Dom Pedro Conti

Pais e filhos jovens

No evangelho de Lucas, deste domingo, encontraremos a maravilhosa parábola do pai misericordioso e dos dois filhos. O mais novo é um rebelde arrependido, o outro um obediente insatisfeito; ambos são muito amados pelo pai. Por coincidência, neste final de semana, acontecerá, em Macapá, um “simpósio” da Pastoral Familiar que terá como assunto a família com especial atenção aos filhos jovens. Pelas informações, parece que já houve só outro simpósio 30 anos atrás. Mas já aconteceram vários congressos e seminários. Família e juventude é um assunto que nos interessa. Sem dúvida a família, no sentido comum da palavra, começa com o casal. Um homem e uma mulher, por amor, doam-se um ao outro e criam algo que não existia antes: uma família nova. Os filhos são frutos do amor do ca sal, mas também são dom de Deus. Cada filho, ou filha, é uma novidade, porque ninguém é cópia de ninguém. Para cada filho, o casal e, eventualmente, os irmãos que vieram antes, são desafiado a encontrar os caminhos da acolhida, da convivência e, sobretudo, da educação.
No meio de tantas criaturas, o ser humano é aquele que mais demora para crescer e aprender, mas, ao final, cada um de nós é uma obra única, com sua personalidade, potencialidade e criatividade. Também quando os anos passam e parece que já tenhamos experimentado de tudo na vida, nunca paramos de crescer e aprender. Todos somos sempre seres em construção, capazes de nos surpreender a nós mesmos. No bem e também no mal, infelizmente. Contudo uma idade particularmente marcante da vida de toda pessoa é o tempo da juventude. Nesses anos, a maioria de nós, toma as maiores e mais importantes decisões da vida: a profissão, o matrimônio, o grupo de amigos, a prática da fé. Assim, os casais que criaram os seus filhos, os veem sair de casa, às vezes, com tristezas. Em geral, espera-se, com orgulho. Agora irão caminhar sozinhos, adultos, livres, autô nomos. Cada um com seus erros e acertos.
Por ser um tempo de grandes decisões, a relação entre pais e filhos, especialmente no tempo da juventude, não é um assunto fácil. Muitos pais são tentados a desistir, a se “desligar” dos filhos jovens, quando ainda eles não se afastaram da família. Parece que hoje a distância entre as gerações cresça cada vez mais: na linguagem, na tecnologia, nos sonhos e projetos. Até na fé. Na esteira do Sínodo sobre a Juventude, acontecido em outubro de 2018, o Simpósio que iremos realizar, quis enfrentar essas questões. Porque, apesar de tudo, do distanciamento geracional e dos conflitos, a família ainda é uma referência para os jovens. Não dá para generalizar, mas os jovens nunca deixam de reparar o que os adultos dizem e fazem. Às vezes para criticar, outras, para ou admirar ou agradar. Sempre, acredito, conscientemente ou não, para se confrontar. Muitos outros “modelos” são apresentados aos jovens pela sociedade consumista e competitiva. Os pais podem lhes parecer pobres demais, humildes, atrasados, ou autoritários, carrascos, carcereiros e assim por adiante, mas sempre serão os pais deles. Pais que não se pode trocar e dos quais herdamos não somente bens materiais, se tiverem, mas também muito da nossa personalidade. No Simpósio refletiremos sobre tudo isso, apontando desafios e esperanças. A parábola do Pai misericordioso será uma grande luz. Primeiro porque muitas famílias convivem com filhos e filhas que parecem estranhos, diferentes, desligados. No entanto eles cobram e aproveitam de tudo o que os pais podem lhes oferecer.
Os adultos acham que estão mais fora da família do que dentro. Em outros casos, têm filhos e filhas que continuam agarrados, obedientes, serviçais. Nunca brigam, mas talvez estejam bem acomodados, mais preocupados em agradar que em buscar os seus próprios caminhos. Filhos perfeitos talvez não existam, assim como não existem pais perfeitos. A todos o Pai misericordioso da parábola lembra que o amor, quando é sincero, faz acontecer milagres. Filhos desgarrados voltam, irmãos brigados se perdoam, casais e famílias desunidas experimentam a alegria do perdão e da paz. Rezemos para que nunca falte a festa do amor nas nossas famílias!

Um grão de arroz

Os plantadores de arroz sabem. A cada grão semeado na terra nascem 24 plantinhas. Por sua vez elas se tornarão 24 espigas. 24 espigas de arroz vão produzir cerca de 300 grãos. Na hora da colheita serão 7200 grãos. Se plantados, na colheita seguinte serão 58.140.000 grãos de arroz. E assim por adiante. Quantos quilos? Quantas toneladas de arroz serão produzidas? Quando nos interessa, sabemos fazer bem todos os cálculos. Conhecendo o investimento, já imaginamos o lucro. Qualquer administrador entende muito bem destas coisas. Errar significa prejuízo certo.

No evangelho de Lucas deste domingo, Jesus fala de muitas coisas. Fala de administradores honestos e prudentes e outros… aproveitadores. Lembra empregados atentos e zelosos como também de funcionários dorminhocos e preguiçosos. Neste caso o ladrão arromba facilmente a casa. Têm portas que se abrem imediatamente e outras não. Tem uma mesa o nde os empregados sentarão e o dono os servirá. O trecho inicia com o conselho de juntar tesouros no céu e encerra com a cobrança de mais frutos por parte de quem muito recebeu. Uma página evangélica cheia de atividades e alertas. Com certeza, um convite a agir com presteza e atenção obedecendo de maneira inteligente e generosa à vontade do senhor da casa.

