José Sarney

O Passado no Presente

 

Ontem, nos 64 anos de Brasília, dei uma entrevista muito pessoal sobre a minha história com a cidade em que estou mais da metade da minha vida, desde a sua fundação. Hoje talvez seja, entre os poucos que vieram para esta capital, o mais velho dos deputados da transferência do Rio para Brasília que ainda sobrevivem. Nunca consegui libertar-me das lembranças do que foi vir morar aqui naquele ano de 1960, senão que era aventura e sonho. Aventura da mudança com o caos das construções e o sentimento de que éramos estudantes sonhando com o futuro. T. S. Eliot dizia que no presente e no futuro estão o passado e o futuro, que para mim foi chegando ao ver esta metrópole, a cidade crescendo cada vez mais com fábricas e projetos agrícolas em toda a região, a qual passou a ser de sua total influência.

 

Mas estão me cobrando as consequências políticas da mudança da capital. E me ocorre dizer que a maior de todas foi que o regime militar passou a tratar de forma equivocada o problema partidário, acabando com os partidos políticos e criando dois partidos, MDB e Arena, por decreto. Isso só desapareceu no governo do Presidente Geisel, por iniciativa do ministro Golbery, possibilitando a criação de outros partidos. Eu, no Congresso, comandei a aprovação dessa lei e fui relator da Emenda Constitucional que acabou com os atos institucionais, inclusive o AI-5.

 

O Brasil nunca teve partidos políticos nacionais, como ocorreu com seus vizinhos, o Paraguai, a Argentina e o Uruguai, que têm partidos centenários. Aqui tínhamos partidos regionais e só chegamos à existência do partido nacional pela Lei Agamenon Magalhães, de 1945.

 

O Getúlio, vitorioso em 30, entregou a Assis Brasil a elaboração da lei eleitoral, que nos deu o voto proporcional uninominal, uma ideia do século 19, que achava que todos que adotavam uma ideologia deviam ser representados no Parlamento. O exercício desse voto proporcional criou até hoje o caos do nosso sistema partidário e incentivou a multiplicação dos partidos. Todas as vezes em que se tentou barrar essa dinâmica foi encontrada resistência. Esta teve até a participação do Supremo Tribunal Federal, quando derrubou a Lei de Barreira, estabelecendo condições para o funcionamento de um novo partido ou dos partidos já existentes, que tinham mínima expressão eleitoral.

 

Para a mudança da capital, um dos argumentos mais fortes que adotavam os que eram contrários era a vulnerabilidade do Rio de Janeiro a essas pressões, que recaíam sobre o Poder Executivo e os demais Poderes, o que justificava o número de investidas de golpes e a expressão “A vila vai descer?”, que era o apelo à Vila Militar, que tinha o maior poder de fogo em nosso Exército.

 

Outro argumento era o de que o Rio de Janeiro, pela pressão da sociedade, era um caldo de cultura que apoiava o surgimento de bons políticos e o desaparecimento de maus políticos. E Brasília não teria essa condição, a começar pela diáspora de parte dos líderes, como o próprio Carlos Lacerda, que batia nessas teclas e não veio para Brasília.

 

Eu acho que a crise dos nossos partidos é o fato de eles não praticarem a democracia interna, e, dominando a estrutura partidária, também não praticarem o exercício da política do interesse público. Fica o terreno da corrupção e da anarquia. Isto, aliado ao voto proporcional, é um casamento perfeito para alimentar a crise dos partidos.

 

A verdade é que agora, depois que o Legislativo encheu de dinheiro os partidos, estes passaram a ser mais disputados e aumentou a vontade de criá-los. Temos 29 partidos e cerca de 50 em criação.

 

Hoje, a judicialização da Política e a politização da Justiça, na expressão de Jobim, podem levar o País à ingovernabilidade.

 

Sem partidos fortes não teremos democracia forte.

 

 

Ataque inútil

 

 

O mundo está assistindo — perplexo e, ao mesmo tempo, temeroso das consequências que podem ser geradas — a guerras localizadas no Oriente Médio. A maior e a raiz de todas elas: a luta de Israel contra os países árabes. Vimos, ontem à noite, o que foi proporcionado pela televisão: nos céus de Israel, mísseis iranianos e o escudo de ferro israelense em enfrentamento.

 

Sem dúvida, é uma irresponsabilidade essa atitude do Irã de atacar o território israelense, porque isso não se enquadra em represália nem com a cobertura dos instrumentos legais que regulam as relações entre os países aprovadas pela ONU.

 

O ataque à Embaixada iraniana por Israel não se configura em um ataque ao território do Irã. Portanto, esta atitude da teocracia iraniana, comandada pelo aiatolá Khamenei, não tem cobertura legal, uma vez que as embaixadas não constituem território dos seus países, mas o reconhecimento de que estes espaços têm independência e autonomia, sob a jurisdição do país representado, diferentemente do ataque iraniano, que se dirigiu ao território de outro país, no caso Israel, o que todo o mundo e as instituições multilaterais condenam, pois a soberania e a integridade territorial do país foi claramente violada.

