus. Depois, como seria este Deus, se é o verdadeiro ou se é o fruto da própria imaginação ou conveniência, pouco importa. Na hora da precisão, numa festa ou num enterro, algum “deus” aparece para ser invocado. E algum “ministro” para falar dele também.

Por fim, tem os cristãos que querem viver a própria fé. Quando tem dúvidas, quando estão para esquecer, procuram os irmãos. Não se afastam da comunidade. Querem saber, entender. Questionam, buscam, alimentam, corrigem, renovam o que pensam e gostam de acreditar. Sabem que o Deus verdadeiro não cabe nos raciocínios e nas explicações da inteligência humana. Ele será sempre maior e surpreendente na sua bondade. Já descobriram que para conhecer o amor precisa arriscar a amar. Para entender a compaixão e a misericórdia, é necessário saber ser solidários e saber perdoar. Já descobriram que Deus está mais perto dos corações humildes. Ele se deixa encontrar por aqueles que levantam as mãos em oração e que pedem perdão por suas faltas. O terceiro filho cuidou bem das sementes? Ofereceu os frutos delas. Tomé perdeu o orgulho, mas ganhou a fé.

Deus ressuscitou Jesus, aleluia

Neste ano, por coincidência, o domingo de Páscoa cai no dia 1º de abril, apelidado como “Dia da Mentira”. Uma brincadeira que caiu no gosto do povo e que não deixa de gerar confusões. Algumas acabam em belas e alegres gargalhadas, outras deixam rastos de raiva e humilhação. Em tempos de redes sociais, tenho certeza de que a questão da data dará muitas conversas, a favor ou contra. No entanto, se, no dia de Páscoa, al guém escrever: “Uma mentira que dura mais de 2000 anos”, não estará dizendo nada de novo.

No evangelho de Mateus, lemos que os guardas que tinham sido colocados para vigiar o túmulo de Jesus foram comprados, justamente, para espalhar a notícia falsa do roubo do corpo por parte dos discípulos dele (Mt 28,11-15). Outros, evidentemente, usarão argumentações mais sutis e elaboradas para difamar a fé dos cristãos. É bom estar preparados, não só para dar “razão da nossa fé” (1Pd 3,15), m as, sobretudo, para a nossa própria paz interior e podermos celebrar com alegria o evento que dá sentido ao nosso ser cristão. Um dia, também São Paulo escreveu aos fiéis de Corinto que “se Cristo não ressuscitou…a vossa fé não tem nenhum valor” (1Cor 15,12-18) e concluía, de forma mais lapidária ainda: “Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão.” (1Cor 15,19). Vamos, portanto, entender um pouco a questão, sem a pretensão de esgotar o assunto ou obrigar alguém a acreditar. A fé é um dom de Deus e nunca será o simples resultado dos nossos argumentos racionais, porque, se fosse assim, chegaríamos a pensar que, no fundo, o que está em jogo não é mais algo, ou Alguém, acima de nós, mas tu do seria somente o fruto da, cada vez mais orgulhosa, inteligência humana.

Vamos logo tirar da nossa frente uma questão: verdade ou verdadeiro é só o que cada um de nós pode experimentar ou não? Nesse caso, o nosso conhecimento real seria bem reduzido. Bem pouco podemos ver com os nossos olhos ou experimentar com os demais sentidos. Na maioria das vezes, confiamos em quem nos diz ter visto, ouvido, e assim por diante. Em geral, todos confiamos, por exemplo, naquela que, de alguns séculos para cá, chamamos de “ci&e circ;ncia experimental”. Quando algo é provado e os experimentos podem ser repetidos nos laboratórios, o resultado merece toda a nossa confiança. No entanto, tem eventos que aconteceram uma vez por todas e que somente, em parte, são desvelados. É o caso do tão badalado, possível, Big Bang.

Nesse sentido, a Ressurreição de Jesus está fora dos eventos que podem ser experimentados, medidos ou repetidos. Está num outro plano, o da fé, ou seja, daquelas verdades que admitem a existência de Alguém maior do que nós. Alguém que, convencionalmente, chamamos de Deus. Nesse caso, porém, não é um Deus qualquer, um ser sem rosto, fruto de especulações filosóficas ou sapienciais, mas aquele Deus, Pai de Jesus que, alguns dias antes, tinha sido crucificado e que todos tinham visto morrer e ser sepultado. Esse foi o primeiro anúncio de Pedro no dia de Pentecostes: “… Deus ressuscitou este mesmo Jesus, e disso nós somos testemunhas.” (At 2,32). E, logo em seguida, o apóstolo declara: “Portanto, que todo o povo de Israel reconheça com plena certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo a este Jesus que vós crucificastes” (At 2,36).

