José Sarney

Nós, noves fora

 

Com a maior satisfação tenho a consciência de que participei com Raul Alfonsín, a quem sempre reverencio, da exclusão do Brasil e da América do Sul da corrida nuclear mundial, a mais fatal de todas as corridas, enquanto existir na face da Terra uma arma nuclear.

A declaração mais séria que presenciamos nessa desbragada guerra de palavras a que estamos assistindo foi para mim a declaração do ex-presidente da Rússia, Dmitry Medvedev, porta-voz do Sr. Putin para declarações dessa natureza, ameaçando os EUA com o arsenal nuclear russo. Por sua vez, o sempre irreverente Trump desloca dois submarinos nucleares, portadores de bombas atômicas, para posição estratégica em direção ao seu inimigo nuclear. Ambos devem saber que tal confronto é impossível porque seria não só o desaparecimento deles como de grande parte do mundo. Nós sabemos que essas potências — Rússia e USA — possuíam Estados Maiores que não deixariam esses irresponsáveis fazer coisas como essa de deflagrar um confronto, mas a situação interna dos dois países hoje saiu das mãos dos militares e depende apenas da vontade dos dois presidentes. Assim, o que nos preocupa é que essa retórica está indo num crescendo que pode fugir do controle.

Essa troca de ameaças, por coincidência, ocorre quando o mundo relembra, neste 6 agosto, o 80º Aniversário da Tragédia de Hiroshima, em que morreram 140 mil pessoas e outras tantas sobreviventes foram atingidas pela radiação, dando sinal do que ocorrerá com a humanidade quando forem lançadas as oito mil bombas que estão armazenadas pelas duas potências adversárias. A de Hiroshima era uma bomba pequena e a primeira do mundo. Calculemos o que serão as atuais de hidrogênio e com capacidade de destruição incalculáveis!

Lembremos o episódio dos foguetes russos em Cuba, ao tempo de Kennedy, em outubro de 1962. Estivemos à beira de um confronto. Os americanos não poderiam aceitar a ameaça de armas atômicas russas a 90 milhas do seu território. Então, depois de longa negociação, os russos retiraram essas armas e em compensação os EUA ficaram obrigados a não invadir Cuba, o que respeitam até hoje, e sofreram a pregação cubana da Revolução, mobilizando movimentos populares e outras manifestações. Mas o acordo foi assinado por Kruschev e Kennedy.

Agora tenho que relatar mais uma vez que Brasil e Argentina e toda a América do Sul somos a única região da Terra fora da corrida nuclear, que já vimos estar sendo ampliada, com a Coreia do Norte, com outro dirigente fora da curva, Kim Jong-Un; o Paquistão e a Índia, e, por último — depois de cancelar o acordo internacional de supervisão nuclear —, a incursão americana no Irã, com o bombardeio da usina nuclear de Fordow, para evitar que mais um perigoso país tenha uma arma tão poderosa numa área tão radicalizada pela separação religiosa e política.

Quando assumi a presidência do Brasil, a única área que eu tinha total liberdade de agir era a da política externa, pois esta não fazia parte dos compromissos assumidos na política interna. Assim, eu me preparei para que no primeiro encontro com Alfonsín, em Foz do Iguaçu e mais tarde na cidade argentina de Bariloche, ele fizesse a proposta de acabar com aquilo que alguns setores militares de nossos países queriam: uma bomba nuclear. Ao contrário, decidimos promover uma política de aproximação de nossos país, o que foi feito, o que hoje é o Mercosul.

Alfonsín saiu de Itaipu tendo visitado a nossa grande Hidroelétrica, o que lhe custou grandes censuras do Almirante Rosas, líder da corrente que achava ser nossa usina uma “bomba de água” que iria destruir Buenos Aires (pensamento louco!). Essa posição do nosso irmão argentino custou ao grande presidente Raul Alfonsín, excepcional estadista das Américas, duas rebeliões internas e muitos problemas. Mas ele, como eu, estávamos com os olhos plantados na humanidade, em nossos povos. Assim, hoje, pode-se dizer, com o título deste artigo — invocando a fórmula matemática, noves fora, zero —, que estamos livres de qualquer confronto nuclear. Mas isso não nos livra de lutar contra as armas nucleares, em qualquer lugar do mundo.

Outro dia uma funcionária de minha casa disse-me ao ouvir a notícia do deslocamento do submarino de Trump: “Doutor Sarney, graças a Deus estamos fora dessa.” Eu lhe respondi: “Sim, e eu tenho orgulho de ter ajudado a tirar o Brasil dessa situação.” E fechei: “Com ajuda divina e do Presidente Alfonsín, da Argentina.”

Graças a Deus!

 

A Paz Contigo

 

O mundo vive uma crise de identidade. Nós, que vivemos estes tempos, estamos sendo submetidos a presenciar o encontro de civilizações, não o fim da história, aquilo que Francis Fukuyama disse quando achou que chegaríamos a uma etapa em que somente dois sistemas prevaleceriam com o decorrer do tempo: o sistema democrático e o sistema de liberdade econômica. Então, diante desse quadro, o que é esta inquietação de viver perigosamente que estamos vendo?

Na minha opinião, com olhos de análise e de observação, já passamos pela civilização da oralidade, em que a história se perpetuava em nossa memória através, principalmente, dos mais velhos. Depois, com a descoberta da escrita, pela civilização da eternidade da palavra escrita e pela proliferação desta pela imprensa.

