Dom Pedro Conti

As bananas do monge

Um viajante resolveu passar algumas semanas num mosteiro do Nepal. Certa tarde, entrou num dos muitos templos do mosteiro e encontrou um monge sorrindo, sentado perto do altar.
– Por que o senhor sorri? Perguntou ao monge.
– Porque entendi o significado das bananas, disse o monge, abrindo a bolsa que carregava e tirando uma banana podre de dentro. – Esta é a vida que passou e não foi aproveitada no momento certo, agora é tarde demais. Em seguida, tirou da bolsa uma banana ainda verde. Mostrou-a, tornou a guardá-la e disse: – Esta é a vida que ainda não aconteceu, é preciso esperar o momento certo. Finalmente, pegou uma banana madura, descascou-a e, dividindo-a disse: – Este é o momento presente. Saiba vivê-lo sem medo.
No segundo domingo de Advento, encontramos João Batista “pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados”. O evangelista Lucas coloca este acontecimento numa determinada situação histórica, citando os nomes das autoridades do tempo, a começar pelo imperador romano até os sumos sacerdotes da época. Essa é uma primeira maneira para nos dizer que a nossa vida é feita de pessoas e acontecimentos limitados no tempo. Não adianta se refugiar no passado, que não volta mais, ou tentar fugir para um futuro que ainda não existe. Isso significa que cada um de nós deve enfrentar o seu presente com liberdade e responsabilidade, aprendendo a tomar decisões e, assim, dar um rumo sensato à própria vida.
Com efeito, deveríamos ter aprendido com os erros e os acertos do passado. Também já sabemos que, muito do que colheremos no futuro, depende daquilo que já semeamos ontem e daquilo que estamos semeando hoje. Evidentemente toda decisão de “conversão” da nossa vida é tomada no presente; no entanto ela foi preparada no passado e se sustenta somente se acreditarmos que é urgente mudar algo para que aconteça o melhor no futuro.
Na prática, essas são as grandes perguntas da vida que, antes ou depois, vamos ter que enfrentar se não quisermos desistir da nossa inteligência e humanidade: de onde viemos e para onde vamos. Se, por exemplo, temos medo de Deus, ou achamos inútil acreditar e confiar nele, nós mesmos poremos obstáculos – valas e montanhas – para afastá-lo e tirá-lo da nossa vida. Basta substitui-lo com qualquer um dos ídolos deste mundo para trilhar outros caminhos na vida em busca do sucesso, do dinheiro e do nosso exclusivo bem-estar. Ao contrário, talvez já percebemos que o sentido mais bonito da vida é outro. O que nos faz mais felizes é fazer o bem e gastar mais as nossas capacidades para sermos úteis aos nossos irmãos, praticando mais a fraternidade e menos o egoísmo e a indiferença. Essas são as montanhas mais altas, que devem ser rebaixadas , e os vales mais profundos, que devem ser aterrados para podermos encontrar e experimentar o amor a Deus e ao nosso próximo.
Na mensagem aos jovens do mundo inteiro, convocando-os para a Jornada Mundial da Juventude no Panamá, em janeiro de 2019, o Papa Francisco, chama tudo isso de “revolução do serviço”. Significa aprender a doar mais do que querer ganhar sempre, a ver as grandes necessidades dos outros mais do que as nossas, talvez, bem pequenas. Tudo isso é conversão. Muda muito ou… tudo, porque junto vai a visão que temos da sociedade, da política, do dinheiro, dos pobres e sofredores. Igualmente Deus Pai e seu Filho Jesus Cristo não serão mais ideias abstratas, mas alguém vivo que nos convoca para uma grande missão, que antes de transformar os outros, iluminará a nossa vida. A Igreja também não será mais uma organização qualquer, mas uma comunidade de irmãos que juntos enfrentam os mesmos desafios e travam as mesmas lutas contra o mal e a morte. Agora, qual foi a banana que nos fez refletir mais? Espero que seja a madura, doce e gostosa. Repartida. A verde, também, logo estará pronta. E a podre? Foram as chances de bem que desperdiçamos.

O ouro do avarento

Um avarento juntou tudo o que tinha e o transformou numa barra de ouro que enterrou em seu jardim: com ele enterrou, também, sua alma e todos os seus pensamentos. Desde então, diariamente, ia inspecionar seu tesouro. Um de seus empregados, observando aquele vaivém, viu logo de que se tratava. Desenterrou a barra de ouro e levou-a. Pouco depois, o avarento foi fazer sua inspeção. Quando viu o buraco vazio, começou a se lamentar e a arrancar os cabelos. Vendo-o nesse estado, um transeunte perguntou o que tinha acontecido e, compreendendo o que afligia o avarento, disse-lhe: “Por que ficar assim desolado? Tinhas o ouro e ao mesmo tempo não o tinhas. Basta pôr uma pedra no lugar onde estava a barra de ouro e imaginar que ele está lá. Pelo que vejo, mesmo quando o ouro estava lá, não fazias uso dele”. Ter bens e não usufrui-los é mesmo que não ter.

A antiga fábula de Esopo nos ensina que ter um tesouro, mas não conhecer o seu valor ou, simplesmente, guardá-lo e não usá-lo, é como se não o tivéssemos. Assim penso que aconteça com muitos que se declaram cristãos, mas, depois, apressam-se a dizer que não são praticantes. Pode ser que, para desculpá-los, nunca tenham tido a possibilidade de apreciar, de verdade, o valor do presente que receberam quando foram batizados. Ou, apesar de achar bonito o fato de ser cristãos, por enquanto, não sentem necessidade disso para caminhar na vida. Assim a luz da fé fica escondida e não lhes serve para nada.