A Ressurreição de Jesus não foi a volta à vida biológica de um cadáver, que depois teria morrido novamente. Foi algo totalmente novo, além de toda a expectativa e experiência humana. Algo, porém, que desde sempre está na esperança de cada ser vivo consciente da sua mortalidade. Nós todos nascemos com sede de vida e nos parece absurdo caminhar rumo à morte. A Ressurreição de Jesus abre a nossa visão sobre “outro mundo possível”, o mundo da realidade de Deus, do amor dele, da sua Vida Plena prometida a todos àqueles que nele acreditarem. Esta Vida é, e não é, outra Vida. É Vida diferente, porque é a própria Vida de Deus, mas é uma Vida que começa aqui, nesta nossa pobre existência de peregrinos, quando abrimos o nosso coração ao amor solidário e fraterno, quando apostamos que a busca do Reino de Deus e da sua justiça nos traga já os germes e os sinais da Vida Plena, Eterna, onde “não haverá mais luto, nem grito, nem dor, porque as coisas anteriores passaram” (Ap 21,4).

A verdade da Ressurreição de Jesus e da nossa só pode ser entendida e acreditada junta com a Verdade do Amor de Deus e do amor nosso quando, de fato, gera vida nova, para todos, sem exclusões e sem limites de entrega. Os primeiros discípulos acreditaram, os mártires derramaram o seu sangue, incontáveis cristãos, santos e santas, humildes e famosos, seguiram os passos de Jesus, o Homem Novo, ressuscitado. São Vitor já dizia: & ldquo;Senhor, se o nosso é um erro, foste tu que nos enganaste”. Mas Deus não mente, não engana ninguém. Para os que acreditam somente Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida

Obediente até a morte (Fl 2,8)

A Semana Santa, que iniciamos com o Domingo de Ramos, é uma grande convocação para os cristãos católicos. Não é uma comemoração de algo do passado e nem uma encenação mais ou menos folclórica. O que está em jogo é a nossa própria fé. A liturgia deste domingo nos faz lembrar dois acontecimentos: a entrada de Jesus em Jerusalém, aclamado como o “bendito que vem em nome do Senhor”, e a morte dele na cruz, alguns dias depois, desfecho de terríveis sofrimentos. Nos dias seguintes, ao longo da semana, continuaremos a reviver aqueles momentos decisivos da vida de Jesus até o Domingo da Ressurreição.

Somos convocados como cristãos a acreditar no sentido e no valor único e irrepetível da paixão e morte de Jesus. Antes de ser reconhecido e acreditado como “Senhor”, após a sua ressurreição, Jesus passou pela vergonha, humilhação e obediência da cruz. A quem ele obedeceu? A Deus Pai. Mas porque isto é tão importante ao ponto de marcar para sempre a história da humanidade? Talvez para alguns bilhões de seres humanos tudo isso seja insignificante ou até blasfemo, conforme as suas convicções religiosas, filosóficas ou simplesmente existenciais. Não pode sê-lo, porém, para os que se declaram cristão s. A motivação é a mesma da nossa fé. Nós não acreditamos num “deus” sem rosto e sem nome, ou resultado das nossas especulações racionais. Nós acreditamos naquele Deus que Jesus veio nos fazer conhecer, através da história do povo de Israel, preparada por séculos, e, enfim, concluída na pessoa dele, no jeito dele “contar”, com a sua vida, o amor do Pai.

A experiência de cada ser humano pode-se resumir entre o medo da morte e a disputa para a própria afirmação. Esta é a tentação e a decisão de sempre e de todos: achar, ou não, que nós somos os “deuses” deste mundo e, por isso, excluir da nossa vida qualquer “deus” que não colabore com os nossos projetos de sobrevivência. Por terem o mesmo objetivo, esses “planos” humanos acabam sendo de poder, de superioridade de uns sobre outros, de bem-estar particular, somente para alguns poucos privilegiados. Nesses projetos, apesar das palavras bonitas, cabem bem poucas ações concretas de partilha, solidariedade e fraternidade. A grande, grande mesmo, maioria da humanidade fica de fora, sempre sonhando entrar para fazer parte, um dia, de algum clube de eleitos. Quando a pessoa obedece aos seus desejos de poder e superioridade, coloca a sua inteligência e os seus sentimentos a serviço da ganância e, infelizmente, também da violência. O que vale é a força das armas, do dinheiro, da tecnologia.

Para quem se declara cristão e conhece um pouco da boa notícia de Jesus, é fácil perceber que o “projeto” dele, que chamou de “Reino de Deus” era, e ainda é, o contrário de tudo aquilo que acabei de descrever. Não podia ter sucesso, era ousado demais. Os que condenaram Jesus pensaram ter matado a sua proposta junto com ele na cruz. No entanto os seus discípulos não desistiram, decidiram, com a ajuda do Espírito Santo, “obedecer”, como o próprio Jesus, ao projeto de Deus Pai e “desobedecer” a qualquer outro plano simplesmente humano de autoafirmação individual ou de grupo. Nós, os cristãos de hoje, so mos chamados a sermos os continuadores do projeto do Reino. Jesus ensinou a buscá-lo antes de tudo. O resto, incluindo a paz mundial e uma vida digna para todos os seres vivos nos será dado por acréscimo.

Ouso chamar isso de “convocação”, porque precisamos unir mais as forças da boa vontade, da honestidade e da generosidade. A comunidade dos seguidores de Jesus, a Igreja, não coincide com o Reino de Deus, ele é maior, mas dele deve ser “o germe e o início”. Somente quando alguém “obedece” de novo, o Reino continua acontecendo e crescendo. Agora, é a nossa vez de sermos “obedientes” ao projeto de Deus Pai. “Até a morte” significa com toda e por toda a nossa vida, dia após dia, na paciência, no serviço, no amor. Esta é a Vida Nova, a Vida Plena de Deus vivo e verdadeiro.

