Dom Pedro Conti

Sinodalidade, o que é?

Vez por outra, aproveito deste espaço ou de alguma circunstância para explicar algo “novo” que está acontecendo ou está a caminho de acontecer. Achei bom falar do tema da “sinodalidade”, justamente, por ocasião da solenidade de São Pedro e São Paulo porque, neste domingo, celebramos mais do que uma festa de santos, é a festa da Igreja toda, alicerçada sobre a vida e o testemunho dos apóstolos. Nós, católicos, acreditamos que a nossa Igreja vem de longe, do próprio Senhor Jesus Cristo. Ele prometeu estar sempre conosco e firmou a sua presença com o dom do Espírito Santo. São três as principais imagens que o Concilio Vaticano II usou para explicar a Igreja: Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo. Dessa maneira toda a Santíssima Trindade está envolvida na realidade humano-divina que somos nós, os batizados, discípulos-missionários do Senhor Jesus. Ao longo dos séculos, a Igreja enfrentou muitas tempestades e sempre aparecerão novos perigos e desafios. Desde o início, ela se entende como “santa e pecadora” ao mesmo tempo. É santa porque tem dons santos para oferecer e é formada por pessoas chamadas à santidade. Mas é também pecadora, porque as “coisas santas” foram entregues aos vasos de barro que somos nós, frágeis, fracos e limitados. A Igreja singra os mares da história, consciente de tudo isso: do seu medo e da sua falta de fé, mas também da sua coragem e da sua responsabilidade de ser “germe e sinal” do Reino de Deus. Por isso, é costume dizer que a Igreja está sempre num caminho de conversão ou de reforma para se tornar melhor (Ecclesia semper reformanda!).

Uma das maiores dificuldades da Igreja é a própria organização ou, se preferem, o seu funcionamento. Por ser real e visível, a Comunidade eclesial partilha das situações pela quais passa a humanidade toda. Ela sabe que não pode se basear em simples critérios humanos, mas, ao mesmo tempo, experimenta, inevitavelmente, a influência das diversas maneiras históricas de pensar e de agir, ou seja, das novas culturas que vão surgindo. De certa maneira, podemos falar também para a Igreja de “evolução” no sentido melhor da palavra. Por exemplo, como combinar, hoje, o fato de ser uma Igreja “hierárquica” – que, afinal, significa ter serviços e responsabilidades diferentes – com o anseio geral de participação nas decisões e de partilha nas diversas tarefas? Não é mais possível imaginar uma Igreja onde muito poucos ensinam e mandam e a grande maioria só aprende e obedece. Isso não significa renunciar a qualquer autoridade, mas a exercê-la de uma forma nova e diferente. O Concílio Vaticano II abriu o caminho para os “Sínodos” de bispos juntos com o papa como uma expressão maior de colaboração. “Sínodo” e “sinodalidade” significam “caminhar juntos”.

Nesses últimos anos, por ocasião dos Sínodos que o Papa Francisco convocou (Família, Juventude, Amazônia) ele pediu algo anterior que podemos chamar de “escuta” do Povo de Deus. Famílias e jovens do mundo inteiro e os povos da Amazônia puderam se manifestar antes dos sínodos. Em outubro de 2023, acontecerá um sínodo, justamente, sobre a “sinodalidade” ou seja: porque e como tornar esta sinodalidade o jeito efetivo e eficiente de participação de todo o Povo de Deus na vida da Igreja. Não estamos acostumados a isso. É tudo novo e muito ainda deve ser experimentado e testado. No entanto já é possível dar os primeiros passos. Um “ensaio” de sinodalidade pode acontecer já, nestes meses, em preparação à Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (novembro 2021). Graças às redes sociais e aos computadores, qualquer pessoa poderá expressar a sua opinião entrando no site preparado para isso. Também grupos podem enviar as suas considerações. No site é possível encontrar algumas sugestões de escolha de temas e desafios, mas tem a possibilidade de dizer algo diferente. E quem não tiver internet ou não sabe usá-la? Peça ajuda aos jovens que, pelo jeito, parecem já nascer com essas novas habilidades. Colaboração entre as gerações é experiência de sinodalidade.

Vamos aprender a “caminhar juntos”. Pedimos que São Pedro e São Paulo nos ajudem nesta nova etapa da Igreja. Naquele tempo, não tinha como mandar cartas pelo e-mail ou no celular, mas hoje sim. Novas tecnologias, nova participação, novo jeito de caminhar juntos. Mas sempre a mesma fé e o mesmo entusiasmo apostólico, porque a missão da Igreja não acabou.

A pedra fundamental

Um padre antigo, muito santo, disse:

– É impossível construir uma casa de cima para baixo; ela precisa ser erigida a partir do fundamento.
Perguntaram-lhe:

– Qual é o sentido dessa palavra? Ele lhes respondeu:

– A pedra fundamental é o próximo, a fim de que o ganhes. Isso precisa estar no início, pois desse fato dependem todas as demais prescrições do Senhor.
No evangelho de Marcos deste 13º Domingo do Tempo Comum, encontramos Jesus “curando” uma mulher doente e uma criança considerada já morta. Logo pensamos em milagres, mas ao evangelista não interessam tanto o maravilhoso e o extraordinário. No final do trecho, o próprio Jesus pede que ninguém saiba do fato da menina. Bem diferente foi o caso da mulher, curada no meio da multidão que o comprimia. Para o evangelista Marcos, Jesus “ensina” mais com os gestos do que com as palavras. Cabe aos ouvintes da Boa Notícia reconhecer a mensagem e, mais uma vez, deixar-se envolver.