Com o primeiro domingo de dezembro, iniciamos o novo Ano Litúrgico e o Tempo de Advento, os dias que nos preparam para o Natal. Se fosse pelo comércio, já estaríamos celebrando as Festas de Fim de Ano, mas, como cristãos, nos damos de presente um pequeno tempo para lembrar e reconhecer o valor e o sentido desse evento. A fé cristã não é algo que se adquire uma vez por todas ou que seja reduzível a algumas questões doutrinais. A lista de verdades que repetimos de cor, quando rezamos o Credo, são mais que afirmações, são, perdoem a comparação, quase que a carteira de identidade do cristão, que se reconhece com filho amado daquele Deus no qual professa acreditar.

Como os traços de uma pessoa vão se formando ao longo da vida e são o resultado de herança biológica, mas também da educação recebida, sobretudo na formação do caráter, assim também a personalidade de cada cristão. Além disso, nós acreditamos nas maravilhas do Espírito Santo que distribui os seus dons com generosidade, dando coragem aos medrosos, sabedoria aos humildes, perseverança aos fracos. Por isso, não tenho dúvida em afirmar que a fé é um dom comparável a um tesouro preciosíssimo, mas do qual nem todos sabem apreciar o valor e a serventia na própria vida. Se, depois, à Fé juntamos a Esperança e a Caridade, também dons do Pai, nada falta ao cristão para cumprir a sua missão de paz e de amor ao longo dos poucos dias que passa neste mundo. No entanto &eacut e; fácil esquecer ou desvalorizar a fé, jogá-la fora ou deixá-la num canto, achando-a inútil ou até um empecilho para as próprias ambições individuais. Talvez, como muitas vezes acontece, descobrimos o valor de alguém, ou de alguma coisa, quando a perdemos.

A Igreja, como uma boa mãe, tem muita paciência e repete sempre de novo o anúncio da fé e do amor de Deus. Proclama de muitas formas a grandeza e a misericórdia do Pai, a obediência amorosa e exemplar do Filho e a incansável animação do Espírito Santo, fogo de toda missão. Se recomeçamos com o Tempo de Advento e, depois, com o Natal é porque a primeira descoberta do amor de alguém para nós é o sua atenção, a sua aproximação gratuita, sem cobrança ou interesse. Pura generosidade. Mais ainda quando, conscientemente ou não, gritamos por socorro, perdidos e confusos nas encruzilhadas da vida. Na escuridão, uma luz é sempre bem-vinda. A luz da fé, por fraca que seja, já serve para encontrar o caminho rumo ao único bem insubstituível, para encontrar o qual vale a pena deixar todo o resto: o próprio Deus e o seu amor infinito. Pensar que uma pedra e a nossa imaginação resolvem é pura ilusão. O verdadeiro Deus não tem substituto.

O Ano Nacional do Laicato 2

No último domingo de novembro, deste ano, celebramos a Festa de Cristo Rei e concluímos o ano litúrgico. Logo iniciaremos, com o Tempo do Advento, um novo caminho, naquela busca incessante da santidade que é o chamado de todos os batizados. Mais uma vez, neste domingo concluiremos, um “ano temático”, o Ano Nacional do Laicato, que teve o seu início também na Festa de Cristo Rei de 2017. No evangelho deste dia, no diálogo com Pilatos, Jesus afirma ser “rei”, mas de um reino todo especial, um reino que “não é daqui” (Jo18,36). Para este “reino” diferente não valem os critérios e as medidas deste mundo que passa. O evangelista João nos apresenta Jesus, totalmente despojado de qualquer poder humano, machucado e já condenado pelo Sinédrio, numa posição “real”, altiva, em condição de responder com segurança aos questionamentos do todo poderoso representante do Império Romano. São os contrastes chamativos do evangelho de João. Por exemplo, Jesus sem balde, oferece “água viva” à samaritana (Jo 4). Com cinco pães e dois peixes, ele satisfaz a fome de cinco mil homens (Jo 6). Agora sem exército algum, lembra a Pilatos que o poder, que ele acredita ter, lhe foi dado do alto e, por isso, um dia irá perde-lo (Jo 19,11).

Todos os reinos e os poderosos deste mundo, com todas as suas riquezas e seus abusos irão passar, mas o “Reino” que é de Deus, aquele que somente quer reinar na vida e nos corações dos seus amigos, na liberdade e na alegria do amor, nunca acabará. Com Jesus e com a sua Páscoa, este “Reino” já começou, já está no meio de nós (Lc 17,21). O Reino da justiça, do amor e da paz, acontece na vida, na história humana, dentro e fora da Igreja , tem o alcance da misericórdia do Pai que não deixa ninguém longe do seu amor.

Lembrarei agora os legados do Ano Nacional do Laicato para que possamos todos dar continuidade à animação e à reflexão que esse tempo especial nos trouxe.