O final do caminho

Um monge foi visitado pelo anjo da morte. Tinha chegado a sua hora. Mas ele argumentou com o anjo: “Tem que ser agora? Estou cuidando da horta da comunidade. Se eu for embora agora o que os meus irmãos vão comer?”. O anjo resolveu deixar a missão para outra hora.

Dias depois voltou e o monge estava cuidando das crianças da comunidade. De novo, houve uma negociação e o anjo adiou a morte para outro momento. Voltou um mês depois e o encontrou tratando, carinhosamente, de um doente grave. Dessa vez, nem se falaram: o monge só fez um gesto, mostrando a situação e o anjo foi embora.

Anos se passaram, o monge cuidou dos seus trabalhos, foi ficando velho e fraco e desejou morrer. Um dia, o anjo apareceu e ele se alegrou. Disse: “Que alívio! Pensei que estava zangado com os meus pedidos de adiamento e não me levaria mais para a vida eterna junto de Deus”. O anjo sorriu e respondeu: “Eu só vou completar o final do caminho. Você já estava na vida eterna quando servia aos seus irmãos”.

Com o trecho do evangelho de João, deste quinto domingo da Quaresma, encerramos a catequese quaresmal própria deste ano litúrgico. Encontramos Jesus no Templo; depois, de noite, conversando com Nicodemos e, agora, junto a um grupo de estrangeiros gregos que querem vê-lo. Aparentemente, Jesus muda de assunto. Na realidade, antecipa o espetáculo extraordinário e único do Calvário. Lá, levantado na cruz, será bem visível p ara todos. O surpreendente é que o evangelista chama de “glória” a triste situação daquele homem desfigurado. “Glória” confirmada pela voz do Pai e confundida pela multidão por um trovão qualquer. O pedido dos “gregos” já podia dar a impressão de que a fama de Jesus estivesse chegado longe demais. Para o evangelista, ela foi mais longe ainda: alcançou o Pai. O mundo é julgado e o seu chefe derrotado, porque não acolheram a luz da verdade. Não é um raciocínio complicado, é a grande novidade de Deus.

Para os critérios materiais do “mundo”, de outrora e de sempre, uma vida de sucesso e de glória coincide com o fato de ter poder e dinheiro. Esse é o “sonho” de vida boa para muitos, também entre nós cristãos. Para Jesus e Deus, seu Pai, a vida plena, feliz e gloriosa, é claramente ao contrário àquela de quem está disposto a morrer, a perder a sua vida para que outros possam tê-la em maior quanti dade e melhor qualidade. O segredo de tudo é sempre o amor. Jesus não é um herói vencedor de alguma batalha. Não disputa nenhum império. Não receberá nenhum reconhecimento por parte dos grandes deste mundo. Será desprezado, condenado e morto como um malfeitor. Quem “glorificará” Jesus, pelo dom total da sua vida, será o próprio Deus-Pai, aquele que ele deu a conhecer como Deus Amor.

Chegamos assim ao ápice, ou à chave, do evangelho de João. A hora da cruz é a hora da glória. Lá a verdade, a luz, a vida e o amor coincidem na pessoa de Jesus. Sem amor, a vida é obscura e vazia, porque somente a vida doada, sem apego a ela, é a plena e verdadeira vida. Igual ao grão de trigo. Para produzir frutos, a semente deve “morrer”, deve deixar de ser só uma semente. Quantos frutos de amor já produz iu a vida oferecida de Jesus? Todo gesto de bondade, generosidade, partilha, perdão, justiça e paz tem um valor inestimável para o coração de Deus. Primeiro, porque sempre exige decisão, escolha, vitória sobre o nosso interesse e egoísmo. Segundo, porque, mesmo sem o saber, o bem se espalha e se multiplica. Não faz barulho, não precisa de publicidade. Toca no profundo de qualquer um, aproxima as pessoas, faz surgir confiança e amizade. Ilumina a vida. É sempre o mesmo e grande amor de Jesus que atrai. Servir a ele nos pobres, nos pequenos, nos sofredores é uma honra. Já é um prêmio, uma alegria, uma festa. Já é participação da vida feliz e amorosa de Deus. O monge da história o tinha entendido muito bem e a irmã morte também.

O espelho de Deus

Houve uma época em que as pessoas podiam ver a Deus através de um espelho, conhecido como “Espelho de Deus”. Porém, com o tempo, esse espelho ficou esquecido.

– Meu discípulo – pediu-lhe o mestre – sua missão é encontra-lo e trazê-lo para mim.

– Mas como poderei fazer isto? – perguntou o jovem.

– Você o descobrirá quando estiver a caminho.

A missão parecia impossível, mas seu desejo de encontrar o espelho era tão grande que o discípulo se pôs a caminho. Andou por vales e montanhas, conheceu novas terras, mas, todos aqueles a quem indagava a respeito do espelho, nada sabiam. Um dia, já cansado, retornou ao seu povoado e foi ter com o mestre.

