Dom Pedro Conti

A Cura

Natal está chegando. A liturgia do Quarto Domingo de Advento nos apresenta a página bem conhecida do evangelho de Lucas, aquela que nós chamamos de “anunciação”. À Virgem Maria é dito para não ter medo, para confiar, porque nada é impossível para Deus. Maria, com o seu sim generoso, aceita o desafio de ser a mãe da criança que vai nascer. A ela é antecipado também o nome da criança, deverá ser chamado: Jesus. Na Bíblia, muitas vezes, o nome dado às pessoas não é mero instrumento de distinção dos demais. O nome indica a missão que aquele homem, ou mulher, deverá cumprir e que, portanto, dará o sentido mais profundo à sua vida.

“Jesus” significa “Deus salva”. Ouviremos isso na noite de Natal. O anjo dirá aos pastores: “Eu vos anuncio uma grande alegria… Hoje, na cidade de Davi, nasceu um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11). Entendemos que se alguém precisa de salvação é porque está em perigo. Somente quem passa por dificuldade ou se sente ameaçado pede socorro. Nem sempre, claro. Gritar por ajuda exige, no mínimo, a capacidade e a humildade para fazê-lo. Nós, cristãos, estamos tão acostumados com o uso de certas palavras que pouco refletimos sobre elas. Parece que sabemos já todas as respostas. Sem nenhuma pretensão, porém, deixem-me fazer alguma comparação,  a partir do perigo no qual todos nós ficamos mergulhados neste ano: o coronavírus.

A humanidade inteira almeja e grita por uma “salvação”. Em parte, a resposta virá das vacinas. Todos nós rezamos por isso e aguardamos os resultados com muita esperança. Será mais uma vitória da ciência, da inteligência humana, usada a favor da vida. Podemos aplaudir e esperar a nossa vez de sermos, digamos, imunizados e libertos do perigo. No entanto quando tudo voltar, mais ou menos, ao normal, precisamos lembrar de outros “vírus” que circulam por aí e que Papa Francisco já apontou muitas vezes em discursos e documentos. Ao menos dois: o vírus do egoísmo e o vírus da indiferença. Terá vacinas para isso? Eis a boa notícia: o remédio e a cura já existe e têm  nome, chamam-se Jesus Cristo, o seu amor e a sua vida doada para nos salvar. Porém são vacinas especiais, funcionam diferente das que tomare mos contra o coronavírus. Não vêm de algum laboratório humano, mas do próprio Deus.

Antes, porém, temos que aceitar e nos convencer que estamos doentes. Os sintomas são conhecidos. O egoísmo nos fecha em nós mesmos. Quando a farinha é pouca, diz o ditado, “primeiro o meu pirão”. Só que, às vezes, o “pirão” são privilégios demais, direitos desiguais, desprezo para os pequenos e os diferentes, salários incomparáveis com o “mínimo” da maioria das famílias. A indiferença é uma doença fatal porque mata por dentro, zera os nossos sentimentos. Torna-nos impermeáveis a qualquer emoção que, por acaso, venha a nos incomodar ou sacudir.  A “cura Jesus” é diferente de qualquer outro remédio, porque precisa absolutamente da nossa colaboração. Vai funcionar somente se nós quizermos ser curados. Não pode ser engolida à força o u administrada quando estivermos inconscientes. Ao contrário, o seu efeito é nos acordar da anestesia da acomodação, da dopagem de tantos discursos que não levam a nada. Não dá para tomar tudo numa ou duas doses só. É uma cura continua, porque as recaídas são constantes, muito mais que uma primeira e uma segunda onda. Mas a cura está garantida? Se nunca mais largarmos o remédio (Jesus), com certeza. Como vamos saber se a cura está fazendo efeito? Simples, se conseguimos nos alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram (Rm 12,15) é sinal de que começamos a quebrar o gelo da indiferença. Se, depois, estamos dispostos a sofrer, ao menos um pouco, para aliviar a aflição de quem talvez nem conhecemos, é sinal de que superamos a primeira fase do egoísmo. É uma cura de pequenos passos. Não podemos desistir. Depois do Na tal, virá a Páscoa e depois Pentecostes… e assim por adiante, sempre no caminho do Senhor Jesus, “Salvador” das nossas vidas. Coragem. Feliz Natal para todos!

Abre outra fábrica

Numa tarde, um rico industrial foi ter com Dom Bosco para se aconselhar. Estava decidido a fazer com as suas riquezas aquilo que o Senhor lhe tivesse indicado, incluindo a possibilidade de vender tudo e dá-lo aos pobres, se isso era o que Deus queria dele. Dom Bosco pediu um tempo para rezar e quando o rico voltou para ter a resposta, disse-lhe:

– Tem um dinheiro guardado neste momento?
– Sim. Respondeu o homem.- Então, vai, abre uma nova fábrica e dá trabalho aos operários. E assim ele fez.

É verdade que não conhecemos bem as condições de vida daquele tempo, quando São João Bosco deu esse “conselho” ao rico industrial e podemos nos perguntar por que ele não lhe pediu para dar tudo aos pobres como lemos no evangelho. Talvez a resposta seja elementar. Simplesmente ele pediu àquele homem para “ajudar” os outros naquilo que sabia fazer bem: investir os seus ganhos para dar trabalho e sustento a mais famílias. Talvez, ir para o convento, não era a vocação daquele senhor. Mas também não era aquela de lucrar sozinho.