Parece de ver a sociedade de hoje com suas visíveis contradições. Tem pessoas muito atarefadas que quase não dormem, executivos atrás de negócios dia e noite. Para alguns não bastam as 24 horas de cada dia. Se parar, perdem dinheiro e prestígio. Alguns são honestos, outros não sabem mais o que inventar para enga nar gente. Será que são felizes assim? Do lado oposto, têm muitos irmãos e irmãs que também perambulam o tempo todo, mas atrás de serviço para sobreviver. Cansam de encontrar portas fechadas e corações indiferentes; vivem decepcionados pelas promessas vazias. Esperam um amanhã que nunca chega. Milhões de seres humanos migram para outros países, mas só têm muros, campos de refugiados e prisões para acolhê-los. Não falarei dos ladrões. Os piores nem precisam mais arrombar a porta porque já tem as chaves da casa. Infelizmente, mandam e desmandam. Fazemos parte de uma humanidade sempre em movimento, um vaivém que nunca acaba. Quando alguns saem de cena, outros logo vêm atrás, no mesmo trilho. Fica a pergunta: para onde vai esta nossa sociedade?

Apesar de tudo contínuo otimista, não só porque acredito em Deus, mas também porque confio no ser humano criado a imagem dele. Por que não seguimos o conselho de Jesus? O importante é ficar alerta, manter o foco, e não nos deixar encantar ou entorpecer pelas mil distrações que nos são oferecidas. O projeto do Reino de Deus, que Jesus veio iniciar, é de longo prazo. Precisamos aprender a agir corretamente e a esperar vigilantes. Queremos ver resultados imediatos, grandes coisas, talvez algo mais fácil e cômodo. No entanto, mudar o coração e os pensamentos nossos e dos nossos irmãos não é nada fácil. O alerta não vale só para aqueles que correm atrás do lucro e do sucesso. Vale também para as atividades da Igreja.

Muitas vezes trabalhamos mais para a afirmação pessoal ou do nosso grupo que, de fato, para o Reino de Deus, para os pobres, em prol da justiça e da fraternidade. Todo dia rezamos: “venha a nós o vosso Reino”, mas parece que acreditamos pouco nos pequenos passos ou nos “processos” que só acontecem com o tempo na vida das pessoas e não simplesmente num lugar limitado. Isso exige paciência e confiança. Estamos sempre “ligados”, atrás de informações, novidades e emoções. Talvez cochilemos na hora do sermão ou da oração pessoal. Dificilmente o fazemos ouvindo música ou vidrados nas telas do smartphone, do computador ou da TV. Pode servir a lição do grão de arroz. Todos recebemos ao menos um para plantar no chão da nossa vida. Ele cresce e se multiplica também quando descansamos. Tem força própria. Como a nossa esperança. O mais importante é ficar atentos para que não sejamos roubados dela.

As três tintas

O velho monge era o responsável do grupo de frades que copiavam, à mão, os escritos antigos. Era um trabalho cansativo, mas, no final, cada folha era uma verdadeira obra de arte. Certa vez, um jornalista quis conhecer mais segredos sobre esta arte secular. O monge explicou:

– Veja, na vida têm três cores de tintas para escrever. Uma é preta, outra vermelha e a outra é branca. Tudo aquilo que é escrito com a tinta preta, com o passar do tempo, desaparece, como a fumaça. Talvez fique alguns séculos no fundo de alguma biblioteca, mas está destinado a acabar. Aquilo que é escrito com a tinta vermelha – que é a cor dos nossos sacrifícios, dos nossos sofrimentos ou das provações do nosso amor – este está destinado a ficar até o dia do julgamento final. Será a prova decisiva da nossa fé, a passagem para a nossa salvação. Tudo aquilo que é escrito com a tinta branca…
– Tinta branca? – o interrompeu o jornalista – mas a tinta branca é invisível!

– Justamente! – retomou tranquilamente o velho – é a tinta da humildade, da pobreza, da infância espiritual, da pureza, da graça…O que for escrito com a tinta branca, somente pode ser lido no Reino dos Céus. Este dura para toda a eternidade.

Lembramos a lição do “Pai nosso” de domingo passado. Assim devemos rezar: “Dacute;-nos a cada dia o pão de que precisamos”. Jesus nos convida a confiar na bondade de Deus que quer sempre o bem dos seus filhos. Não significa esperar que o necessário caia do céu, mas acreditar que Deus é um Pai muito bom que quer que os seus filhos aprendam a praticar a solidariedade e a partilha como irmãos. O contrário, evidentemente, é a ganância, o acúmulo de bens. Isso revela a falta de fé em Deus Pai, mas, sobretudo, a incapacidade de pensar nos outros. O “meu” sem limites acaba de vez com o “nosso”.
A parábola de Jesus do homem rico, feliz porque tinha juntado uma grande colheita e nem mais sabia onde co locá-la, é bem conhecida. O final também. Ele pensou e agiu como um louco, achando-se dono até da própria vida, só porque tinha muitos bens. Grande equívoco, no qual, se não prestarmos atenção, todos nós podemos cair. Estamos sempre ocupados em afastar o pensamento da morte. De fato, a consciência realista do fim, igual para todos, nos ajudaria a administrar de maneira diferente o que temos, seja os bens materiais, seja o tempo desconhecido da nossa vida. Todos sabemos o que nos aguarda, mas continuamos a juntar coisas como se pudéssemos levá-las conosco um dia.