– Então você me trouxe o espelho?

– Sim, mestre! – Os demais discípulos olharam-no, curiosos, pois nada trazia consigo. – Em minhas caminhadas encontrei muitas pessoas que acreditam em seus sonhos, na amizade, na paz, no amor. Pessoas que vivem os ensinamentos do Mestre Jesus e que, mesmo sem muitas posses, irradiam esperanças de seus corações. Mestre, eu compreendi que o Espelho de Deus somos nós!

– Muito bem, você descobriu uma grande verdade: nós todos podemos ser o Espelho de Deus! Ele se manifesta, a cada dia, através de nossos atos, de nossa vida.

O evangelho de João é mesmo diferente dos outros. Jesus revela muitas coisas de si a pessoas, digamos, fora do comum, ou se preferem – e esta talvez seja a verdade – escolhidas como representantes de grupos destinatários do evangelho. É o caso de Nicodemos, que encontramos neste domingo, da samaritana, do cego de nascença, dos “gregos” que encontraremos no próximo domingo. Nicodemos é um fariseu, chefe dos judeus, que visita Jesus de noite. Ainda está escuro, mas a luz está chegando! É evidente que ele representa a situação antes de Jesus, o antigo conjunto de crenças, ritos e normas que devem mudar. A escuridão da noite deve deixar lugar à luz do dia., Jesus diz a Nicodemos que para mudar algo da sua vida, ele e todos nós, devemos “renascer do alto”, através da água e do Espírito. O evangelho deste domingo é a continuação daquele diálogo revelador, no mesmo capítulo. A novidade agora é a pessoa de Jesus, falando e agindo como a Palavra de Deus feita carne. Quem o encontra deve tomar uma decisão definitiva. Por isso, a página do evangelho deste domingo está cheia dos contrastes típicos do evangelista João: vida e morte, crer e não crer, luz e trevas, condenar e salvar, bem e mal. Para o evangelista João parece que tudo seja preto ou branco, não tem meias cores, meios tons. Não têm cinzas. Não tem meias verdade ou meias mentiras. Porque a luz não pode conviver com a escuridão! Deve resplandecer de vez. Esse é o sentido das palavras enigmáticas de Jesus. Se o Filho veio para salvar e não para condenar, por que ele ainda fala em condenação? Com efeito, em Jo 3,18 lemos: “Quem não crê já está condenado”. Esta não é uma contradição, mas uma revelação.

O evangelista quer nos dizer que não tem outro caminho de salvação a não ser a pessoa de Jesus. Chegou a hora da decisão, quem quer ser salvo, entrar e participar da vida plena, deve crer nele. Confiar de vez. Não é Deus – e nem Jesus – quem condenará ou afastará alguém; cada um de nós escolhe a quem seguir em sua vida. Jesus respeita a nossa liberdade, ele se propõe como luz, vida, salvação. “A luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz” (Jo 3, 19). Essas são palavras de grande responsabilidade para nós cristãos. Quem diz crer em Jesus deve ser luz, cada vez mais, luminosa e clara. Em primeiro lugar, devemos fazer isso para nós mesmos, tirando, aos poucos, as contradições, as incertezas, a escuridão que confunde os caminhos do bem e do mal. Ao mesmo tempo, porém, somos enviados a ser luz do mundo e sal da terra: “espelhos de Deus”. Na escuridão o espelho não reflete nada, é um simples pedaço de vidro, mas com a luz, dá para distinguir figuras, pessoas, situações. A “luz” do bem denuncia o mal. Tudo é questão de luz. Tudo é questão de escolha.

O entregador de pizza

Uma empresa entendeu que estava no momento de mudar o estilo de gestão e contratou um novo gerente-geral. Logo no primeiro dia, ele fez uma inspeção na empresa toda, acompanhado pelos principais dirigentes. Quando chegou no armazém viu que todos trabalhavam, menos um rapaz. O jovem estava, tranquilamente, encostado numa parede com as mãos nos bolsos.

– Isso é intolerável; aqui precisa algo exemplar para mudar as coisas – pensou consigo mesmo o novo gerente. Em voz bem alta, perguntou ao rapaz:
– Quanto você ganha por mês?
– Em média trezentos reais – respondeu o jovem.
O gerente tirou trezentos reais do bolso e gritou:
– Toma o teu dinheiro e some daqui. E nunca mais apareça, seu inútil!
O rapaz guardou o dinheiro e saiu como lhe foi ordenado. O gerente, todo orgulhoso, disse:
– Alguém sabe o que este rapaz estava fazendo aqui?