A primeira constatação é que Jesus não faz acepção de pessoas. Ele se solidariza com os sofredores e não escolhe a quem dar atenção e a quem não dar. Vale para Jairo, chefe da sinagoga. É um pai desesperado com uma filhinha gravemente enferma. Por causa das hemorragias, a mulher que o toca seria “impura” e, portanto, não devia tocar em ninguém e nem ser tocada. Mas ela confia e arrisca a reprovação de todos, até alcançar a roupa de Jesus. Assim, fica curada. No entanto, algo diferente aconteceu. Aquele não foi um empurrão qualquer ou um aperto casual. Foi uma decisão, uma escolha, uma expressão de fé nele, que Jesus reconhece e louva. A segunda consideração diz respeito àquela que hoje chamaríamos “propaganda”. Jesus prefere ser caçoado que fazer uma demonstração pública de poder. O que ele quer ensinar é o amor às pessoas, o cuidado, a aproximação. No quarto da menina, ficam somente os pais e os três discípulos de sempre, testemunhas privilegiadas do novo que estava acontecendo.

Podemos dizer, simplesmente, que Jesus, na sua maneira de agir, é coerente com o que ensina, em palavras, em outros evangelhos. Por exemplo, em Mateus, sabemos que seremos julgados pelo bem feito aos necessitados, sem preferências ou discriminações. O amor verdadeiro é para todos os que precisarem, porque em todos os sofredores está chorando Jesus, mesmo que não o reconheçamos (Mt 25,31-46). Quando praticamos a esmola, a oração e o jejum, não devemos fazê-lo nas praças, nem mandar tocar a trombeta. A mão esquerda não deve saber o que faz a mão direita e nosso rosto deve manifestar a alegria de praticar o bem (Mt 6, 1-18).

Na dinâmica do evangelho de Marcos, tem, porém, algo mais: a fé e a esperança do pai Jairo e da mulher doente. Ambos procuram Jesus, o primeiro pedindo abertamente; a segunda, em silêncio, envergonhada pela sua situação. Não há como não pensar nas nossas orações e nos nossos pedidos. Alguns deles, sabemos, são estrondosos e fazem barulho, também nas nossas igrejas. Outros não, ficam escondidos no coração das pessoas. Acontece um diálogo secreto, na frente do Sacrário ou, talvez, de uma imagem, mas o pensamento é no Senhor, para que tenha misericórdia e venha nos socorrer. O que não pode faltar nas nossas orações é a fé, porque sabemos que estamos falando com Alguém que nos escuta, Alguém que, com certeza, de uma maneira ou de outra, vai nos socorrer. Por isso, Jesus diz ao pai Jairo: “Não tenhas medo. Basta ter fé” (Mc 5,36). E à mulher que estava tremendo: “Filha, a tua fé te curou” (Mc 5,34). Como Deus faz isso? Através das pessoas de bom coração que não pensam somente nos seus interesses, no seu lucro ou na sua tranquilidade. São homens e mulheres que colocaram mesmo como pedra fundamental da própria vida o amor ao próximo. Escutam palavras semelhantes àquelas que disseram a Jairo: “Tua filha morreu. Por que ainda incomodar o mestre?” (Mc 5,35). Não, eles e elas não desistem. Sempre se deixam incomodar pelo sofrimento alheio, como Jesus.

Nenhuma esperança

Opiloto comunica aos passageiros durante o voo:

– Aqui é o comandante. Sinto muito, mas estamos com um terrível problema. Somente Deus pode nos salvar.

Um dos passageiros pergunta ao padre que estava sentado ao seu lado:

– O que ele falou que eu não entendi? E o padre responde:

– O piloto falou que não tem mais nenhuma esperança!

Peço desculpa pela brincadeira, mas, às vezes, é isso mesmo que acontece: confiar em Deus e não ter mais nenhuma esperança são a mesma coisa. Se
enxergássemos ainda alguma possibilidade, provavelmente, nem pensaríamos nele. Será, então, que a fé em Deus serve somente nas horas difíceis da vida ou, na prática, não serve mesmo para nada? Qual lugar, tempo ou espaço Deus ocupa nos dias “normais”? O evangelho de Marcos deste 12º Domingo do Tempo Comum nos fala de uma tempestade que o barco, com Jesus e os discípulos, enfrenta durante a travessia do mar da Galileia. Todos ficam apavorados com medo que a barca afunde e os leve para o abismo. Todos não, porque Jesus dorme tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo. Os discípulos o acordam com uma pergunta dramática que é pedido e provocação ao mesmo tempo: “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?” (Mc 4, 38). Jesus atende ao pedido e manda a tempestade se acalmar. À provocação – se lhe importava ou não a vida dos seus amigos – responde com uma pergunta: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé? (v.39). Como sempre, Jesus surpreende pelo poder, porque o vento e o mar lhe obedecem, mas também por colocar em questão a fé dos discípulos. Primeiro, Jesus responde ao pavor deles e manda calar as forças da natureza. Com isso, deixa entender que se importa muito com as suas vidas. Estava dormindo sim, mas não zomba da fraqueza daqueles homens, conhecia bem as fragilidades deles que são também as nossas. Dessa vez, ele mesmo resolveu a situação. Foi suficiente acordá-lo.

