José Sarney
O novo Papa – Leão XIV
Está muito cedo para saber-se o que aconteceu nas quatro sessões que levaram os cardeais a escolher o Cardeal Robert Prevost, americano e peruano, para tornar-se o Papa Leão XIV. Ele adquiriu a nacionalidade peruana, uma vez que a legislação daquele país exige que todo cidadão que esteja há mais de dez anos ali se naturalize peruano. Só ele pode dizer se foi uma vontade pessoal e um amor que cresceu ou se apenas cumpriu uma exigência legal. O certo é que, de uma forma ou de outra, a legislação pode ter influenciado na sua escolha.
É outro Papa da América Latina, o que assegura uma continuidade do Papa Francisco e, ao mesmo tempo, revela que sua escolha tem o DNA do seu antecessor — a rapidez da escolha também revela isso. Francisco tinha uma marca de vivência peronista e, por esta marca, distanciou-se de Milei: durante seu papado, não visitou a Argentina. As ideias do atual mandatário, de estado mínimo, estão muito distantes das do Papa Francisco. A verdade é que ele foi criado e vivia na Argentina durante quase todo o período em que Perón governou o país. Contudo, não foi esta a marca do seu funeral: ele distanciou-se destas ideias raiz e terminou glorificado com a presença dos presidentes e dignatários dos maiores países do mundo. Não se pode deixar de analisar a presença de Trump e a necessidade de confrontá-lo com a liderança católica, moral e política do Papa. O mesmo que ocorreu com João Paulo II em relação ao mundo comunista e a Cuba.
Vou me aventurar a entrar na Capela Sistina e testemunhar como ocorreu a escolha do Novo Papa.
A primeira votação é a rodada das homenagens, cada um votando no cardeal amigo ou preferido. Na segunda, é a hora dos privilegiados, aqueles que entrarão papáveis e sairão cardeais, entre eles os burocratas da Cúria — e aí perderam os italianos. Naturalmente foi uma discussão acirrada, o que obrigou, após a terceira rodada, os seguidores de Francisco e por ele nomeados cardeais (dois terços) a abrirem o jogo e lembrarem o voto de gratidão, pois Francisco já tinha preparado a indicação do Cardeal Prevost, latino-americano e americano. Bastou essa explicitação para que, na quarta votação, se chegasse à escolha do novo Papa: continuidade de Francisco, conduta marcada pelo estilo latino-americano de Igreja dos pobres, despojada, mas canônica, sem esquecer sua liturgia e pompa.
Mas o Papa Leão XIV nasceu e cresceu nos Estados Unidos, sendo cidadão americano; portanto, sem raiz na pregação da miséria e da fome. Seus temas são raciais e políticos, sua relação com o mundo é a de levar a mensagem da democracia, na formulação de Jefferson, de que todos nascemos iguais e temos o direito da busca da felicidade.
A formação de Leão XIV já diz do seu equilíbrio. Primeiro estudou e formou-se em matemática, ciências exatas e, segundo, em Filosofia, abstração. São duas matérias que levam a uma confluência: a aridez da matemática e a caridade nos direitos humanos. Assim, a personalidade deste Papa é sedutora. Sai da amplitude de sua formação para os compromissos de sua eleição ao escolher o nome de Leão, tendo como antecessor o mais notável da doutrinação da Igreja, Leão XIII, que, em meio às perplexidades e injustiças trazidas pela Revolução Industrial — contrapondo ao Manifesto Comunista de 1848, de Marx e Engels, e ao capitalismo de Adam Smith —, aponta o caminho da Igreja: a Rerum Novarum, como seu braço temporal.
Leão XIV escolheu um grande desafio com um grande peso. Será que ele vai adiante? É difícil, mas não impossível. Ele está ao lado de Santo Agostinho, já que é o primeiro papa da Ordem de Santo Agostinho, e o segundo dos mais notáveis — como Leão XIII, que deu à Igreja a sua doutrina social, a Rerum Novarum.
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O que é CPLP?
