Dom Pedro Conti

Ele veio para nos salvar

Neste ano, o Natal cai no sábado e, logo em seguida, no domingo, celebraremos a Sagrada Família. Teremos uma boa oportunidade para contemplar, no Presépio, aquela família especial: Maria, José e o recém-nascido, o menino Jesus. Depois, em muitas das nossas casas, poderemos ver, admirar ou, simplesmente, observar as nossas famílias reunidas. Algumas alegres; outras, ao menos, juntas, deixando de lado os conflitos e as incompreensões; outras, enfim, com saudade daquele ou daquela que não está mais ali. Vale a pena nos perguntarmos: o que quer dizer Jesus veio para nos salvar? Nos salvar de quê? Salvar as nossas famílias? Quais famílias? “Salvar” supõe que alguém esteja em perigo.

Por isso, a resposta que nós damos como a mais certa é que Jesus veio para nos salvar do pecado. Mas, hoje, todos nós temos dificuldade para entender claramente o que é “pecado”. Com base em quê admitimos fazer algo errado? Se a nossa referência é o pensamento que entendemos “de todos”, corremos o perigo de achar que violência, corrupção e mentira, por exemplo, sejam toleráveis, corriqueiras e, talvez, impossíveis de se erradicar. Por isso, vou tentar dizer, em poucas palavras, de quê o Senhor Jesus veio nos salvar, ao menos se, ainda, temos um pouco de fé e achamos realmente extraordinário que aquele a quem nós temos a ousadia de chamar de “Deus” tenha se envolvido tanto assim com a nossa humanidade.

Em primeiro lugar, Jesus veio nos salvar da falta de esperança. Estamos desistindo de querer construir uma convivência humana mais fraterna e solidária. A corrida ao enriquecimento, a indiferença com o sofrimento dos pobres, a fuga num mundo virtual, acabam adormecendo as nossas consciências e nos levam a concluir não ter mais jeito, que é inútil lutar por um mundo mais justo e solidário. Jesus não resolveu todas as questões e nem implantou um sistema ideal. Apontou-nos, porém, uma meta e nos ensinou o caminho.

O “reino de Deus” que ele anunciou é um projeto. Não é algo que vem já pronto de fora, é algo com o qual nós podemos contribuir, mas só na condição de nos envolver totalmente, ou seja, de acreditar nele e sermos dispostos a gastar tempo e energia para isso. A paz e a justiça nunca vão acontecer se nós, um por um, não acreditarmos que sejam possíveis e que devemos ser nós a começar, justamente lá onde a vida nos colocou. O Filho de Deus Pai “veio” na carne humana, aceitou as nossas fraquezas e limitações, menos o pecado. Quis ser criança, aprender aos poucos, descobrir sua missão no silêncio e na oração, na intimidade com o Pai, mas também buscou respostas e sentidos junto aos discípulos, aos sofredores que clamavam, e até se confrontando com aos adversários que o desafiavam.

Outra questão fundamental: declarou que tinha vindo para “anunciar a boa notícia aos pobres”, ou seja, alertava que o Reino ia começar pelos pequenos, os humildes, os pastores do Natal, os doentes excluídos, os pecadores julgados e condenados. Não teve receio de sentar-se à mesa dos pecadores para deixar entender que a todos é possível recomeçar e reverter situações aparentemente esclerotizadas. Por fim, surpreendente maravilha, o nosso Deus, feito carne em Jesus, aceitou ser crucificado como um malfeitor qualquer, passando vergonha e escárnios. Tudo para não desistir do seu amor manifestado com as suas palavras e, sobretudo, nos encontros com aqueles e aquelas que eram considerados indignos de atenção e, portanto, da compaixão misericordiosa do Pai.

Para iniciar o “reino de Deus”, Jesus não escolheu meios poderosos ou pessoas importantes, não esperou que esses mudassem a maneira deles de pensar e agir. Acreditou que os pequenos, eles sim, podiam começar algo novo. Foi inútil ilusão ou verdadeira esperança?

Hoje cabe a nós dar esta resposta. Mais uma vez, a humildade do Presépio nos ensina a escolher a simplicidade. No entanto, algo grande e profundamente interior deve acontecer: a conversão do nosso coração à força da esperança. Natal é para não desistir de seguir o Senhor, sempre. Também quando se apagarem as luzes da festa. ■

O que será de mim?