O primeiro legado é o esforço para ter em cada diocese e prelazia do Brasil o Conselho Diocesano de Leigos. Não será uma nova pastoral ou um novo organismo. Será um espaço de encontro das várias e ricas expressões do laicato católico. Vale lembrar as Comunidades Eclesiais de Base, com todos os seus animadores e animadoras, as Pastorais, os Movimentos e as Novas Comunidades. É dom do Espírito Santo realizar de maneira diferente a mesma e única missão da Igre ja. Vivemos tempos difíceis para a evangelização, que nos pedem colaboração e união das forças. Uma Igreja dividida ou ocupada em disputas não somente escandaliza e afasta, mas, sobretudo, deixa de cumprir a contento a missão pela qual o Senhor Jesus a chamou: ser testemunha de Cristo “até os confins da terra” (Atos 1,8).

O segundo legado é o empenho para que aconteça o mais rapidamente possível uma Auditoria Cidadã da Dívida Pública brasileira. Pagar as próprias dívidas é questão de honestidade e justiça. No entanto quando a dívida se torna uma extorsão, quando pode ser renegociada ou ainda, talvez, em boa parte já foi paga, exigir uma auditoria cidadã, ou seja, pública e acessível a todos, não significa fugir das próprias responsab ilidades ou querer dar um calote, mas encontrar uma possível saída honrosa de um negócio vantajoso só do lado dos credores. Com efeito, entendemos muito bem que, afinal, o pagamento da enorme dívida pública, recai sobre as costas do povo mais necessitado daquelas políticas públicas (saúde, educação…) cujos recursos estão sendo cortados com a desculpa da dívida. Como cidadãos e cristãos não podemos compactuar com uma situação claramente injusta e prejudicial para esta e as próximas gerações.

Um último lembrete. O tema do Ano Nacional do Laicato foi: “Cristãos leigos e leigas, sujeitos na ‘Igreja em saída’, a serviço do Reino”. E o lema: “Sal da Terra e Luz do Mundo” (Mt 5,13-14). Não precisa explicar mais. O Reino acontece com a participação e a colaboração responsável, consciente e generosa de cada cristão e cristã. Somos todos membros ativos do único Povo de Deus, na diversidade dos dons e dos minist& eacute;rios, mas sempre em comunhão, diálogo e fraternidade. Para o bem de todos.

O rei e o astrólogo

Conta-se que Luiz XI, rei da França, consultava os astrólogos. No entanto achava que o astrólogo da Corte o estava enganando e, por isso, estava disposto a condená-lo à morte. Mandou chamar esse astrólogo e disse-lhe:

– Vou lhe pedir uma previsão, e, caso você erre, será condenado à morte. Me diga: quando vai morrer? O astrólogo pensou bem antes de responder ao rei e depois disse:

– Três dias antes de Vossa Majestade. Na dúvida, de a previsão estar certa, ou não, o rei não matou o astrólogo.
Conhecer o futuro sempre foi e, talvez, será o desejo, a ilusão e o engano de muitas pessoas. Certas previsões deram certo, porque o que se esperava que acontecesse se realizou, mesmo, mas a grande maioria do que, segundo as previsões, devia acontecer foi esquecida, atropelada por outros eventos. Igualmente sempre haverá pessoas que gostam de arriscar fazendo apostas sobre o futuro desconhecido. Apostam nos sorteios das loterias, nas corridas de cavalos, nos jogos de futebol e do bicho. Às vezes ganham, mas, muitas mais vezes, a sorte passa bem longe delas.

No projeto de Deus, as previsões não servem, porque não se trata de adivinhar o que vai acontecer. Não sabemos nem o dia e nem a hora daquela que chamamos “a volta do Senhor” (Mc 13,32). O que serve é trabalhar para que o Reino se torne realidade e a esperança nunca deixe de nos apontar o caminho. A página do evangelho deste domingo, o penúltimo do ano litúrgico, nos traz essa reflexão. Inicia-se com palavras que envolvem as estrelas do céu caindo, mas depois tudo vira primavera, a estação que precede o verão. Após a temporada das folhas verdes, chegará o tempo dos frutos, o t empo da colheita. Só aguardar e saber reconhecer os sinais do novo que virá. A breve parábola da figueira está cheia de esperança e de fé. A natureza fará o seu curso e a alegria final não faltará. O tempo da história humana ainda não é o tempo da plena realização do Reino: precisa exercer a paciência da espera e o engajamento nessa obra de Deus.

Outro detalhe da página do evangelho deste domingo é a “tribulação” que é dita “grande”, espantosa. Ao contrário, os sinais de esperança são as pequenas folhas que começam a brotar. Com isso, fica mais fácil ser profetas de desventuras. Interpretamos, assim, os desastres que acontecem na própria natureza e anunciamos que o fim do mundo está próximo. Deveríamos ser testemunhas confiantes da paz e da justiça amorosa do Pai. Com efeito, como sempre, os sinais de bondade são pequenos, não chamam atenção e acontecem no silêncio e no anonimato do cotidiano, mas é justamente através deles que o mundo está mudando, a partir de lá, de baixo, e não de cima. Somos fascinados por coisas grandes, acontecimentos mirabolantes, eventos faraônicos. Mas o Reino, ensinou Jesus, é como a semente que ainda está escondida, ou como o fermento que desaparece para que toda a massa fique fermentada. Na realidade “o Filho do homem está próximo, às portas”, todas as vezes que algum gesto de amor é praticado. Porque é ele, o próprio Jesus, o “próximo” que ajudamos. É aquele que estava com fome, com sede, que estava sem roupa, sem casa, estava doente ou preso. São as pequenas obras de misericórdia, os pequenos atos de perdão, os “brotos” verdadeiros do Reino. Não basta, porém, cumprir gestos e obras exteriores, precisa “interiorizar” o Reino do am or, da justiça e da paz. Será o nosso coração amoroso que limpará o nosso olhar e nos fará enxergar os pequenos sinais do Reino. Igualmente, aprenderemos a exultar pelos pequenos passos dados, por nós, pelos irmãos e irmãs das nossas comunidades, pelas pequenas conquistas e libertações que acontecem nas pessoas e na história. Jesus ficou feliz, no Espírito Santo, porque o Pai revelou as coisas do Reino aos pequeninos e não aos sábios e entendidos (Lc 10,21). Para quem tem fé, o Reino, o novo da Páscoa, aos poucos, já está acontecendo. Não é uma aposta, é certeza. Não é revelação privilegiada, sonho ou adivinhação. É palavra do Senhor, palavra que não passará.