 

Felizmente a América Latina é o continente mais pacífico da face da Terra. A última guerra que tivemos foi a do Chaco, entre Bolívia e Paraguai, por volta de 1932. Temos um equilíbrio estratégico na América do Sul que desestimula qualquer solução de força, pois nossos orçamentos militares são pequenos e nossas Constituições pregam o pacifismo. Assim, com o exemplo do Oriente Médio, devemos ser sempre vigilantes para que não se instale qualquer conflito no território da América Latina. É bom lembrar que Churchill, quando denunciou o rearmamento da Alemanha, foi acusado de ver fantasmas ao meio-dia. Assim devemos imediatamente evitar essas bravatas venezuelanas de outro chefe de Estado adepto da força, destruindo as instituições democráticas, que agora ensaiou invadir o território de Essequibo, fato que não pode parecer para nós da mesma maneira como o que ocorreu com Churchill.

 

É bom lembrar que essa questão já tem mais de um século. Eu, em 2007, em artigo que publiquei na Folha de S. Paulo, denunciei a atitude de Chávez ao tentar tornar a Venezuela uma potência militar, adquirindo caças russos, estações de radares chineses ultrassofisticadas, navios, submarinos, milhares de rifles poderosos, distribuídos a milícias populares, com o direito de produzi-los.

 

Afirmei no Senado, naquele tempo: já que habitamos um continente pacífico, armar-se desta maneira, ensejava as perguntas: Contra quem? Para quem? Com que objetivo? Denunciei que o objetivo era tomar o território de Essequibo da Guiana. O que agora acontece foi previsto por mim, como a questão de limite da qual o Brasil participou e perdeu, no laudo do rei da Itália, parte do nosso território que nos levava à fronteira com a bacia do rio Essequibo. Logo, um ato dessa natureza, que, agora, Maduro confessa ser um dos seus objetivos, nos oferece uma visão do perigo que representam para nós uma ditadura na Venezuela e atos como esse do Presidente Maduro. Chávez dizia: “A revolução na Venezuela é pacífica, mas não desprovida de armas.” Lembrava e se inspirava na frase de Lenin, “Camaradas, agora não necessitamos de oposição, é melhor discutir com rifles”.

 

O ministro Nilson Gibson, em suas memórias, fala de uma proposta venezuelana ao Brasil para reabrirmos essa questão, que nos daria uma parte do território conquistado. O Brasil seria seduzido pela Venezuela para juntos reabrirmos o caso das fronteiras com a Guiana; ao aceitar essa ocupação, teríamos uma parte daquele território.

 

Assim, devemos tomar esse assunto do Oriente Médio como um alerta para não permitirmos que se instalem em qualquer país da nossa região armamentos que ameacem o equilíbrio estratégico da América Latina.

 

Roseana e Ziraldo

 

Estes últimos dias foram de muita emoção para mim. Primeiro tive o choque da notícia do ataque que sofreu a grande poeta Roseana Murray — felizmente seguida pela informação de que ela está fora de perigo e atravessou a emergência. Depois veio a morte do Ziraldo, velho amigo, extraordinário artista.

 

Não sei se souberam o que aconteceu com a Roseana Murray. Nós nos tornamos muito amigos por intermédio de meu querido Juan Arias, grande jornalista e escritor espanhol, a quem devo minha primeira apresentação aos leitores espanhóis. Correspondente de El País no Brasil na última fase de sua carreira, tendo sempre as melhores fontes mundo afora, Juan e Roseana formam um casal admirável.

 

Ela é uma grande poeta, consagrada, no auge do seu reconhecimento nacional, com enorme sensibilidade e o dom de comunicação especial com o público infantil. Sua bibliografia é muito extensa, tendo parcerias com os principais ilustradores do livro infantil no Brasil, inclusive o Jardins, com o Roger Mello, um dos melhores artistas do livro brasileiros, que ganhou o Prêmio do Livro Infantil da Academia Brasileira de Letras. Ela tem maravilhosa facilidade de comunicação com as crianças.

 

Roseana e Juan vivem em Saquarema, e foi lá que, saindo para uma caminhada, ela foi atacada inesperadamente por três cães da casa vizinha. Maltratados, criados dentro dessa obsessão pela violência que atravessa os séculos e parece ter um surto neste milênio que devia ser o da Paz, os animais saltaram um alto muro e a derrubaram, ferindo-a barbaramente. O comportamento dos donos dos animais — mais que irresponsável, criminoso — precisa ser punido com severidade que sirva de exemplo.

 

Transportada para um hospital da região, Roseana teve o atendimento necessário e a vida salva. A notícia que tenho é que seu quadro de saúde é estável, tendo perdido um braço e uma orelha, entre os muitos ferimentos. É claro que depois terá uma longa travessia para se recuperar física e emocionalmente, mas os amigos ficamos esperando sua volta para casa e para a poesia, que nunca a abandonará.

 

Conheci Ziraldo no final dos anos cinquenta, quando chegamos ao Rio de Janeiro, ele vindo de Minas Gerais e eu, do Maranhão. Era um artista que superava a facilidade do traço com uma grande percepção do universo humano, que fazia com que suas ilustrações e seus personagens alcançassem rapidamente seu público. Mas ele não se limitava ao caricaturista ou ao ilustrador. Lembro-me como, recebendo de Odylo Costa, filho a tarefa de transformar graficamente o velho O Cruzeiro, logo criou uma revista clara e agradável de ler. Verdade que a seção de humor ganhou um destaque especial, inclusive com as impactantes “fotofofocas” (depois tornadas em “fotopotocas”), em que o balãozinho do diálogo nos revelava o verdadeiro pensamento ou a conversa dos fotografados.