Agora, estamos em pleno vendaval de uma civilização nova que atinge a forma de pensar: a civilização digital, a era dos computadores, já no desenvolvimento da inteligência artificial, que não sabemos aonde vai chegar, com a ameaça de revoltar-se contra seus criadores, como na ficção cientifica, em que os algoritmos podem fazer e inventar qualquer coisa. Na guerra entre o livro digital e o livro em papel já constatamos a morte das enciclopédias, pois nenhuma delas resistiu à realidade da Wikipédia. No campo da abstração não sabemos mais onde existe a verdade e a mentira, o certo e o errado, a privacidade e os direitos de liberdade, as narrativas que destroem a verdade verdadeira. E tudo está sob ameaça, e todos agem com o espírito de contestação e daí é um pequeno passo para o desamor e o ódio

O Brasil está no rabo desse foguete. Eu, favorecido pela bondade de Deus com vida longa, presenciei esse processo. Na minha experiência pessoal, a política era um terreno de cavalheiros em que havia adversários, mas poucos se consideravam inimigos.

A raiva e o ódio não faziam parte da política e do relacionamento político. As ideologias de esquerda organizada abandonaram quase todas as práticas radicais, deixando-as com os terroristas, niilistas e anarquistas, e hoje os extremistas são políticos de extrema direita, no Brasil e no mundo, que, não mais como adversários, mas como inimigos, seguem a teoria  leninista-stalinista de que a política deve seguir as leis da guerra e todos que os contestam devem ser liquidados politicamente ou fisicamente, como fizeram os Estados concentracionários do século 20 ao eliminar seus opositores quando ocuparam o poder na Rússia, na Alemanha, na Itália.

A Justiça organizada começou a ser estruturada na Antiguidade, continuou no século 13, época do Rei João Sem-Terra, até que muito depois, na Revolução Gloriosa, do fim do século 18, chegou-se à constatação de que a democracia não podia funcionar sem uma Justiça organizada. Deviam caminhar juntas.

Infelizmente a Justiça é constituída por homens e estes são vulneráveis às circunstâncias. Houve um processo no Brasil muito danoso, definido pelo Ministro Jobim como judicialização da política e politização da Justiça. Não é este o caso dos processos dos acusados de atentar contra a democracia, que correm dentro da estrita forma legal, garantindo o pleno direito de defesa.

É grave o ato do presidente dos Estados Unidos ao aplicar a nosso País sanções econômicas grandes, as maiores do mundo ocidental, e sobretudo ao tentar interferir na Justiça brasileira, sem olhar para a tradição de solidariedade que marcou nossas relações com seu país. Basta lembrar que nas duas guerras mundiais lutamos ao seu lado, deixando marca no sangue dos brasileiros que hoje repousam no Campo de Pistóia, na Itália.

O Brasil sempre resolveu seus conflitos pela diplomacia, nunca foi atacado desta maneira. Nosso País deve reagir com altivez e equilíbrio, necessários à defesa de nossa soberania e do nosso povo, o maior prejudicado numa guerra econômica, e do bem-estar da nossa Nação, evitando a crise e o prejuízo ao aprofundamento da democracia.

É urgente acabar com a mentalidade da confrontação. É preciso que toda a política, qualquer que seja a sua orientação, esquerda ou direita, seja feita dentro das regras democráticas, do diálogo, do parlamento. É preciso que o sentimento do Brasil, que nunca foi esse, volte a ser o do entendimento e da concórdia.

Quando aparecerem radicais doidos em nossa frente, vamos seguir o conselho do meu avô, que dizia: “Nunca corra atrás de um doido, porque você não sabe para onde ele vai.”

Invoquemos os princípios cristãos, aquilo que Cristo dizia no Pentecostes, quando se juntava aos apóstolos:

— A PAZ ESTEJA CONTIGO!

E eu acrescento: a Paz esteja com o Brasil.

Ilustração: crédito: Maurenilson Freire/ Correio Braziliense

 

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O homem é bom

 

Não é falta de assunto. O Brasil está vivendo uma tempestade de crises. E a humanidade está se agredindo com a demonstração de uma violência devastadora que nos fere a alma no testemunho do que acontece em Gaza, na Ucrânia, na Líbia e em outros conflitos menores, além do terrorismo desumano que espreita em qualquer lugar, fazendo vítimas no mundo inteiro.

Mas não é disso que vou tratar: é justamente do lado bom da humanidade, que está nos pequenos gestos, nos desinteressados afetos e carinhos puros dos namorados, dos casais e dos heróis que dão a vida pelos outros, nas missões de caridade espalhadas pelo mundo inteiro, salvando a vida de mães, pais, filhos e órfãos.

Escrevo com a alma cheia de reconhecimento da bondade humana, da pureza de alguns gestos que nos comovem e nos levam a meditar sobre o coração de homens e mulheres.

Sou testemunho de alguns desses gestos que marcaram a minha vida. Certa vez, perto do Natal, fui visitar os enfermos de UTI, levando uma palavra de conforto aos doentes. Sempre o fiz no anonimato. No Hospital Sarah de Brasília, parei ao lado do leito de uma menina que estava em seus últimos suspiros. Tinha me aproximado dela ao perceber seu estado. Tive um gesto de carinho com ela e perguntei-lhe o que desejava de presente de Natal. Ela me respondeu com dificuldade: “Meu pai tinha uma carroça em que trabalhava para dar de comer para minha mãe e meus irmãos. Caiu numa ribanceira, e o jumento morreu. Peço que dê um jumento para ele.”

Na época, publiquei na Folha de S.Paulo, na coluna que ali escrevia, uma crônica sobre este fato e até hoje o rememoro com a certeza de como o ser humano é bom: um jumento para o pai foi o pedido que ela fez à beira da morte!

Pois recebi agora um presente muito diferente, mas que também mostra a bondade mais pura: um amigo meu de Sucupira do Norte, a mais simples das pessoas, trouxe, em meio ao drama que está passando, com seu pai internado no Hospital Aldenora Bello, um presente para mim: uma galinha, um pouco de mel de tiúba e cascas de jatobá, me dizendo que este era um remédio para minha velhice ser prolongada. Que coisa admirável. Este talvez seja o presente melhor que recebi nos últimos anos. O mel é ouro, o frango é prata, o jatobá, diamante.