Um jovem gastou todas as riquezas que tinha herdado de seus pais. Como em geral acontece nesses casos, quando ficou sem dinheiro, também ficou sem amigos. Depois de esgotar todos os seus recursos, procurou um mestre e lhe disse:
– O que será de mim? Não tenho mais nem dinheiro e nem amigos.
– Não se preocupe, meu filho – respondeu o mestre – Escute o que lhe digo: tudo ficará bem de novo. A esperança brilhou nos olhos do jovem que disse:
– Vou ser rico de novo?
– Não! – disse o mestre – você se acostumará a viver liso e sozinho.
Neste Terceiro Domingo de Advento, encontramos no evangelho de Lucas mais um pouco da pregação de João Batista. Ele conclamava as pessoas a “um batismo de conversão para o perdão dos pecados” (Lc 3,3). Muitos acorriam e se perguntavam se não era ele o Messias esperado. Naquele momento, a espera de algum acontecimento novo ou de alguém diferente dos sacerdotes, dos escribas e doutores da Lei, que tomavam conta do Templo e das Escrituras, era muito grande. Todos, porém, entendiam que além daquele banho no Rio Jordão precisava fazer algo mais. Mas, fazer o quê? Essa é a grande pergunta – repetida três vezes – à qual João Batista responde de maneira diferente, conforme os grupos que formulavam a questão. Às multidões ele diz que deviam dar comida e roupa a quem não as tinha. Aos cobradores de impostos ensina que não devem exigir mais do que o estabelecido. Ou seja, nada de exploração. Aos soldados, enfim, pede que não usem violência ou falsidades para extorquir dinheiro das pessoas. Na prática, João Batista retoma a pregação dos antigos profetas. Ao longo de séculos, foram eles a voz de Deus que repetidamente os enviava para exortar o povo a voltar à primeira aliança, para que de novo iescolhesse a ele, Deus, como único Senhor. No entanto sempre apareciam falsos deuses para serem adorados. Muitas vezes estavam disfarçados de imperadores e reis, mas, no fundo, eram os ídolos de sempre: a riqueza, o poder e a força. João Batista retoma, com vigor, a linguagem dos profetas e, por isso, podemos dizer que é o último deles. Além disso, ele anuncia outro que está para chegar, mais forte do que ele e que “batizará no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3,16). O evangelista Lucas chega a dizer que João Batista “de muitos outros modos anunciava ao povo a Boa-Nova” (Lc 3,18). Sem dúvida, a “voz daquele que grita no deserto” preparou o povo e alimentou as expectativas dele, mas não conseguiu antecipar a novidade de Jesus do qual dirão que “nunca alguém falou assim” (Jo 7,46).
Jesus não respondeu simplesmente à pergunta: “o que devemos fazer?”, ele nos ensinou e nos mostrou com o seu exemplo como devemos ser, inclusive, para experimentar a felicidade. Jesus não deixou uma “lei” entendida como um conjunto de normas, mas um modelo de vida pautado no único mandamento do amor. Portanto, um jeito de viver com todas as possibilidades, oferecidas a todos e de tantas maneiras, sem limites de criatividade para o amor, a compaixão e a misericórdia verdadeiros.
Quando Papa Francisco quis propor a santidade para os cristãos no mundo atual, simplesmente lembrou as Bem-aventuranças. Para vencer o ídolo da riqueza, Jesus ensinou a felicidade da pobreza, da vida simples e livre, sem todas as armadilhas e correntes que a cobiça do dinheiro traz. Para superar o ídolo da força e da violência, Jesus indicou a alegria de quem sofre para construir a paz e a mística . A pureza de coração e a mansidão também libertam do desejo de impor a si mesmo ou as próprias ideias. Por fim, para derrotar o ídolo do poder, sempre muito adorado em todos os tempos, Jesus ensinou a humildade, apontou a alegria de estar no último lugar ao serviço dos irmãos. Quando lavou os pés dos discípulos disse: “Sabendo isso, sereis felizes se o praticardes” (Jo 13,17). Para o pensamento do mundo, sempre será mais fácil se acostumar com a vida cômoda dos ricos e poderosos do que com a vida simples e austera de quem é pobre. Mas o pior é quando nem os pobres conseguem ser amigos entre eles.

A revelação

Um guru prometeu a um discípulo uma revelação de importância maior do que qualquer coisa contida nas escrituras. Quando o discípulo pressurosamente a pediu, o guru disse:

– Vá lá fora na chuva e erga os braços para o céu. Isso lhe trará a primeira revelação. No dia seguinte, o discípulo veio relatar:
– Segui o seu conselho e a água escorreu-me pelo pescoço. Senti-me um perfeito tolo.
– Bem – disse o guru – para o primeiro dia, essa é uma grande revelação, não acha?

Com este domingo, o Primeiro de Advento, iniciamos um novo Ano Litúrgico. É um tempo de preparação para aprender de novo a acolher o Senhor, sempre, e não somente no Natal que se aproxima. De fato, quando falamos em religião, logo pensamos no esforço humano de buscar a Deus, através da nossa inteligência, das orações e das práticas devotas. No entanto a primeira “novidade” da nossa fé é acreditar que a iniciativa da procura seja do próprio Deus. Isso desde o início com a primeira pergunta dele a Adão: – Onde estás? (Gn 3,9). Se confiamos, a Bíblia é a história, contada de tantos jeitos e formas, de um diálogo entre Deus e a humanidade, feito de encontros e desencontros, de acolhidas e recusas. O que dá para entender é que Deus sempre respeitou e respeita a nossa liberdade. Contudo, ele nunca desiste de nos procurar e de chamar, de mil maneiras, a nossa atenção. Ele pede que abramos a ele o nosso coração, até formar aquela grande família que o reconheça como o único Pai que ama a todos e não quer perder nenhum dos seus filhos e filhas. É uma história longa e não sabemos a que ponto estamos nessa empreitada. O que cabe a nós, nos anos que passamos neste planeta viajante no universo, é nos deixarmos encontrar por ele para respondermos, agradecidos, àquela voz que repete a cada um, chamando-nos pelo nosso nome: “Onde estás?”. Se quizermos entrar nesse caminho de busca, podemos descobrir, com alegria que, a cada ano, talvez, ficamos um pouco mais próximos dele. É possível, porém, ficar mais longe. Não é tão difícil.