 

Seu enorme sucesso logo se tornou internacional e se estendeu do cartaz — que cobriu do cinema novo às boas causas com a mesma inteligência e o mesmo impacto — à literatura infantil. Nesta, também, mostrou que em qualquer maneira que resolvesse se expressar era bem-sucedido, indo dos quadrinhos da Turma do Pererê — em que, creio, introduziu a primeira personagem indígena da nossa literatura infantil — à sofisticação do Flicts, a cor que busca sua identidade, e mostrando que também era um escritor de enorme qualidade.

 

Quando lançou O Pasquim, que desafogou, enfrentando as barreiras da censura, a oposição ao regímen militar, Ziraldo mostrou também sua capacidade de jornalista, levando o tabloide ao enorme sucesso de público. Seu combate político o conduziu à prisão e às enormes pressões da censura sobre os comunicadores.

 

Sua morte, mesmo chegando com a naturalidade com que chega aos velhos, me entristece. É um destes pedaços de vida que vão ficando pelo caminho.

 

Dias de muita emoção.

 

Odylo e o Jornal do Brasil

 

Quando iniciava minha vida política, sentando-me como suplente nas cadeiras do Palácio Tiradentes, tive a oportunidade de acompanhar de muito perto a maior transformação por que passou a imprensa brasileira: a que Odylo Costa, filho fez no Jornal do Brasil. Agora Luiz Gutemberg publica JB: A invenção do maior jornal do Brasil, em que conta a reforma com os olhos de quem era então um jovem repórter.

Conheci bem as circunstâncias que levaram Odylo ao JB. O jornal era propriedade do Conde Ernesto Pereira Carneiro, empresário pernambucano que o tinha como principal ativo. Este era casado com a filha de um grande escritor e jornalista maranhense, Dunshee de Abranches, Maurina, que todos tratavam de Condessa Pereira Carneiro. Em 1954 o conde morrera e deixara para ela o jornal. Amiga de Odylo — que fora amigo de seu pai —, a Condessa o chamara para reconstruir o jornal. (Tornei-me, pouco depois, muito seu amigo.)

O Jornal do Brasil fora fundado por Rodolfo Dantas no começo da República como um jornal monarquista. O novo regime o depredou e ameaçou. Ruy Barbosa teve a coragem de comprá-lo, mas o viu ser novamente destruído. Ao acabar o violento governo Floriano, os irmãos Mendes de Almeida tornaram-se os terceiros proprietários e fizeram dele um jornal popular. Ambiciosos, tomaram iniciativas caras e precisaram de capital — foi quando entrou Pereira Carneiro, que logo depois da Primeira Guerra se tornaria o único proprietário. Aos poucos o jornal virou uma empresa comercial lucrativa — o único jornal brasileiro que realmente gerava lucro, pois vivia dos pequenos anúncios, abandonando completamente a informação e a opinião. Os “classificados” geravam receita direta e indireta, com o pagamento dos anúncios e a compra do jornal para procurá-los .

Eu já lhes falei de Odylo, um dos melhores seres humanos que conheci. Sou até um pouco suspeito para falar dele, pois foi um dos maiores amigos que tive, amigo de todas as horas. Nos conhecêramos quando voltara ao Maranhão para participar do resgate do Estado da velha política. Era um extraordinário poeta, tinha uma generosidade, uma bondade exemplares, uma cultura que abrangia todos os horizontes, uma capacidade de trabalho insuperável. Compadre de Virgílio de Melo Franco, por sua mão conheci Afonso Arinos e outros líderes da UDN. Amigo de Manuel Bandeira, Drummond e dos maiores escritores brasileiros e portugueses, me aproximou deles.

Gutemberg publica os testemunhos de muitos dos grandes jornalistas — ou artistas gráficos, como Amílcar de Castro — que participaram da aventura de transformar o Jornal do Brasil no JB que foi durante muitos anos o padrão do bom jornalismo no País. Os testemunhos e a narrativa contam o que aconteceu — num período muito curto — e explicam que suas ideias tenham se expandido nos anos seguintes, quando ele já deixara o jornal.

Pequenos papéis amarelados, reproduzidos nas ilustrações, exprimem as ideias de Odylo e são mandamentos que toda imprensa devia seguir: “Objetivos: a) prestígio nas classes dirigentes; b) leitores nas classes populares. Para atingir o 1º objetivo […] é preciso: 1) melhorar a colaboração; 2) fazer com que o leitor do Jornal do Brasil encontre: a) todas as notícias de seu interesse, b) apresentadas com inteligência e senso jornalístico, i. é, c) revestidas de objetividade e independência.” E adiante, sobre um tema, mas valia para todos: “Melhor não ter do que não ter o melhor.”

Odylo entrou em conflito com Nascimento Brito, genro da Condessa, e deixou o JB em dezembro de 1958. Mas, ao contrário do lugar-comum “o mal já estava feito”, o bem já estava feito, a reforma continuou, inevitável.