A caridade

Certa dama muito rica desejava praticar a caridade de forma ampla e eficiente. Depois de refletir alguns dias, resolveu aconselhar-se com um amigo que considerava sábio e de bom coração.

– Tudo bem – disse o amigo – porém há uma caridade de primeiro grau, a que todos somos obrigados. Consiste em evitar que o próximo padeça por nossa culpa. A simplicidade e a sobriedade devem ser praticadas, porque diminuem a dor da espécie humana…. Enquanto a vaidade, a ostentação e o luxo a aumentam muito. Assim não se pode esquecer de que a legítima caridade começa pelos que estão mais próximos, entre os quais os mais humildes trabalhadores. Realizado tudo isso, se ainda mais for possível, iniciará outra caridade ainda maior.

A rica senhora escutou tudo e depois disse:

– Solicitei sua opinião sobre a melhor forma de empregar o meu dinheiro em obras de beneficência. Não pedi conselho sobre a minha vida.

– Acreditei – retomou o amigo – que se tratasse de vossa caridade, de vosso amor aos que sofrem. Vejo, porém, que toda a vossa dúvida está em como deveis empregar vosso dinheiro. Em tal caso, entendo que deveis consultar um homem de negócios. A essas palavras a madame resolveu pensar melhor.

Nos evangelhos sinóticos encontramos, muitas vezes, grandes ensinamentos de Jesus colocados dentro de um acontecimento aparentemente simples e comum. No entanto, o olhar de Jesus é diferente e sabe captar algo que passa despercebido aos demais. O evangelho de Marcos, deste domingo, é conhecido como aquele do “óbolo da viúva”. Tudo acontece no lugar mais sagrado para os judeus. O templo tinha o seu tesouro, fruto dos dízimos e das contribuições dos fiéis. Os devotos depositavam as ofertas no cofre. Evidentemente alguns ricos colocavam bastante dinheiro. Isso demorava e chamava a atenção. O doador esbanjava humildade, mas, no fundo, sabi a que estava sendo olhado pelos demais com admiração e talvez com inveja. Ao contrário, os pobres depositavam pouco e, obviamente, passavam despercebidos. Não foi o que aconteceu, porém, com a pobre viúva, talvez reconhecível pelo traje e pela atitude recatada. “Duas pequenas moedas, que não valiam quase nada” foi a oferta da mulher. Jesus viu e não perdeu a oportunidade de afirmar categoricamente que era ela, afinal, quem tinha doado mais do que todos os outros, pela simples razão de ter dado “tudo o que possuía” e não só o que lhe sobrava.

Para Jesus, a generosidade não se deve medir pelo tamanho da doação, mas por aquilo que custa de sacrifício e desprendimento. Como sempre, para os ricos, o muito não faz falta nenhuma, mas para o pobre o pouco é indispensável. Ter o coração e a capacidade de doar o necessário ao seu próprio sustento é sinal de suprema caridade.

Em época de noticiários onde bilhões e bilhões de dinheiro são badalados, porque gastos, desviados, perdidos, sem saber como ou devidos sem saber o porquê, vale ainda a pena falar das duas moedinhas da viúva? Na realidade, o exemplo dela é de uma atualidade espantosa. Primeiro, para aprender a avaliar a nossa própria generosidade não pela quantidade da oferta, que nos faria sentir orgulhosos, mas pela capacidade de desprender-nos daquilo que estamos doando. Quando queremos reconhecimento, gratidão ou uma placa com o nosso nome, dá para duvidar sobre o verdadeiro interesse da doação. A segunda consideração diz a re speito aos pobres. De onde vêm os bilhões dos ricos ou administrados pelos poderes públicos? Vêm da produção, do trabalho e dos impostos de milhões de pequenos contribuintes. Hoje existem capitais “virtuais”, digitais, que migram via internet de uma bolsa valores para outra, mas a riqueza real, aquela do dia a dia, tem rosto. Ainda é feita de milhões de pequenas moedas, é feita dos salários “mínimos” dos que sofrem para chegar ao final do mês. É feita de aposentadorias de idosos que mantêm a escola dos netos; de pobres fazendo coletas para uma cirurgia de alguém ainda mais pobre do que eles. Essa é a “economia” da caridade. A que vale aos olhos de quem sabe ver com o olhar do coração de Jesus. Não precisa de internet, basta o amor