A página do evangelho de Lucas, deste domingo, é um exemplo de alerta. Se não tomarmos os devidos cuidados, os nossos corações podem ficar “insensíveis”, ou seja, indiferentes e desinteressados de Deus e de muitas outras coisas. Se preferirmos uma linguagem mais bíblica, seria como ficar com o coração velho e de pedra, em lugar daquele novo e de carne que Deus prometeu nos dar (Ez 36,26). As causas da “insensibilidade” são exemplificadas em três: a gula, a embriaguez e as preocupações da vida. Se as tomarmos ao pé da letra, a explicação é fácil. Os gulosos querem satisfazer somente os seus gostos e se empanturrar do bom e do melhor. Os beberrões correm o perigo de sentir falta somente das suas bebidas. Por fim, os que se deixam conduzir pelas preocupações da vida, evidentemente, nunca têm tempo para pensar algo além dos seus negócios. Basta mudar um pouco as palavras para reconhecer a atualidade do alerta do evangelho. A gula representa qualquer insaciabilidade, ou seja, a incapacidade de dizer: basta. Vale para o dinheiro, o poder e tudo o mais que ansiamos possuir sem limites. A embriaguez pode representar qualquer tipo de “droga”, que distorce a realidade e nos faz andar sem rumo, cambaleando pelos caminhos da vida. Enfim, as preocupações da vida, acredito que possam ser entendidas, também para brincar um pouco, com o excesso de curiosidade com que hoje muitos navegam pelas redes sociais, dando palpites e julgando a vida de tantos que nem conhecem, sem se interessar se o que espiam e fofocam da vida alheia é verdade ou não. Querer saber tudo de todos é pesado demais, ninguém aguenta tamanha tarefa. O resultado é sempre a incapacidade de enxergar além dos próprios interesses, vantagens e prazeres. Fica cada vez mais difícil sentir um pouco daquela compaixão que o samaritano sentiu ao ver o homem caído no chão. Precisamos muito ficar atentos e orar a Deus, mas sem fechar os olhos, para ver as coisas e as pessoas com o mesmo olhar misericordioso do Pai. Talvez uma “chuva” de silêncio e reflexão nos ajude a nos sentirmos um pouco “tolos” e a nos tornar mais humanos e fraternos.

A profissão de perdoar

Conta uma anedota que Perugino, famoso pintor italiano da Idade Média, estava para morrer e pensava se ia ou não confessar os seus pecados a um padre. Não queria fazer isso simplesmente por medo, para ter uma certa garantia contra algum possível castigo divino, como se a absolvição do padre valesse mais do que a misericórdia do Altíssimo. Decidiu, então, que se fosse por medo da punição não ia confessar. Sua esposa, que não sabia nada da disposição interior dele, perguntou-lhe se não temia morrer sem se confessar. Perugino respondeu: “Veja, minha querida: minha profissão foi pintar e me sobressaí como pintor. A profissão de Deus é perdoar e, se ele for tão bom em sua profissão quanto eu fui na minha, não vejo razão alguma para ter medo”.

Estamos chegando ao final do ano litúrgico e o trecho do evangelho de Marcos, que iremos proclamar, fala-nos da “grande tribulação”. O anúncio da volta do Filho do Homem parece algo muito assustador, ao menos nas expressões da linguagem. Na realidade, é a revelação de uma esperança: ele reunirá os eleitos de Deus de uma extremidade à outra da terra (Mc 13,27). A boa notícia, portanto, é a de uma grande reunião com ele. Tal evento será tão novo, que até o sol, a lua e as estrelas serão transformados. O “sinal” da figueira também é um sinal de vida: quando os ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, logo chegarão os doces frutos. Se tiver algo a temer, não será tanto a vinda do Filho do Homem, da qual não sabemos nem o dia e nem a hora, mas é porque esse será o momento da verdade, quando o que estiver escondido será revelado (Mt 10,26 ). O versículo 31 de Mc 13 são palavras de Jesus bem conhecidas, muito repetidas e até cantadas: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”. Nesta altura, cabe a nós entendermos se essas palavras se referem simplesmente à destruição do templo de Jerusalém, que aconteceu alguns anos depois e antes do evangelho de Marcos ser escrito, ou se podemos entendê-la num sentido maior. Afinal, as palavras de Jesus nunca deixarão de ser palavras de vida para quem souber acolhê-las.

Na prática, nós cristãos, somos convidados a avaliar e orientar a nossa vida levando em conta dois fatores importantes: os chamados “sinais dos tempos” – exemplificados aqui com a figueira que brota – e a Palavra de Deus que “não passa”. Com efeito, nós acreditamos que Deus, na sua bondade, nunca deixa de nos enviar mensagens amorosas de alerta, de incentivo e de esperança, através dos acontecimentos da vida pessoal e da história do mundo e por meio de pessoas que, animadas pelo Espírito, lembram-nos as suas palavras e, assim, ajudam-nos a atualizá-las para os dias de hoje. Na pessoa de Jesus, a Palavra se fez carne e nele encontramos a plena revelação de Deus. No entanto, a partir de Jesus, do seu exemplo e das suas palavras, nós somos chamados a viver fielmente o seu seguimento na história que muda no tempo. Temos a Palavra escrita, mas essa Palavra é viva, não só porque deve ser praticada em nossas vidas, mas também porque abre continuamente novos horizontes nos fatos da história que muda. É um trabalho fadigoso, desafiador, mas, ao mesmo tempo, empolgante.