Reconhecer a nossa “missão” neste mundo é dar um sentido bom à nossa vida.

No Terceiro Domingo de Advento, deste ano, encontramos novamente a figura de João Batista, mas num trecho do evangelho de João, tirado do primeiro capítulo. Têm muitas perguntas e respostas. Os interlocutores querem saber o que João Batista diz dele mesmo e porque está batizando. Ele é ou não é o Messias? É o novo Elias ou outro profeta? João esclarece que ele não é o Messias, mas que também não é nada igual aquilo que já aconteceu no passado. Ele tem uma missão totalmente nova e que já é apresentada nos primeiros versículos do mesmo trecho evangélico. João é uma “testemunha” e veio para dar testemunho da luz! (Jo 1,7-8). João brilhou, sim, mas não era ele a luz. Desde o início do seu evangelho, João, afirma que a luz plena e verdadeira é Jesus: “E a luz brilha nas tr evas, mas as trevas não a dominaram” (Jo 1,5). Em seguida, na sua resposta, João Batista retoma as palavras que também os outros evangelhos colocam. Mais uma vez, com humildade e sinceridade, declara que ainda não conhecem aquele que ele anuncia, mas que o Messias já está presente entre eles.

Podemos dizer que o Evangelho deste domingo nos convida a reconhecer Jesus como a luz que veio iluminar o mundo e, por consequência, um convite a sermos, nós também, testemunhas luminosas desta luz plena. Em tempos de apagão geral, todos nós lamentamos muito a falta da luz. No entanto estamos falando de algo muito mais profundo e decisivo que… a energia elétrica. Estamos falando da nossa própria vida. Podemos nos achar muito importantes, pensar que o universo todo roda para nós. Ao contrário, podemos nos sentir tão desanimados ou pequenos a ponto de chegarmos a pensar que somos inúteis e que talvez o mundo funcionaria melhor sem um de nós. Não é bem assim.

Entre o orgulho exagerado que nos leva a usar dos demais para o nosso proveito e a depressão que nos faz desejar o sumiço, está a consciência de algo simples e bonito: a fraternidade. Os outros não estão aí para nos servir e nem nós somos sobras inúteis. Podem existir tarefas e responsabilidades maiores ou menores, mas ninguém deve ser considerado um peso para a sociedade. Alguém pode não ter dinheiro para o consumo, mas quem disse que deve ser esquecido e deixado de lado? Outro pode não ter muitas capacidades práticas ou intelectuais, mas sempre poderá ajudar alguém, ser apoio e carregar um irmão ou uma irmã para partilhar com ele ou com ela um pouco de calor humano, buscando força naquele tesouro de amor que todos temos guardado. Do ponto de vista do sucesso nem João Batista e nem Jesus se deram bem. A um cortaram a cabeça pelo capricho d e uma mulher e o Senhor foi crucificado como malfeitor. No entanto este foi “a luz que vinha no mundo” e o outro a “testemunha” da luz. Não importa quando, como e onde, mas quem se deixou, ao menos um pouco, alcançar pela luz de Jesus, saberá refleti-la, iluminará outros. Todos podemos ser fabricantes de amor. Não tem luz maior do que esta num mundo de escuridão, violência e indiferença. É a luz do Natal de Jesus que está chegando.

As moedas falsas

O povo conta, por aí, que um comerciante tinha uma loja numa rua bem frequentada. Muitas pessoas entravam no estabelecimento e compravam alguma mercadoria. O homem ficava sentado no caixa e colocava em diferentes compartimentos as moedas e as notas de papel conforme o valor. Um amigo, parou bem perto dele para conversar e reparou que o comerciante tinha outra pequena repartição na gaveta onde colocava moedas falsas ou o dinheiro antigo, já fora de uso. Contudo ele agradecia o cliente com um sorriso e não falava nada.

– Você pegou moedas falsas sem dizer nada? Perguntou o amigo. O comerciante respondeu com um sorriso meio triste:

– Veja bem, quando acontece isso, penso sempre: eu também sou uma moeda sem valor, mas Deus me aceita sem reclamar!

No evangelho do Segundo Domingo de Advento, deste ano, encontramos o “mensageiro” que vai à frente do Senhor, João Batista, aquele que se define: “a voz que grita no deserto” (Mc 1, 3). João é uma pessoa austera, convida a um “batismo de conversão”. Ele mesmo vive afastado do barulho da cidade, com simplicidade na comida e na roupa. Dessa maneira, não só a pregação, mas a própria pessoa dele se torna um sinal que chama atenção. Como outros profetas e pregadores anteriores, João anuncia alguém mais importante do que ele, alguém que batizará não só com a água, mas também “com o Espírito Santo”: o Messias esperado. Mais um motivo para alimentar a expectativa, convocar as multidões e reforçar o convite a uma mudança de vida.
Por isso, o tempo litúrgico do Advento é, para nós também, um tempo de “conversão”.

Nunca é fácil dar uma virada ao rumo da nossa vida, mas talvez seja esse um desejo escondido para o qual sobram convites, mas nos falta coragem. No tempo de Advento, essa “conversão, tem o gosto da abertura, da acolhida de Alguém que precisamos deixar entrar em nossa vida. Ele, o Senhor, já veio no meio de nós e sempre vai chegar para quem lhe preparar o caminho. O que falta para que isso aconteça?