O cientista e o jovem

Um jovem estudante francês chamado Frederico Ozanam, passeando uma noite pelas ruas de Paris, entrou por acaso numa igreja. Não era incrédulo e nem fervoroso. Dentro da igreja viu um homem ajoelhado rezando. Por curiosidade, aproximou-se dele e ficou espantado ao reconhecê-lo: “É o professor Ampére!”, pensou. André Marie Ampére era realmente, naqueles tempos, o maior gênio da Escola Politécnica de Paris. Era o descobridor da eletricidade dinâmica e das leis básica do eletromagnetismo, que h oje chamamos de Equações de Maxwell. “Se um homem notável como este, um dos maiores cientistas do mundo, não se sente diminuído ou envergonhado ao demostrar a grandeza da sua fé, não vejo mais motivo algum para conservar o meu espírito envenenado pelo respeito humano!”, disse consigo mesmo o estudante Ozanam. Anos depois, foi Ozanam quem fundou, com um grupo de amigos universitários da Sorbonne, a grande sociedade de São Vicente de Paulo, conhecidos como Vicentinos.

 

Com essa anedota, por ocasião da solenidade de Todos os Santos e Santas, quero lembrar que a santidade é um chamado para todos os batizados. Manter viva a memória de cristãos leigos e leigas, “santos e santas”, na ajuda a fortalecer o nosso empenho a sermos, cada vez mais, corajosos com o compromisso da nossa fé, assumido no dia do nosso batismo.

 

Muitas vezes nos perguntamos se talvez não fosse mais fácil vivenciar a fé nos tempos passados, quando a sociedade toda parecia ser mais visivelmente cristã. Talvez alguns costumes ajudavam a cumprir as práticas religiosas, mas isso não significava que a luta do bem contra o mal fosse mais leve e vitoriosa. No campo do mundo (Mt 13,38), ou seja, na história da humanidade, sempre crescem juntos o joio e o trigo. Aos cristãos não cabe arrancar o joio, mas ser o bom terreno que acolhe a semente da Palavra e produz “ cem, sessenta, trinta por um” (Mt 13,8). Cada época tem as suas dificuldades e incertezas, mas também nunca faltou, e nem faltará, a presença misteriosa do Divino Espírito Santo, que age livremente dentro e fora da Igreja. Foi o que Jesus disse a Nicodemos, fazendo uma comparação entre o Espírito e o vento: “O vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem e para onde vai” (Jo 3,8). Nos nossos dias, por exemplo, a grande oferta de experiências religiosas, nas mais variadas denominações com relativa propaganda e proselitismos, pode confundir os católicos, mas, de outro lado, obriga-nos a exercer a nossa liberdade de escolha e de engajamento.

 

Refletindo bem, a verdadeira santidade nunca foi, ou será, somente uma questão de costume, banal e repetitivo, porque nunca ninguém foi obrigado a ser santo ou santa. Sempre foi, e será, uma decisão pessoal, uma resposta consciente, livre e generosa. Isso não quer dizer que a santidade seja privilégio de poucos. Não, ela é um chamado para todos, mas o cristão comprometido com a sua fé receberá críticas, encontrará desafios para acertar o caminho, poderá ganhar desonra, zombaria e martírio. Nada de novo para quem não se deixa atrair pelas modas, as conveniências, as telenovelas e os shows em templos lotados com pregações cheias de promessas ou ameaças retumbantes. Também os possíveis escândalos dentro da nossa Igreja não devem nos surpreender demais. Quando deixamos de vigiar sobre nós mesmos e sobre os nossos irmãos, por caridade fraterna, todos podemos vacilar e cair. A santidade sempre foi, e será, muito mais feita de humildade, silêncio, caridade sem tocar os sinos, amor dispensado por gratuidade. Santidade combina mais com sacrifício e doação da própria vida que com o sucesso humano, construções grandiosas e fama mundial. Se a Igreja aponta alguns irmãos e irmãs como santos e santas é para nos ajudar com os seus bons exemplos. A santidade é possível, sim. Mas o reconheciment o e a recompensa sempre serão prerrogativa do Pai. Esta será a pergunta dos justos: “Quando foi Senhor?” (Mt 25,37ss). Eles amaram sem tantas preocupações porque o que vale mesmo na vida é o amor. Foram santos e santas!

O peixe da enxurrada

Era uma vez um peixe que vivia muito bem num tanque de uma reserva florestal. Um dia, depois de uma grande chuva, outro peixe apareceu, trazido pela enxurrada. Começou uma amizade entre os dois. O peixe forasteiro falava do lugar de onde veio com muito entusiasmo e afirmava ser muito maior e mais bonito do que aquele tanque. Já o peixe anfitrião não acreditava nas palavras do hóspede e sustentava ser aquele lugar o melhor do mundo.

– Um dia, quando chover bastante, eu voltarei para a minha casa e poderei levá-lo para conhecer o rio onde eu moro – dizia o peixe visitante. O peixe do tanque respondia:

– Eu irei com você apenas para conhecer a sua casa e ver se realmente ela é grande do jeito que você conta. O tempo da chuva voltou e uma nova enxurrada levou para longe os dois peixes. Ao ver tanta água, o peixe que vivia no tanque custou a acreditar que não era um sonho.

– Só acredito porque os meus olhos estão vendo – falou o peixe da reserva florestal – realmente este lugar é bem maior do que aquele em que eu fui criado. A partir daí, a amizade entre eles se fortaleceu e onde um estava podia-se ver também o outro.