Batizados e batizadas somos todos chamados a ser “sal da terra e luz do mundo”, ou seja, a testemunhar o Reino de Deus que é um dom dele, mas pode crescer também com o nosso envolvimento e compromisso. Não basta que os cristãos leiam ou espalhem a Bíblia, precisa que a Palavra viva ilumine as decisões políticas e sociais da humanidade toda. Os acontecimentos da história, muitas vezes trágicos e contraditórios, desumanos e solidários ao mesmo tempo, levam-nos ao desânimo ou ao individualismo de quem quer salvar a própria pele sozinho. A Palavra de Deus viva, porém, chama-nos a ver os sinais de esperança, o pequeno que transforma o grande, o fermento que faz levedar toda a massa. Deus nos envia continuamente mensagens e mensageiros, mas não para nos amedrontar. Ele quer que nunca deixemos de confiar e esperar na sua infinita misericórdia. Por isso, repetimos: “agora e na hora da nossa morte”. Sempre.

O Pêndulo

O relojoeiro ia consertar o pêndulo de um relógio quando, para sua surpresa, ouviu o pêndulo falar.

– Por favor, senhor, deixe-me em paz – implorou o pêndulo – Será um ato de bondade de sua parte. Pense no número de vezes que terei que tiquetaquear dia e noite. Tantas vezes por minuto, sessenta minutos por hora, vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Ano após ano… Milhões de vezes de tique-taques. Eu não aguentaria. Mas o relojoeiro respondeu sabiamente:

– Não pense no futuro. Faça apenas um tique-taque por vez e desfrutará cada um deles, o resto da vida.

E foi exatamente isso que o pêndulo decidiu fazer. E continua a tiquetaquear com alegria.

No primeiro domingo de novembro, todo ano, celebramos a solenidade de Todos os Santos e Santas. Escutamos novamente o evangelho das Bem-aventuranças e somos convidados a reconhecer nelas o caminho de toda santidade. Por isso, a Igreja nos apresenta sempre muitos exemplos de santidade, os mais variados, de todas as épocas, de todas as idades e de todas as classes sociais.

Todo batizado é chamado à santidade, ou seja, a viver conforme o Evangelho de Jesus Cristo. Cada um e cada uma de nós na nossa condição, no nosso tempo, no nosso lugar, com as nossas virtudes e defeitos. Acredito que muitos que se dizem cristãos tenham medo ou receio da “santidade”, como se fosse uma obrigação incômoda, um fardo pesado a ser carregado. Estamos muito longe de almejar a santidade como algo que deveria ser comum a cada batizado e batizada. “Comum” não quer dizer banal, mas que é possível a todos, não, evidentemente, pelos nossos próprios merecimentos, mas pela misericórdia de Deus, oferecida “de graça” àqueles e àquelas que se dispõem a serem “amigos” dele.

Em geral, por causa das suas vidas contadas com detalhes surpreendentes, das apresentações artísticas e da nossa imaginação, pensamos nos santos e nas santas como pessoas extremamente devotas, em constante oração e contemplação, com os olhos sempre virados para o céu. Espantam-nos os relatos do rigor de certas renúncias, das longas penitências, dos jejuns absolutos, da solidão do deserto. Outras vezes, é a coragem do martírio deles e delas que nos empolga, mas, ao mesmo tempo, nos distancia deles por nos sentirmos fracos e incapazes de tantas proezas. O ideal da pureza de certos santos e santas nos parece tão elevado que acabamos considerando-os seres mais celestiais que humanos. A boa intenção de fazer conhecer as qualidades cristãs de tantos santos e santas famosos, que viveram em outros tempos e circunstâncias, faz-nos chegar à conclusão, infelizmente, que uma santidade assim seja possível somente para poucos e, com certeza, não o será nunca para nós. Desistimos antes de começar. Com essas considerações não quero dizer que devemos deixar de falar bem dos santos. Quero dizer, simplesmente, que o verdadeiro heroísmo e a verdadeira alegria da fé podem acontecer em algum momento especial, único talvez, de nossa existência, mas, em geral, são o resultado de uma caminho fadigoso e lento, feito de coisas simples, com o sabor do cotidiano, do pequeno, do escondido. Nenhum santo ou santa foi tal porque buscava ser importante. Foi muito tempo depois que as suas virtudes foram reconhecidas ou foi o próprio povo cristão a revelar as maravilhas que tinham acontecido naquelas vidas tão humildes e silenciosas.

Resumindo: a santidade é para todos porque nasce, em primeiro lugar, da confiança que devemos ter no próprio Senhor, mais do que nas nossas forças. Depois vem do desejo de servir a ele nos pobres, nos pequenos e necessitados. Se alimenta com a certeza que podemos aprender algo mais todo dia com a sua Palavra e que podemos perseverar a vida inteira nos nossos compromissos, apesar da rotina, das dificuldade e do cansaço. A santidade de todos os dias pede humildade e paciência; jamais desconfia da misericórdia e do surpreendente amor de Deus. Vamos pedir-lhe que nos deixe em paz em nosso comodismo e mediocridade? Pedimos-lhe a alegria da santidade “comum”.