Ler a história desses dias é conhecer como é possível, de um par de “objetivos”, construir um conceito que influenciou profundamente o Brasil. Para quem, como eu, viu a entrega diária de Odylo à tarefa que se dera, o viu em aparente desordem erguer do chão “o maior jornal do Brasil”, faz aflorar a imensa saudade, que não passa, do homem exemplar, do amigo querido.

 

A Democracia e as leis da guerra

 

Nos conceitos de progresso do ser humano que eram correntes quando iniciei minha vida, um dos que pareciam mais sólidos era o de que o homem deixara de ser um animal naturalmente violento para, adquirindo inteligência, organizar-se em paz. A ideia do progresso biológico foi desmentida pela simples aplicação da teoria da evolução, e a sociedade pacífica nunca prevaleceu. Continuávamos, no entanto, pensando que a Humanidade progredia em relação ao sistema de governo, encaminhando-se inexoravelmente para a democracia. Se não é verdade, pelo menos acreditamos que ela é a única forma razoável de Estado. É um problema o sujeito dessa frase. Acreditamos, eu e você e,  espero também, a maioria das pessoas.

 

Assim também pensou Fukuyama que, num livro famoso, disse que no século 20 se chegara ao fim da história, com o domínio da democracia. Hoje a sua sobrevivência é controversa. Ela está sob ataque em todo o mundo. O pior é que o combate é feito usando a liberdade e as garantias que só ela estabelece.

 

Entre as sínteses de ideias que não podemos esquecer, duas delas se contrapõem e já citei aqui: a de Hobbes, de que o medo da morte violenta forma o Estado; e a de Lênin, invertendo Clauzewitz, que se deve aplicar à política as leis da guerra. Exterminar o adversário.

 

Em todo o Mundo se vê a aplicação da tese de Lênin e a derrota da fórmula de Hobbes. Por toda parte vemos a violência ser adotada como instrumento da política e os Estados serem usados para incutir o medo da morte violenta.

 

Esta semana que passou um discurso de Donald Trump mostra como se usa a violência política para a destruição da democracia. Ele subiu o tom de suas ameaças, certamente por estar convencido de que elas agradam a sua base. Prometeu um banho de sangue e o fim das eleições se não for vitorioso na tentativa de voltar à Casa Branca; e, agitando a bandeira do combate à imigração, afirmou que os imigrantes não são humanos, são animais, e devem ser exterminados. Esse tipo de discurso é tudo menos original.

 

A possibilidade real de os Estados Unidos, com todo o seu poder, se tornarem uma ditadura de extrema-direita é uma perspectiva que contraria toda a esperança que deposito na democracia. Mas antes mesmo da democracia ser completamente destruída o seu controle pode provocar muitas lágrimas. É o caso do último visitante de Trump, Viktor Orbán, que faz as maiores barbaridades contra seus adversários e contra os imigrantes.

 

É nesse contexto que acontece a tragédia inaceitável na faixa de Gaza. O Ministro Mauro Vieira falou em atos ilegais e criminosos. Os crimes de guerra foram há muito codificados. Em nenhum caso se pode atacar a população civil. O que aconteceu em Dresden, Hiroshima e Nagasaki está tão barrado quanto os inúmeros e sistemáticos atos dos nazistas contra os civis nos países invadidos, nos países ocupados e na própria Alemanha, quanto a crueldade exacerbada dos japoneses na China, no Sudeste Asiático, nas ilhas do Pacífico.

 

É inaceitável, por isso, que em Gaza dezenas de milhares de civis — crianças, mulheres — tenham sido mortos, que cidades inteiras tenham sido destruídas, que hospitais sejam atacados, que milhões de palestinos sejam obrigados a peregrinar aterrorizados de um lado para outro do pequeno território, que se impeça essa população de receber alimentos e remédios. Não há barbárie que justifique esta barbárie.

 

Desapareceram as utopias e estamos num momento de desencanto quanto à marcha da civilização. Mas não morreram os nossos ideais de um mundo mais justo e da vitória final do homem liberto de todas as seduções da violência.

 

 

Anarcopopulismo

 

Quando se formavam as bases da democracia moderna, no período entre as revoluções inglesa, americana e francesa, ou entre Locke, Voltaire, Rousseau, Madison — isto é, quando se invocava o predomínio da razão —, surgiu uma palavra para negar valores: niilismo. Etimologicamente, a palavra vinha de “nada”, podia-se dizer que era a negação das ideias. Nietzsche lhe deu sua carta de alforria. O niilismo, segundo ele, esvaziava a humanidade de significado, propósito, valores. Mas a frase definitiva é de Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é permitido.”

 

Ser um niilista representava, quando eu era jovem, a manifestação de uma vontade desagregadora, desesperada e inútil. Eu, meus amigos, os políticos com que convivíamos, tínhamos ideias, sonhos, divergíamos sobre a teoria e a prática da política, mas víamos uma sociedade a ser transformada com a ação do homem. Nossa repulsa ao niilismo era definitiva.

 

O outro lado do niilismo é o agir negativo, o anarquismo. Este tem derivas para o socialismo e para o terrorismo. Na mesma família surgem os populismos concentracionários, nazismo, fascismo, comunismo etc. Com a vitória do capitalismo a anarquia volta-se para a antiglobalização e, naturalmente, na negação do Estado, o anarcocapitalismo. Daí para o atual populismo de direita, para a alt-right foi um pequeno passo.