Cristo tem uma pregação sobre presentes quando conta da viúva pobre que depositou no cofre das esmolas duas moedas pequenas, de pouco valor. Os ricos depositavam grandes dádivas. Jesus diz a seus discípulos: “Esta viúva deu mais do que todos os outros.” E acrescentou: “Ela doou aquilo que tem para viver, na sua pobreza.”

Realmente nem todos os presentes suntuosos demonstram generosidade. O mais conhecido deles é aquele que os gregos relatam em sua mitologia, pelo que até hoje se diz quando um presente é ruim: “Isso foi um presente de grego.” O fato se refere ao cerco de Tróia, que durava 10 anos. Então os inimigos mandaram de presente um cavalo de madeira muito bonito e grande à cidade. À noite, depois que o cavalo passou pelo portão, de dentro saíram muitos soldados que abriram todas as portas da cidade e por elas entrou o Exército grego. Estes presentes são da maldade.

Mas há sim muitos presentes generosos que mostram que os homens são bons. A Princesa Isabel, aquela que libertou os nossos escravos e assinou a Lei Áurea, deu um grande presente, este de Rei, à Nossa Senhora Aparecida: uma coroa que está até hoje sobre Sua cabeça: uma bela coroa de ouro e brilhantes. Certamente esta prova de fé e reverência não era caridade, mas homenagem e devoção. Era aquilo de que Cristo falou, de excesso em sua fortuna.

Mas o presente de uma atitude, de uma vontade, e não algo material, recebi do meu bisneto Antônio, que mora em Fortaleza. Ele tinha cinco anos quando este fato aconteceu. Era seu aniversário, e sua mãe, minha adorável neta Ana Thereza, criatura bela de alma e também fisicamente bela, fez uma festinha para o filho e perguntou-lhe o que queria ganhar de presente naquele dia em que completaria seis anos, já sabendo ler e escrever. Antônio respondeu: “Mamãe, eu peço a Nossa Senhora para mandar baixar o preço das passagens aéreas para São Luís pra gente viajar pra lá e ver meu biso (bisavô).”

Fiquei derramado em felicidade quando minha neta logo telefonou contando seu pedido. É que ela, quando o filho pedia para ir a São Luís, onde hoje moramos, respondia sempre que o preço alto das passagens aéreas impedia muitas viagens para cá.

Eu, com esses gestos de bondade e pureza, não vou pedir para baixar o preço das passagens, mas vou tomar meu chá de jatobá e, na minha idade, não vou deixar de olhar para este mundo cão e dizer em alto berro: o homem e a mulher são boas e adoráveis criaturas!

Ilustração do texto: A Família, 1925, Tarsila do Amaral

 

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Um Mundo Novo

 

Estou mergulhado num terreno diferente e fascinante, a Internet. Realmente seu mundo para mim estava distante, mas era sempre objeto das minhas preocupações: a maior de todas, a luta entre o livro e a invasão digital.

Lembro-me de que a primeira vez que enfrentei o problema, objetivamente, foi quando, há mais de vinte anos, num almoço do Elio Gaspari, ele levantou o tema ao me dizer que, examinando e meditando sobre o domínio da internet, chegara à conclusão de que duas coisas não acabariam: o jornal e o livro. Com ele concordei imediatamente.

Passado o tempo, sempre preocupado com essa luta, participei de alguns debates sobre o assunto, o primeiro deles quando, convidado pela ONU, tive oportunidade de participar como debatedor da Conferência de Bibao, com o desafio de ter a companhia de grandes pensadores mundiais sobre o impacto da era digital nos direitos individuais, na privacidade e nos direitos humanos, quando verificamos que esses direitos estavam ameaçados e que não existia mais a proteção, com a garantia de que esses direitos seriam sempre sagrados. Eu, então, apresentei a minha constatação de que a verdade e a mentira também passavam pela mesma ameaça. Participou do meu painel o grande pensador mundial sobre os impactos da internet em nossa vida, Manuel Castells.

Afirmei ainda que, já naqueles anos, a quantidade de versões sobre determinado fato eram tantas que passara a ser difícil saber onde estava a verdade e a mentira. Quem escolheria a verdade verdadeira para nós passara a ser os aplicativos e seus algoritmos, que, não sendo exclusivos, teriam outros concorrentes que fariam outra escolha e, assim, tínhamos que escolher entre os que escolheram por nós.

Depois, há oito anos, fui convidado a proferir a Conferência inaugural da segunda maior feira mundial do livro, em Guadalajara. Na maior feira literária do mundo, a de Frankfurt, na Alemanha, foi lançada a tradução alemã do meu livro Saraminda. No México, naquele mundão de livros e autores, escolhi o tema de minha preferência O Livro e a Internet. Naquele ambiente desenvolvi a minha conclusão, com fidelidade ao mesmo conceito que Elio Gaspari desenvolvera havia vinte anos: o de que o livro não iria acabar, pois tem uma tecnologia que lhe assegura esse lugar: cai e não quebra; pode ser conduzido para qualquer lugar; aonde você for, pode levá-lo consigo; não precisa de energia para funcionar; tem todos os programas de computador, porque há livro para qualquer assunto; e muitas outras vantagens para competição. Recordo com saudades que lá estavam o Vargas Llosa e minha querida Nélida Piñon, que nos deixaram. Nélida, não só a sua saudade, como também a obra importante na literatura brasileira. E tivemos ainda a companhia de Paulo Coelho — que, da Europa, me avisou estar me seguindo no Instagram.