Se, no mundo, tivesse só um ou outro “louco”, paciência, mas o pior é que todos, e de muitas maneiras, somos conduzidos num círculo vicioso de ganho e de consumo. Pensamos: o que adianta ganhar, se depois não gastamos? O dinheiro deve circular. Sem o consumo vai faltar o trabalho, sem trabalho vão faltar os salários, sem os salários ninguém compra mais nada. Não tem saída. No entanto vozes de alerta vem de todo lado. Precisamos pensar numa “sobriedade feliz”, ou seja, buscar, antes de tudo, o necessário e uma vida digna para todos e não o consumo desenfreado de alguns que exclui milhões de seres humanos do “pão de cada dia”. O planeta terra não tem reservas infinitas. O paradoxo é que nós também precisamos construir novos armazéns, mas não para oferecer comida a quem não tem, servirão para esconder o lixo e as toneladas de materiais que descartamos. Não é o número de habit antes que ameaça o planeta é a mal distribuição dos bens que a natureza oferece de graça para todos. Se milhões de pessoas, incluindo muitas crianças, estão saindo dos seus países atrás do sonho de uma vida melhor, é sinal que muitas coisas não estão funcionando bem na nossa sociedade. Se os poucos que têm um alto padrão de vida têm medo dos pobres que passam mal e trancam portas e corações, o futuro da humanidade é sombrio. Muitos dizem que uma nova página de história deve ser escrita. Com a tinta de qual cor? Tenho medo que os grandes avanços tecnológicos, tão badalados, estejam sendo escrito só com a tinta preta. Não mudarão muita coisa. Precisamos escrever mais páginas com o vermelho do amor e da solidariedade. Muito mais devemos aprender a escrever com o branco da humildade e da paz.

Depois do assalto

O professor Mateus estava voltando para casa. Na esquina, quando faltavam poucos metros, tomou um susto. Um ladrão lhe apontou o revólver e lhe intimou de entregar a carteira e a bolsa. Tremendo de medo, lhe deu tudo. Ainda com o coração fora do controle, conseguiu chegar em casa, foi direto para o seu quarto e escreveu esta oração: “Senhor, hoje fui roubado. Sinto que devo te agradecer por muitas coisas. Antes de mais nada, te agradeço por não ter sido assaltado antes. Numa sociedade como a nossa, isto é quase um milagre. Depois quero te agradecer porque na carteira tinha pouco dinheiro e na velha bolsa somente papeis. Quero te agradecer, Senhor, porque a minha esposa e a minha filha não estavam comigo. Teriam se assustado muito e também pelo fato que agora não estão chorando por mim. Enfim, Senhor, quero te agradecer porque eu fui o assaltado e não o ladrão.

Um exemplo de oração espontânea, num momento difícil. Não foi uma oração decorada, mas algo que veio de um coração agradecido. Nem sempre e nem todos encontramos as palavras para rezar. Na incerteza, também os apóstolos pediram a Jesus de ensinar-lhes a rezar. É o que encontramos no evangelho de Lucas deste domingo: a oração do Pai Nosso e algumas orientações de como e porque devemos rezar.

A primeira atitude do cristão vem do início da própria oração. Deus é chamado de Pai e é pai de todos, é o “nosso Pai”, nunca somente o meu ou o teu. Sempre o nosso, porque um Deus Pai ama todos os seus filhos e estes, que somos nós, devemos nos reconhecer e tratar como irmãos amados. Apesar de cada um de nós termos as nossas dificuldades e o nossos pedidos pessoais, nunca devemos esquecer de rezar e interceder juntos, em comunhão. Com efeito, também o restante da oração é um conjunto de pedidos comuns a todos: o pão, o perdão e a capacidade de perdoar, a libertação do fascínio do mal. Somente assim virá o Reino da paz, da justiça e do amor. Teimamos a usar o “eu” em vários cantos e orações, mas, prestando atenção, não foi isso que Jesus ensinou. Ape sar das boas intenções, pedidos “individualistas” demais podem dar a impressão de sermos os únicos sofredores, os únicos adoradores, os únicos apaixonados por Jesus. Ao contrário, ao usar o “nós” aprendemos novamente a solidariedade, também nos pecados, muitos dos quais são claramente “sociais” porque fruto da nossa indiferença e descaso.