 

Para cada corrente surgem logo os teóricos. O anarcopopulismo, a mistura de demagogia bagunceira que varre o mundo, tem como cérebro Steve Bannon, que não chega a formular um pensamento, mas desdobra-se em ações. O objetivo é desintegrar o Estado de Direito.

 

Entre nós, se escapamos do desastre maior do 8 de janeiro, vivemos hoje um Parlamento sem valores, sem ideias, sem programas. Atomizada a representatividade, torna-se quase impossível governar. O sistema de votação virtual, introduzido sob pretexto da pandemia, acabou com o debate parlamentar, reduzido às pautas corporativistas. Inevitavelmente os poderes entram em conflito. Há apenas o fascínio por um mundo a ser conquistado por todos os meios — e destruído.

 

A Inglaterra fez o Brexit como solução para a crise partidária e, com o seu desastre, vê o aprofundamento desta crise. A falta de lideranças abala a Europa. Putin se especializa no assassinato político e se coloca com Zelenski acima do sofrimento de seus povos.

 

Mas o mais incompreensível exemplo vem dos Estados Unidos. Vivi na convicção, forjada na leitura dos Fundadores, de Lincoln, de Tocqueville, de que a Constituição americana, com seus “checks and balances”, era inabalável. Agora a vejo vacilar diante da segunda onda do ataque de Donald Trump. A Suprema Corte, em crise moral e politizada, decidiu examinar, nas calendas gregas, se um presidente americano tem imunidade absoluta.

 

Um jornalista do NY Times examinou o programa de governo de Trump. Diz ele que seu projeto não é eliminar o Estado: é usar o Estado para o benefício dos super-ricos que o apoiam — e, possivelmente, lhe darão o dinheiro para pagar as multas de mais de meio bilhão de dólares que equivalem a toda a sua fortuna. Um dos pontos é acabar com a separação entre Igreja e Estado: pobres Jefferson e Madison, que a fixaram como ideia central da liberdade de pensamento e devem estar girando sem parar em seus túmulos.

 

Um mundo incompreensível para mim.

 

*********************************************************************************************

 

 

A união do Mundo

 

O Presidente Lula tem feito, com a ajuda de dois grandes e experientes diplomatas, Celso Amorim e Mauro Vieira, um trabalho importantíssimo, para o Brasil e para a Humanidade: impulsionar a reforma das Nações Unidas. Falei do assunto há umas semanas e retorno a ele, pois eu também, quando era Presidente da República, trabalhei nesse sentido e, assim, nele tenho uma parcela de responsabilidade.

 

É preciso dizer que, se temos críticas ao funcionamento da ONU, é justamente por reconhecer o seu papel fundamental em todos os campos da ação internacional. Deixemos de lado, por um momento, a busca da Paz. É verdade que, para qualquer lado que nos voltemos, a Humanidade se depara com desafios gigantescos e com crises, mas é difícil de imaginar onde estaríamos se não houvesse as agências especializadas (programas, fundos, institutos etc.), que atendem os 193 países membros.

 

Vejamos o problema da infância. O mundo é, para centenas de milhões delas, uma armadilha de dor. Mas nem saberíamos a dimensão real do problema se não fosse a Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. Nascido sob o signo da emergência, ele se tornou permanente, mas os problemas que ele acompanha continuam precisando de medidas urgentes. Suas preocupações hoje começam com os cenários de guerra: Gaza, Ucrânia, Sudão, Congo… Mas 1,4 bilhão de crianças no mundo não têm assistência social básica, falta para elas comida, água, esgoto, educação, saúde… O trabalho da Unicef vai de conscientizar e orientar os governos dos países membros nas políticas corretas até agir diretamente: aqui no Brasil mais de dois mil municípios recebem apoio direto do Fundo.

 

A luta contra a fome é liderada pela FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. A fome é um dos mais antigos desafios da Humanidade. A FAO estima que 600 mil pessoas estejam morrendo de fome, entre os mais de 40 milhões que passam fome. Não podemos esquecer que há apenas dois anos havia entre nós quem disputava restos de ossos aos cães: temos que pensar no futuro. E a FAO tem uma parte central em assegurar que exista futuro, até mesmo armazenando as sementes que podem salvar a Humanidade se houver uma falha no arriscadíssimo caminho das mudanças genéticas e na inevitável onda das mudanças climáticas.

 

O PNUMA, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, criado depois da Conferência de Estocolmo, em 1972 — fiz então o primeiro discurso sobre meio ambiente no nosso Parlamento —, tem pela frente o maior desafio da História: o aquecimento global, as mudanças climáticas.

 

Depois da Covid-19 todos têm uma ideia da importância da OMS, Organização Mundial da Saúde. Sem ela a tragédia teria sido maior, se é que escaparíamos do holocausto global. Sua presença discreta no 1º Mundo muda para a onipresença nos países pobres e nos pontos em crise. O sucesso das vacinas se deve, em grande parte, a ela.