O cavalo do califa

O califa de Bagdá, chamado Al-Mamun, possuía um lindo cavalo árabe. Um homem, chamado Omar, queria comprar o cavalo e ofereceu muitos camelos em troca, mas o califa não aceitou. Omar ficou desgostoso e cogitou enganá-lo para obter o cavalo. Ele sabia por onde o califa passava quando ia cavalgar. Deitou-se à beira da estrada e fingiu que estava muito doente. Al-Mamun era um homem de bom coração e quando viu o doente, parou e desceu do cavalo para socorrê-lo. Como o enfermo dava a entender que não conseguia caminhar, o califa, com todo o cuidado, colocou-o na garupa do cavalo para ele montar em seguida. Mas quando Omar se sentou no cavalo, partiu a galope deixando Al-Mamun a pé, gritando atrás dele. Quando chegou a certa distância, Omar virou-se e ouviu o califa dizer:

– Você roubou o meu cavalo. Tenho um pedido a lhe fazer.
– Que pedido? Gritou Omar.
– Que não conte a ninguém como você se apoderou do cavalo.
– Por que não?
– Porque, algum dia, um homem realmente doente, talvez esteja deitado à beira da estrada e, se esse seu truque for conhecido, as pessoas passarão por ele sem ajudá-lo.

No evangelho de Marcos deste 31º Domingo do Tempo Comum, encontramos um mestre da Lei que quer ouvir de Jesus qual, entre tantos mandamentos, ele considerava o primeiro de todos. A questão é comum a Mateus e Lucas. Provavelmente era uma daquelas disputas que geravam muita discussão, talvez nem tanto sobre a ordem de importância dos mandamentos em si, mas sobre como praticá-los sem faltar com o respeito à primazia de Deus e, ao mesmo tempo, sem deixar de lado o próximo. A novidade da resposta de Jesus é, sem dúvida, o fato de ter unido os dois mandamentos para evitar que “o segundo” – amar ao próximo como a si mesmo – deixasse de ser praticado com a desculpa de amar a Deus.

Na primeira carta de João, encontramos a compreensão clara da questão: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê. (1Jo 4,20). No entanto o evangelista Marcos tem algo dito, por sinal, pelo próprio mestre da Lei que estava interrogando Jesus. Este não somente consegue juntar os dois mandamentos, mas diz claramente que tudo isso “é melhor do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc 12,33). No tempo de Jesus, ainda eram realizados sacrifícios de animais no Templo de Jerusalém. Quando, porém, os evangelhos foram escritos, tudo isso já não existia mais porque o Templo tinha sido destruído pelos romanos. A impossibilidade dos sacrifícios contribuiu para perceber e praticar mais aquilo que os profetas já tinham denunciado muitas vezes. Lemos em Isaías 1,11-18: “Estou farto de holocaustos de carneiro e da gordura de animais cevados, não quero sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de cabritos… Lavai-vos, purificai-vos… Parai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem: buscai o direito, socorrei o oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva. Depois, vinde, e discutamos em juízo – diz o Senhor -. E no famoso Oseias 6,6 encontramos: “Pois é o amor que eu desejo e não sacrifício ritual, conhecimento de Deus mais que holocaustos”. Por isso, Jesus pode dizer ao mestre da Lei que tinha respondido com inteligência: “Tu não estás longe do Reino de Deus” (Mc 12,34).

Entendemos muito bem o que Jesus nos ensina. Se queremos fazer alguma coisa para Deus e servi-lo com sinceridade, podemos conseguir isso somente se amarmos e servimos os nossos irmãos praticando o bem e a justiça. O amor de Deus alcança a todos, a começar pelos pobres e injustiçados, através do nosso amor, do nosso interesse, da nossa solidariedade. Sem esse compromisso, a imagem de Deus é falsificada. Ele se parece com alguém que privilegia alguns e esquece os demais. Rezas sem fim, promessas com maços de velas, puxamentos de cordas ou coroas de flores não substituem o que agrada a Deus: o amor ao próximo. São “truques” que só enganam a nós mesmos.

O experimento do cirurgião

Um famoso cirurgião alemão disse aos seus estudantes que para exercer a profissão de cirurgião precisava ter um estômago de ferro e um excelente espírito de observação. Dito isso, mergulhou o dedo num líquido nojento e o lambeu. Convidou cada estudante a fazer o mesmo. Todos tomaram coragem e fizeram o mesmo sem titubear. Em seguida, o cirurgião disse, com um sorriso: “Senhores, parabéns por ter superado a primeira prova. No entanto, não posso dizer o mesmo com a segunda. Ninguém reparou que o dedo que eu lambi, não era o mesmo que tinha mergulhado nesse líquido nojento”.