Esse mundo fascinante da Internet que agora o Instagram está me proporcionando é para mim um mundo novo, cheio de seduções e medo — por exemplo, quando vejo os milhares de seguidores e de visitantes interessados no meu corte de cabelo e nas bolas que acerto na minha fisioterapia. Mas a oportunidade maior de que estou desfrutando é poder falar dos livros de minha autoria e dos livros que marcaram minha vida e dizer que, nessa parte, embora seja o decano da Academia Brasileira de Letras, fui o mau pai da minha obra, pois a minha maior preocupação foi com a sua acolhida no exterior, e não aqui, onde as pessoas viam o político, e não o escritor. Já escrevi 123 títulos, em 168 edições, algumas em várias edições, como Saraminda e O Dono do Mar, agora em agosto reeditadas pela Ciranda Cultural, uma das maiores editoras do Brasil, com quem assinei contrato de direitos autorais por cinco anos, confiando na vontade do Criador de manter-me vivo até lá.

Mas a verdade é que devo também acrescentar que as nossas previsões, minha e do Elio Gaspari, não foram absolutamente vitoriosas. Os jornais estão sendo dizimados e obrigados a se mutilar, como aconteceu com muitos, transformando-se em tabloides. Perderam os anúncios para as redes sociais e as assinaturas para a Internet, migrando para o formato digital.

No caso dos livros, o ataque veio com as enciclopédias: todas foram assassinadas, e a Wikipedia as devorou completamente.

Agora estou me rendendo também aos novos tempos, sendo um velho de 95 anos, de calça jeans e cavanhaque, gritando que troquei os eleitores por leitores do meu Instagram!

 

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Um País confiável

 

Quando do término da elaboração da Constituição de 1988 tive a oportunidade de dizer que, embora não fosse perfeita, tínhamos de concluí-la para que a nossa Carta Maior coroasse a Transição Democrática e assegurasse que o País fizesse da melhor maneira a travessia de um regime autoritário para um regime de liberdade absoluta. Nesse sentido, era crucial promulgar a Constituição possível.

 

Assim ressaltei que a nossa Constituição era híbrida, parlamentarista e presidencialista, o que sem dúvida provocaria no tempo conflitos de competência entre um poder e outro. E agora estamos assistindo a essas disputas entre o Legislativo e o Executivo, além da recorrente acusação de ativismo judicial contra o Supremo Tribunal Federal, que estaria invadindo a competência do Congresso.

 

Nessas disputas a mais séria é o caso das medidas provisórias. Quando eu fui por oito anos presidente do Senado, tentamos várias vezes uma solução para que essa legislação não se tornasse rotina, aí sim, legislando com amparo na Constituição, mas invadindo costumeiramente o que seria atribuição de outro Poder.

 

A verdade é que no momento estamos vivendo um excesso de crises, como dizem os franceses nesses instantes. É crise nos preços, nos juros, no IOF (esta, um cabo de guerra), e para não ficar somente entre nós, vem Trump e impõe uma tarifa para o Brasil de 50% — um problemaço porque afeta todos os setores produtivos brasileiros complementares da economia americana. E ainda se enfrenta o grande embaraço de um presidente dos Estados Unidos que não tem a visão do que o seu país representa para o mundo e não respeita seus aliados e seus vizinhos. Como se não bastassem as nossas crises, temos que solucionar mais esta, certamente a maior, que tem conotações políticas e envolve empresas pessoais americanas, objeto de punição pela alta Corte da Justiça brasileira, uma vez que essas empresas são impedidas de veicular, no Brasil, materiais com propaganda de ódio e conteúdo antidemocrático, ambos proibidos pela legislação brasileira.

 

É triste sentir e constatar que os negociadores da crise do IOF não têm alcançado os resultados que eram de se esperar, pois eles têm autoridade e legitimidade para cuidar dos interesses nacionais, e não dos de grupos de pressão que atuam nessas ocasiões defendendo seus interesses — e não os do país.

 

Invoco mais uma vez meu testemunho sobre a origem desse inevitável imbróglio. A parte sobre o sistema tributário na Constituição de 1988 foi um dos textos que me levaram a dizer que o País se tornaria ingovernável e que a parte relativa ao consumo inovava perigosamente. A taxa do ICMS nas relações entre os Estados era feita pelo Senado Federal. Vem a Constituição e determina que seja da competência de cada Estado da Federação. O resultado é que temos hoje 27 taxas, cada uma refletindo os interesses de cada uma das unidades da Federação, que aumentaram significativamente à proporção que necessitavam de recursos. Isto aumentou muito a carga fiscal. Por outro lado, também o governo federal ao longo destes 40 anos tem aumentado seus impostos, enquanto a Câmara aumenta as despesas.

 

Por que então o País não ficou ingovernável? Porque aumentamos a carga tributária, o equilíbrio orçamentário desapareceu, e os impostos que recaem sobre o povo ficaram extorsivos. Se não encontrarmos uma solução para isso, dentro de três anos, aí sim, vamos enfrentar uma crise insolúvel. Nesses momentos as instituições têm de ser muito fortes para não serem atingidas. Lembremos Otávio Mangabeira quando dizia que “A Democracia é uma planta tenra que precisava ser cuidada constantemente.”

 

Não é possível que nossos líderes na Câmara e no Senado, com nosso competente, experiente e preparadíssimo Ministro Fernando Haddad não encontrem o caminho certo para o entendimento. Lembro-me do discurso inaugural de Tancredo Neves, que li perante o Ministério em 17 de março de 1988. Ele dizia: “É proibido gastar!” (A exclamação é minha.) E hoje podemos acrescentar: “E aumentar impostos!”

 

Assim, encerro esta exortação pedindo que abandonemos os discursos de ódio, passemos a considerar a opinião alheia, evitemos negociar pedindo ao outro lado o que jamais se pode aceitar e passemos a olhar mais para as responsabilidades que repousam nos ombros de quem exerce qualquer poder.