 

Pulo para a Unesco, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, com temas que são desafios e soluções, pois da primeira precisamos para participar da sociedade, da segunda, para conhecer o universo em suas infinitas faces, da terceira, para termos uma identidade. Quero apenas lembrar algo ameno — mas essencial —, a defesa do patrimônio cultural, histórico e ambiental: que orgulho senti quando, em Veneza, ouvi o nome de São Luís ser proclamado como patrimônio da Humanidade!

 

Poderia seguir: OIT (trabalho), OMM (meteorologia), UIT (telecomunicação), Banco Mundial, FMI ($$), PNUD (desenvolvimento), AIEA (energia nuclear), OMC (comércio), HCDH (direitos humanos), ACNUR (refugiados), TIJ (Tribunal Internacional de Justiça), os — infelizmente — hoje notórios TPI (crimes de guerra) e UNRWA (Palestina), entre tantos outros…

 

Todas essas instituições precisam de revitalização e solidariedade — até com gestos banais, como os países membros pagando suas cotas em dia. O Mundo precisa deles, e só o respeito a sua ação levará a cabo seus programas, que são necessariamente ambiciosos.

 

A multilateralidade é um passo avançado e complexo da diplomacia, que se estende além da ONU, como no G20, que o Brasil preside neste momento e cujos chanceleres se reuniram no Rio na semana passada, em encontro produtivo, inclusive para a reorganização do Conselho de Segurança, essencial para a primeira missão da Casa, a busca da Paz. O Secretário de Estado americano reconhecer esta necessidade foi muito importante.

 

O Brasil esteve entre os fundadores das Nações Unidas e continua a exercer, com o Presidente Lula, uma presença ativa nas discussões. Quando a reforma vier e, sobretudo, quando a Paz vier, o nome de nosso País estará gravado entre os benfeitores da Humanidade.

 

***********************************************************************************

 

 

Na Quadragésima

 

Passamos o Domingo da Quadragésima, o Primeiro Domingo da Quaresma. Quadragésima e Quaresma vêm dos quarenta dias que se repetem na liturgia católica e na Bíblia: é o período da purificação, como o que Jesus Cristo passou no deserto, ou como o que Nossa Senhora levou antes de apresentar, com São José, Jesus no Templo; mas é também o período que o Ressuscitado leva antes de subir ao Céu e o que a Arca fica suspensa nas águas e o que Moisés fica no Sinai esperando a Lei etc.

 

No nosso caso da Quaresma, somos nós que devemos nos preparar para o dia central em nossas vidas, na vida da Humanidade: o da Paixão do Senhor. Temos quarenta dias para isso, mais os domingos, que não entram na conta. Como todas as contas do “calendário móvel”, a data da Páscoa é de encontro complexo, que cria um desacordo entre a Igreja do Oriente e a do Ocidente: esta a comemora, em geral, mas não sempre, alguns dias antes daquela.

 

A data da Páscoa — do Domingo da Ressurreição — seria fixada no 14º dia da Lua cheia que acontece no dia 21 de março ou depois. Fácil! Mas tente entender os cálculos ou as tábuas ou os algoritmos — sim, há outros algoritmos além dos que impulsionam as fakenews.

 

O Padre Antônio Vieira — que vocês sabem que sigo por recomendação de meu pai — deixou, entre seus sermões, uma grande coleção dedicada à Quaresma. Três deles foram sobre a Primeira Dominga da Quaresma — domingo vem de dies domenica e se traduzia muitas vezes como palavra feminina. No ano de 1953 o Pai Grande, para os índios, ou o Vieira, para os que levavam lambadas dele, isto é, os que não eram índios, tiveram que ouvir uma baita descompostura.

 

O Evangelho da Primeira Dominga fala dos quarenta dias que Jesus passou no deserto. Conforme o ano, pode ser segundo as palavras de Marcos, Lucas ou Mateus. Aquele dia foi uma Dominga das Tentações, porque Mateus invoca as palavras que o Diabo proferiu ao Senhor: “Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me.” “Tudo isso Te darei, se, prostrado, me adorares.”

 

Ele, o Padre, não tinha uma avaliação muito boa dos fiéis de sua igreja. Acreditava que todos estavam prontos a sacrificar a alma — a cometer crimes inafiançáveis, diríamos hoje — por qualquer coisa. “Eu, Cristãos, não quero agora, nem vos digo que não vendeis a vossa alma, porque sei que a haveis de vender; só vos peço que, quando a venderdes, que a vendais a peso.”

 

Como o que mais se fazia ali era a escravidão dos índios, contra a qual tinha um édito real, Vieira sustentava que, ao mantê-los escravos, estavam vendendo a alma: “Basta acenar o diabo com um tujupar (um abrigo de palha) de pindoba (palmeira de onde se tirava a palha), e dois Tapuias; e logo está adorado com ambos os joelhos.” E anunciava que o que Deus queria naquela Quaresma era que soltassem os escravos. Estavam todos em pecado mortal, todos viviam e morriam condenados e todos iam direto para o inferno, e mudar de vida era a única salvação.

 

Nosso Padre Vieira acabava de chegar de uma viagem a Lisboa e, um pouco hipocritamente, tinha a intenção de fazer um acordo em que os índios fariam serviços remunerados aos moradores enquanto “livres” — isto é, enquanto viviam nas aldeias controladas pelos jesuítas.