O nosso Deus, não é um ser caprichoso e imprevisível, ou, pior, vingativo, alguém que goste de fazer sofrer os seres humanos. Ele está conosco, nos ama muito e quer que todos tenhamos vida e vida em abundância (Jo 10,10).

No entanto, quantas outras vezes rezamos e imploramos a Deus para que nos ajude numa determinada circunstância e ele parece não responder, parece ausente, ele estando na sua divina tranquilidade e nós no pior desespero. É nesse momento que Jesus reclama da falta de fé dos discípulos. Porque ter fé significa, justamente, continuar a acreditar e a confiar em Deus, também nas horas difíceis, quando ele parece nos ter abandonado. Alguns acham que ter fé seja dizer a Deus o que ele deve fazer e que ele tenha mesmo que estar sempre pronto a obedecer às nossas ordens. Caso contrário, seria um Deus mau e se tornaria inútil acreditar nele. É verdade que Jesus disse: “Tudo o que, na oração, pedirdes com fé, vós o recebereis” (Mt 21,22), mas será que isso vale para “tudo” mesmo? Com certeza, nós pedimos saúde, dinheiro, sorte, felicidade e vida cômoda. Ninguém pede sofrimentos e provações. Contudo de uma forma ou de outra, antes ou depois, todos experimentamos enfermidades e aflições corporais e espirituais ao longo de nossa vida. Por fim, passaremos pela morte. Maldade de Deus e destino cruel? Se fosse assim, só nos restaria baixar a cabeça e resmungar sem esperar resposta alguma.

Com a luz da fé, porém, as coisas tomam outras cores e podemos enxergar além das coisas materiais e das circunstâncias imediatas. É possível descobrir riquezas onde parece existir só miséria. É possível ver plenitude de vida também em poucos dias de existência. É possível reconhecer a liberdade e a gratuidade do amor, também onde e quando as deficiências humanas parecem gritar o oposto. A fé cresce com a compaixão e a solidariedade, ensina-nos a sermos companheiros de viagem. Deus não deixa faltar as suas consolações, ele está mais perto de nós do que pensamos, sobretudo quando estamos atravessando as tempestades da vida. A nossa esperança nele nos impede de desistir do amor. A única força mais forte do que a morte, porque “o amor jamais acabará” (1Cor 13,8).

A tarefa mais difícil

Estava acontecendo entre os discípulos uma grande discussão. Queriam saber qual era a tarefa mais difícil de todas: colocar por escrito aquilo que Deus revelava através das Escrituras, compreender o que Deus tinha revelado nas Escrituras ou explicar as Escrituras aos outros depois de tê-las entendido.

Quando perguntaram ao mestre o seu parecer ele disse:
– Conheço uma tarefa mais difícil ainda.
– Qual é? – perguntaram os discípulos.
– Mostrar a vocês, cabeças duras, a realidade como ela é.
“De novo, Jesus começou a ensinar” (Mc 4,1), assim se inicia o cap. 4 de Marcos, do qual são tiradas as duas parábolas que encontramos no evangelho deste domingo. Uma, a da semente que cresce na terra “por si mesma”, a encontramos somente em Marcos, a outra, aquela do grão de mostarda, está também nos evangelhos de Mateus e Lucas. As parábola foram a maneira de Jesus explicar, através de comparações, aquela realidade complexa e ao, mesmo tempo, maravilhosa que é o Reino de Deus. Tudo começa com um semeador que espalha a semente. No entanto no tempo em que o semeador “dorme e acorda, noite e dia” (Mc 4,27), a semente vai germinando e crescendo e ele não sabe como isso acontece.

Hoje, nós podemos explicar como advém a transformação da semente em plantinha e depois como esta vai crescendo. Conhecemos os segredos das reações químicas entre os componentes que alimentam as plantas, a força da energia luminosa, a necessidade da água e a sucessão dos demais processos de desenvolvimento delas. Sabemos que a intervenção humana pode acelerar ou modificar algumas condições no crescimento das plantas, mas nada pode mudar a sucessão dos momentos que parecem já estar programados na própria natureza. “Primeiro aparecem as folhas, depois vem a espiga e, por fim, os grãos que enchem a espiga” (Mc 4,28), passam os séculos, mas, pelo jeito, esses passos continuam os mesmos.