No evangelho de Marcos deste 30º Domingo do Tempo Comum, encontramos a cura de um mendigo cego de nome Timeu. Na ocasião, acontecem muitas coisas. O que chama atenção são os gritos do cego. Ele está sentado à beira do caminho, mas, evidentemente, não se conforma com a sua situação de exclusão. Quando ouve dizer que estava passando Jesus, o Nazareno, não fica calado. Implora por piedade. Jesus manda chamá-lo e lhe pergunta o que queria dele. “Mestre, que eu veja!” responde Timeu. O cego recupera a vista e escuta o elogio de despedida: “Vai, a tua fé te curou”. O homem, porém, começa a seguir Jesus “pelo caminho” (Mc 10,51-52).

O evangelista Marcos consegue nos fazer participar dos acontecimentos. Facilmente imaginamos a situação. Contudo o objetivo dessa narração, como de outras curas ou “milagres”, não é exaltar os poderes extraordinários de Jesus. Isso, simplesmente, suscitaria nas pessoas o estupor e o espanto. Nada mais, porque a maravilha duraria até chegar alguma pessoa ou coisa que, de verdade ou falsamente, pareça-nos ainda mais surpreendente. O que interessa aos evangelistas é ajudar a entender quem era Jesus para chegar a acreditar nele e segui-lo “pelo caminho”. A visão material dos olhos é útil para o andar humano, mas é somente com a luz da fé que nós conseguimos acompanhar com confiança os passos dele. A sequência dos acontecimentos explica como chegar a esse ponto. Fica claro que a cura, assim como a própria fé, são dons de Deus. É Jesus que abre os olhos ao cego. No entanto, não é uma imposição, é um chamado ao qual podemos ou não consentir. Jesus pergunta e aguarda a resposta de Timeu. A fé é um dom que deve ser pedido, porque somente assim se manifesta o nosso desejo de sair de uma situação de distanciamento do Senhor para nos mais próximos dele.

Quando reconhecemos quem é Jesus para nós e acreditamos nele, ele mesmo vai ser a meta grande da busca da nossa vida, não mais só uma cura, um favor, a solução de um problema. Acontece que procuramos Jesus, Nossa Senhora, algum santo ou santa, a Igreja, para conseguir algo que nos interessa. Uma vez alcançada a meta, talvez agradeçamos com entusiasmo o doador, mas pouco nos preocupa saber o que ele pensa, o que ele nos convida a fazer e a mudar. Também no seu tempo, Jesus foi muito procurado porque curava todo tipo de enfermidade (Mc 1,33-34). O povo queria um curandeiro, não alguém que revelasse o amor do Pai, a presença do Reino de Deus e ensinasse os caminhos estreitos e íngremes da verdade, da justiça e da paz. A luz da fé nos permite enxergar a pessoa de Jesus e não somente o que ele faz, ou deixa de fazer, por nós. Quem encontra e acredita em Jesus começa a ver tudo de maneira diferente. Saúde, dinheiro, bens materiais, conforto e bem-estar, são coisas preciosas, mas ser “amigos” de Jesus vale mais do que todo o resto. As provações, os sofrimentos e até a nossa morte, ganham outro sentido. Jesus quer ser amado e seguido por ser o Senhor da nossa vida e não simplesmente um apoio que nos traz sorte nas horas difíceis. Ele não prometeu resolver todas as nossas angústias. Mostrou-nos o único caminho que garante a felicidade e a vida plena: o amor, através do serviço e da doação. Jesus não engana, somos nós que ainda não entendemos bem o que ele ensinou. Enxergamos mal ou nada. O de Jesus era o dedo certo, o dedo de Deus (Lc 11,20). Somos muitos que não reparamos nisso.

O defeito do cientista

Certa vez, um cientista tinha encontrado o jeito de reproduzir a si mesmo, de maneira tão perfeita que era impossível distinguir a cópia do original. Um dia, ele soube que o Anjo da Morte o estava procurando. Preparou uma dúzia de cópias de si mesmo. Assim, quando o Anjo chegou, teve dificuldade para saber quem devia levar entre os treze exemplares. Não demorou muito, porém, para que o Anjo, bom conhecedor da natureza humana, voltasse com ele e lhe dissesse:

– Parabéns, o senhor deve ser um gênio, conseguiu cópias perfeitas, no entanto, eu descobri um pequeno defeito.

– Impossível! Onde está o defeito? – reagiu o verdadeiro cientista, ferido em seu orgulho.

– Bem aqui – respondeu o Anjo, e, sem mais dúvidas, levou o original no meio das cópias.

No evangelho de Marcos, deste domingo, encontramos novamente o convite de Jesus à doação e ao serviço. A insistência significa que se tratava de um assunto difícil para ser entendido e que nem os apóstolos e nem os primeiros cristãos conseguiam escapar da tentação de querer ser os primeiros e os mais importantes. Os dois irmãos, Tiago e João, não esconderam as suas ambições de estar ao lado daquele que imaginavam viria a ser o poderosos rei-messias. Os demais apóstolos ficaram indignados, talvez por não estarem de acordo ou, simplesmente, porque os dois tinham-se antecipado no pedido, surpreendendo, assim, a todos. Em resposta, Jesus os desafia a participar da sua missão de messias sofredor. A cruz, aqui chamada de cálice a beber e de batismo a receber, será o único privilégio daqueles que, livremente, decidiram segui-lo. Nenhuma comparação é possível entre os amigos de Jesus e os grandes das nações. Esses oprimem e tiranizam os povos, mas entre os discípulos quem quiser ser o primeiro será o servo de todos. A absoluta novidade é ele mesmo, o Filho do Homem, “que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos” (Mc 10,45).