O restante da página do evangelho deste domingo parece um convite a pedir com insistência até chegar à ousadia inoportuna do vizinho atrás de pão para um amigo chegado de noite sem aviso. Claro que a nossa oração não pode ser somente feita de pedidos, precisamos também agradecer e louvar, mas Jesus, neste trecho, ensina mesmo a pedir. Por quê? Porque quando pedimos reconhecemos a nossa pobreza. Não devemos pedir por causa da nossa indolência ou acomodação querendo que Deus faça o que, na realidade cabe a nós. Não é por acaso que, antes da distribuição milagrosa dos pães e dos peixes, Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Lc 9,13). A capacidade de repartir sempre faz acontecer o extraordinário. Mais ainda. Quando pedimos a Deus estamos declarando a nossa confiança nele. Temos certeza q ue nos dará o melhor para nós, justamente como qualquer pai deste mundo deveria fazer com os seus filhos. Também o estamos louvando porque o chamamos com o melhor nome que Deus pode ter: Pai. Os demais títulos ou qualificações de Deus ressoam como enfeites face à sua bondosa, providente e universal paternidade. Por fim Jesus nos ensina a pedir mais um “dom” que o Pai será bem feliz de dar: o Espírito Santo. Com efeito, este é o último dom de Jesus, aos seus amigos, na cruz e ao anoitecer do dia de Páscoa, segundo João, ou ainda no Pentecostes, segundo Lucas. Por sua vez o Espírito Santo, segundo Paulo, ajuda os fiéis a proclamar que “Jesus é o Senhor” (1Cor 12,3b), a clamar a Deus como “Abbá, Pai!” (Rm 8,15) e, com gemidos inexprimíveis, vem em socorro à nossa fraqueza porque nem sabemos o que pedir (Rm 8,26) .

Provérbio chinês

“Quando os sabres estão enferrujados e as pás luzidias, as prisões vazias e os celeiros cheios, os degraus do templo gastos pelos passos dos fiéis…
Quando as cortes estão cobertas de mato, os médicos andam a pé, os padeiros andam a cavalo, e quando há muitas crianças, o Império é bem governado” (proverbio chinês).

A sabedoria do povo chinês é milenar e sempre podemos refletir sobre alguma coisa. Também fique bem claro que não estou criticando um ou outro governo. Convido a ler e reler algumas vezes o provérbio e a se perguntar se é isso que gostaríamos ou não. Armas enferrujadas e trabalho para todos; prisões e tribunais vazios; povo com saúde e fartura de alimentos. A paz, enfim, com muitas crianças brincando felizes. Sonho da sabedoria do povo simples ou projeto de uma outra sociedade? Cada um responda como melhor pensa. Cabe a mim explicar o que tem a ver tudo isso com a página do evangelho de Lucas que encontramos neste domingo.

Se não tivéssemos informações por outros trechos evangélicos, estaríamos simplesmente num povoado anônimo, na casa de duas mulheres, que acolhem Jesus: Marta e Maria. Logo fica evidente que esta acolhida é diferente para cada uma delas. Marta está atarefada com “muitas coisas” e, facilmente, as podemos imaginar porque sabemos o que acontece quando temos algum hospede em casa. Maria, ao contrário, está sentada aos pés de Jesus escutando as palavras do mestre. Muito realista, Lucas nos apresenta a reclamação de Marta e o seu pedido para que Jesus ordene a Maria a ajudá-la nos trabalhos. Mas Jesus aproveita para nos dar mais uma lição. Vivemos no meio de tantas coisas para fazer, muitos compromissos e responsabilidades. Jesus não diz que tudo isso não vale nada, mas que, de todas, “uma só coisa é necessária” e é a parte melhor, aquela que Maria escolheu: ser discípula, atenta para aprender com o mestre Jesus.

Sempre haverá quem queira contrapor Marta e Maria. Isso porque cada um de nós tem as suas diferenças e preferências. Os mais ativos se reconhecem em Marta e acham acomodados e preguiçosos os demais. Ao contrário, os mais reflexivos julgam que os outros erram porque são precipitados e incapazes de planejar. Em ambos os casos tudo serve para polemizar e, quem sabe, defender a própria posição. Essa não foi a preocupação de Jesus no trecho de Lucas. Simplesmente nos é oferecida uma fonte onde atingir para motivar e escolher o nosso agir.
Todo ser humano é inteligente; não somos movidos só pelos instintos. Com mais ou menos consciência, todos temos razões que explicam o nosso agir. Por exemplo: a fome e a sede levam qualquer pessoa a buscar comida e bebida. O pavor de ficar sem alimentos nos faz construir as geladeiras ou os celeiros. Quem quer ser o dono do mundo, da vida e da morte das pessoas, constrói armas cada vez mais poderosas. A insaciabilidade da ganância organiza a sociedade para o consumo, sem levar em conta o desperdício, o lixo acumulado e o esgotamento do planeta. O medo dos assaltos nos faz transformar as nossas casas em pequenas fortalezas. Todos achamos que o objetivo da nossa vida é o maior e o mais importante, mas, no fundo, sabemos que, muitas vezes, além de ser extremamente egoísta é também bem mesquinho. Para muitos, a única coisa que interessa na vida é ele ou ela mesmo, o seu bem-estar, o seu sucesso ou o seu poder. Jesus já sabia dos projetos dos grandes e dos poderosos, mas disse que entre os seus discípulos não devia ser assim (Lc 22,26). Ele quer nos ajudar a encontrar uma meta que valha a pena mesmo, que não seja mero desperdício de inteligência e capacidades. Podemos chamar esse objetivo de paz universal, de amor entre as pessoas, de justiça e bondade, e assim por adiante, mas para que não sejam só palavras bonitas, precisamos de uma referência, de alguém que nos amou até o fim, de alguém que não foi um homem qualquer, mas o Filho de Deus. Alguém no qual podemos acreditar sem medo. Se não queremos confundir e errar a meta da nossa vida, precisamos sentar todos aos pés de Jesus e aprender com ele.