 

O Brasil precisa de Paz para continuar a ser o que sempre foi: um País confiável!​

 

História de Amor e Saudade

 

Este espaço é dos leitores. Não deve expressar sentimentos que sejam pessoais, por mais justificáveis que sejam. Mas o meu tema de hoje, embora pessoal, é daqueles que merecem uma meditação universal: a relação entre pais e filhos, os valores da família, o amor e a morte.

Minha mãe, se estivesse viva hoje, dia do seu aniversário, 4 de julho de 2025, faria 114 anos. Por ela vou orar em missa que mandei celebrar em sua memória na Rede Vida e na igreja que ela pediu para construir, com a invocação de Nossa Senhora, hoje Igreja de São Luís Rei de França, que inspirou o nome da capital do Maranhão.

A visibilidade pública cria um estereótipo do político como sendo uma alma de gelo, com a vaidade de parecer forte e invulnerável, de ser um fingidor da “dor que deveras sente”. Felizmente, tenho todos os defeitos das mais frágeis e indefesas criaturas, as fraquezas do amar e do sentir.

Minha relação com minha mãe sempre foi muito forte. Era devoção e segurança. Meu pai morreu cedo, mas recebi a graça de ver minha mãe chegar aos 92 anos. Mas não há tempo nem idade para aceitar a morte. Evitava essa ideia. Hoje sinto como é difícil o meu mundo sem a sua presença. Os vínculos com meus antepassados acabaram-se com minha mãe. Todos estão mortos. Meus ombros pesam nas incertezas das raízes que agora sou e que amanhã também morrerão para crescerem outras, que um dia também se renovarão no mistério da vida.

Tenho outras confissões. Junto à minha mãe, não conseguia envelhecer. Julgava-me sempre o menino do seu carinho, um velho de 74 anos no tempo de filho, sem idade. É esse mundo que acabou.

Fui testemunha da sua vida e do seu exemplo. Menina, aos 14 anos, num desses dramas que separam as famílias, com seu forte caráter, ficou ao lado do pai, meu avô, e com ele saiu de Correntes, em Pernambuco, fugindo das secas em busca dos vales úmidos do Maranhão. Fugia da seca e do destino. De saúde frágil, viveu a pobreza mais dura. Nunca ninguém ouviu de seus lábios um lamento, nunca alterou a voz, nunca discutiu com ninguém. Ensinava pelo exemplo. Nas crises falava pelo silêncio.

Sei que existe fé porque vi minha mãe professar a fé com a força de todas as crenças. Sei o que é ser cristão porque ela era cristã: amava a todos, oferecia a outra face do rosto, sabia o que era o próximo no exercício da oculta caridade. Sei o que é a força da oração porque vi minha mãe orar a vida inteira e tudo conseguir orando, dias e noites agarrada às contas do terço e com os olhos “nos olhos do crucificado”.

Sua casa sempre foi cheia dos filhos, netos, bisnetos, tataranetos e dos filhos que adotou e criou e de todos que dela recebiam carinho e abrigo. Nunca deixou que o poder entrasse em sua casa, nunca lhe ofereceu cadeira larga na varanda. Ninguém conhece um gesto seu de interferência, uma atitude de ressentimento ou de censura. Mas não faltou nunca a predicação dos valores morais, da ponderação, do equilíbrio, do respeito às pessoas. Era pobre porque nunca quis ter nada. Sua casa era um exemplo de simplicidade e despojamento. As luzes que a enfeitavam eram suas velas e candeias.

Era uma mulher forte-frágil. Deus deu-lhe a graça de chegar ao fim da vida sem o menor sinal de senilidade. Sua cabeça era límpida e clara. Escreveu carta aos filhos. Era uma canção de gratidão pela vida, de agradecimento a Deus. Seu pedido: que fosse enterrada no mais simples caixão, com sandálias e num pobre vestido branco, que, às escondidas, com a cumplicidade de uma filha, mandara fazer. Que os filhos continuassem a manter os pobres que ajudava. Seu pedido será sempre atendido. Ela está no Céu. Para mim é Santa de Altar.

Ela bem merecia aquilo que Bandeira escreveu em Irene no Céu: “Pode entrar, você não precisa pedir licença”.

Esta é uma história de amor de um menino de 95 anos que não tem mais seu tesouro, e uma saudade que não passa permanece em seu coração, em sua alma, em sua vida.

 

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E nós, depois?

 

O último livro do Yuval Harari que eu li, Nexus, me assustou. Ele nos diz que vem aí, daqui a 200 anos, uma civilização que vai substituir a nossa, a dos computadores, e que essa civilização terá outros sentimentos que não os nossos. O amor não será o nosso, nem o ódio, nem o perdão. Nem as crenças serão as nossas. E ainda que, como hoje temos as nossas mitologias, essa civilização também terá as suas, e por aí ocorrerá a extinção dos humanos como eles são hoje, substituídos por uma fornada de humanos que terão outras emoções, diferentes das nossas. É de alarmar. Não será mais para mim nem para nós! Ninguém do nosso tempo verá isso.

Lembro-me de uma anedota, entre as muitas que ouvi em Roma, quando do Concílio do Vaticano II, que se contava de dois cardeais que se dirigiam para a reunião, eles bem velhos, um disse para o outro: “Devemos nos levantar para extinção do celibato na Igreja Católica.” O outro respondeu: “Mas não será mais para nós, não é?”  Ao que seu interlocutor, acrescentou: “Mas será para nossos filhos.”

No nosso caso, nem para os filhos dos nossos filhos.

Mas quando eu pensei nessa gente daqui a duzentos anos tive muita pena deles. Não assistirão ao jogo do Flamengo contra o Chelsea, nem ao carnaval do Rio e nem à festa de Nazaré em Belém, nem ouvirão O Peba na Pimenta, do João do Vale, nem O Siri jogando bola, do Luiz Gonzaga, nem poderão ver o Lula vencendo na eleição o José Serra, nem o programa do Chacrinha — e também não poderão chorar a tristeza de uma saudade, como a que sinto do arcebispo e cardeal de Brasília Dom Falcão.