De novo, João Batista pode nos ajudar. A primeira condição, talvez, seja o ambiente do “deserto” entendido como momentos de bendita solidão e não, com certeza, de isolamento. “Deserto” não é fuga, escondimento. Deserto é a capacidade de silenciar as confusões ao nosso redor, para poder escutar a voz da nossa consciência, a voz de Deus e a voz dos pobres. Penso, sim, nessa ordem, porque cabe a nós pedir a Deus o dom da escuta. De outra forma, o Natal de Jesus será uma mera repetição de costumes e de emoções exteriores. Igualmente não saberemos ouvir a voz dos pobres se, em nossa vida, prevalecem o nosso comodismo e bem-estar e praticamos uma religiosidade só intimista e interesseira. A segunda condição para o começo da nossa conversão é o reconhecimento da nossa fragilidade e carência. João Batista falava de alguém “mais forte” e reconhecia a sua indignidade. Se estamos cheios de orgulho e nunca admitimos ter errado e que sempre podemos errar, dificilmente, alguma vez, pediremos desculpa. Por consequência, nunca mudaremos nada da nossa maneira de nos relacionar com os outros. Entraremos em disputas e apontaremos sempre os defeitos alheios.

Numa sociedade cheia de super-heróis que se autopromovem, a humildade fica esquecida. Então, quem consegue perseverar no caminho da conversão? A boa notícia é que não estamos sozinhos. O Menino que acolheremos no Natal será chamado Jesus, mas também Emanuel, Deus conosco (Mt 1,23). Jesus, bem sabemos, não veio para os que se acham tão bons de não precisar de nada, veio para os que se reconhecem pecadores, necessitados de conversão. O Senhor gostaria de não perder nenhum dos seus filhos e filhas, porque para ele somos todos muito preciosos. O amor dele quer chegar aos últimos e aos mais afastados. Nasceu pequeno para que não esqueçamos os menores, os menos considerados, os invisíveis. Para ele,
não tem moedas falsas que possam ser jogadas fora. No coração dele, tem lugar para todos e todas. Também para nós, se quizermos.

Boas escolhas, más escolhas

Certo dia, o discípulo cria coragem e resolve tirar a sua grande dúvida com o Mestre.

– Mestre, como faço para me tornar um sábio? – perguntou.

– Boas escolhas. Ele fica pensativo por alguns instantes e depois torna a perguntar:

– Mas como fazer boas escolhas?

– Experiência – diz o mestre.

– E como se adquire experiência, mestre? – Más escolhas…
Estamos de novo no começo do Ano Litúrgico e sempre reiniciamos pelo tempo de Advento. Estas semanas nos prepararão às festas do Natal. Tempo de espera ou de esperança, depende de nós. “Espera” significa simplesmente deixar o tempo passar e ocupá-lo, talvez, com alguma atividade, conforme as nossas possibilidades ou os nossos gostos.

Acordados ou dormindo, inexoravelmente, os dias irão transcorrer. Mais cedo ou mais tarde, seremos obrigados a reconhecer isso. “Esperança” é outra coisa. O tempo não vai parar, nem vai ser mais longo ou mais curto. O segredo está na capacidade de aproveitar dos dias que passam. O fato de “recomeçar” e percorrer novamente um caminho já andado, não significa mera repetição. Podemos tentar responder, mais uma vez, a uma pergunta chave da nossa vida: o que aprendemos até aqui? Para onde nos leva o rumo que damos às nossas vidas? Evidentemente são questões que supõem um interesse sério a não desperdiçar o nosso tempo e a ter, cada vez mais, clareza daquilo que queremos alcançar. O contrário seria a superficialidade ou, talvez, uma vida vazia, dirigida pelos outros, pelas modas, imitando aqueles que parecem brilhar naquele instante. A “esperança” verdadeira nos ajuda a ter objetivos e sonhos. Nos obriga a buscar o que vale, a questionar os caminhos que estamos trilhando. É uma virtude e, ao mesmo tempo, um dom de Deus segundo a profecia de Joel, realizada no dia de Pentecostes: “os vossos jovens terão visões e os vossos anciãos terão sonhos” (Atos 2,17). A esperança anima, não anestesia e nem se conforma com as coisas erradas, é algo que nos inquieta e não deixa entorpecer as nossas consciências. Porém, não basta dizer: vou fazer diferente…Precisa ter claro o que fazer e como fazer. Somos todos eternos aprendizes.

O evangelho deste Primeiro Domingo de Advento é uma exortação de Jesus – ou mesmo uma ordem – para ficar atentos, vigiando. Conscientes ou não, todos estamos esperando algo acontecer, aguardamos um encontro com alguém que nos mude e dê sentido a nossa vida. O Senhor nos lembra que somos “responsáveis” por essa espera. Podemos e devemos tomar decisões, organizar projetos, marcar percursos e metas. Cabe a nós mudar as circunstâncias, transformar as situações. Lembrando a canção: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Para isso, porém, precisa “saber”, é necessária muita “sabedoria” que, por sua vez, aprende-se também errando. Não devemos ter medo dos erros, dos desvios, contanto que nos tornem mais sábios e corajosos para abrirmos novos caminhos. Em certos momentos, temos a impressão de que tenhamos aprendido pouco com os nossos erros pessoais e da própria humanidade. Como se não bastassem as guerras do passado, as vidas perdidas pelos sonhos de poder, pelos ódios, as cercas e as bombas atômicas. Deixamos de sonhar a paz para cultivar o rancor e a vingança, perdemos a chance de partilhar bens e saberes para acumular inveja e indiferença. Tudo isso entre pessoas e famílias, entre países e blocos comerciais. Quem, com os seus erros, encontra o caminho do bem, exerce a humildade, aprende a escutar conselhos, confia na fraternidade e na solidariedade.