O diamante arranhado

Um jovem príncipe do norte da Índia se apaixona, certo dia, por uma bela princesa do país vizinho. O casamento é decidido. Como sinal e penhor de amor eterno, ele lhe dá o mais belo diamante dos seus tesouros, a ser engastado no centro da preciosa coroa que ele pretende lhe oferecer na manhã de núpcias. Ele confia o diamante ao mestre dos joalheiros. Mas este, num instante de distração, deixa a ferramenta deslizar num momento delicado do engaste. Isso produz uma estria em toda a extensão da maravilhosa joia. Desespera-se o artista. E, mais do que ele, o príncipe. A notícia se espalha. Um velho artesão se apresenta ao palácio e diz: “Príncipe, soube da sua tristeza. Confiai-me por uma noite vosso diamante”. Ao amanhecer, o artesão leva ao príncipe maravilhado a mais bela joia já vista. Com habilidade e paciência, o talentoso lapidad or tinha feito da profunda ranhura o próprio talo de uma esplendida rosa desabrochada, que agora brilha deslumbrante.

O evangelho de Lucas deste domingo nos apresenta a ida em missão e a volta dela de “outros” setenta e dois discípulos. “Outros” porque Jesus já tinha enviado antes os doze (Lc 9). É fácil perceber que “12” e “72” (12×6) são números simbólicos. É o começo da nova Comunidade de Jesus; uma comunidade que é enviada em missão e cresce. Esta devia ser a experiência do evangelista e das suas comunidades, quando escreveu o evangelho. Algumas palavras chamam atenção. O campo da missão é muito grande (a messe!), será que os operários darão conta? O tamanho da missão, o chamado dos trabalhadores e a resposta deles, tudo é dom de Deus, o verdadeiro “dono” do “campo” (a história da humanidade). Ele sabe o que precisa e de quem precisa. O que cabe a nó s é rezar, pedir, para que não faltem cristãos, discípulos missionários do Reino. Ou seja: cada um de nós deve pedir sempre que o Divino Espírito Santo, o Espírito da missão, nos torne testemunha viva do evangelho. O Senhor da messe chamará alguns, do meio do seu povo, para servirem como padres, religiosos e religiosas, mas todo o Povo de Deus, todo batizado e batizada é, por si mesmo, enviado.

A Boa Notícia do Reino de Deus que chegou, pode ser acolhida ou não. Por ser o “reino” da liberdade e da gratuidade, por ser o reino do amor, nunca poderá ser uma obrigação ou uma imposição. É um dom oferecido e só pode ser acolhido livremente, com júbilo e gratidão. O Reino nunca será propriedade exclusiva ou monopólio de alguém. Terá que ser sempre anunciado e oferecido a todos e, de maneira especial, àqueles que ainda não o encontraram, “pobres” porque ainda não sabem quanto Deus Pai os ama.

Nos últimos versículos desse trecho evangélico, a missão é apresentada com resultados extraordinários. Os “missionários” voltam felizes e orgulhosos. Parece que tudo aconteceu rapidamente e uma vez por todas. Muitas vezes os Evangelhos antecipam o resultado “final”, iniciado com a vitória de Jesus ressuscitado sobre o mal e a morte. “Satanás” já cai do céu. O deus da mentira foi derrotado e deixa o lugar ao Deus Verdade e Amor. Mas nós ainda o colocamos lá, adorando-o em todas as formas dos ídolos deste mundo que nos fascinam, atraem e confundem. A vitória começou, mas deve ser levada ao comprimento com a nossa firme e fiel colaboração. Precisamos que o Reino comece em nossa vida e em nossa casa. Os nomes dos “santos” (os batizados) antes de estar no livro das paróquias estão escrito s no céu, no coração do Pai. Nós gostaríamos que tudo acontecesse de uma vez só, que nunca mais virássemos as costas ao amor do Senhor, que nunca mais o trocássemos com as falsas imagens dele fruto das nossas manias de grandeza e poder. Mas o Reino é mais um canteiro de obras que um monumento a ser admirado. É como a pérola preciosa que quem a encontra vende tudo (Mt 13,45-46)), mas nós a arranhamos e precisa de muita, muita, paciência para transformar em beleza o que nós deturpamos. Somos todos artesãos do Reino.

Por que corre?

O Mestre olhava da sua janela para a praça do mercado e viu um dos seus alunos, um tal de Haikel, que cami nhava rapidamente, todo atarefado. Chamou-o e o convidou para conversar com ele.
– Haikel, você viu o céu esta manhã?
– Não, Mestre.
– E a rua, Haikel? A rua, você a viu hoje pela manhã?
– Sim, Mestre.
– E a está vendo ainda?
– Sim, Mestre, a vejo ainda.
– Me diga o que está vendo.
– Pessoas, cavalos, carroças, mercadores que se agitam, camponeses que vão e vêm, eis o que estou vendo.
– Haikel, Haikel – o repreendeu amorosamente o Mestre – daqui a cinquenta anos, daqui a duas ve zes cinquenta anos, ainda haverá uma rua como esta e outro mercado semelhante a este. Outras carroças trarão outros mercadores para comprar e vender outros cavalos. Mas eu não estarei mais aqui, você não estará mais aqui. Então, eu lhe pergunto, Haikel: por que corre tanto se não tem tempo nem de olhar para o céu?