Eu era Presidente da República, e Mário Soares, Presidente de Portugal. O meu telefone toca, era o meu amigo Mário Soares, de Lisboa. Como é o costume português, o interlocutor perguntou: “Está lá?” Respondi, também no mesmo costume português: “Estou, estou!” Nada de “Alô, alô”, como respondemos no Brasil. Ele diz: “Senhor Presidente, sei que estão realizando uma nova Constituição e venho pedir-lhe que nela conste que a língua oficial do Brasil é a Língua Portuguesa”. Respondi-lhe: “Mas, caro amigo, esta é mesmo a nossa língua e já falei ao Ulysses Guimarães que assim o faça.” E dessa forma ficou registrado em nossa Constituição. Disse ainda ao Presidente Mário Soares que desejava mesmo fazer uma reunião no Brasil para fundarmos uma comunidade de países que falam a língua portuguesa. Portugal estava de acordo, disse-me ele.
Encarreguei o Itamaraty de mobilizar nosso serviço diplomático na África para convidar, pessoalmente, todos os Presidentes dos países lusófonos para um encontro em São Luís, no Maranhão, onde faríamos uma primeira reunião.
Para minha surpresa, os africanos reagiram, recusando-se a participar de uma reunião com Portugal para criação de uma comunidade, alegando estarem num momento de proximidade da descolonização e serem muito recentes as cicatrizes deixadas pelos colonizadores, tudo ainda à flor da pele. Diante desse impasse, sugeri que fizéssemos a reunião não para criar uma comunidade, mas para criar uma instituição, o IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), com foco na defesa da língua portuguesa e de caráter eminentemente cultural. Assim todos concordaram — com exceção do José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola, que não veio, mas enviou representante, justificando sua ausência pela indisposição de se reunir com Mário Soares.
Dessa forma, a língua mostrava o seu efeito unificador e sua neutralidade, constituindo-se patrimônio de todos nós. Anos depois, com a concordância geral, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa tornou-se CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), um grande e prestigiado organismo internacional, com sede na África, em Cabo Verde, presidido, em rodízio, por todos os presidentes dos países onde se fala português.
No dia 5 maio, nesta semana, celebramos o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Essa data foi estabelecida pela CPLP — que se tornou uma organização parceira oficial da UNESCO em 2000 —, que nasceu em São Luís do Maranhão.
A Academia Brasileira de Letras foi fundada há mais de 100 anos e, na sua instalação, dois grandes escritores, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, estabeleceram as diretrizes, sintetizadas em duas condutas: defender a língua e a tradição.
Eu, por artes do destino, sou hoje o decano da ABL e assim tenho a obrigação, como político e intelectual, de defender — como o fiz na criação da CPLP — essa nossa extraordinária língua de cultura, hoje falada por quase 300 milhões de pessoas.
Nestes últimos quinhentos anos, o português transformou-se de um idioma oceânico em um idioma continental.
Ao iniciar, no século XV, sua expansão para fora da faixa mais ocidental da Península Ibérica ganhou primeiro o Atlântico e depois o Índico, fixando-se nas ilhas e nos pequenos e numerosos portos ao longo das praias que bordejam o que os gregos chamavam de Rio Oceano. Língua de marinheiros, tornou-se o idioma de ligação dentro dos breves espaços das feitorias e o falar do comércio com os povos que lhes eram vizinhos. Impôs-se como língua de beira-mar e de viagem, insulana, quer a cercasse o mar ou a isolassem a estranheza e a hostilidade das terras que a envolviam. Isso não impediu que se tornasse a língua franca do mercadejo nos litorais da África e do sul da Ásia, que se fizesse a língua de corte, a exemplo do que sucedera com o francês na Europa do século XVII, em reinos africanos como os do Benim, do Congo e do Warri, que entregasse palavras e modos de dizer a numerosas línguas, do iorubano ao japonês, que marcasse profundamente não só o vocabulário, mas também a sintaxe de idiomas como o papiamento e o urrobo, que criasse novas línguas, como os crioulos de Cabo Verde, de Casamansa, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe e de Ano Bom, e os papiás de Málaca, do Ceilão, de Macau, do Timor e da índia.