Essa é a realidade e nós deveríamos ficar encantados e agradecidos com isso. A natureza toda, com as suas regras e os seus ritmos, é uma dádiva maravilhosa que já encontramos quando chegamos neste mundo. Este é o sentido mais importante da parábola: como a natureza, assim o Reino de Deus tem uma força própria que o faz crescer, porque o Reino é, em primeiro lugar, obra e dom de Deus. Isso não significa, de jeito nenhum, que nós cristãos tenhamos que ficar só aguardando, de braços cruzados, as coisas acontecerem. Jesus nos envia como “sal da terra e luz do mundo”, mas sempre como colaboradores de uma obra extraordinária que é dele e, portanto, vai acontecer mesmo e apesar dos obstáculos que nós, infelizmente, colocamos. Não é humilhante sermos “colaboradores” da obra de Deus, sobretudo quando somos chamados de “amigos” e não mais de servos ou simples ajudantes que seja (Jo 15,15). Deveríamos ficar felizes e agradecidos por tanta confiança e paciência. Para sermos cristãos de verdade, não basta declararmos que temos muita fé, ou insistirmos num moralismo que só enxerga os erros dos outros. O segredo da alegria e do sofrimento da vida cristã é nos deixarmos envolver na semeadura e no testemunho dos valores do Reino. Poderemos ver o Reino crescer e se expandir como, também, poderemos ser perseguidos por causa do Filho do Homem (Lc 6,22). O Reino, portanto, será sempre um “dom” que deve ser pedido ( Pai Nosso!) e buscado para que todos os outros bens que Deus quer nos dar “por acréscimo” cheguem até nós (Mt 6,33).

A parábola da semente de mostarda, a menor de todas as sementes da terra, confirma, por contraposição, a grandeza do Reino. Pode parecer pequeno conforme os critérios dos poderosos deste mundo, insignificante talvez, mas crescerá, porque o bem e a vida vencerão o mal e a morte. Que alegria podermos nos abrigar, confiantes, à sombra da árvore frondosa do Reino! No entanto, continuamos com as nossas cabeças duras, porque julgamos o Reino com as nossas medidas humanas de poder e grandeza, e esquecemos a “força” invencível, mas escondida e interior, do amor de Deus.

Um pedaço de verdade

Certa vez, o Diabo saiu para passear com um amigo. Na frente deles, viram um homem que se baixava e recolhia alguma coisa do chão.
– O que aquele homem encontrou? – perguntou o amigo.
– Um pedaço de verdade – respondeu o Diabo.
– E você não está triste por causa disso?
– Não – respondeu o Diabo – vou deixar que, com aquilo que ele encontrou, invente uma nova religião.
Já estamos novamente no Tempo Comum da Liturgia e voltamos a ler trechos do evangelho de Marcos. Na página deste domingo, aparecem muitos personagens, além de Jesus e dos discípulos, alguns visíveis e outros, digamos, “invisíveis”, mas não menos importantes: Belzebu e o Espírito Santo. Ao redor de Jesus se reúne a multidão e ele fica tão ocupado que nem tem tempo para comer. Assim, preocupados, ou talvez interessados, chegam os parentes e os mestres da Lei. São esses últimos que espalham a acusação de que Jesus está agindo pelo poder de Belzebu, o príncipe dos demônios. Jesus responde com uma parábola que apresenta um raciocínio óbvio. Se os membros de um reino, ou de uma família, dividem-se uns contra os outros, aquele reino, ou aquela família, não sobreviverá. Qualquer divisão é sinal de fraqueza, nunca de força. Nesta altura, Jesus contrapõe-se ao “espírito mau”, pelo qual diziam que ele estava possuído, o “espírito bom”: o Espírito Santo. O pecado que não pode ser perdoado é, portanto, a incapacidade de reconhecer o bem que estava acontecendo, o amor de Deus Pai que Jesus tornava visível, e sustentar o contrário, como se o bem fosse um mal. Quem afirma que Deus é mau, ou que é causa do mal, está blasfemando. No final do trecho, reaparecem os familiares de Jesus, aqueles que queriam agarrá-lo. Não sabemos se era mesmo para protegê-lo da multidão e dos mestres da Lei ou, quem sabe, para tirar algum proveito daquele inesperado sucesso. Por isso, Jesus corta logo qualquer interesse escuso. Ele está começando a formar uma nova família, não mais unida pelos laços do sangue, mas pelo compromisso a cumprir “a vontade de Deus”, vontade essa que não é de divisão, lucro ou poder, mas de comunhão, fraternidade e serviço.
Volto a refletir sobre o pecado que, disse Jesus, não pode ser perdoado. Com certeza, nós não blasfemamos diretamente contra Deus, nem pensamos nisso. No entanto, tem uma maneira mais sutil, não sei se menos grave, de cair neste pecado: falar mal do bem que os outros fazem. Ou seja: pensar que o bem mesmo seja somente e exclusivamente aquele que é feito pelos nossos, os que pensam como nós, que são do mesmo partido, da mesma religião, do mesmo grupo. Todos os outros nunca fazem nada de bom, sempre fazem tudo errado.

Nesse caso, conscientemente ou não, alimentamos as divisões, os preconceitos, as exclusões. Cresce o desprezo, a não escuta do outro, o não querer ver. Como é difícil reconhecer o bem que os outros fazem ou que fazem de maneira diferente da nossa! Quanto bem, talvez, deixa de ser feito, de acontecer, porque não sabemos unir as forças, recusamos colaborar com quem tem outra crença ou mesmo nenhuma!