O tempo de Advento deve servir para iluminar o que aprendemos até aqui, mas não para ficar parados. O simples e grandioso fato de acreditar num Deus que quis ser humano para caminhar conosco e ser “o caminho” para nós, nos deve animar. Temos motivos para ser tristes: a pandemia, o desemprego, a pobreza, a incerteza do futuro, mas nunca tão perdidos “como aqueles que não têm a esperança”. (1Tes. 4,13). Esta é sabedoria, é fé, é recomeçar com Jesus no Natal.

A educação

Madre Teresa de Calcutá contava: “Meu pai se chamava Kole Bojaxhiu. Ele era comerciante e viajava pela Europa toda. Quando voltava para casa, reunia todos os filhos ao seu redor e contava o que tinha visto e feito. Era um homem severo e exigia muito de todos nós. Mas era também muito generoso. Às escondidas, doava alimentos e dinheiro sem chamar atenção, nem se vangloriar. Dizia sempre:

– Devem ser generosos com todos como Deus foi generoso conosco: nos deu tanto, tanto, por isso façam o bem a todos!

Certa vez ele me disse:

– Filha, nunca receba e nem aceite um pedaço de pão, se não for partilhando com os demais!

No último domingo do ano litúrgico, celebramos a Solenidade de Jesus Cristo Rei do universo e somos lembrados, pelo evangelho, que seremos julgados por ele pelo amor, a misericórdia e a compaixão. Nada mais, mas, também, nada menos. O maravilhoso dessa página de Mateus é a surpresa de todos, justos e injustos. Todos perguntarão: – Quando, Senhor, te vimos com fome e te demos – ou não te demos – de comer?

Isso significa que devemos aprender a reconhecer o Senhor naqueles com os quais ele quis se identificar: os famintos, os sedentos, os estrangeiros, os nus, os doentes e os presos. Uma simples amostra para exemplificar aquela parte da humanidade ainda desprezada, excluída, esquecida. Jesus começa com os sofrimentos imediatos, aqueles que fazem doer o estomago, que matam fisicamente ou pelo abandono em esperas e castigos intermináveis. Depois, nós juntamos as obras de misericórdia espirituais. Justo, mas querer consolar sem dar comida é considerar o faminto um anjo, mais do que nós, provavelmente, de barriga bem cheia. Seria uma fé morta, que mata e não doa vida (Tg 2,14-17).

Com a “surpresa” final, descobrimos que ninguém terá alguma vantagem, nem os justos e nem os injustos. Mais uma grandeza de Deus, que não deixa de enviar mensagens e mensageiros, mas não obriga ninguém a fazer o que não escolhe e decide em seu coração. É a liberdade que dá valor a qualquer gesto de amor. Algo se deve e se pode planejar, sem dúvida: assistência, proteção social, planos de resgate para pessoas necessitadas. É o mínimo que uma sociedade civilizada deveria conseguir. O contrário seria a barbaridade, o descaso total. Não seremos, porém, julgados sobre os resultados das grandes obras, das estatísticas, da propaganda usada para explicar como e onde os milhões foram gastos. Nada disso. O “julgamento” estará mais uma vez nos gestos simples, pobres, mas fraternos, de aproximação, de encontro, de capacidade de reconhecer a pobreza comum de todos, a fragilidade e a solidão, enfim, de todos. Servem obras grandes, dinheiro público para sustentar muitas coisas, mas a pouco serviria se não mudasse o coração de cada um, se ficássemos satisfeitos com resultados exteriores, por maiores que fossem, mas não aprendêssemos a amar o nosso irmão, a vê-lo como o próprio Jesus ainda crucificado e sofredor. Foi assim que Deus viu o povo escravo no Egito e decidiu libertá-lo (Ex 3,7-10). Foi assim que o Pai viu a humanidade toda e enviou o seu Filho para nos resgatar do pecado e da morte. “Não poupou o seu Filho” diz João (Jo 3,16-17). Ele mesmo veio no meio de nós, não mandou planos acabados para ser cumpridos. Deu o exemplo!

Nada substitui a generosidade pessoal, o afeto e atenção que todos podemos dispensar – e receber, claro – a quem entendemos que esteja precisando. Sempre precisaremos de caridade planejada, porque o bem deve ser bem feito e não improvisado. Mas a todos e a todas, cristãos e não, é dada a chance de ter compaixão, de se deixar tocar pelo sofrimento do outro. É como dizer que ninguém está perdido de antemão ou esteja fora da possibilidade de fazer o bem. Só precisa aprender e acreditar que vale a pena. Ser bons e compassivos nos humaniza, nos torna imagem verdadeira do Pai misericordioso, não de um Deus poderoso que amedronta e castiga. Um Pai que educa sempre os seus filhos. Um Deus Mãe que sente compaixão e amor pela nova vida que carrega em si: o pequenino ainda desamparado.