Com este domingo, retomamos o tempo litúrgico chamado “Comum”. Iremos até o Tempo de Ad vento. Também nos acompanhará o evangelho de Lucas. Jesus, antes de tomar “a firme decisão de partir para Jerusalém” (Lc 9,51), onde enfrentará os adversários e sofrerá a paixão e a morte, faz duas perguntas aos discípulos. Primeiro quer saber quem o povo diz que ele é e, depois de ter ouvido as respostas, diz: – E vós, quem dizeis que eu sou? A resposta de Pedro é acertada: “O Cristo de Deus”. Só que o “ungido” (Cristo) da cabeça de Pedro, talvez, não era bem o que, de fato, Jesus era. Por isso, ele começa a falar de sofrimentos, da rejeição, da morte e da ressurreição. Tudo ainda era muito novo e difícil de ser compreendido pelos apóstolos. Só para eles? Ou, depois de tantos anos, também para nós hoje? De fato, reconhecer quem é Jesus, de verdade, é se mpre algo desafiador. Para todos, tem uma primeira vez na qual ouvimos falar dele. De muitas formas e por pessoas diferentes. Alguns podem falar bem e mostrar entusiasmo com Jesus, outros podem nos dizer, simplesmente, que é bobagem, lorota de poucos iludidos, coisa de tempos que já se foram. Alguns parecem honestos e sinceros, outros nos dão a impressão de usar o nome dele só para melhorar de vida e conseguir os seus interesses.

A pessoa de Jesus continua a dar um sentido à vida de muitos e a ser uma provocação para tod os aqueles e aquelas que não se satisfazem com respostas superficiais ou, simplesmente, seguem as modas ou o que consideram o pensamento da maioria. Jesus nunca se preocupou com isso; ele continua a querer saber quem ele é para todos e, sobretudo, para cada um. Ele não faz isso para nos incomodar, mas, ao contrário, para nos ajudar a não perder o horizonte da vida. Com efeito, o questionamento sobre Jesus vai junto com as demais grandes perguntas da vida: quem somos? de onde viemos? para onde vamos? Qual o sentido da vida, da morte, do amar e do sofrer? Quem, afinal, conhece o bem e o mal? Existe um caminho certo para a felicidade? Nenhum ser humano, que não queira deixar passar a vida à sua frente, escapa destas questões. A ninguém basta saber se Deus existe ou não, ou se aquieta com alguma resposta já pronta. O desafio é encontrar a nossa resposta, pessoal, única como único &e acute; cada um de nós, e irrepetível é o caminho que trilhamos na nossa existência, no tempo desta vida que passa. No fundo, “a cruz” que cada um carrega vem da incerteza e das limitações de sermos criaturas. Jesus não veio para impor doutrinas, leis ou normas. Simplesmente veio para nos dizer para não termos medo, que “o desconhecido” está ao nosso alcance e que Deus é Amor, é um Pai bondoso e amorosos, que a vida é um dom que deve ser vivido para amar e sermos amados, para sermos felizes e fazermos felizes os irmãos, que encontramos pelos caminhos da existência. O grande sentido da vida não está no sucesso individual, mas no bem que sabemos semear e cultivar. Já acontecia antes de Jesus, mas com ele, de uma maneira única e definitiva, o céu se tornou muito mais perto. Com ele, o horizonte da nossa vida vai além da s estrelas e das galáxias, alcança a eternidade, alcança Deus. Vale a pena parar, levantar mais os nossos olhos. Das ruas para os céus. Só para conhecer e amar mais o Nosso Pai.

De onde começa a oração?

O mestre reuniu os seus discípulos e lhes perguntou:

– De onde começa a oração? O primeiro discípulo respondeu:

– Começa pela necessidade. O segundo disse:

– Começa pela alegria do coração. O terceiro afirmou:

– Nasce do silêncio. Quando tudo se cala, Deus pode falar e eu posso escutar. O mestre respondeu:

– Todos vocês responderam bem. Sempre temos muitos motivos para começar a rezar. Contudo tem um ponto de partida que antecipa todos aqueles que vocês indicaram. A oração começa em Deus mesmo. É ele que a inicia em nós.

Chegamos ao Domingo de Pentecostes e concluímos o Tempo Pascal. Todas as leituras da Liturgia da Palavra nos falam do Espírito Santo, último dom de Jesus aos seus amigos. O vento e o fogo são símbolos bíblicos da liberdade e da força do Espírito. Servem para nos lembrar que a iniciativa é sempre de Deus, também se ele pede a nossa disponibilidade para a missão e a alimenta com sua força, coragem e entusiasmo. O fogo aquece e ilumina. É luz na escuridão, é calor para os corações frios e desanimados. Por isso, a presença do Divino Espírito santo, antes de ser a “energia”, que anima a Igreja toda e para sempre, deve ser a experiência que cada batizado e crismado faz em si mesmo, na sua própria vida espiritual, no silêncio do seu interior.

Nós todos somos discípulos missionários. Discípulos, porque sempre devemos aprender com Jesus. O Espírito Santo vai nos lembrar e ajudar a entender o que o único Mestre ensinou com a vida e a palavra. Missionários, pelo bem ou pelo mal. Pelo bem quando, apesar das nossas fraquezas e pecados, procuramos vivenciar a nossa fé, praticando o bem e colocando a serviço dos irmãos os dons recebidos pelo Espírito Santo. Pelo mal, infelizmente, quando desistimos, guardamos para nós ou jogamos fora a pérola mais preciosa que deveríamos saber valorizar. Digamos que, neste caso, seríamos missionários ao contrário: freamos, esfriamos, espalhamos o desânimo e a inutilidade do evangelho. Melhor ser um missionário fraco e capenga, mas que ainda caminha, que alguém que fala mal de Jesus e da Igreja ou escandaliza com a sua indiferença.