Eu quis experimentar como será esse novo humano: coloquei-me em frente do meu computador e entrei no futuro: havia doze dedos em minhas mãos — seis dedos em cada mão, como O homem que matou Getúlio Vargas, “descoberto” por Jô Soares —, e meu computador não usava mais o sistema binário, de zero e um. Era um algoritmo que fazia o papel de zero e outro que fazia o do um. O sistema binário havia desaparecido, substituído por uma nova linguagem em que não tínhamos mais zeros. Como não existir zero, número do nada que passa a ser tudo a partir do 10, 200 etc? Ainda com minha “roupa de futuro”, vi que o registro dos séculos estava escrito com cinco dígitos! A partir daí eu não entendi mais nada, saí da máquina imaginária, que também não era mais o meu computador.

Mas essa gente do futuro, de qualquer maneira, vai ter que opinar e também ficará revoltada com essa matança em Gaza. Lembro-me do romance de Huxley, Sem Olhos em Gaza, muito diferente da realidade de hoje, com grande crítica da sociedade, a descrição da vida de Anthony Beavis, sua conversão e um grande sentimento de paz.

O que há de verdade no livro do Harari? Tudo e nada. Tudo porque diz dos avanços da era digital. Nada, porque faz previsão do que acontecerá com a nova tecnologia sem que se possa basear em nada de concreto.

A descoberta dos computadores data dos anos 1960. Em 1980 começou a ter um desenvolvimento tecnológico extraordinário até chegarmos aos dias atuais em que entramos na era da Inteligência Artificial (IA). E é a grande moda — para não dizer a grande preocupação dos cientistas — antever o que acontecerá com as IAs, até saber se as máquinas se revoltam, ou não, contra o criador, no velho ditado popular de que toda criatura se revolta contra o seu criador. Isso, na nossa civilização, na política, é lei: acontece sempre. Não só na política como também na administração pública.

Quando eu era presidente da República e tinha que escolher em uma lista tríplice para nomear uma autoridade maior — ministros dos tribunais superiores, presidentes do Banco Central, de agências e demais cargos —, o José Hugo, então Chefe da Casa Civil, me advertia: “Aqui está uma lista para o senhor escolher um nome. Naturalmente, dois ficarão zangados porque preteridos, e o nomeado será um traidor, porque vai dizer sempre que nada deve ao senhor, e sim aos seus próprios méritos. Então, o senhor terá dois inimigos e um traidor. ”

O que há de verdade é que os computadores já estão conversando entre eles mesmos, sem dar bola aos seus criadores nem aos provedores que os alimentam.

As operações financeiras de mais de sete trilhões de dólares, diariamente, têm mais de 90% de suas operações feitas por computadores — uns falando com outros computadores e chegando a encontrar o valor do câmbio.

Como anotou Harari, “Em 2017, só os homens podiam disseminar mensagens anônimas online. A partir do ano passado, sofisticação linguística e política similares podem facilmente ser compostos por computadores, independentemente da interferência dos homens. ”

Assim os computadores já estão independentes e podem fazer tudo. Não dependem mais de nós. Péssima notícia.

Mas eles precisam de muita energia. E isso depende de nós.

É verdade que essa turma não precisa aturar o Trump com suas vacilações.

E nós, depois? Vamos torcer pelo Flamengo, e os algoritmos vão chupar dedo!

 

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A Pós-verdade

 

Estamos vivendo coisas com que nunca sonhamos. Uma delas, a pós-verdade, que colocou a mentira no lugar da verdade, que deixou de ser o que é para tornar-se o que as emoções da rede social definiram como verdade. O fato foi substituído pela narrativa.

As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres. Podemos, numa tela vazia em nossa frente, por artes de Deus ou do diabo, ver o que se passa em todos os lugares do mundo no instante mesmo em que estão acontecendo. Com uma pequena caixinha que cabe na palma de minha mão, posso localizar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo e falar com ela, através dela me comunicar, saber e transmitir notícias, prever o tempo, fazer cálculos matemáticos e recuperar mensagens que me mandaram de outra máquina fabulosa — sua excelência, o computador —, que com um teclado que também me conecta com todo o mundo no mesmo instante que me fornece todas as informações que desejo, milhões e milhões de dados sobre tudo, a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, que vão se multiplicando quando alguém mais se junta a esse processo, que não tem limites e atinge o infinito, que é o conceito de rede.

O que acontece com nossa cabeça que foi da cultura oral, fez uma pausa no livro e de repente caiu na era da cultura visual? Que mudanças aconteceram em nossa maneira de pensar, nos costumes e nos sentimentos que durante milênios criaram a criatura humana que a História formou até agora? Nós nos acostumamos a conviver com a alegria, com a tristeza, com o amor em todos os seus níveis, com a noção de trabalho, com os valores da família, os sentimentos de ódio, da cólera, da violência, tudo isso de maneira artesanal, criando outro mundo, outra sociedade para a qual não estávamos preparados, diferente, com coisas que não podemos dominar, outro mundo a que buscamos nos adaptar, e não ele a nós.

Tudo mudou. Vivemos nossas circunstâncias, em que são as da realidade. Porém nossa realidade não é realmente a realidade. Nossos sentimentos e nossas reações estão sendo reciclados e já não são o que nos faziam acreditar. “O que em mim sente está pensando”, dizia o verso de Fernando Pessoa. Só que hoje, sentir e pensar não são mais faculdades do ser individual e sim do ser coletivo que somos.