Deve trabalhar para viver

Contam os monges anciãos que, certo dia, João, o pequeno, disse a um irmão mais velho:
– Quero ser livre das preocupações e não trabalhar. Quero adorar o Senhor sem parar”. Tirou a veste de monge e foi para o deserto. Depois de uma semana, voltou com aquele irmão. Quando bateu na porta, o monge, de dentro, sem abrir, perguntou:
– Quem é? – Respondeu:
 – Sou João, teu irmão.
 Mas o velho monge rebateu:
 – João se tornou um espírito e não vive mais entre as pessoas!
João suplicou:
 – Sou eu! Mas o irmão não abriu a porta e o deixou no desespero até a manhã seguinte.
 Quando saiu lhe disse:
 – Se és um ser humano deves trabalhar para viver.
João, o pequeno, se arrependeu e disse:
– Me perdoe, irmão, porque errei.
A parábola dos talentos, que encontramos no evangelho deste domingo, é muito conhecida e, como outras parábolas,  presta-se a diversas leituras. A primeira mensagem está em continuidade com que refletimos nas últimas semanas: o Senhor nos quer “vigilantes”, ou seja, a espera da volta dele – que é a nossa própria vida nos dias que passamos neste mundo – e deve ser um aguardá-lo ativo, alegre e comprometido. Nada de preguiça, sonolência e acomodação. O exemplo mais prático para entender isso é o da entrega dos “talentos”, qualquer coisa eles representem. O certo é que somente quem soube multiplicá-los será premiado e chamado de servo “bom e fiel”. Quem, ficou com medo ou achou o “dono” severo e exigente demais e acabou enterrando o único talento recebido, será chamado de servo “mau, preguiçoso” e, enfim, “inútil”.
 A essa  altura devemos nos perguntar se o Senhor Jesus queria falar mesmo de bens materiais ou, sobretudo, de outros tesouros preciosíssimos que a todo custo devem ser traficados. Uma coisa não exclui a outra. Hoje entendemos, por exemplo, que a própria natureza é o primeiro “dom” que o Pai criador entregou à humanidade e que, com seu respeito e sustentabilidade pode, ou não, ser fonte de vida ou de morte para os habitantes do planeta. A “cura” da criação nos aparece cada vez mais urgente e de responsabilidade de todos. Uma humanidade digna de ser “humana” mesmo e não mera consumidora e exploradora de riquezas não pode mais pensar só no lucro da geração atual, deve saber enxergar mais longe se quiser preparar um futuro melhor para todos. De outra forma, nunca acabarão as guerras para o controle das riquezas e nunca haverá fraternidade e partilha.
Talvez precisemos redescobrir e reavaliar outros tipos de “talentos”, menos materiais, mas igualmente – ou mais – valiosos. Simples. Se achamos que o ser humano se satisfaz somente com o famoso “pão”, deixamos de lado outros bens. Jesus nos ensinou que precisamos também da Palavra de Deus, ou seja, de escutar sempre e de novo a proposta daquele que colocou em nossos corações muitos outros desejos e sonhos que nunca ficarão satisfeito com o que encontrarmos e construirmos neste mundo. Hoje, a grande questão do chamado “progresso” é que não pode mais ser somente material.
O “crescimento” pede novos equilíbrios com a natureza, novos relacionamentos mundiais, novo respeito pela existência de todos os seres vivos. Papa Francisco fala de “sobriedade feliz”. Lembra-nos que “tudo está interligado”. É simplesmente imoral querer construir “ilhas” de felicidade isoladas para poucos privilegiados. Seriam somente lugares de egoísmo e desprezo para os demais, numa vida triste cheia de barulho e superficialidade.
Penso que, afinal, seja esse o grande “trabalho” dos cristãos, daqueles que querem contribuir com a construção do Reino de Deus e não dos ilusórios reinos humanos. Temos um “tesouro” imenso, incalculável, de amor, de criatividade para organizar novas economias, novas fraternidades, novos relacionamentos. Sempre os cristãos sonharam com novas “cidades” mais semelhantes com a “cidade do céu”. Nunca faltaram profetas e mártires para isso. O pior é desistir de ser cristão ativos, cada um com as suas capacidades, numa comunhão de compromisso e bondade. Orar não é fugir, se esconder, mas saber para que se reza e, sobretudo, para que se vive.

Santidade, nada de santidade

Certa vez, por ordem do Papa, São Filipe Neri visitou um mosteiro onde tinha uma religiosa considerada santa. Quando Filipe, que entendia muito bem de santidade, chegou naquele lugar, tirou os sapatos sujos de lama. Com um sorriso, disse para aquela freira que tinha ido ao encontro dele:
– Irmã, por favor, pode limpar estes meus sapatos? A famosa monja foi embora indignada, reclamando. Filipe voltou com o Papa e lhe falou baixinho no ouvido: Santidade, nada de santidade!