Se olharmos a sociedade na qual vivemos temos que reconhecer que pouco mudou dos tempos de Jesus. Oficialmente não temos mais reis e imperadores “tiranos”, mas o poder de decisão continua nas mãos de poucos; existem organizações e corporações, sem rosto, querendo só ganhar e capazes de mudar o destino de povos inteiros e do planeta todo. Não vamos falar mal dos outros. Olhemos para nós cristãos, nós que fazemos questão de nos proclamar seguidores de Jesus. Deveria ter ficado claro que devemos pensar e agir diferente, digamos, do “mundo”. Onde podemos aprender o novo? O exemplo e a experiência do amor-serviço devem acontecer na Comunidade–Igreja. Quando a Igreja é vista como uma prestadora de serviços religiosos e não como uma grande fraternidade, as coisas continuam a funcionar com a autoridade que manda, o pagamento das rezas e as amizades que traficam favores. Assistimos a clérigos ovacionados e aplaudidos, não pelo serviço da caridade aos pobres e excluídos, mas por agradar aos gostos do espetacular, do mais fácil, do emocional, das bençãos e devoções milagrosas. A caridade movimenta grandes quantias, mas continua prevalentemente assistencial, porque é sempre mais simples e menos incomodo distribuir sopa e cestas básicas do que questionar o sistema, desmascarar as raízes da miséria e da fome e tentar mudá-lo. Estou exagerando? Basta conferir quem são os personagens mais famosos que estão presentes na mídia e aqueles que têm mais seguidores nas redes sociais.

Quando a missa é avaliada conforme quem a preside ou a Palavra de Deus é confundida com o pregador, é necessário ficar alerta. As tentações do sucesso, de ter massas aplaudindo, de fazer algo extraordinário, são as mesmas que o próprio Jesus teve que vencer ao longo de sua vida. O caminho para mudar as coisas é aquele que começa lá de baixo, no serviço aos pequenos, nas vidas doadas em resgate pela dignidade e a libertação dos esquecidos. O caminho da ressurreição passa pela cruz. Jesus não fugiu dela. Não nos pede para sermos “cópias” dele. Seria impossível. Mas cristãos mais corajosos e comunidades mais fraternas, sim, podemos ser.

Aprender a gratuidade

Chegamos ao domingo do Círio d Nossa Senhora de Nazaré. De novo, sem podermos nos manifestar como gostaríamos, numerosos e alegres, a nossa devoção a Maria, a humilde serva do Senhor, a “bendita entre as mulheres”, a “bem-aventurada” porque acreditou. Neste ano, colocamos Maria ao lado de São José. Eles, juntos com Jesus, constituem aquela que chamamos de “Sagrada Família”, exemplo para todos nós de oração, trabalho e fé. Qual segredo “a mais” podemos aprender com essa família tão especial?

Talvez nos ajude o evangelho deste domingo. Encontramos uma pessoa que procura Jesus e tem um grande desejo: “ganhar a vida eterna”. Algo maravilhoso se, com essas palavras, entendemos não tanto o conjunto de todos os bens possíveis e imagináveis, mas, nada menos, que o próprio Deus, sumo bem e plena felicidade para todos. Inicialmente, Jesus lembra àquele homem os mandamentos da Lei de Deus, ou seja, um caminho de confiança, obediência e respeito. Para aquela pessoa, porém, isso não tem nenhuma novidade: conhece os mandamentos e os pratica desde a juventude. O que lhe falta? – Só uma coisa – responde Jesus – vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me! (Mc 10,21). O evangelho continua dizendo que aquele homem “foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico”. O comentário de Jesus vem em seguida: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,23). Pelo jeito, os bens materiais, tão cobiçados pela grande maioria dos seres humanos, são um obstáculo muito grande para fazer parte do Reino de Deus. No entanto o próprio Jesus aponta a saída: o que parece impossível para nós, somente com as nossas forças, é possível para Deus. Se nós o pedimos, com fé e confiança, ele mesmo, Deus Pai, nos dá a capacidade de nos livrar das amarras da ganância e do lucro. Quando a luz de Deus toma conta do nosso coração e das nossas decisões, nós começamos a olhar e a entender as coisas da vida e do mundo com o olhar dele, que é de amor e, portanto, somente capaz de doar, doar tudo, doar a si mesmo, sem esperar ou pedir nada em troca. Podemos chamar este amor de gratuidade total. Por nossa vez, a este amor incondicional de Deus, nós podemos responder somente amando generosamente a ele e aos nossos irmãos.

Com Deus não tem negociação, cobranças, reivindicações, prazos… A “vida eterna”, que o homem do evangelho procurava, é um dom gratuito de Deus, é oferecida, doada, nunca será o resultado do nosso esforço ou um direito adquirido pelos nossos merecimentos. Jesus nos ensinou tudo isso; não foi para nos fazer sentir pequenos perante a grandeza sem medidas do amor de Deus, mas para transformar o nosso coração de interesseiro em generoso e compassivo. A sociedade que organizamos funciona com a troca de mercadorias, de serviços e de favores. Estamos tão acostumados com isso, que desconfiamos de quem nos oferece algo sem cobrar nada antes ou depois. Sempre perguntamos quanto custa aquilo que gostaríamos ter ou alcançar.

