Dom Pedro Conti
A grandeza do papado
Encerrada a Revolução Francesa, sentou-se no trono da França um rei herdeiro dos princípios da revolução: Luis Filipe de Orléans. O presidente do Conselho de Ministros era o Sr. Thiers, grande escritor e extraordinário articulador político. Um dia, estando em Roma, quis visitar o papa. O Santo Padre aceitou recebê-lo, mas Thiers colocou uma condição: não ia de jeito nenhum ajoelhar-se diante dele e nem beijar-lhe a mão, como era costume em sinal de reverência. Quando papa Gregório XVI ficou ciente da exigência simplesmente sorriu, nada mais. Chegada a hora, o famoso presidente entrou nos aposentos pontifícios e o papa lhe estendeu a mão para cumprimenta-lo. Ao ver aquela figura branca, tão simples e solene ao mesmo tempo, Thiers experimentou um sentimento indefinível. Vacilou um instante, caiu de joelho e beijou o pé do Santo Padre. O papa perguntou-lhe cheio de bondade: “Tropeçou em alguma coisa, Sr. Presidente?”. E Thiers, comovido, respondeu: “Santidade, tropecei na grandeza do Papado!”.
Mais uma anedota de tempos passados, que hoje nos faz sorrir. No entanto, celebrando a Solenidade de São Pedro e São Paulo a cada ano, como católicos, somos convidados a refletir e a rezar para a missão do Santo Padre, o papa, que hoje se chama Francisco. Não é para desmerecer a “grandeza do papado”, mas para entender, cada vez melhor, a tarefa daquele que, temporariamente, exerce essa autoridade. Se em outros tempos a exterioridade podia chamar atenção e até atemorizar, hoje seria impensável e escandaloso que o papa quisesse competir com os poderosos deste mundo. De fato, se podemos chamar de “poder” a autoridade do Santo Padre, ela é somente “espiritual” ou moral, como alguns dizem.
Antes do Concílio, os membros da então Ação Católica, em vários lugares do mundo, ainda cantavam que “o altar” tinha “um exército” cujo comandante supremo, sobre esta terra, era o papa. Após o Concílio Vaticano II, falamos de Povo de Deus e até quando administro o sacramento da Crisma, evito dizer que, com o dom do Espírito Santo, tornamo-nos “soldados de Cristo”. Essa comparação serve para entender a luta contra o mal, o pecado, as tentações e a ignorância, aproveitando também de palavras semelhantes usadas por São Paulo quando fala, por exemplo, de espada (do Espírito) ou de couraça (da Justiça) (Ef 6,10-17). No bom sentido, essa “guerra santa” nunca vai acabar, porque os “inimigos” a combater somos nós mesmos, quando deixamos de fazer o bem, para vencer o mal. Já entendemos que a única arma digna do cristão é o amor misericordioso que atrai, cativa, conquista e transforma o coração das pessoas. Por isso, hoje, ficam para papa Francisco as “armas” da palavra e do exemplo.
Papa Francisco fala bastante. Fala livremente todo dia celebrando a Missa na Igreja Santa. Marta e se preocupa com a vida real das pessoas, os seus sofrimentos e provações. Todo dia, convida à solidariedade, à paz, à superação da indiferença. Ele sabe que antes das verdades, dos dogmas, da fé e das normas necessárias vem a vivência do evangelho. Muitas vezes, o que ele diz e denuncia incomoda. O mesmo vale para o exemplo dele de humildade e paternidade, quando abraça crianças, doentes, pessoas com deficiências? Já acolheu migrantes e refugiados no Vaticano. Já mandou construir chuveiros para moradores de rua… Já encontrou e fez se encontrar muçulmanos e hebreus, movimentos populares e poderosos, economistas, cientistas, ecologistas. Já visitou hospitais, comunidades de recuperação para dependentes químicos, periferias, sem avisar, sem alarde, como irmão antes que como Papa. Já ouviu vozes opostas e já deu voz a muitos gritos abafados há muito tempo. O seu exemplo também incomoda. Papa Francisco quer uma Igreja em busca, misericordiosa e acolhedora. Deve ser uma Igreja “enlameada” porque missionária; capaz de curar as feridas, mais do que causá-las, porque é um “hospital de campo”. Nós todos estamos “tropeçando” na grandeza da “humanidade” de Francisco.