Para um cristão que quer estar à altura da sua vocação e missão, a oração, a meditação da Palavra de Deus, as Missas e a participação na Comunidade não são tempo perdido. São os momentos necessários para manterem vivas a fé, a esperança e a caridade. Numa sociedade onde somente vale o poder econômico e tudo se mede pelos bens materiais e pelo dinheiro, nós cristãos precisamos testemunhar que tudo o que somos e produzimos deve ter um sentido bom, deve construir paz e fraternidade, respeito e colaboração dos seres humanos entre si e com a natureza, entre os povos e o planeta. Numa cidade onde se vive e se respira tecnologia, onde os encontros e desencontros estão se tornado virtuais, onde as pessoas são reduzidas a endereços eletrônicos, precisamos resgatar a caridade como confraternizaç&ati lde;o, conversa frente à frente, abraços e capacidade de nos carregar nos ombros uns aos outros. O bom samaritano fez isso; ao assaltado e ferido não deixou a publicidade de algum remédio, a proposta de algum plano de saúde ou de algum empréstimo consignado. Todas coisas boas que o progresso inventou, mas que nos fazer correr o perigo de enxergar naqueles que estão caídos à beira das estradas “clientes” e não mais irmãos e irmãs, companheiro de caminhada, peregrinos, como todos, neste mundo. Antes de qualquer iniciativa ou atividade, acreditar na ação do Espírito Santo, significa escutar o que ele tem para nos lembrar de Jesus, nos entender como humildes seguidores e continuadores de uma missão que é de vida nova, de amor e de paz. De outra forma, qualquer missão será a “nossa” missão. Aquela do nosso grupo, da no ssa bandeira, da nossa doutrina, da nossa organização, mas não a única missão pela qual o Pai enviou o seu Filho e que o Espírito Santo deve continuar na história. Toda decisão grande e bonita é tomada no nosso interior. Toda coragem de mudar é iniciativa de Deus. É dom do Espírito Santo.

O incêndio

Tempos atrás, num vilarejo, aconteceu um incêndio. Um rico e um pobre, até aquele dia bons vizinhos, perderam tudo o que tinham. O pobre ficou em paz; ao contrário, o rico caiu no desespero.

– Amigo – disse ele ao outro – Como é possível que você esteja tão tranquilo depois que perdeu tudo no incêndio?

– A mim ficou o meu Deus – respondeu o pobre – o seu queimou junto com a casa!.

Chegamos ao Sexto Domingo do Tempo Pascal. Encontramos mais umas palavras de Jesus aos discípulos na Última Ceia do jeito que o evangelista João as quis nos transmitir. Mais do que palavras de despedidas, são palavras de “presença”. Parece uma contradição, mas não é, porque Jesus nunca nos deixou “órfãos” (Jo 14,18). Ele continua no meio de nós, vivo e ressuscitado, mas de uma forma diferente de quando andou pelos caminhos da Palestina. Somente com o olhar da fé podemos “ver o invisível”, com a gratuidade do amor experimentar a sua presença e com a luz da esperança enfrentar os desafios da construção do Reino.

A principal condição para que a presença de Jesus – e do Pai e do Espírito Santo – não seja uma mera imaginação é a de “guardar” a palavra do Senhor. Isto é tão importante que esta será sempre a missão do “Defensor”, o Espírito Santo. A fidelidade à palavra do Senhor é a primeira garantia da sua presença. Porque nós cristãos, a Comunidade, grande ou pequena, chamada Igreja, não seguimos um “Jesus” imaginário, adaptado às circunstâncias mais ou menos favoráveis, úteis ou vantajosas para nós. Não devemos nos deixar enganar por critérios meramente humanos de quantidade, sucesso, riquezas e poder. Que a Igreja “católica” seja “importante” ou não, que influencie toda a sociedade ou não, é bastan te relativo e nunca pode acontecer à custa do esquecimento ou negação de alguma palavra de Jesus. Vale desde o Papa até o último cristão, porque somente assim “o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23). Jesus disse que os cristãos devem ser “sal da terra e luz do mundo”. Não significa poder, dominação, controle ou algo semelhante, mas serviço amoroso e, sobretudo, consciência crítica dos valores inegociáveis da vida, da dignidade humana, da liberdade, da justiça e da paz. Qual paz?

Mais uma vez o próprio Jesus disse que a paz que ele ia deixar para os seus amigos, não tinha nada a ver com a paz que o mundo também promete. Desde sempre a humanidade fez guerras para organizar “a paz”, mas como resultado do silêncio do medo e da morte. São as duas formas mais antigas de calar quem pensa diferente dos sistemas dominantes. Aconteceu com Jesus. Hoje, porém, corremos o perigo de uma outra paz que usa até o nome de Deus. Acontece quando a Palavra dele, as orações e certas manifestações religiosas, na prática, servem como autoajuda, entorpecem as consciências e nos dão a impressão de nos “sentir bem”. Não significa que a palavra do Evangelho nos deve dar convulsões, tampouco, que deve paralisar a nossa “fome e sede de justiça”, por exemplo. A paz de Jesus vem da certeza de trabalhar por uma causa grand e, justa, capaz de transformar as estruturas excludentes e desumanas da nossa sociedade. Não é um jeito para apaziguar o coração dos chamados “homens de bem”, mas, ao contrário, os questiona se o tão badalado “bem” talvez seja a vantagem ou o lucro somente deles.