– Sim, senhor – responderam os operários – ainda sem acreditar no que tinham visto – Ele tinha acabado de entregar uma pizza. Ou seja, não tinha nada a ver com a empresa!
Coloquei esta historinha para dizer que Jesus, quando expulsa os vendilhões do Templo de Jerusalém não é, e nem quer ser, um modelo de novo “gerente” com ideias novas, intolerante com a situação. Jesus está preocupado com o Templo e o lucrativo comércio ao seu redor, mas está nos ensinando muito mais do que isso. Como sempre, o evangelista João quer nos ajudar a entender qual é a verdadeira novidade que Jesus nos trouxe. No trecho anterior, o das Bo das de Caná, o evangelista já nos deu a entender que o antigo passou. A água das talhas para as purificações rituais dos judeus foi transformada em vinho novo, melhor do que o velho. O mesmo podemos dizer do gesto do Templo, o maior símbolo da fé dos judeus. O Templo era o sinal, visível e grandioso, da presença de Deus no meio do seu povo. Uma referência majestosa. Devia ser o centro irradiador da fé judaica. A partir de agora, porém, a presença de Deus, não dependerá mais das pedras bonitas do Templo, mas de uma pessoa: Jesus. As diferenças são muitas.

Vamos lembrar ao menos duas. Jesus é a Palavra viva, fala com sua vida. Antes a Lei estava escrita em tábuas de pedra; algo, simbolicamente, firme, seguro, indestrutível. Na prática, tinha-se tornado um peso a carregar, um conjunto de normas que acabavam dividindo o povo em observantes – abençoados – e não observantes – amaldiçoados. A obediência rigorosa da Lei condenava as pessoas pelas suas faltas. Deus tinha se tornado um juiz implacável. Jesus pratica a única verd adeira lei de Deus: o mandamento do amor a Deus e ao próximo. Ele perdoa, abraça, cura, muito além de qualquer Lei, incluindo aquela suprema do dia de sábado. Jesus se manifesta livre para fazer o bem a todos, a começar pelos doentes e pecadores.

Uma segunda novidade é, evidentemente, a que o amor deve ser vivido e praticado na vida cotidiana, fora do Templo, no meio do povo. A religião e as práticas religiosas devem conduzir a uma nova convivência fraterna, a uma sociedade justa e solidária. Por isso, também na catequese do evangelista João, Jesus insiste no “corpo” dele. Este “corpo” é a vida real, concreta, do dia a dia. O “corpo” é mortal, pode ser destruído, mas a vida n ova, o amor praticado, já é “ressurreição”, é o homem novo, resgatado do pecado e da morte, que age de uma forma nova. É a vida plena, verdadeira, já presente na história conturbada do mundo, com Jesus e os seus seguidores. O gesto dele com aqueles vendedores não foi de violência, mas de indignação. Saber indignar-se não significa condenar, mas dar voz e vez a valores esquecidos ou, infelizmente, desprezados. Ritos perfeitos eram cumpridos, mas os corações deles estavam muito longe de Deus. Hoje, também, não basta rezar. Quem não sabe mais se indignar com a corrupção, as mentiras e as falcatruas, acaba, com a sua indiferença, compactuando com as mazelas do mal que excluem os pobres e enaltecem os espertalhões da vez. No fundo, a ação de Jesus é uma nova “gestão” da humanida de. A “gestão” do amor e não mais do lucro.

A tentação da violência

Com a Quarta Feira de Cinzas iniciamos a Quaresma. Começamos também a Campanha da Fraternidade, uma iniciativa da nossa Igreja pensada para nos ajudar a viver este tempo forte, que nos prepara para a Páscoa de Jesus, de maneira concreta e transformadora. Durante a Campanha da Fraternidade somos sempre convidados a refletir sobre um assunto atual que nos convoca para a conversão e, ao mesmo tempo, nos impele a nos solidarizarmos com os mais pobres e sofredores, contribuindo para que projetos de melhoria de vida possam ser implantados pelo Brasil a fora. O “sacrifício” quaresmal tem por objetivo nos educar à partilha, motivados pela caridade fraterna. O tema da Campanha deste ano é a superação da violência, em todas as suas formas, as mais visíveis, as que entram, sorrateiramente, em nossas casas pelos meios de comunicação e aquelas que estão tão bem escondidas dentro de nós que nem mais percebemos a gravidade delas.

No primeiro Domingo da Quaresma encontramos sempre o evangelho das tentações de Jesus no deserto. O Evangelista Marcos não especifica quais tentações foram; simplesmente diz que Jesus “foi tentado” (Mc 1,13). Entendemos, com isso, que a tentação faz parte da nossa condição humana. Ninguém está isento. Todo dia tomamos decisões; algumas são importantes, mas a maioria nos parece pequenas ou banais, sem valor. Sempre, porém, deveríamos ter consciência das motivações que nos levam àquela escolha e das suas consequências. Em geral toda tentação se apresenta como uma opção entre algo mais fácil, agradável e vantajoso e algo mais difícil, exigente, talvez sofrido, com certeza, menos prazeroso para nós. Por isso, muitas situaç& otilde;es que deveríamos reconhecer como erradas ou prejudiciais para os outros, são escolhidas por nós simplesmente porque prevalece o nosso interesse e a nossa vontade. Assim o mal, ou o erro, se apresenta como um bem para nós, ou não tão negativo. Talvez uma punição necessária; em geral para os outros, dificilmente para nós.