Depois dos questionamentos dos adversários, das dúvidas e ambições dos discípulos, o evangelista Marcos nos apresenta a cura do cego Bartimeu. Jesus sai de Jericó e caminha rumo a Jerusalém onde acabará crucificado. A multidão que o segue pode nos enganar. Parece uma marcha triunfal, mas na hora da decisão bem poucos ficarão com o Mestre da Galileia. Falta muito, ainda, para eles acreditarem, de verdade, em Jesus. O que estão vendo é muito bonito, são os sinais de uma humanidade curada das doenças, mas sobretudo liberta das disputas pelo poder, das amarras de uma Lei que sufocava pelo peso dos preceito s e o medo da impureza. No entanto, ainda falta entender e acolher a lição de amor que Jesus dará a todos na cruz. Falta acreditar que a sua vida doada para nos resgatar a todos do pecado e da morte nos fará voltar à vida plena, a vida de filhos e filhas de Deus Pai. Os discípulos ainda enxergam pouco, conseguem ver só de perto, estão acomodados nos seus projetos pessoais ou de grupo. Precisará o escândalo e a vergonha da cruz, a luz da ressurreição e a iluminação do Espírito Santo para acreditar no amor sem limites do Pai, que Jesus veio nos revelar.

Todos precisamos sempre ser curados das nossas cegueiras para poder acreditar e confiar no Senhor. Por isso, o evangelista Marcos coloca, aqui, a cura do cego de Jericó. Em síntese, nos é apresentada a sucessão de ações que todo discípulo deve fazer se quer caminhar com a luz da fé. O cego tem nome, porque a relação com Jesus é pessoal. Ele ainda está à beira do caminho, mas grita por socorro. Não se cala, porque não se conforma com a sua situação. Ao ser chamado, pula sem incertezas. Quando é perguntado sobre o que ele quer responde decididamente: “Mestre, que eu veja!&rdquo ;. Logo os seus olhos se abrem e, agora, com a luz da fé, pode seguir Jesus pelo caminho. Ainda vão acontecer os fatos da paixão e da morte de Jesus; a fé dos discípulos será duramente provada, mas a primeira decisão de cada cristão já foi tomada: basta de cegueira, quero ver, quero crer, quero seguir a Jesus. Ele não nega a luz da fé e do amor a quem a busca com firmeza, alegria e esperança. Ele tem compaixão de nós e vem em nosso socorro.

Somos em muitos a continuar incrédulos e indecisos. Todos fazemos a experiência da “penumbra da fé” neste mundo. Temos medo ou vergonha de dizer que duvidamos. Sempre tem alguém que nos manda calar, quando gritamos por mais testemunho e exemplo. A fé cristã é pessoal, mas é também solidária. Cremos juntos, como irmãos e amigos. Todos recebemos ajuda e podemos ajudar outros. Os pais ensinam os filhos; os jovens partilham com outros jovens. A compreensão e a vivência da fé acontecem na comunidade que experimenta e celebra aquilo que acredita. Graças a Deus, sempre tem alguém que nos ajud a a enxergar mais longe, a sair do conforto do tanque onde pensamos acabe o mundo e o sentido da existência humana. Bendita a enxurrada da fé!

Os pombos e a rede

Um grupo de pombos, ainda muito jovens e inexperientes, saiu a voar sob o comando de um velho pombo sábio e experiente. Em dado momento, o grupo avistou lá do alto algo que parecia com uma grande quantidade de grãos de milho espalhados no chão. Cansados e famintos, os jovens pombos não se contiveram e para nada serviram os gritos do velho pombo pedindo que não fizessem aquilo. Eles desceram até o milho e acabaram presos em uma rede preparada para apanhar aves. Ficaram presos pelos pés e apes ar de se debaterem, desesperadamente, ninguém conseguia mais levantar o voo.

Naquela confusão, eles ficavam cada vez mais presos entres as malhas da rede. Finalmente, o velho pombo conseguiu ser escutado e disse: “Só tem um jeito de vocês saírem desta rede; todos terão que levantar voo ao mesmo tempo, juntos, alçando a rede no ar”. Então, o grupo dos jovens pombos assim o fez; levantaram o voo juntos e a rede subiu com eles, mantendo-se no ar com grande esforço de cada um. Até que um dado momento a rede foi se soltando dos pés dos pombos e caiu por terra. Estavam livres novamente.

Um simples exemplo de solidariedade, de conjunto, em lugar de tantas disputas individuais. Pelo jeito, o assunto do poder e do desejo de ocupar os primeiros lugares devia ser muito atual na comunidade para a qual Marcos escreveu o seu evangelho. Já encontramos isso, alguns domingos atrás, quando os apóstolos discutiam entre si quem era o maior. Se depois lembramos que este evangelho foi escrito, provavelmente, para os cristãos da comunidade de Roma, a capital do império, entendemos, ainda melhor, o calor da disc ussão.

O poder sempre fascina, atrai, faz sonhar e entorpece as consciências. Tiago e João, dois discípulos da primeira hora, não tiveram escrúpulos a se declarar prontos até a morrer para sentar à direita e à esquerda de Jesus, quando chegasse a hora da sua vitória gloriosa. Eles e os demais estavam, ainda, muito longe de ter entendido qual seria a “glória” de Jesus, qual o seu trono e a sua coroa. Não conseguiam imaginar um “Cristo” Messias crucificado e coroado de espinhos. Um dia, poderão dar a suas vidas por causa de Jesus e do Evangelho, mas então já não será tão importante ocupar os primeiros lugares, porque os valores do Reino de Deus serão bem outros que aqueles dos impérios humanos.