O livro da vida
Certa vez, um homem conseguiu permissão para entrar numa grande gruta, onde estavam guardados os livros da vida de cada um com seu passado e futuro. Ele poderia ficar lá por alguns minutos, durante os quais era possível modificar o rumo do seu próprio destino e o de quantas pessoas desse conta no prazo marcado. Decidido, ele achou que primeiro devia aproveitar para se vingar dos seus desafetos. Foi direto no livro da vida do seu maior inimigo e corrigiu muitas coisas, juntando desgraças, doenças e pobreza. O mesmo fez com outros. Riscava o que tinha de bom e escrevia misérias e desventuras. Ele fazia tudo muito rápido, mas o tempo corria também e já estava para terminar. Quando, finalmente, resolveu pegar o livro da vida dele para anotar fortunas, saúde e bem-estar, o encarregado tocou no ombro dele e lhe disse:
– Amigo, o tempo acabou.
– Ainda hoje – o infeliz lamenta – tive o livro da minha vida nas mãos, mas, fiquei tão ocupado em fazer o mal aos meus inimigos, que perdi a chance de fazer o bem para mim mesmo.
Continuando a leitura dominical do evangelho de Lucas, encontramos uma página que nos apresenta duas atitudes opostas: de um lado, temos a “firme decisão” de Jesus de ir a Jerusalém e, do outro, as desculpas de alguns discípulos que, apesar das declarações clamorosas, pedem tempo para decidir mesmo se acompanham, ou não, Jesus na sua missão. Entre as escolhas difíceis aparece, também, aquela de um povoado de samaritanos que resolve não acolher Jesus porque, indo para Jerusalém, provava que pertencia a outro grupo religioso. Não é difícil entrever atrás desses casos a situação dos cristãos daquele tempo e, também, a nossa. A acolhida de Jesus e da sua mensagem, não pode ser algo de forçado e, menos ainda, o resultado do medo de algum possível castigo. Jesus repreende Tiago e João que queriam jogar pragas contra aquele povoado. A liberdade de escolha e as diferenças religiosas, nesse caso, devem ser respeitadas. No entanto precisa entender que qualquer decisão tomada terá consequências e que também quando, aparentemente, não decidimos nada ou deixamos tudo para depois, de fato, estamos escolhendo: sempre algo irá acontecer. Porque para ninguém a vida é um passeio inútil ou um enganar o tempo que passa. Ou decidimos o rumo da nossa existência ou, talvez, lamentaremos, depois, as ocasiões perdidas sem poder voltar atrás. Uma dessas decisões é, sem dúvida, a fé: ser cristãos para valer ou fazer de conta. É um tema extremamente atual num tempo de tantas propostas religiosas, algumas mais prometedoras – ou enganadoras – que outras.
Jesus caminha rumo a Jerusalém. Entende que lá acontecerá o grande confronto entre a sua mensagem e o conjunto daqueles poderes religiosos e políticos que não admitem novidades, sobretudo, quando estas têm a pretensão de vir de Deus. Também os doutores da Lei, os fariseus, os sacerdotes do Templo e os anciãos do Sinédrio estavam convencidos de falar em nome do seu Deus. Nem por isso Jesus desiste. Ele tem coragem, vai em frente, ainda que já vislumbre a sombra da cruz. Bem diferentes são os três candidatos ao seguimento. Aparecem aqui os maiores medos para tomar uma decisão séria: o conforto dos bens que poderá ser perdido, a incerteza sobre o sucesso da missão, a separação do ambiente familiar tranquilo e seguro. Quem declara que quer seguir a Jesus, mas não sabe renunciar a nada é como quem parece ir para frente, mas continua olhando para trás. Não é possível seguir o Mestre que será crucificado sem passar pelo desconforto do abandono, da pobreza, da insegurança. Todas coisas, porém, que afinal não dão segurança alguma, porque são tão frágeis como a própria vida que passa. Somente no Pai de Jesus é possível encontrar força, coragem e a certeza do amor. Ele sabia que não estava sozinho.
Na vida não existe “destino”, como se alguém – quem? Deus? – já estivesse tudo planejado e nós fôssemos vítimas inocentes dessas decisões. Na vida existem oportunidades e escolhas que dependem de nós. O bem e o mal, amizades e inimizades, fé, esperança e amor se constroem. Melhor não perder tempo.