Hoje, a humanidade e o planeta vivem momentos dramáticos. Nunca iremos resolver, ou ao menos amenizar, a questão da fome de milhões de seres humanos se não juntarmos as forças e todos os países fazerem algo em prol disso. Igualmente a questão ecológica exige a disposição de todos para diminuir os consumos, a poluição, a produção de lixo, o uso indiscriminado da água potável. Neste momento, o bem importante é a sobrevivência de todos e não somente de alguns, é a responsabilidade com as futuras gerações a longo prazo e não a busca de uma saída temporária, superficial e insustentável. A maneira de agir e de falar de Jesus não se encaixava naquela dos mestres da Lei. Por consequência, eles julgaram que o que ele fazia só podia ser algo mau, errado, obra de satanás. Isso em nome da religião deles. Ainda hoje fanatismos, fundamentalismos e intolerâncias nos cegam. Assim, vida digna para todos, vida de paz e alegria, ficam para depois. O diabo agradece.

Promessas

Certa vez, após uma sangrenta batalha, Alfred, o rei da Inglaterra teve medo e fugiu. Se embrenhou numa floresta desconhecida até que encontrou uma casa humilde e uma mulher aceitou acolhê-lo. Para ela, o rei era simplesmente um soldado inglês cansado e faminto. A mulher lhe disse:

– Vou sair para buscar um pouco de leite das minhas cabras. Você promete que ficará reparando o pão que estou assando no forno, para que não queime? Alfred prometeu. No entanto, preocupado com as sortes do seu exército e do reino, se esqueceu de ficar olhando o pão. Ficou todo carbonizado e a cozinha cheia de fumaça. Quando a mulher voltou, deu-lhe um forte tapa na cara, reclamando pela desatenção. Alfred disse:

– Como se atreve a bater no seu rei! Mas a mulher replicou:
– O senhor tinha-me dado a sua palavra que ficaria olhando no forno. Devia tê-la mantida!
Conta a lenda que foi neste momento que o rei Alfred se lembrou do juramento feito quando subiu ao trono. Tinha prometido que iria defender o seu povo até ao custo de sua vida. Envergonhou-se de ter abandonado a batalha. Voltou, reorganizou as suas forças e ganhou a guerra.

Lenda é lenda, acredite quem quiser, no entanto, lembra-nos que as promessas que fazemos não podem ser meras palavras jogadas ao vento. De maneira especial quando envolvem a vida de outras pessoas. Pensamos a tantos juramentos profissionais, quando alguém assume um cargo público, as promessas matrimoniais, da vida religiosa e consagrada e nos graus do sacramento da ordem. Antigamente, dizem, que bastava a palavra dada para selar alianças entre reinos e nos contratos comerciais. Talvez precisasse de algumas testemunhas, mas a palavra dada era fundamental. Hoje, assinamos papéis e mais papéis, mas a fidelidade às promessas parece ter ficado nos costumes do passado. Sem falar dos crimes praticados todo dia pela internet com a promessa de lucros extraordinários e com comprovantes que, depois, revelam-se inexistentes. Claro que estou generalizando muito e que tudo isso não vale para todos. Contudo estamos nos acostumando até com as declarações públicas de pessoas famosas que depois são regularmente desmentidas ou reviradas com explicações opostas. A prudência é uma virtude, assim como a sinceridade e a honestidade, mas o medo de sermos enganados cria, infelizmente, um clima de desconfiança e dúvida.

No evangelho de Mateus, deste domingo da Santíssima Trindade, Jesus envia os seus apóstolos a todos os povos, sem discriminação, para que, através do batismo, eles também se tornem seus discípulos. Uma missão sem limites, mas com uma promessa decisiva: “Eis que eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20). Se não compreendemos bem essas palavras e esquecemos de outras, podemos chegar a duvidar até das promessas de Jesus. Por exemplo, se entendemos que a presença de Jesus seja garantia de sucesso – no sentido mundano da palavra -, de multidões ou de poder, estamos redondamente enganados. É mais provável que a Comunidade dos discípulos tenha que passar por críticas e perseguições. Juntos com os bons frutos aparecem, também, as nossas fraquezas e falhas. O caminho do Evangelho será sempre o caminho da cruz, ou seja, do sofrimento, do sacrifício, da vida doada. Se for por amor, porém, antes ou depois, a bondade vencerá. Outro detalhe que não devemos esquecer: ser discípulos de Jesus não significa ter a exclusividade do bem. Com certeza, outros podem fazer melhor do que nós. A presença de Jesus vivo e ressuscitado não será medida simplesmente pelos resultados de uma ou de outra obra, mas pela capacidade de recomeçar sempre de novo. Porque é assim que acontece. Todos cansamos de sermos “bons”, tem hora que dá vontade de esquecer os pobres e tirar satisfação de quem nos ofendeu. Manter viva a esperança da força invencível do amor, essa é a nossa missão. Jesus não está entre nós para ganharmos sempre e de qualquer jeito. Ele está conosco para que nunca desanimemos e para que lembremos que o Reino é dele, não o nosso. “…E o seu reino não terá fim” (Lc 1,33).

A Verdade e a Mentira

Vivemos num mundo em transformação. A sociedade digital mudou tanta coisa que isso atingiu o nosso modo de pensar. O aspecto mais discutido é o que se chama de “a morte da verdade”. São tantas versões sobre um fato que não se sabe qual é a verdade.