Depois desses esclarecimentos, Jesus aproveitou para falar abertamente dos poderosos deste mundo que oprimem e tiranizam. En tre os seus discípulos, porém, deve ser exatamente o contrário: “Quem quer ser grande seja o vosso servo; e quem quiser ser o primeiro seja o escravo de todos” (Mc 10,43-44). A motivação deste “serviço” tão radical é a própria pessoa de Jesus porque ele, o Filho do homem, pagará com a sua vida o resgate da libertação da humanidade do pecado e da morte.

A busca do poder leva à exploração e à morte dos outros, o caminho do amor leva ao dom da própria vida em favor de quem é amado. A sede do poder bebe do sangue dos outros. A “sede” de Jesus na cruz é a sede de amor, que doa a si mesmo para a vida dos irmãos. Depois de tantos anos de fé cristã, nós ainda continuamos pensando que riqueza, sucesso e poder humano sejam todos sinais de bênção e apoio de Deus. Mas não foi bem isso que Jes us ensinou. Na história de ontem, talvez, contava ainda o poder das armas; hoje, sabemos que o poder do dinheiro fala mais alto e decide da vida ou da morte de populações pobres de países inteiros. O anseio pelo poder gera disputas sem fim e aos poderosos do momento, sucedem outros, mas bem pouco muda para quem nunca tem acesso aos bens que Papa Francisco considera fundamentais para uma vida digna de ser chamada humana: o teto, a terra e o trabalho. Todos nós podemos cair na rede traiçoeira do individualismo, do consumo, da autossuficiência, de nos achar melhores dos demais. O caminho da libertação só começa com a transformação do egoísmo em solidariedade e fraternidade. A força e a alegria do amor, da comunhão e do serviço generoso, são maiores de todas as euforias pagas pelo poder. Porque não é propaganda. É sabedoria, é e vangelho.

Deixar para encontrar

Chegamos ao domingo do Círio. Estamos em festa e olhamos, alegres, à Maria, a jovem de Nazaré, a mulher do sim, a mãe de Jesus e, pelas palavras dele, também nossa mãe. A pequena imagem que levamos em procissão nos permite manifestar abertamente nosso afeto e gratidão. Sentimo-nos amparados como crianças no colo da mãe.

O evangelho de Marcos, deste domingo, fala-nos de uma pessoa que correu ao encontro de Jesus para lhe perguntar o que devia fazer para “ganhar” a vida eterna. Por causa da corrida, somos levados a pensar que fosse um jovem. Com o avanço da idade as pernas ficam mais pesadas e o fôlego mais curto. Além disso, a juventude é o tempo oportuno para as grandes decisões da vida. A cabeça dos jovens ferve de sonhos, projetos, ambições e esperanças. Todo jovem, sente que, agora, &eacut e; a sua vez de ocupar espaços e lugares e, assim, busca, ansiosamente, a possibilidade de manifestar aos demais as suas capacidades. A moça ou o rapaz, que persegue com determinação os seus objetivos, nos estudos e na profissão, faz a alegria e o orgulho dos seus pais. O jovem do evangelho era um desses, bem sucedido, bem colocado, uma pessoa de bem e de… “bens”. Materialmente falando, não carecia de nada. No entanto, sentia que àquela vida, sossegada e segura, talvez, invejada por todos, faltava alguma coisa. Tinha entendido que a sorte grande, o ter nascido num berço de ouro, não era para sempre. O dinheiro não comprava a vida eterna. Queria ter a garantia do bom e do melhor também no outro mundo. Acostumado a negociar, pensava que a vida eterna também tivesse o seu preço. Estava disposto a pagar, bastava que Jesus lhe falasse o quanto.

Estava enganado. A vida eterna não tem preço, porque não se compra e nem se vende. É um dom do Pai para os seus filhos, uma herança que o Pai entrega aos seus filhos com todo o coração e com toda a alegria. Ou, se preferem, um “direito” para os verdadeiros filhos e filhas dele, ou seja, para aqueles e aquelas que, nas suas vidas, tornaram reconhecíveis os traços amorosos do Pai de todos e, em especial, dos pobres e pequenos. De fato, quem sabe amar e servir, quem sabe fazer d a sua vida um dom para quem o encontrar se assemelha a Deus, já participa da vida plena, da vida divina, porque Deus é amor doação, não é um conjunto de normas a serem observadas ou um mercador de felicidade. O evangelista Marcos faz questão de salientar que Jesus olhou para aquele jovem “com amor” e lhe fez a única proposta possível para libertá-lo da prisão do egoísmo no qual os bens materiais o mantinham fechado. O chamou para segui-lo, leve e liberto, pronto para amar os não amados, os excluídos, os esquecidos, os sem nada. O jovem, porém, preferiu a felicidade triste dos bens visíveis ao desafio da felicidade plena garantida pelo Deus da fé e da esperança, amor sem limites, capaz de oferecer o único tesouro que os ladrões não podem roubar e a traça não consume.