O amor deixou de ser o amor como o concebíamos no passado. O mesmo acontece com a amizade, com a noção de convivência, com o ódio e a cólera. Estamos perdendo até a indignação, todos submetidos ao uso de uma droga tecnológica. As próprias drogas fazem parte deste contexto. A diferença é que estas são substâncias químicas para a sublimação dos prazeres. A droga da modernidade, com a parafernália de comunicação, nos impõe uma situação mais perigosa que a de não ter a liberdade de ingeri-la, porém, a obrigação de consumi-la.

O culto da velocidade. Não temos mais a liberdade de andar. As distâncias, o estilo de vida que foi criado nos fez dependentes da velocidade, do patinete, da bicicleta, da moto, do carro, do ônibus, do trem, do avião. Já não tem sentido escrever cartas. A civilização é oral, é o telefone. Escrever passou a ser algo atrasado. Escreve-se para confirmar o que se falou. Fala-se por telefone, por fax, pelo computador, pelo cinema, pela televisão, pelas redes sociais na internet.

Vemos perplexos que somos um grande laboratório e que estamos nos transformando com todas as mudanças que acontecem no mundo. É como se estivéssemos chegando ao desaparecimento da espécie de homem que foi o homem e que fez a História que chegou aos nossos dias.

Estamos em meio a estas perplexidades que são mais de segurança que de dúvidas. Nossas reações são condicionadas pelas inseguranças que nos rodeiam. Já não sabemos o que é bom e o que é mau. Nossos códigos de ética e comportamento individual, aquelas leis que cada um de nós processa dentro de si ao longo da vida, de um momento para outro estão questionadas pela realidade virtual. São os meios de comunicação que nos condicionam, e de tantas informações que nos chegam já não podemos distinguir o que é verdade e o que é mentira… As verdades são tantas que é impossível saber qual delas realmente é a verdade. Abrimos os jornais, vemos televisão, navegamos na internet, e a soma de informações que nos chegam são tão grandes que não podemos estabelecer uma escala de valores para absorvê-las.

Estamos dentro da bolha da rede social na internet, da qual é impossível fugir. A tarefa de sair tornou-se inexpugnável.

São tantas as versões que existem sobre uma verdade que é difícil descobrir onde está escondida a verdadeira mentira.

Ilustração: “Squelette arretant masques” (1891): a obra de James Ensor é famosa pelos seus desenhos e pinturas de máscaras e multidões que utilizou como crítica social da hipocrisia e da mentira

 

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Quanto vale um Deputado?

 

Como reagir ao saber da notícia de que, em Mato Grosso, a Polícia Federal chegou ao fim de uma investigação para saber quem tinha assassinado o advogado Roberto Zampieri, que estava permanentemente lutando contra a corrupção na Justiça naquele Estado, e, quando concluiu o trabalho, o que a Polícia encontrou, para o estarrecimento de todos e vergonha para o País? Uma empresa estruturada com uma tabela de preços para a prática de crimes hediondos, chegando ao maior deles:  o homicídio.

Na tabela, os criminosos precificaram um deputado: vale cem mil reais. A revelação desses fatos nos levou à indignação, sentimento que chegou também a toda a sociedade. É, sem dúvida nenhuma, a perspectiva ou certeza de impunidade. Só esta hipótese pode explicar tanta ousadia. Não uso “coragem” porque esta é uma palavra que não pode ser aplicada para bandidos, para o mundo do crime.

Como os tempos mudaram! Nessa linha penso no Maranhão do século 19, quando o A Pacotilha, combativo jornal de S. Luís, publicava anúncios de um poeta oferecendo-se para fazer versos a preços módicos, colocando uma tabela de preços que eram proporcionais ao sentimento que o freguês tinha: versos de amor: 50 réis. Se fosse soneto, dobrava o preço para 100 réis. Quando o pedido era do marido enganado, que estava doente pelo amor perdido e desejava matar de inveja seu concorrente sedutor, o preço era maior que todos os outros, 200 réis. O poeta dizia que o aumento do preço era pela dificuldade que tinha de sentir essa desgraça. Naquele tempo dos réis, o dinheiro tinha um valor que não se pode comparar com o de hoje em dia.

Agora a política no Brasil está sendo levada pelo ódio e pelo ressentimento. Não acho que seja por programas de direita ou de esquerda. É mais um sentimento partidário e coletivo de dirigentes em busca de poder. E para isso o gosto de ganhar leva os ânimos a ficarem fora de controle.

Quando a política era colocada em torno de questões ideológicas, como no final do século 19, a discussão entre Rosa Luxemburgo, apelidada de “Rosa la Roja”, e Eduard Bernstein, sobre Reforma e Revolução, foi central para o movimento socialista. Muito depois Lenin impôs sua concepção leninista, invocando Clausewitz, o autor do livro Da Guerra (Vom Kriege), um clássico até hoje dissecado por estudiosos, afirmando que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Lênin estendeu essa ideia de Clausewitz, dizendo que se deveria aplicar à política as “leis da guerra”.

Assim na política não se teria adversários, mas inimigos, pois ela seria uma luta de classes que se estabelecia nos partidos burgueses, formados de inimigos do povo, e assim adversários eram inimigos que deviam ser eliminados. Paradoxalmente, hoje Benjamin Netanyahu, alegando motivos religiosos, pratica o extermínio dos palestinos, o que provoca a revolta mundial porque não se entende como se pode fazer da fome arma de guerra, como ocorre em Gaza.

Lembro do nosso poeta Bandeira Tribuzzi: “Que tempos de viver-se! Quando a fome / é crime, crime o canto e a liberdade / falso lema de gritos e histerismos, / vai perdendo a beleza que criara / entre as patas e o cântico das balas / assassinas de peitos sem defesa / como lírios entregues ao delírio / das razões em razões da força estúpida.”