Mais uma anedota de um santo conhecido pelo bom humor e a alegria. É bom também lembrar que os papas são chamados de “Santo Padre” ou “Santidade”, só para não confundir um título de respeito ao Papa com a “santidade” que, na Solenidade de Todos os Santos e Santas, queremos celebrar. Apesar de tantas explicações, muitos cristãos e cristãs acham que falar em santidade seja algo que não lhes diz respeito. Isso porque a Igreja continua a nos propor justamente, e com a devida propaganda também, exemplos extraordinários de batizados e batizadas que viveram heroicamente muitas das virtudes propostas a todos os cristãos. Simplesmente, a Igreja nos convida a olhar para os melhores, aqueles e aquelas que sobressaíram pela generosidade, o desprendimento, o serviço ao Evangelho e aos pobres. Aqueles e aquelas que, acreditamos, podem nos aj udar com a maravilhosa e inesgotável riqueza de amor que se chama “comunhão dos santos”. Pois nenhuma santidade verdadeira é simplesmente individual, sempre tem consequências e frutos na comunidade humana, sejam conhecidos ou não esses reflexos luminosos. Deveríamos estar convencidos que se todo mal tem, antes ou depois, consequências nefastas, igualmente o bem produz resultados impensáveis e imprevisíveis. Semente boa, em terra boa sempre produz cem, sessenta, trinta por um (Mt 13,8). Não devemos estranhar, portanto, se nos escritos do Novo Testamento, Paulo e os demais autores, chamam os cristãos de “santos”. Essa é a grande vocação à qual cada batizado é chamado.

O contrário da santidade não é a maldade, mas sim a mediocridade, ou seja, o desistir de sermos melhores, o fato de nos conformarmos com os defeitos e as limitações e achar impossível superar as dificuldades. Temperamento pessoal, educação, circunstâncias especiais, encontros com testemunhas extraordinárias, podem ajudar no caminho da santidade, mas ninguém nasce santo ou santa. Todos e todas, mais ainda os famosos, enfrentaram tentações, lutaram contra as forças do mal, tiveram medo, passaram por momentos intermináveis de escuridão, nos quais tudo parecia inútil e sem sentido. No entanto, eles e elas nunca deixaram de confiar, de pedir misericórdia Àquele que é “O Santo” (três vezes, Ap 4,8) e que nos quer santos (Lc 6,36).

Estou convencido que todos os Santos e Santas, canonizados ou não, tiveram duas qualidades em comum: a humildade e a alegria. A humildade nos ajuda a confiar mais em Deus e na misericórdia dele do que nas nossas capacidades. Quem quiser crescer em santidade deve estar muito consciente das suas fraquezas e, portanto, admitir sem medo os seus pecados. Deve pedir perdão, deve saber reconhecer quando errou, deve preferir o último lugar aos primeiros, simplicidade e o escondimento aos elogios e às honrarias. De outra forma, já teria recebido a sua recompensa (Mt 6,2). Contudo, o segredo mais bonito dos Santos e Santas, foi com certeza a alegria, pela simples razão de viver com plenitude a sua fé e o seu serviço aos pequenos e pobres. Ajudar alguém com impaciência, ou por mera obrigação, não tem alegria nenhuma. Somente se sabemos reconhecer o próprio Jesus nos irm&atild e;os, ca ídos nas estradas da vida, podemos atendê-los com carinho e solicitude. Todos os Santos e as Santas também choraram. Foi porque gostariam de fazer mais ou porque se solidarizaram com os aflitos da vida. Souberam “choraram com quem chora, para se alegrar com quem está alegre” (Rm 12,15). Os que souberam consolar, foram consolados, enxugando lágrimas de irmãos ou limpando sapatos sujos de lama, felizes.

Omissão

Uma jovem se formou na universidade com as melhores notas. Logo, procurou um trabalho que lhe garantisse um bom salário, não exigisse muito esforço e garantisse bastante dias de folga. Com os seus conhecimentos profissionais e algumas amizades dos pais, encontrou o emprego como sonhava. Imediatamente mandou uma mensagem a um seu amigo e partilhou a sua felicidade. O amigo, porém, respondeu-lhe com palavras que talvez ela não esperava. Ele escreveu: “Tu não és somente sortuda, és também omissa”. Ele a questionou afirmando que achava um verdadeiro desperdício gastar as suas capacidades de inteligência e criatividade numa vida tão egoísta. A jovem refletiu e mudou de trabalho. Decidiu comprometer-se mais com a solidariedade; entendeu que devia cuidar melhor de si mesma e dos mais desfavorecidos. Convenceu-se que devia zelar pela natureza e todo ambiente de v ida. Enf im, abraçou projetos de justiça e de paz. Depois de algum tempo, escreveu novamente ao seu amigo e agradeceu. Estava feliz.

A página do evangelho de Mateus deste 30º Domingo do Tempo Comum nos apresenta mais uma pergunta traiçoeira a Jesus. Os fariseus, rigorosos observantes da Lei, queriam saber dele qual era o maior de todos os mandamentos, ou seja, aquele preceito ao qual todos deviam obedecer. Talvez esperassem que dissesse que era o respeito ao repouso do sábado, para que ficasse clara a absoluta obediência a Deus, que também descansou no sétimo dia. Assim Jesus poderia ser acusado de desobediência porque curava os doentes até no sábado. A luminosidade da resposta de Jesus contrasta com a obsessão cega dos fariseus pela Lei. Ele, simplesmente, lembrou a todos aquilo que já estava escrito na própria Palavra: os dois mandamentos do amor, a Deus (Dt 6,5) e ao próximo (Lv 19,18). O que ninguém esperava era que Jesus dissesse que o segundo mandamento, ou seja, o amor ao próximo fosse seme lhante a o primeiro, aquele de amar a Deus. Se queremos amar a Deus de verdade, o jeito certo, não será aquele de cumprir preceitos mais ou menos religiosos, devotos ou piedosos que sejam, mas devemos praticar a solidariedade e a fraternidade com os irmãos e irmãs necessitados, que encontramos nos caminhos e encruzilhadas da vida. O bem feito ao irmão sofredor é amor ao próprio Cristo (Mt 25,40) e o bem, recusado ao pobre, será considerado desprezo ao Senhor (Mt 25,45).