É o caso da tentação da violência. Gritar, brigar, bater, fazer uma guerra, não são coisas boas em si. No entanto, em certos momentos nos parecem a solução mais fácil, ou cômoda, para sair de um conflito. Em casa, pensamos que um tapa resolva o desentendimento com uma criança ou um filho adolescente, em lugar de perder tempo para conversar com ela ou com ele. Mas um castigo, somente com grosserias, sem palavras e atenção, não resolve, irrita e revolta. Deixa rastos. Aumentando as dimensões dos problemas, também a sociedade considera justa a punição dos infratores das leis. Tiramos os criminosos de circulação e os mantemos presos. É uma solução imediata que nos faz sentir mais seguros, mas não chega às raízes da questão.Por que tanta violência e, pior, tantos jovens presos? Não vamos entrar na questão da recuperação dos infratores, ou seja, se eles, saindo da prisão, serão bons cidadão e honestos trabalhadores. Somente digo que devemos nos questionar como chegamos a ter as prisões superlotadas e de forma tão desumana. Por que a nossa sociedade, tão desenvolvida por certos aspetos, não consegue educar os seus membros a uma convivência pacífica, respeitosa e tolerante? Se vasculharmos um pouco mais a fundo devemos reconhecer muitas coisas erradas: bolsões de miséria, exclusão, falhas na educação, valores esquecidos, banalização e desprezo da vida. Por fim, assistimos impotentes, a troca de ameaças entre os poderosos do mundo que brincam com as bombas atómicas, gastando fortunas em misseis e armamentos, sem resolver os proble mas da fome, dos desequilíbrios econômicos, da poluição e das ameaçadoras mudanças do clima do planeta. Identificar as violências e as suas raízes é só o primeiro passo. Devemos encontrar saídas, aprender a vencer a tentação da violência, encontrar caminhos pacificadores para uma verdadeira cultura da paz. Como cristãos acreditamos na força do amor. Nas primeiras páginas da Bíblia encontramos o castigo do Dilúvio, mas, depois, o próprio Deus faz uma aliança e a promessa de não mais destruir a humanidade. A vida é o inestimável dom de Deus, ele não quer a morte de ninguém (Ez 18,32). Jesus veio para que tenhamos vida e vida plena (Jo 10,10). Ensinou que o amor maior é daquele que doa a própria vida para dar vida a amigos e inimigos. Assim ele fez e o Pai o ressuscitou.

Hoje respiramos violência; os outros são adversários, a vida parece uma disputa e um combate sem fim. Quando usamos violência todos perdemos. Desistimos de sermos humanos porque renunciamos ao que nos distingue como pessoas humanas: a inteligência, a palavra, o afeto e o perdão. Sejamos artesãos, construtores de paz, amorosos e fraternos. Somente assim será possível superar toda forma de violência, dentro e fora de nós.

O mendigo da estrada

Um rei não tinha filhos. Mandou mensageiros para espalhar avisos. Os jovens aspirantes ao trono deviam ter duas condições: amar a Deus e aos seres humanos de todas as classes e raças. Aqueles que se achassem qualificados deviam apresentar-se para uma entrevista com o rei. Um jovem leu o aviso e pensou que podia participar. Amava a Deus, sempre ajudava em casa e os vizinhos quando precisavam. Logo, porém, desanimou: era muito pobre, não tinha nem roupa p ara apresentar-se ao palácio. Contudo tomou coragem, implorou ajuda, emprestou a roupa e conseguiu o necessário para a viagem. Todos gostavam dele. Estava quase para chegar quando, no caminho, encontrou um mendigo pedindo socorro.

– Tenho fome e frio. Por favor, ajude-me! – chorava o pobre.

O jovem ficou indeciso sobre o que devia fazer, mas a sua bondade falou mais alto. Deu ao mendigo o pouco que tinha. Quando chegou ao palácio, um criado foi ao encontro dele, o convidou a entrar e o conduziu direto à sala do trono. Quando levantou os olhos e viu o rosto do rei, mal conseguiu falar:

– O senhor é o rei? Mas…o senhor era o mendigo da estrada!
– Era mesmo – respondeu o rei – Se eu tivesse me apresentado com a coroa e as roupas reais, você teria feito qualquer coisa por causa do meu poder. Por isso, me disfarcei de pobre, para saber se você amava mesmo a Deus e aos seus semelhantes! Meu jovem, você passou no teste. Será o herdeiro do trono!

O evangelho de Marcos, deste domingo, continua com a cura de um leproso. Sozinho. Por que tanto privilégio? Porque não se juntou aos demais que Jesus curava andando pelos povoados da Galileia? Por medo do contágio, os leprosos não podiam entrar nas cidades, deviam ficar longe, afastados de tudo e de todos. Ainda eram vivos, mas eram considerados mortos. Esse leproso talvez tivesse ouvido falar de Jesus. Tomou coragem, foi ajoelhar-se aos seus pés e pediu a cur a. Mais coragem ainda teve Jesus em estender a mão, tocá-lo e, assim, purificá-lo da lepra. O gesto lhe custou caro, porque a notícia se espalhou e, por enquanto, sempre com a desculpa da terrível doença, Jesus teve que ficar fora das aldeias. Não podia mais entrar “publicamente”, diz o evangelho.
Como sempre, Marcos quer nos dizer algo mais. As doenças apresentadas parecem ser cada vez mais graves. Começou com o espírito mau, depois a febre da sogra de Pedro, diversas doenças e, enfim, a lepra. A próxima cura será de um paralítico, antes, porém, Jesus lhe disse que perdoava os seus pecados. Foi um escândalo, mas este é o ponto onde o evangelista quer nos conduzir. A pior doença é o mal instalado no cora&c cedil;ão humano, quando o orgulho e a disputa com Deus tomam conta de tudo. Junto, desaparece também a compaixão pelo próximo. Para Jesus, pecado é morte, um viver sem vida. Ele quer doar vida nova aos enfermos e aos pecadores. Ainda, porém, não é o tempo do entusiasmo e da divulgação. Falta a cruz. De novo, no Calvário, Jesus ficará fora da cidade.