 

É deste sermão um raciocínio que termina com uma exclamação terrível para nossa História: “[Dizem que] este povo, esta República, este Estado, não se pode sustentar sem Índios. Quem nos há de ir buscar um pode de água, ou um feixe de lenha?  […] Hão de ir nossas mulheres? [Eu] digo que sim, e torno a dizer que sim: […] porque melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio. Ah fazendas do Maranhão, se esses mantos, e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!”

 

Sobrevivemos àqueles dias, e o Maranhão se tornou um grande Estado, sem que (todas) as almas se tenham vendido ao Diabo. Infelizmente, lá, como em todo o Brasil, os índios continuam sofrendo tremendas agressões e sendo feridos em suas culturas, numa situação em que nunca é demais cobrar a ação do Estado.

 

Dizia Vieira, “El-Rei poderá mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição.” São palavras que o Congresso Nacional precisa sempre refletir quando trata dos direitos dos índios, inscritos na Constituição e acima dela, na consciência da Humanidade.

A longa visita do Aedes brasilicus

Há muitos anos contei como o aegypti abrasileirou-se. Naqueles tempos pré-pandêmicos lembrei uma reunião do InterAction Council que relacionara as doenças desconhecidas como ameaça ao futuro da humanidade. Uma delas, vestida de Covid-19, veio e ficou. Mas mais longa é a visita do Aedes brasilicus.

 

O bichinho é danado. Africano, tornou-se brasileiro cedo. Trouxe nossas primeiras epidemias, de febre amarela de 1685, no Recife, e de 1686, em Salvador, com alguns milhares de mortos. No século XX, Rodrigues Alves convocou Osvaldo Cruz para fazer uma revolução sanitária no Rio de Janeiro. A cidade era só epidemia: peste, cólera, varíola, febre amarela, malária. Os mata-mosquitos de Osvaldo Cruz zeraram a morte por febre amarela em 1909. Em 1955 o Aedes foi erradicado no Brasil. Mas ele reapareceu em 67, no Pará. Lutamos com toda a força em meu governo. Logo depois, em 1990, a Sucam foi extinta, e com ela se foram os mata-mosquitos. Naquele ano passaram de 100 mil os casos de dengue. De lá para cá os números milionários se sucedem.

 

O único caminho é a erradicação do mosquito. Já se avançou muito na produção de mosquitos estéreis, boa ideia surgida sem dúvida da má ideia de esterilizar as pessoas, que nos faz hoje termos um gigantesco problema demográfico pairando em nosso futuro. Mas não é solução mágica, como não basta acabar com as larvas. Durante as epidemias, é preciso atingir a forma alada — “adulta” —, pois o mosquito continua infectando durante toda a sua vida, de um mês e meio a dois meses. Para um e outro controle, ponto a ponto, não basta conscientizar a população, das capitais e do interior, para que elimine os pontos de água parada, ou pedir que use mosquiteiros, roupas que cubram todo o corpo, repelentes. Temos que mobilizar corpos profissionais com a única tarefa de combater o Aedes aegypti e os outros vetores de doenças tropicais, Anopheles (os impaludistas), Aedes albopictus (outro dengoso) etc.

 

A Sucam fora criada em 1970 para reorganizar os mata-mosquitos, arregimentados desde 1903 por esse gigante que foi Osvaldo Cruz. Os mata-mosquitos, espalhados pelo Brasil inteiro, batiam de porta em porta, furavam latas, limpavam depósitos, borrifavam fumaça, sabiam o que fazer. Já perguntei, mas não ofende repetir: por que não voltar o mata-mosquito, um corpo de funcionários públicos que só acumulou vitórias? É saudosismo? Pode ser. Mas deu certo.

 

O presidente Rodrigues Alves, tão receoso das epidemias que vivia em sua cidade natal, Guaratinguetá, pensando estar longe delas, morreu de gripe espanhola. Essa gripe foi devastadora, matou — quem sabe? — 100 milhões de pessoas no mundo. Ora, direis, naquela época… A gripe suína de 2009 matou 400 mil. A Covid, sete milhões (e o Brasil sempre naquela conta perversa da morte lhe dar preferência: com 3% da população mundial, sempre temos 10% das vítimas fatais). E no dia a dia, entra ano sai ano, vão-se outros 500 mil com as gripes “comuns”.

 

Falamos de morte e — como no caso da dengue, da chicungunha e da Zika — de muito sofrimento (sem falar nos casos delicadíssimos e trágicos da microcefalia). Às vezes com repetições. Tive malária três vezes, sei o que foi. O velhíssimo impaludismo, transmitido pelos Anopheles, apesar dos grandes progressos comandados pela OMS ainda é talvez a coisa mais perigosa do mundo: as estatísticas mundiais chegaram a 250 milhões de casos, com 600 mil mortes, em 2022 — claro que a pandemia provocada por bala &cia é sempre a maior vilã.

 

Apesar de muita pesquisa a cura da dengue ainda não chegou, mas descobrimos vacinas, em breve teremos até a nossa caseira. Sempre fui a favor das vacinas, promovi as “vacinações num só dia” para acabar com varíola no Maranhão, há mais de meio século; meu governo criou o Zé Gotinha. Nossa história com as vacinas é bem-sucedida e antiga, a primeira vacinação no Brasil é de 1804 e em 1811 já tínhamos uma “Junta Vacínica”.