O mandamento do amor é único. Lembramos o que está escrito na Primeira Carta de João: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão que vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). Não tem desculpas e nem saídas sorrateiras. Jesus passava as noites em oração ao Pai, mas gastava o dia na pregação e no atendimento aos doentes e pecadores. Toda a sua vida foi uma doação, uma entrega, sempre gasta para o bem dos irmãos, nada guardava para si. O amor a Deus não se mede pelas longas orações ou adorações, porque corremos o perigo de contemplar a nós mesmos, as nossas emoções e imaginar um Deus satisfeito com isso. Do outro lado, um compromisso social sem o coração ardendo do mesmo amor compassivo e misericordioso de Jesus pode ser uma excelente ação assistencial, boa para satisfazer o nosso orgulho, mas sem alcançar a maior de todas as descobertas.

Com efeito, somente quando amamos os nossos irmãos sem julgá-los e sem esperar nada em troca, é possível fazer, ao menos um pouco, a experiência de como Deus é e como ele quis se fazer conhecer em Jesus: pura gratuidade, amor sem limites, amor até a cruz. Deixaremos, então, de rezar? Ao contrário, na oração encontraremos a força e a coragem de tocar nas feridas dos irmãos e irmãs, de carregá-los e de pagar o que falta para que reencontrem vida e esperança. Igualmente, podemos colaborar com tantas obras de solidariedade e justiça, mas nunca para promover a nós mesmos, algum partido, ou até a nossa Igreja. Por isso, Papa Francisco na Exortação Apostólica “Cristo Vive” lembra aos jovens, e a todos nós, as palavras de At 20,35: “Há mais felicidade em dar, do que em receber”. Es te &eacu te; o segredo de Deus, o segredo do amor e da verdadeira alegria.

Os nomes dos burros

O imperador Frederico II e seu irmão Henrique ficaram satisfeitos c om a acolhida recebida num convento. Antes de partir, o rei perguntou ao guardião se tinha algum favor a pedir. O bom frade respondeu que sim:

– Peço que sua Majestade nos conceda colocar o hábito a dois novi&cc edil;os, a cada ano, apesar da lei que ordena o contrário.

– Graça concedida – respondeu o rei. Aliás &ndas h; continuou – eu mesmo enviarei os dois noviços.

Nisso, olhou o irmão e lhe falou numa língua estrangeira par a n&atil de;o ser entendido pelos frades:

– Nós enviaremos dois burros para esses frades! Mas o frei guardi&a tilde;o, que tinha viajado bastante pelo mundo afora, entendeu as palavras do rei. Assim, de olhos baixos, o frei disse novamente ao rei:

– Já que o senhor é tão generoso, peço-lhe mai s um fav or: que possamos colocar aos dois noviços, que o senhor enviará, os nomes do senhor e do seu irmão. O rei e o irmão foram embora calados.

“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que &e acute; de Deus” (Mt 22,21) talvez seja uma das frases dos evangelhos mais repetidas e mais facilmente adaptadas a tantos interesses e circunstâncias. Mateus coloca essas palavras de Jesus durante uma conversa entre ele e os fariseus, decididos a deixá-lo em apuros. Se Jesus tivesse respondido que não deviam pagar os impostos ao imperador, teria sido denunciado às autoridades como desobediente e subversivo. Se, ao contrário, tivesse respondido que era justo pagar, teria significado subserviência aos opressores romanos e desagradado ao povo que não suportava o peso dos impostos. Jesus não tinha muitas saídas: a arapuca estava bem armada. No entanto, mais uma vez, Jesus respondeu colocando a questão num plano muito diferente. Simplesmente lembrou a todos o lugar de cada um: o de “César” e o de Deus, sem mistura, sobreposição ou confusão. É, justamente, quando algu&ea cute;m quer ocupar o lugar de Deus que as coisas começam a desandar. Nenhum ser humano, nem os “césares”, passageiros de todos os tempos, por grandes e poderosos que sejam, podem fazer isso. Desde o início: todas as vezes que um ser humano quis, ou ainda quer, ser “como Deus” (Gn 3,5) só acontecem desastres.