Este problema não é novo. Sempre foi uma questão fundamental e está no centro do Evangelho. Pilatos pergunta a Cristo: “Tu és rei?” Jesus diz que veio para dar “testemunho da verdade”, e Pilatos retruca: “O que é a verdade?” O que acontecia era que falavam “línguas” diferentes: Jesus, a de Deus; Pilatos, a do poder.

Agora nos deparamos com o problema do testemunho, ou melhor, das testemunhas. Querem que elas digam a verdade, mas a verdade é que, para elas, já não existe a verdade. Ora a verdade é uma abstração, algo que lhes querem impor com nomes que lhes são alheios, como fatos, ciência, até mesmo mostrando-lhes gravações com uma imagem em que não se reconhecem. Ora é uma coisa que não foi dita para valer, foi dita para dizer o que querem ouvir.

Além da mentira, há o caso do mentiroso: mente quem diz a mentira ou quem construiu a mentira? Pelo menos é o que está lá no Montaigne: “Eu sei que os gramáticos distinguem dizer mentira de mentir; e dizem que dizer mentira é dizer coisa falsa, mas que se pensa que é verdadeira.” Como a definição da palavra em latim quer dizer ir contra sua consciência “isso só toca àqueles que dizem o contrário do que sabem”.

Mas acrescenta que mentir é “um vício maldito, pois somos homens e só temos uns aos outros pela palavra”; e que depois que se começa a mentir é difícil parar. “Se, como a verdade, a mentira só tivesse uma face, estaríamos em melhores termos. Porque tomaríamos por certo o contrário do que diria o mentiroso. Mas o contrário da verdade tem cem mil rostos e um campo indefinido.”

Assim vai andando a verdade, quer dizer, a mentira. Pois o mentiroso diz o que sabe que é falso, mas quando acha que o que é verdadeiro é falso, não sabe o que dizer, se a falsa verdade ou a verdadeira mentira. E eu podia terminar com o Padre Vieira: “Finalmente, reduzindo todo o discurso, ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque mentem os ouvidos; mentem as línguas, porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos mentem.”

Mas, hoje, quando a sociedade se pauta pela rede social e admite várias versões da verdade, pode parecer que não se sabe mais onde está a verdade; no entanto a verdade, aquela que não é versão, mas fato, existe.

Eu mesmo sei uma verdade incontestável: o Brasil precisa vacinar toda a sua população, seguir as recomendações dos cientistas e salvar vidas. Pois há vidas a serem salvas, e com elas o País tem obrigações.

Não é especulação filosófica ou um jogo de palavras. É a realidade que estamos vivendo.

A capa rasgada

Certa vez, um soldado perguntou a um ancião:
– Deus concede o perdão aos pecadores? O ancião respondeu:
– Me diga, se a sua capa rasgar, você vai jogá-la fora? O soldado respondeu:
– Não, eu vou concertá-la e voltar a usá-la novamente. O ancião concluiu:
– Se você zela assim por sua capa, Deus não será misericordioso com o ser humano que é a sua própria imagem?
Com a solenidade de Pentecostes concluímos o Tempo Pascal. Fomos convidados a crescer na fé, a produzir bons frutos e enviados em missão até “os confins da terra” e até o fim da história.

Muitas coisas devem ser guardadas porque constituem a nossa “memória”, mas muitas outras precisam de renovação ou serão mesmo totalmente novas, nas formulações, no entusiasmo, na coragem. No início do “novo milênio”, proclamamos: Jesus Cristo ontem, hoje e sempre. No entanto a humanidade se renova a cada geração e nenhuma repete simplesmente o que recebeu das gerações que a precederam. A “sabedoria” para discernir o que não pode mudar e o novo que surge é obra do Divino Espírito Santo. Quando Jesus prometeu o dom do Espírito disse: “ele vos ensinará tudo e recordará tudo o que eu vos tenho dito” (Jo 14,26). O Espírito, portanto, nos garante a memória de Jesus, para que não cheguemos a anunciar alguém que não seja mais aquele único Senhor Jesus Cristo. Contudo, o mesmo Espírito nos “guiará a toda a verdade” e “anunciará coisas que hão de vir” (Jo 16,13), ou seja, algo “novo” que ainda não conhecemos.

Tudo isso porque nós acreditamos que algo, como a Encarnação, Paixão Morte e Ressurreição de Jesus, foram eventos que aconteceram uma vez por todas. Porém é também verdade que a cada ser humano que chega neste mundo deve ser oferecida, de uma forma ou de outra, diretamente ou indiretamente, a possibilidade de encontrar Jesus Cristo e, talvez, tornar-se seu discípulo ou discípula. Digamos: um encontro “novo” para pessoas “novas”.