Por fim, Jesus diz: “Não se perturbe nem se intimide o vosso coração” (Jo 14,27b). Andar na contramão dos projetos de ganância e de poder, de dominação e violência, gera dúvidas e incertezas. Sempre seremos tentados a ficar omissos, a nos fechar dentro de igrejas e sacristias e a falar só para nós mesmos. São Paulo já escreveu aos cristãos de Roma: “De fato, vós não recebestes espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebeste o Espírito que, por adoção, vos torna filhos, e no qual clamamos “Abbá Pai”! (Rm 8,15). Já queimaram e ainda estão queimando casas e igrejas de cristãos, com as chamas, as calúnias, o desprezo, mas a “paz” de quem tem Deus no coração ninguém tira.

‘Mamãe te amo!’

Uma criança, de mais ou menos dez anos, ia todos os dias à praia e escrevia na areia: “Mamãe te amo!”. Depois olhava as ondas do mar apagar as palavras e corria embora, sorrindo. Um velho, meio triste, passeava também, todos os dias, naquele lugar; via o menino fazer aquilo e pensava: “Que bobagem!” Mas um dia, resolveu aproximar-se dele e lhe disse:

– Não tem sentido você escrever “Mamãe te amo!” na areia, porque depois as ondas apagam tudo cada vez! Por que não diz logo isso para ela? – A criança levantou e respondeu:

– Eu não tenho mais a minha mãe. Deus a levou consigo, como as ondas fazem com as minhas palavras. No entanto, eu volto aqui todos os dias para lembrar a ela e a Deus que não se pode apagar o amor de um filho por a sua mãe. O velho se ajoelhou e, com os olhos molhados de lágrimas, escreveu na areia: “Conceição te amo!”. Era o nome da esposa, falecida havia pouco tempo. Depois, pegou na mão da criança e juntos viram aquelas palavras desaparecer.

Neste Quarto Domingo de Páscoa, temos muitos assuntos para refletir: é o Dia das Mães, mas também o Dia Mundial de Oração pela Vocações e o Domingo do evangelho do Bom Pastor. O evangelista João faz dizer a Jesus que as suas ovelhas o conhecem pela voz. Ele também as conhece todas, e elas o seguem. Poucas coisas revelam a familiaridade entre as pessoas. Uma delas é a voz. Hoje a tecnologia nos permite ver, pelo celular, com quem estamos falando. Ficou ainda melhor. Além da ouvir a voz de quem está do outro lado, podemos ver a expressão do seu rosto. Se não somos atores consumados ou mentirosos profissionais, tudo contribui para nos ajudar na nossa comunicação. Podemos partilhar alegrias e tristezas, lágrimas e consolações, medo e coragem, afagos e… insultos, infelizmente. Parece que estamos perto, também se enormes distâ ncias nos separam. Sempre, porém, tem um segredo, chama-se sinceridade. Por educação, falamos e respondemos a qualquer um, mas a poucos abrimos o nosso coração e com poucos brincamos. Nisso sempre estará a diferença entre aqueles e aquelas que se reconhecem pela voz e os demais. Assim, nesta maneira simples, todos nós sabemos em quem podemos confiar e, também, de quem é melhor… desconfiar.

Se acreditamos nele, a “voz” de Jesus nos chega através das palavras daqueles que nos amam, os nossos pais e amigos; através dos pastores e educadores chamados a acompanhar e guiar o rebanho. A “voz” de Jesus nos chega pelos apelos dos pobres e excluídos. Às vezes são gritos por socorro. São fortes e somos tentados a tampar os ouvidos. Outras vezes, são vozes tão fracas que, se não pararmos para prestar atenção, passam totalmente despercebidas. Por fim, a “voz” de Jesus deveria ecoar em nossas vidas pelas suas Palavras guardadas e transmitidas pela comunidade dos seus amigos e seguidores. É através de todas essas “vozes” que o Senhor continua a nos chamar pelo nome, continua a nos convidar a segui-lo e nos pede uma resposta pessoal, livre, alegre e responsável. Ele não quer um bando de fanáticos que batam palmas a q ualquer suspiro do seu ídolo. Não quer “escravos”, mas amigos, porque não é um patrão cobrador. O Bom Pastor quer pessoas conscientes e felizes de acompanhá-lo até no caminho da cruz, porque sabem o que ele faz e por que (Jo 15,15). Rezemos pelas vocações todas. Precisamos de “bons pastores”, padres, religiosos, religiosas, missionários e missionárias, mas também de bons pais e mães, de profissionais honestos e competentes. Precisamos de políticos e governantes com coração de pastores, comprometidos com o bem comum, com o povo mais humilde, sempre escutando a voz dos pequenos e esquecidos. Nesta altura, penso nas vozes das nossas mães, nos seus conselhos e nas suas orações. Penso nas palavras de bênção delas para os filhos, obedientes e desobedientes, os de perto ou os de longe. Mas penso també m nas suas lágrimas pelos filhos surdos aos apelos delas, às súplicas para que deixem os caminhos errados. O tempo pode apagar as palavras, mas não o amor. Igualmente, sempre seremos ovelhas amadas pelo Bom Pastor.