Parece que não aprendemos a lição. Continuamos orgulhosos e arrogantes numa briga sem sentido. Com Deus não adianta disputar o poder, não porque ele é o “Todo Poderoso”, mas porque a ele o “poder” não interessa. Ele já desistiu de se impor. Desde a cruz de Jesus, ele escolheu ser o último, o perdedor, o excluído, para nos ganhar pelo amor e nunca pela força, o medo ou o castigo. Com isso, ele respeita até o fim a nossa liberdade, não nos obriga a acreditar e a obedecer. Deus não quer súditos, mas amigos, colaboradores na construção do seu Reino, “filhos” amados que o sirvam com júbilo e alegria. Pela história e pela experiência, sabemos que os “reinos deste mundo” se baseiam na força das armas, das leis impostas, das intrigas de palácio, ou, como está acontecendo hoje, sobre o poder econômico de quem visa o lucro a qualquer custo, mesmo se milhões de seres humanos morrem de fome ou conduzem uma vida miserável. O curioso na resposta de Jesus é que ele usa uma moeda com a figura e a inscrição de César para explicar o seu entendimento. Mais moedas circulavam, mais negócios eram feitos, mais aquela “figura” se tornava famosa e temida. Hoje os poderosos têm muitas outras maneiras de espalhar os seus retratos, ou, talvez, nem se preocupem mais com isso. Certos nomes de marcas e grifes estão nas praças de todos os países e em todas as línguas. Alguns talvez queiram colocar por lá também o nome de algum “deus” ou de alguma “igreja”, mas o Deus verdadeiro não precisa dessa propaganda porque nos deixou um letreiro que até os analfabetos podem ler: é a natureza, dádiva generosa da sua bondade. Temos também a voz do coração que Deus colocou em nós e que, se soubéssemos escutá-la mais, nos diria sempre para escolher o caminho da bondade e da paz, nunca do ódio e da violência. Talvez sonhemos que os nossos nomes entrem nas listas dos famosos, dos ricos e poderosos. Para quê? Se continuamos sendo “burros”, de cabeça dura e coração fechado.

Círio 2020: com Maria, mãe da Vida, uma explosão de fé e alegria

O Círio de Nossa Senhora de Nazaré, neste ano de pandemia, será diferente. Todos se perguntam: ficando em casa, na janela ou no portão, vendo as imagens passar, será um Círio mais triste? Depende de nós. Todos temos muitas maneiras para manifestar os nossos sentimentos, sobretudo quando nos sentimos bem e, dentro das nossas possibilidades, felizes. Alguns precisam pular, outros abraçar alguém, outros baterem palmas. Alguns podem exagerar na exterioridade, outros ficarão mais contidos. Eu quero falar aqui daquela “alegria” que não pode faltar para ninguém, também se passamos por momentos difíceis e choramos a ausência de pessoas queridas no meio de nós. É a alegria de quem aprendeu a confiar no Senhor, a lembrar sempre do seu amor e a olhar além das circunstâncias imediatas.

 

Maria nos ensina isso com simplicidade e coragem. Conhecia “as promessas”, sabia que Deus não podia falhar com seu povo escolhido. Todos e todas aguardavam o “Cristo”, o escolhido, o enviado. No entanto, ela não podia saber como tudo isso iria acontecer. Só podemos imaginar, nas palavras da Anunciação, a surpresa daquela jovem mulher, prometida em casamento a José, e chamada, naquele momento, a ser a mãe do Salvador, por ação, humanamente inexplicável, do Divino Espírito Santo. Na sua humildade, ela se sente indigna. Nem sabe nada, ainda, das alegrias e das provações que virão, mas não desiste, não volta atrás, enfrenta o desconhecido porque confia naquele que a chamou. Para que seu Filho fosse verdadeiramente humano – e não só divino – o Pai precisou de uma mãe escolhida, a “bendita entre as mulh eres&rdq uo;. Maria aceitou o desafio e, nunca mais haverá algo semelhante. Por isso, Nossa Senhora canta a sua alegria, dela e de todo pobre e excluído que, apesar de tudo, acredita que é amado por Aquele que está acima de tudo e de todos, Aquele que poderá não só reverter a seu favor situações injustas, mas, muito mais, com a sua presença fiel, o fará colaborador de um mundo novo, sem opressores e oprimidos, sem tronos a serem derrubados porque tudo será comunhão de paz e fraternidade. Quando? Como?

 

O caminho é longo, passa pela cruz do próprio Jesus, por todas as vidas doadas pela causa do Reino, mas os sinais da vitória já são visíveis e possíveis a serem realizados. A alegria do cristão nasce da certeza de que a “esperança” não pode ser um aguardar paciente, mas é sempre participação na construção de algo novo e melhor, mais humano e solidário. Por isso podemos chamar Maria, também mãe da Esperança, mãe da Vida Nova que o Cristo iniciou com a sua ressurreição. É esta a Vida prometida, a Vida que não morre mais para aqueles que acreditarem e seguirem a Jesus.

 

Com Papa Francisco, chamamos Maria “mãe de todas as criaturas” (Querida Amazônia 111) porque estamos vendo a Vida do nosso planeta, a nossa Casa Comum, sendo ameaçada. Junto com a floresta queimada, desaparecem plantas e animais, biomas inteiros destruídos pelo fogo, pela poluição, pela ganância de poucos. Os gritos de desespero e de alerta dos nossos irmãos, dos povos nativos da Amazônia, não são ouvidos. Se acreditamos na Vida, se acreditamos que toda a Criação é uma dádiva de Deus a toda a humanidade, não podemos ficar indiferentes, pensar só em interesses e resultados imediatos. Não somos os donos da Vida, somo administradores e disso teremos que prestar conta, um dia. Ou, talvez, esta conta já chegou e logo pagaremos as consequências. Tudo isso nos deixa tristes, mas Maria é também a Mãe da Alegria, que b rota do coração sincero de quem confia mais em Deus do que nas suas próprias forças. Nele está a fonte inesgotável da nossa fé, da esperança, do amor e de toda a alegria. Sabemos em quem acreditamos (2 Tim 1,12).