O Deus Pai, que Jesus veio revelar, não quer ninguém fora, afastado, excluído do seu amor. As curas das doenças, a expulsão dos demônios e o perdão dos pecados, manifestam este projeto de vida nova. Para isso, Jesus está disposto a ficar, ele mesmo, “fora” da cidade. Nesta página do evangelho, é visível a troca de lugar entre ele e o leproso. Jesus, agora, é o excluído, solidário c om todos os excluídos, com as “massas sobrantes” do cinismo e da ganância humana. Um Jesus qualquer, pequeno, pobre, com fome e com frio. Um Jesus malfeitor, pregado na cruz, sem beleza e aparência de homem. Desfigurado, desumanizado. Precisa ter olhos limpos e coração misericordioso para reconhecê-lo. Não tem roupa de rei. Não tem poder algum. Não promete vantagens. Não manda, pede, como o leproso: “Se queres…”. O amor verdadeiro não é imposto ou negociado. Vale se for puro dom. A Quaresma que se aproxima pode ser um tempo bom para testar a nossa solidariedade ou o nosso egoísmo. Tomara que vença a fraternidade.

Já a fizemos

Num dia de mercado na cidade de Assis, Francisco, ao sair do convento, encontrou Frei Junípero. Era um frade simples e bom. Francisco gostava muito dele. Aproximou-se e disse-le:

– Frei Junípero, vem comigo, vamos pregar.

– Francisco, você sabe que tenho pouca imaginação. Como poderei falar às pessoas?

Mas, devido à insistência de Francisco, Frei Junípero obedeceu. Andaram por toda a cidade, rezando em silêncio por todos os que estavam trabalhando. Sorriram às crianças, especialmente às mais pobres. Trocaram algumas palavras com os idosos. Acariciaram os doentes. Ajudaram uma mulher a transportar um cântaro de água; outra, a arrumar a banca onde vendia hortaliças e que as crianças, nas suas brincadeiras, haviam derrubado. Depois de terem atravessado o mercado e a cidade, Francisco disse:

– Frei Junípero, está na hora de regressarmos ao convento.

– E a nossa pregação? – Francisco sorriu e respondeu:

– Já a fizemos, já a fizemos.

Para a nossa reflexão sobre o evangelho deste domingo, o quinto do Tempo Comum, eu poderia, simplesmente, repetir o que escrevi a semana passada. O evangelista Marcos continua a sua “catequese” nos apresentando a maneira de Jesus agir, encontrando as pessoas e fazendo o bem. Como já disse, em Jesus, palavras e ações andam juntas. Jesus “prega” com a sua própria vida e, vivendo, anuncia a boa notícia do amor do Pai para com todos, de maneira especial os doentes e excluídos. No entanto está claro que, a cada página do evangelho, algo novo aparece e vale a pena ser colocado.

O primeiro gesto de Jesus é sair da sinagoga e entrar numa casa. Parece óbvio, mas não é. Depois, na frente da casa se reúne “a cidade inteira”. Exagero do evangelista? Ou um convite para todos os pobres e sofredores? De madrugada, Jesus se afasta de todos e vai rezar num lugar deserto. Por fim, continua a sua missão andando “por toda a Galileia”. Jesus fez um gesto – uma cura – na sinagoga, mas agora anda pelas aldeias, no meio do povo. Dá para entender que a boa notícia não ficará “fechada” em algum lugar privilegiado ou reservado. No templo ou na igreja, para entender. Vai se espalhar.

Jesus é livre e a sua palavra liberta, cura e transforma a vida. Jesus também não é um curandeiro ou um mágico de profissão. Não cobra, não faz negócios. Doa a si mesmo, a sua jornada toda e, sobretudo, a sua compaixão. Prega o amor com a sua vida. Somente se reserva às madrugadas para encontrar o Pai, no silêncio e na oração. É um homem para os outros. Inteiramente entregue à missão. Mas não numa atividade frenética, fazendo qualquer campanha ou promovendo a si mesmo. É uma pessoa “ocupada”, mas, ao mesmo tempo, não esquece de onde lhe vem tanta disponibilidade e generosidade. O Espírito acompanha Jesus, desde o batismo no Rio Jordão, depois no deserto e, agora, na vida pública. É o Espírito Santo que o ajuda a conti nuar na comunhão com o Pai celestial, apesar de estar no meio da humanidade, plenamente humano, em carne e ossos. Discretamente, o evangelista nos apresenta o mistério maravilhoso da Santíssima Trindade.