Também o homem do evangelho deste domingo queria saber o preço da vida eterna, quais obrigações devia cumprir, quais ofertas ou holocaustos devia fazer. Dar de graça aos pobres aquelas riquezas que tinham custado tanto tempo, trabalho, organização e esperteza não entrava na sua cabeça e no seu coração. Vale a pena nos perguntar se aprendemos a gratuidade nas nossas famílias, ou se também nelas já funciona a lógica interesseira do mundo. Filhos, crianças e adultos, que não sabem mais agradecer aos pais por tudo aquilo que fizeram por eles. Esposos e esposas que perderam a alegria de se doar e de se receber cada um como uma dádiva não merecida. Parentes que se odeiam por causa da herança deixada pelos pais e avós. Temos dúvidas que Jesus aprendeu a gratuidade também com Maria a José? Ele, o homem justo e obediente, acolheu Maria em sua casa, acreditando nos seus sonhos e na palavra dela. Ela, a serva do Senhor, ficou feliz de colaborar com o projeto de Deus sem saber tudo o que a aguardava e se teria merecido alguma recompensa. E Jesus? Ele deu tudo, até a própria vida, porque Deus é assim, só amor doação.

As bonequinhas de crochê

Estavam casados havia 50 anos. Tinham partilhado tudo na vida. Só uma coisa a mulher tinha pedido ao marido de nunca abrir: uma velha caixa de sapatos em cima do guarda-roupa. Agora, a mulher estava doente no hospital e disse ao marido que era chegada a hora de saber o que estava escondido naquela misteriosa caixa de sapatos. O homem abriu a caixa e encontrou duas bonequinhas de crochê e 85 mil reais. O marido pediu uma explicação. A mulher respondeu que tinha seguido um conselho que a sua velha avó lhe tinha dado antes do casamento: “Minha filha, todas as vezes que você ficar zangada com seu marido, procure não discutir. Deixe passar a raiva, pegue o crochê e faça uma bonequinha. O marido ficou alegre, afinal, só tinham duas bonequinhas na caixa. Tinham brigado só duas vezes em tantos anos. Faltava saber de onde vinha tanto dinheiro. A esposa respondeu: “Bom, o dinheiro é o que eu ganhei vendendo as outras bonequinhas de crochê!”.

Um caso ameno para apresentar uma questão séria e sofrida. No evangelho de Marcos, deste domingo, Jesus responde a mais uma provocação dos fariseus. Querem saber o que ele pensava sobre a permissão do divórcio, admitido por Moisés. Como em outras ocasiões queriam poder acusar Jesus de incentivar a desobediência a Lei. Ele não entra, porém, em detalhes sobre possíveis casos ou brechas na legislação em vigor. Não levanta questões que nem eram colocadas naquele tempo, como, por exemplo, o direito de decisão da mulher. Jesus lembra a “dureza do coração” humano e faz referência diretamente ao projeto de Deus “desde o começo”. Digamos que ele propõe uma meta, um ideal, para que o amor entre o esposo e a esposa, apesar e além de todas as dificuldades humanas, possa representar a fidelidade do próprio Deus à aliança com o seu povo.

A questão, portanto, não é posta no se é possível ou não se divorciar e casar com outra pessoa, mas naquilo que a união do casal significa numa visão da existência humana que não seja, simplesmente, segundo a natureza ou as circunstâncias. O que está em jogo, aqui, é a própria realidade do Deus dos cristãos que se fez conhecer como uma unidade e comunhão perfeita do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Na mesma linha, o pecado da idolatria do povo, quando deixava o Deus verdadeiro para adorar outros deuses, sempre foi comparada ao adultério conjugal. Aquela que nós chamamos de “indissolubilidade” do matrimônio nunca foi somente uma obrigação determinada por uma lei, mas sempre teve um sentido muito maior, quase uma exemplificação humana e, portanto, visível do amor fiel e até ciumento de Deus para com o seu povo.

Para alguns, ou muitos, a não admissão do divórcio pode parecer uma exigência cruel, insustentável em tantos casos reais da vida. Papa Francisco, no documento “Amoris Laetitia”, do qual comemoramos os cinco anos de promulgação, fala que “O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém”, mas de “derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem de coração sincero. Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita” (AL 296). “Quanto às pessoas divorciadas que vivem em uma nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que “não estão excomungadas” nem são tratadas como tais, porque sempre integram a comunhão eclesial” (AL 243). O compromisso da comunidade eclesial é propor o projeto “do começo”, na firme convicção que a fidelidade e a indissolubilidade matrimoniais são dons de Deus e sinais “proféticos” num mundo cheio de divisões e de arranjos conjugais, onde prevalece mais a próprio interesse e bem-estar egoísta do que a partilha solidária e amorosa das “alegrias” e das “tristezas”, que a vida proporciona a todos. Como muitas outras coisas também o amor conjugal se aprende aos poucos, entre crises e recomeços, sempre acreditando que terá como fruto a alegria e a paz do casal e da família inteira. Com ou sem caixa de sapatos e bonequinhas de crochê. Mas com um amor tão grande que não caberia em caixa nenhuma.