No evangelho deste Domingo de Pentecostes, junto ao dom do Espírito Santo, encontramos mais três “presentes” de Jesus: a paz, a missão e o perdão. O envio da Comunidade expressa a vontade do Senhor que os seus seguidores continuem a mesma missão dele, a que o Pai lhe confiou: de fazê-lo conhecer e amar. Não, portanto, um Deus que afaste e amedronte, um Deus cobrador, castigador e imprevisível nos seus caprichos, mas um Pai amoroso e misericordioso, sempre pronto a doar paz e perdão. Isso não porque Deus seja um bonachão, fácil de se enganar, mas porque nos ama de maneira surpreendente a ponto de respeitar as nossas recusas e revoltas. Acredito que devemos testemunhar mais o nosso Deus, Pai de Jesus Cristo, construindo paz e perdão. Vivemos numa sociedade competitiva ao extremo, onde sobressair e se impor é o sonho e o esforço de muitos. A afirmação individual e a busca de privilégios nos tornam cegos com os mais desfavorecidos, os simples e os pobres.

Duvido que o sucesso, conseguido a qualquer preço, dê a paz do coração. Mais facilmente dá arrogância e desprezo para os demais. Paz é encontro, diálogo, escuta, respeito e valorização do outro assim como ele é, um ser humano também imagem de Deus por desfigurado que seja. A paz verdadeira vai junto com o perdão. Este não é simples esquecimento do mal que fizemos. Perdão é correção dos erros, conversão de valores, mudança de atitudes, devolução do que injustamente roubamos. Hoje, não furtamos somente dinheiro ou bens materiais, tiramos também possibilidade, fechamos portas, recusamos compaixão e misericórdia.

Agradecemos quem nos dá atenção e é paciente conosco, porque carinho e solidariedade ficaram pérolas raras. Queremos tudo para nós, reclamamos da falta de amor, mas esquecemos a alegria de doar um pouco do nosso tempo, sem cobrar depois, sem jogar na cara o que fizemos e que, talvez, era nossa obrigação como pais, mães, filhos, irmãos, chefes, patrões… Perdão é “remendo” sim, para lembrar que podemos rasgar tudo novamente. Mas se é Deus que perdoa, podemos começar um caminho “novo”. Alegres e confiantes.

Dois passageiros

Um navio bateu de repente nuns recifes e uma das suas laterais se abriu. O alarme foi dado com atraso. Contudo a maioria dos passageiros conseguiu correr e pegar os botes de salvamento. Somente dois passageiros ficaram parados nas suas cabines. Chamavam-se: “Não vou dar conta” e “Não tenho nada a ver com isso”. Ambos se afogaram quando a embarcação afundou.

Chegando no final do Tempo Pascal, encontramos duas grandes solenidades: Ascensão e Pentecostes. A Liturgia acompanha o que encontramos escrito no livro dos Atos dos Apóstolos. Essa foi a forma de organizar cronologicamente – e quase visivelmente, no tempo e por etapas – fatos e situações tão novas que ficaram difíceis de ser relatadas aos que viriam depois. O acontecimento da paixão e morte de Jesus já tinha deixado todos os seus discípulos desnorteados e com medo. Tinham largado “tudo” para seguir aquele mestre, talvez cada um com suas expectativas particulares, mas todos encantados com o jeito diferente dele no falar e no agir. Como seria agora a vida deles sem aquele que se tinha apresentado como “o Caminho, a Verdade e a Vida”? Experimentaram momentos de desânimo e tristeza. Porém, novamente, a “ressurreição” do Senhor surpreendeu a todos, desta vez enchendo-os de alegria e esperança. Aos poucos foram entendendo o sentido de tudo quanto tinha acontecido e a extraordinária missão a qual Jesus os tinha chamado e que agora deviam levar para frente.

A “Boa Notícia” de Jesus e o seu mandamento do amor não podiam ficar trancados naquele pequeno espaço onde eles se encontravam fechados e medrosos. A pessoa dele, a sua mensagem, o seu exemplo, eram tão importantes, tão capazes de transformar a vida, de lhe dar um sentido grande e feliz, que, a partir daquele momento, “toda criatura” (Mc 16,15) de perto e de longe, do presente e do futuro, merecia conhecer e experimentar aquele Deus Pai que o Filho tinha desvelado para sempre. Eram poucos, pobres e fracos. Muito mal podiam imaginar o que os aguardava, os caminhos que iriam percorrer, os obstáculos que iriam encontrar para chegar “até os confins da terra”, lá onde Jesus os enviara. No entanto, de jeito nenhum ficaram “parados olhando para o céu” (At 1,11). Voltaram para Jerusalém. A vida deles estava envolvida e entrelaçada, uma vez por todas, com a vida de Jesus, o crucificado, que agora começaram a anunciar como aquele que “Deus constituiu Senhor e Cristo” (At 2,36). Somente a força do Divino Espírito Santo podia explicar tanta paixão e ousadia.