Os jovens de hoje continuam sonhadores e cheios de projetos para o futuro, como sempre. Não podem desistir de planejar um mundo mais justo e fraterno, um mundo de paz, de vida feliz e segura, de saúde, água e ar limpos, um planeta verde e azul, sempre fascinante e encantador. É nessas questões que começa a missão e a responsabilidade dos mais velhos. Quantos adultos – pais e avôs – gastaram as suas vidas para juntar casas, campos, negócios, contas nos bancos e, assim, ensinaram aos seus f ilhos e netos que a vida verdadeira está somente aqui e que o resto, fé e utopia, é crendice e perda de tempo. A evangelização da juventude começa com a vivência do Evangelho por parte dos seus pais, pela educação e a experiência prática da solidariedade e da partilha. Quem não quer deixar nada e quer agarrar tudo, no final ficará de mãos e coração vazios. Não terá amado nem a Deus e nem ao próximo. Terá as feições do “príncipe deste mundo” e não do Pai de Jesus, aquele Pai que acolhe sempre de volta o filho errado e arrependido. Precisamos deixar o que vale menos para encontrar o que vale muito mais. A jovem Maria acreditou, ficou “cheia de graça”, foi feliz e bendita.

Ouça bem os sinos

Uma moça queria casar a todo e qualquer custo. Arranjou um namorado que não convinha e seus pais não queriam o relacionamento. A moça foi conversar com o padre, seu orientador:

– Padre, eu tenho que casar, arranjei um namorado, mas os meus pais não querem o namoro, mas eu tenho que casar, estou convencida que vai dar tudo certo. Ela insistiu tanto que o padre não sabia mais o que dizer. Naquele momento, os sinos da igreja tocaram e a moça logo falou:

– O senhor está ouvindo, até os sinos estão dizendo: “Tem que casar, tem que casar”… Perante tantas “certezas”, o que mais podia fazer o pobre padre? A moça foi embora e casou com o rapaz. Depois de um ano, ela voltou a procurar o mesmo padre, na mesma igreja, e desabafou:

– Padre, não aguento mais o meu casamento; meu marido é uma desgraça, estou desesperada, o que eu faço? Naquele momento, os sinos da igreja tocaram novamente e o padre falou:

– Agora quem vai interpretar as badaladas dos sinos sou eu; ouça bem o que eles estão dizendo: “Tem que aguentar, tem que aguentar”…

O assunto do evangelho de Marcos, deste domingo, é o questionamento dos fariseus sobre a licitude do divórcio. Uma questão muito discutida que lhes dava a possibilidade de pegar Jesus em contradição com a “Lei”. Não buscavam um ensinamento, mas algum deslize por parte dele. No entanto, na sua resposta, Jesus não discute a Lei de Moisés e a permissão dada por ele de se divorciar. Jesus vai direto ao “começo” e apresenta o primeiro casal da criação como o modelo a ser seguido. O homem e a mulher, com todas as suas diversidades, formam uma só carne. “O que Deus uniu, o homem não separe”. Signif ica que esse era – e continua sendo – o projeto de Deus e ele mesmo é quem garante da união dos dois. A comunhão entre eles é um dom do Pai aos seus filhos e filhas e não somente fruto da vontade deles. As características de unicidade e fidelidade do matrimônio são chamadas a ser o sinal humano da unidade e da fidelidade do próprio Deus. Com efeito, nele não há divisão ou desvio das suas palavras e promessas. O Deus que Jesus veio nos fazer conhecer continua sendo o “Deus fiel” do Antigo Testamento, capaz de manter as suas promessas e de enviar e entregar o seu próprio Filho para resgatar a humanidade do pecado e da morte. Deus nunca deixou de amar o seu povo, também se este o trocou com os ídolos estrangeiros. Isso por que Deus ama até o fim (Jo 13,1)! Além disso, Jesus nos fez conhecer um Deus “unitrino”; ou seja, um Deus &uacu te;nico, mas também comunhão perfeita de amor entre três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

A grande questão é saber se é possível para nós, pobres seres humanos, limitados e pecadores, realizar uma união e uma fidelidade tão grandes que, ao menos de longe, sejam um sinal da comunhão e do amor perfeito e fiel do próprio Deus. São Paulo, na carta aos Efésios, falando do amor matrimonial, dos maridos que devem amar as suas esposas como Cristo amou a Igreja, no final diz que “este mistério é grande” (Ef 5,32).

Atualizando a nossa conversa para os dias de hoje, existem muitas opiniões a respeito do matrimônio. Os cristãos fazem parte da sociedade moderna com todas as suas conquistas e contradições, mas devem saber olhar e acreditar além daquilo que é considerado o pensamento comum, da moda ou da maioria. Muito se fala da família e pouco do casal como fundamento dela. A tão badalada “crise” da família ou dos seus modelos, começa lá onde a família se alicerça: no casal, que decide iniciar a aventura do amor conjugal. Papa Francisco já disse isso muitas vezes e de muitas maneiras: se, desde o início, o casal n&a tilde;o acredita na força duradoura do amor, é sinal que não é amor verdadeiro. Se o casal não coloca na conta do seu matrimônio a doação e a gratuidade reciproca, o perdão e a fidelidade à palavra dada, as chances que a união dê certo ficam muito reduzidas. À primeira dificuldade, ao primeiro desencanto, tudo desmorona. Os sinos badalando, podem dizer: “Tem que aguentar”. Mas podem também lembrar o amor fiel e dizer: “Acredite”, “Acredite”, porque nada é impossível para Deus.