As lições para a nossa vida de cristãos se resumem numa palavra cara ao papa Francisco: “Saiamos, saiamos” (EG 49). A saída mais difícil para todos, porém, não é só aquela de sair do templo e mergulhar na sociedade para “pregar” o evangelho com a nossa vida. É sair de nós mesmos, ir ao encontro das pessoas com o olhar mais fraterno e o abraço mais solidário. Devemos sair para nos tornarmos próximo dos irmãos! Não tem melhor evangelização que o serviço generoso, a paciência da transformação, a liberdade da indignação e a não colaboração com o mal. Duas vezes, Marcos fala que Jesus “expulsava” muitos demônios. Seria bom que cada um de nós reconhecesse qual “espírito mau” nos impede de ser um evangelizador com a sua vida. A acomodação? O medo de se comprometer? O desencanto? O que entendi é que não saber falar não é desculpa. São Francisco já sabia. Frei Junípero aprendeu. Todos nós “pregamos” muito mais com o exemplo do que com as palavras. Também quando menos pensamos.

Muitas leis, nenhuma lei

A classe política está pagando pela sua falta de atenção na elaboração das leis que pretendem regulamentar o processo eleitoral. Assim, ao longo dos anos já fizemos dois Códigos Eleitorais, que ninguém cumpre e estão no rol daquelas leis de que os brasileiros dizem que “não pegou”, e milhares de dispositivos modificando-os. Resoluções, súmulas, portarias, jurisprudência se modificam mutuamente, criando um verdadeiro caos jurídico.

Começamos por ter para cada eleição uma resolução geral do TSE, que introduz dispositivos novos e novos procedimentos, impedindo que se consolidem na pratica e o exercício, em cada pleito, de normas estáveis. Quem mais lucra com isso são os “comentadores” desses dispositivos, que imediatamente publicam livros para explicar o que devia estar explicado pela lei.

Numa democracia constitucional, isto é, aquelas cujos direito e deveres estão expressos numa Carta Magna, o que primeiro devíamos buscar era a estabilidade das leis. Mas o que ocorre é outra coisa, sua instabilidade. Para dar um exemplo dessa febre legiferanda, basta citar que só resoluções do TSE (pasmem!) existem mais de 23 mil — para ser exato 23.527 é o último número que encontro — o que certamente levaria um candidato a passar a vida inteira lendo essas resoluções, deixando para concorrer a uma eleição qualquer que se realizasse no inferno.

Vivemos todo dia essas dificuldades. Nossa Constituição já tem 106 Emendas, que, com seus artigos, têm uma extensão superior à dos artigos da própria Constituição original. O que mais se pede e mais se exige são “reformas”, que têm sido demasiadas na área constitucional. E o que ocorre no mundo da legislação infraconstitucional?

Ninguém sabe por que ninguém é capaz de lê-las em sua totalidade. Quando presidente do Senado, cargo que ocupei quatro vezes, certa vez reclamei de uma Medida Provisória cuja ementa (a síntese que encabeça toda lei) ocupava toda a primeira página do avulso (publicação da matéria durante sua tramitação) e era toda dedicada as alterações que se fazia em leis anteriores. Mais ou menos assim: Ementa “Esta lei modifica o art. 5º da Lei no 5.567, que modifica o art. 3º § 3º, inciso IV, da Lei no 8.320, que por sua vez altera o art. 5º da Lei no…” e assim por diante, uma lei modificando outra, que modifica outra, que altera outras, o que impossibilita qualquer pessoa, mesmo que seja advogado ou jurista, de pesquisar só as leis que foram citadas na ementa e mesmo de saber o que verdadeiramente se deseja legislar. A verdade é que nossa legislação é totalmente casuísta.

Para que ninguém pense que estou só especulando, vou transcrever o caput do artigo 8º do Código Eleitoral como está reproduzido no site do Palácio do Planalto: “Art. 8º O Brasileiro nato que não se alistar até os 19 anos ou o naturalizado que não se alistar até um ano depois de adquirida a nacionalidade brasileira, (sic) incorrerá em multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o valor do salário-mínimo da região, imposta pelo juiz e cobrada no ato da inscrição eleitoral através de selo federal inutilizado no próprio requerimento. (Redação dada pela Lei no 4.961, de 1966) (Vide Lei no 5.337, 1967) (Vide Lei no 5.780, de 1972) (Vide Lei no 6.018, de 1974) (Vide Lei no 6.139, de 1976) (Vide Lei no 7.373, de 1985).” O site do TSE acrescenta resoluções, outras leis, portarias…

Mas meu testemunho é que os chamados “penduricalhos”, “jabutis”, “cacos” que são descobertos quando a lei é aplicada mostram apenas que ninguém lê a lei. Passa no Congresso sem a devida atenção. Muitas vezes reclamei disso e clamei da necessidade de se acabar com isso.

O que resulta é o que estamos vendo neste caso do julgamento do Lula. Os que defenderam uma lei que passou por cima de muitos direitos individuais, inclusive a coisa julgada, estão agora desdizendo o que disseram. É como dizem na França, parece que citando Montesquieu: “Beaucoup de lois, pas de loi.” Muitas leis, lei nenhuma.