Esta, e não outra, será para sempre a missão da Igreja, a comunidade dos discípulos de Jesus: ir pelo mundo para anunciar o Evangelho (Mc 16,15). Para cumprir essa tarefa precisamos sempre e de novo vencer, ao menos, duas tentações: a de nos esquivar da responsabilidade e aquela de nos julgar incapazes. Seja num caso como no outro o resultado é o mesmo: ficar parados e acomodados em nós mesmos, nos nossos grupos e estruturas. Disputamos para ver quem fala mais bonito, quem tem mais seguidores, quem bate palmas mais forte. A pregação mais importante e valiosa não é aquela que fazemos entre nós, mas o Evangelho que anunciamos com a nossa vida, lá onde o Senhor nos colocou para sermos suas testemunhas. O cristão melhor não é aquele que fala muito de Jesus, mas aquele que vive como Jesus, aquele que sabe escutar o grito do pobre, acolher o irmão diferente, perdoar as ofensas. Quando refletimos sobre tantas situações das quais tomamos conhecimento, sobretudo quando são de sofrimento, abandono, violência e injustiça, devemos nos perguntar se por lá não tem cristãos capazes de agir de maneira mais justa, amorosa e fraterna. Só que o questionamento vale também para cada um de nós, se temos coragem de olhar à nossa família, ao nosso bairro, à nossa cidade. Nem passe pela nossa cabeça que não temos força para mudar as coisas. Onde ficou o Espírito Santo? E, se formos indiferentes, podemos ter certeza de que ele dará entusiasmo e ousadia a outros. Conosco ou sem nós, a missão continua.

Felicitas

Felicitas era uma ajudante da paróquia católica de Gisengi em Ruanda. Quando aconteceu o genocídio, tinha acolhido na casa dela um grupo de hutus que corriam o perigo de serem massacrados pelos tutsis. O irmão dela era coronel e a tinha avisado que estava arriscando a vida. Felicitas escreveu para ele: “Irmão muito querido, agradeço a sua ajuda, mas salvar a minha vida agora significaria abandonar as quarenta e três pessoas das quais me sinto responsável. Escolho, por isso, morrer por elas. Meu irmão, reza para que todos possamos chegar à Casa do Pai. Dá um abraço forte à nossa mãe velhinha e ao nosso irmão. Eu rezarei por ti quando estiver com Deus. Veja de preservar a sua saúde. Muito obrigada por ter pensado a mim. Tua irmã Felicitas Miyteggaeka”. Quando os soldados chegaram para prendê-la, junto com as pessoas que tinha protegido, disse: “Chegou o momento de dar o nosso testemunho. Vamos”.

Chegando ao final do Tempo Pascal, antes das solenidades de Ascensão e Pentecostes, a Liturgia da Palavra nos apresenta, através de trechos diferentes, o grande – e único – mandamento de Jesus: aquele de nos amarmos uns aos outros (Jo 15,17). O amor fraterno deve ser o sinal distintivo dos “amigos” dele e o fruto produzido deve permanecer, ou seja, continuar a florescer e frutificar para sempre. Todo amor verdadeiro é a consequência da generosidade, da doação que cada ser humano pode fazer de si mesmo em prol dos outros, mas, diz Jesus, o amor “maior” é de quem “dá a vida para os seus amigos”. A referência à entrega dele na cruz é evidente. Ele mesmo nos deu o exemplo desse amor maior. Por esse amor total deveríamos sempre ser agradecidos e firmes no seguimento de Jesus, convencidos que esta é a única possibilidade de resgate do ser humano de todos os tempos e de todos os lugares. Como o de Jesus, o amor verdadeiro não conhece fronteiras nem de espaço e nem de tempo. É um caminho que deve ser percorrido. Quem entra nele, sempre deixa rastros, atrai. Outros o seguirão, porque oferece uma alegria diferente, uma felicidade e uma paz que somente assim se encontram. Quem doa com generosidade e sem interesse, também recebe com fartura os “dons” reservados a quem “permanece” no amor do Senhor.

“Dar a vida” pode ser mesmo morrer para salvar alguém ou solidariedade com as vítimas numa trágica circunstância. A história tem muitos exemplos disso, alguns conhecidos, outros que ficarão guardados no coração amorosos de Deus. No entanto, o mandamento do amor não pode ser reservado para alguns raros momentos de heroísmo e desprendimento, deve tornar-se o jeito de viver ordinário do cristão. Jesus pede a todos para “dar vida”, ou seja, trabalhar, lutar e nos unir para que todos “tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Para entender isso é bom lembrar que o contrário de “dar vida” é tirar vida, limitar ou mesmo desprezar e desvalorizar a vida dos outros. Todos somos tentados a cuidar em primeiro lugar de nós mesmos. Talvez seja uma questão de sobrevivência, mas, muitas vezes, é fruto mesmo do egoísmo. Os antigos padres da Igreja já ensinavam que a roupa que guardamos no armário e não usamos é a roupa do pobre que não tem o que vestir. Quem deve decidir o que não lhe serve e que pode ser partilhado é cada um de nós. Acumular sem necessidade pode ser mesmo tirar o sustento de outros, condená-los a uma vida miserável. Não é isso, evidentemente, o que exalta a sociedade de hoje pela qual somos conduzidos a comprar e consumir muitas coisas das quais antes nem sentíamos falta, mas que depois se tornam indispensáveis à nossa vida. Desse jeito, vai sobrar muito pouco para os pobres.

A nossa irmã Felicitas foi heroína um dia, mas o seu amor e o seu martírio começaram muito antes, quando acolheu em sua casa os hutus perseguidos. Eram de outra raça e, naquele momento de guerra tribal, inimigos, mas ela nem pensou nisso. A generosidade não se improvisa. Se aprende aos poucos. Para nós cristãos, só olhando a Jesus.