Mas no Brasil não existe nenhuma dessas hipóteses de guerra: há um anarcopopulismo que torna a atividade política uma bagunça, sem partidos e sem ideologias, o que faz com que os programas e as doutrinas desapareçam e haja somente os dirigentes voltados a pensar na vitória — e para ela vale-tudo.

Mas tudo isso não é causa: é efeito de uma estrutura de sistema eleitoral impossível de continuar, baseado nas pessoas e com sistema de votação arcaico, que não existe em lugar nenhum do mundo, servido por um presidencialismo de composição.

O sindicato do crime assim é uma manifestação de violência que não pode ser aceita. Esses matadores de agora não devem ser considerados senão como criminosos que são, e seus crimes devem ser investigados até o fim e punidos com rigor.

Vai-se o tempo, e a minha terra com seu mercado de poesia cobrando preços irrisórios, com o poeta com sua empresa limitada e individual e seus sonetos de amor.  Ao contrário dessa firma ignominiosa de Mato Grosso, que é uma sociedade anônima com muitos sócios.

Quero lembrar novamente versos do grande poeta maranhense Bandeira Tribuzzi, que diziam: “Que sonho raro / será mais puro e belo e mais profundo /do que esta viva máquina do mundo?”

É hora de acabarmos com o ódio e marchamos para uma convivência civilizada em que os nossos juízes, deputados e senadores, tão atacados, se entendam nas divergências e se unam no interesse público e melhorem o apoio do povo a seu trabalho.

Cadeia para os bandidos e, aí sim, maldição a esses que mancham o Brasil.

Crédito da imagem: Maurenlson Freire/Correio Braziliense

 

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O mau político

 

Eu fui a São Paulo receber uma homenagem da USP – Universidade de São Paulo, na sua tradicional e famosa Faculdade de Direito, conhecida como Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde, numa solenidade especial, comemoramos os 40 Anos de Democracia no Brasil. Ressaltei o significado desse encontro com uma grande e qualificada audiência, formada de professores, formandos de diversos cursos e convidados políticos, que, em grande número, prestigiavam aquele evento. Procurei louvar a nossa Transição Democrática, o que representa para nós essa consciência de que a Democracia nos deu a Liberdade e, por meio dela, o direito à cidadania plena.

A Liberdade tem um poder criativo extraordinário. Cheguei a afirmar, nas Nações Unidas, num discurso que fiz quando assumi a Presidência da República, que a Democracia era o caminho do desenvolvimento e, depois, pensei bem e lembrei-me da China, que nos contraria esse nosso entendimento, e de que Thomas Jefferson foi quem definiu a Democracia como a conquista da Liberdade, e pudemos acrescentar, naquela oportunidade, que ela não foi feita para resolver problemas econômicos, cujo alcance depende de pessoas e circunstâncias. Ele também acrescentou a esse conceito a “busca da felicidade” entre os direitos do homem.

Jefferson era um homem do saber. Falava oito línguas, a começar com falar latim, grego e hebraico, além de possuir uma vasta cultura que incluía grande conhecimento de arqueologia e antropologia, o que inspirou John Kennedy a dizer a frase tão repetida nos Estados Unidos: “…a não ser quando Thomas Jefferson jantava sozinho nesta sala da hoje Casa Branca.” Kennedy afirmava, então, que Jefferson tinha mais cultura e inteligência que aqueles seus convidados — sessenta ganhadores do Prêmio Nobel, que jantavam naquela noite com ele, Kennedy, Presidente dos EUA!

Entrei numa estrada lateral. Mas prossigo na homenagem da Faculdade do Largo de São Francisco. A minha palestra foi sucedida por respostas a algumas perguntas. Uma delas era que conselhos daria aos jovens que queriam entrar na política.

Minha primeira observação foi a de que há políticos e Políticos, com P maiúsculo, como dizia Joaquim Nabuco a respeito do seu pai, o Senador José Tomás Nabuco de Araujo. Aos primeiros, atribuo o fato de considerarem a política como profissão ou emprego, e assim estão voltados para interesses que não os da atividade política. E assim pensam em si mesmos, nos seus interesses pessoais, em sua remuneração e, não raro, quase permanentemente, estão visando vantagens e ganhos de dinheiro associados a prestígio, uso de jabutis nas emendas da legislação e outras atividades indevidas. Estes são os maus políticos, que desmoralizam a política e mancham a imagem dos verdadeiros Políticos. Devem ser objeto de identificação e repelidos pelos eleitores e por toda a sociedade.

Os com P maiúsculo são aqueles que pensam nos outros, na sociedade, no seu próximo, no seu Município, no seu Estado, no seu País, na Humanidade. Têm ideologia, programa de ação e conduta moral e política ilibadas. Zelam pela política, protegem a administração pública, têm espírito público moral.

Aos jovens que desejam entrar na política, eles primeiro têm que escolher qual das duas espécies de políticos desejam ser.

Se forem os da primeira, digo para jamais entrarem ou pensarem em entrar na política. Serão infelizes e provocarão a infelicidade dos outros, da sociedade, além de manchar o nome de sua família. Procurem emprego e cumpram seu destino individualista.

O outro caminho é o de Políticos de que precisamos, dos que dedicam sua vida aos outros, que pensam nos seus semelhantes, que desejam melhorar a sorte do seu torrão natal, do seu Município, do seu Estado, do seu País, da sua sociedade, da Humanidade.

Para esses, devo dizer que o primeiro passo é o de saber se têm vocação de liderança. Se desejam mudar o mundo. Se têm utopias, se têm fé. Se acreditam na esperança e caridade. Devem estudar, ter uma base de cultura humanitária e saber trabalhar em equipe.

Venham se juntar aos jovens políticos, busquem o exemplo dos velhos bons políticos. Abominem a corrupção. Tenham um ideal.

E, para mim, homem de fé, devem acreditar em Deus. Sejam cristãos.

 

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