 

Mas essas vacinas transitórias — é difícil fazer a conta das contra a Covid que tomei, imagine as contra a gripe — têm, além da limitação do tempo, a dos vetores. Com craques que jogam em todas as posições, como o Aedes brasilicus, o caminho certo é erradicar o mosquito. Vale para os Anopheles, vale para o Aedes. Ambos brasileiríssimos, migrantes de enésimas gerações, mas vamos esquecer há quanto tempo estão aqui e mandá-los para as profundezas do Tártaro: Cérbero que os mantenha lá.

 

 

Fofoca e realeza

 

A imprensa inglesa pratica um esporte em que é campeã mundial e invicta: a fofoca aristocrática, o gossip. É claro que o governo inglês faz um grande esforço para promovê-lo, não sei se tanto quanto dedica à difusão do futebol pelos hooligans, que instituíram o quebra-quebra como o melhor trunfo do nobre esporte bretão. Quanto mais republicana a democracia dos países, maior o interesse na aristocracia.

 

Os veículos são os tabloides, formato dominante entre os scandal sheet ou yellow journalism (o que chamamos de imprensa marrom) ou rags. Difundidos no mundo inteiro, eles assumiram agora a ponta dos aplicativos de mídia social, com a regra de não ter regra, a não ser a de preferir a fofoca inventada ao fato real.

 

Claro que, no caso da fofoca real, aí a coisa é imbatível. Como sabem, o novo rei da Dinamarca se tornou rei porque foi flagrado com uma celebrity mexicana que tem um sobrenome evocativo, Casanova. Como o velho Giacomo, ela anda fazendo furor na aristocracia, especialmente a espanhola — era casada com um filho da Duquesa de Alba, que não é a retratada por Don Francisco de Goya y Lucientes, Doña María del Pilar Teresa Cayetana de Silva y Álvarez de Toleto (ufa!), como Maja Vestida e como Maja Desnuda, ou com roupa branca ou preta — neste aponta a inscrição “Solo Goya” — ou ainda “asustando a la beata” no extraordinário quadro do Museu do Prado.

 

Mas os ingleses, como eu dizia — não podemos esquecer que o novo rei é descendente da rainha Vitória, que talvez tenha passado para trás o príncipe Albert com o cocheiro. Bem, os ingleses são imbatíveis. O velho novo rei da Inglaterra é casado com uma mulher que ele já classificou com termos bastantes vulgares, quando enganava a Lady Di, que chorava em vários braços mais vigorosos. Contam os rags, só digo o que dizem.

 

Mas, antes dos tabloides, o grande William Shakespeare — que não era o Earl of Oxford, mas o filho de um comerciante — andou contando as intrigas reais. Seus personagens mais fascinantes são o rei Lear, que desperta os (maus) sentimentos das filhas, Ariel e Calibã de A Tempestade, Lady Macbeth e Hamlet — que, quem diria, é um príncipe da Dinamarca que (quase) se torna rei. Tudo gossip.

 

No tempo da rainha Vitória, que reinou mais que a rainha- mãe da Dinamarca (63 a 52 anos), a Inglaterra se orgulhava de ser a terra do despiste. Ninguém tão mulherengo quanto um inglês vitoriano. Má reputação teve seu neto príncipe Albert Victor, duque de Clarence, que morreu cedo, mas teve tempo de protagonizar o escândalo de um bordel homossexual em sua rua de residência.

 

Seu irmão, George V, que talvez já fosse casado em Malta quando se casou com a rainha Mary, morreu em 1936, deixando o trono para o filho Eduardo VIII, considerado incapaz pela família e em Oxford, embora fosse bom jogador de polo — não sei se é grande recomendação intelectual. Em retribuição manifestou seu alívio com a morte de um irmão mais novo, epilético. Eduardo era um peralta, que adorava uma americana devassa. Houve um trabalhão para abafar o caso com uma delas que resolveu matar o marido a tiro. Mas nada como a experiência: Mrs. Wallis Simpson, com dois ex-maridos ricos pelas costas, superou as obrigações de rei e de chefe da Igreja Anglicana em menos de um ano, como previra o rei-pai. Abdicando em favor do irmão, George VI, Eduardo foi “criado” Duque de Windsor. Germanófilo e racista — considerava macacos os aborígenes australianos —, seu entusiasmo com o nazismo acabou tornando-o indesejado na Inglaterra; Churchill o mandou para as Bahamas. Depois da guerra passou a viver na França adulado pelas revistas de moda.

 

Mas não esqueçamos que de escândalos os nossos imperadores forneceram pratos cheios. Pedro I atropelava a imperatriz Leopoldina com a marquesa de Santos; Pedro II, discreto, deixava a imperatriz Teresa Cristina ser adulada pela Condessa de Barral.

 

Voltando aos ingleses, parece que há uma certa revolta com uma medalha oferecida por John Travolta ao príncipe Henrique, trêfego empresário que trocou o (vago) direito ao trono inglês por bons dólares americanos. Ele não seria uma “Lenda Viva da Aviação”. Quem sabe? As respostas estão nos melhores tabloides da Inglaterra!

 

***********************************************************************************************************