Dom Pedro José Conti
A depressão do galo
Era uma vez um grande quintal onde reinava, soberano, um poderoso galo. Era especialmente orgulhoso de si mesmo, da sua força e da sua beleza. Toda manhã acordava pelo clarão do horizonte e bastava que cantasse duas ou três vezes para que o sol se elevasse para o céu.
– O sol nasce pela força do meu canto – dizia ele – Eu pertenço à linhagem dos levantadores do sol!
Um dia, porém, aconteceu que o galo dormiu mais do que o normal. Quando acordou, o sol já estava alto no céu. Ele tentou cantar, mas tinha um nó apertando sua garganta.
– Então não sou eu quem levanta o sol? – comentou desolado consigo mesmo. Com este pensamento, caiu em profunda depressão. Questionou a sua própria competência e duvidou da sua utilidade. Finalmente decidiu consultar um velho galo que tinha fama de sábio. Contou tudo o que estava lhe acontecendo e aguardou ansioso algum conselho. O sábio galo lhe disse com toda clareza:
– Meu caro irmão, você está vivendo duas ilusões. A primeira é a da “Onipotência” porque se acha o dono do sol. A segunda, que está vivendo, agora, é a da “Incompetência”, ou seja, da sua inutilidade. O perigo é viver alternando as duas e continuar a viver iludindo a si mesmo. A solução está na realidade. Você era, é e vai continuar a ser um galo absolutamente normal, cumpridor da sua função de gerenciar o galinheiro, de acordo com a tradição. Nem mais e nem menos. Volte para o seu lugar, viva a verdade e não siga as ilusões da sua cabeça.
Peço desculpa pela historinha, talvez, banal. No entanto devemos reconhecer que, a respeito da verdade, experimentamos e vivemos muitos equívocos. Muitos de nós construímos a nossa própria verdade e pensamos que seja mesmo assim. Consideramos velho tudo o que nos foi ensinado, pensamos saber mais sobre qualquer assunto, deixamos de usar o espírito crítico para viver de imaginação e ilusões. Ter consciência da nossa realidade humana e, portanto, também das nossas limitações, é o mínimo que a verdade exige de nós. Um dos princípios mais antigos da sabedoria humana, e condição fundamental para o conhecimento da verdade, é admitir que não sabemos tudo. Somente assim começamos o difícil caminho da sua busca. Essa procura é angustiante e heroica ao mesmo tempo. Muitos de nossos irmãos e irmãs tombaram por causa da verdade em todas as suas expressões. Temos os mártires da liberdade, da dignidade humana, da luta pela vida, pela terra, pela água, por um espaço de sobrevivência. Muitos também morreram por resistirem firmes na própria fé. Certos direitos que hoje consideramos intocáveis foram fruto de grandes sofrimentos. Parece que a humanidade sempre esteve, e ainda esteja, dividida entre quem tem todos os poderes, privilégios, forças e direitos e quem pode ser cerceado na sua dignidade humana. Quantos ainda pensam impor a própria verdade com a força das armas, do dinheiro, de promessas e ilusões!
Jesus diz a Pilatos que é rei, sim, mas está na pior das condições: preso, condenado, abandonado pelos seus, prestes a morrer. Que força ele tem? Onde ficou o seu poder? Esse é o paradoxo da nossa fé: o poder de Deus não se revela quando esmaga os inimigos ou quando faz milagres, supostamente, para ser acreditado. A força de Deus está na verdade e no amor. Deus não pode aniquilar os inimigos porque não tem; todos somos seus filhos e ele ama a todos e quer vida para todos, nunca a morte. Deus não pode fazer milagres para nos obrigar a acreditar, porque neste caso não seria mais fé, mas maravilha e medo do seu poder. Em Jesus, Deus escolhe o único caminho digno dele: prefere morrer que matar, prefere ser amado que temido. O Reino de Deus é diferente dos reinos humanos, tanto quanto é diferente a nossa maneira de pensar da dele. Nós queremos mandar, dominar, impor. Os resultados estão aí, visíveis. Ele somente pode e quer amar a todos. Esta é a verdade que o Filho veio nos revelar. Ter fé não é alimentar uma ilusão, é confiar no testemunho da verdade que ele nos deu. Força tão grande que nem a morte venceu.