O açúcar, o ouro e o gado fizeram-na, com relativa rapidez, ganhar o interior do continente sul-americano. E, se mais lento foi o avançar pelos planaltos africanos, subiu o Zambeze e se instalou nos “prazos” de Moçambique e percorreu, em Angola, o Cuanza, o Loja, o Dande, o Cuvo, fixando-se, ali e acolá, em entrepostos, vilarejos e acampamentos de pombeiros. Abandonou, pouco a pouco, sua insularidade. Saiu dos navios e das praias, para expandir-se terra firme adentro, acabando por consolidar-se num imenso espaço territorial, terra que se tornou a América Portuguesa, um dos mais amplos espaços do mundo em que se fala o mesmo idioma. E fala-se o mesmo idioma com invulgar unidade, uma unidade que se superpõe aos regionalismos que o enriquecem e que o tornam, sem qualquer esforço, naturalmente compreendido por todos os que o falam ao longo do grande arco que corre da Europa até Timor-Leste.
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O livro não morrerá
Na semana passada comemoramos o Dia Mundial do Livro (23 de abril), com letra maiúscula, pois o Livro é o meu maior amigo, que Deus me deu no meu nascimento e me acompanhará até o fim. Acredito que vinte por cento da minha vida tenho passado o tempo em sua companhia.
Um dia, em São Paulo, ao almoçar com Elio Gaspari, ele me tranquilizou dizendo que duas coisas não iam acabar com a ameaça dos avanços da internet e do livro digital e concluiu: o jornal e o livro não acabarão nunca. Concordei e fui sedimentando essa convicção.
Hoje sei que alguns segmentos do livro foram atingidos: as enciclopédias e os dicionários já morreram. As minhas enciclopédias Larousse e Britânica já estão com doença terminal autoimune: olham-me com os olhos de amargura, pois há muito tempo não as procuro. Estou de amores novos com a Wikipédia.
Há sete anos participei da Feira do Livro de Guadalajara, convidado por seu presidente, Raúl Padilla López, a maior feira do livro em espanhol do mundo — um extraordinário conjunto com imensos espaços, onde se realizam palestras, seminários, com autógrafos de grandes autores. Ali encontrei García Márquez, Vargas Llosa, Miguel de la Madrid, Nélida Piñón, Marisol Schulz e muitos outros.
Pronunciei a conferência inaugural. O tema era “O livro e a internet”. Defendi que o livro jamais acabaria e procurei percorrer o longo e grande caminho da escrita, como consequência da linguagem.
Minha geração viveu entre a magia e a realidade. Aconteceram fatos e criaram-se coisas que nunca sonhamos pudessem existir. As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres inimagináveis. De repente, podemos, com um monitor à nossa frente, a TV, assistir ao que acontece em todos os lugares e no mesmo instante em que estão acontecendo. Com um pequeno paralelogramo, uma caixinha que cabe na palma da mão, o celular, podemos localizar qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo e com ela falar, comunicar, transmitir notícias, saber do tempo, fazer cálculos e recuperar os recados mandados de outra máquina — o computador —, numa conexão universal onde passam quase instantaneamente todas as informações que eu desejar, milhões e zilhões de dados sobre tudo, que muda a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, e vai crescendo à proporção que alguém a ele se agrega, nessa teia que não tem limites, ganha o infinito e se chama rede.
A História é marcada por mudanças mais ou menos bruscas que alteram seu curso. Revoluções, dizemos. A do Fogo, a da Roda, a da Navegação. Com mais razão, a da Agricultura, da Terra Semeada, a do Pastoreio. Também dizemos idades: da Pedra, do Bronze, do Ferro. Mas o que define realmente o homem é sua capacidade de se comunicar. Só com o Homo habilis, há dois e meio milhões de anos, surge a capacidade fisiológica da linguagem, talvez com a comunicação simbólica, e apenas com o Homo sapiens sapiens, há meros duzentos mil anos, surge a linguagem propriamente dita. Não sabemos como surgiu, mas sabemos que ela transformou profundamente a sociedade humana.
Há cem mil anos a linguagem falada começa a se diversificar. Ela é o instrumento — instrumento tecnológico — que permite a troca, que permite o intercâmbio de cultura, que permite a formalização de estruturas sociais, e é portadora de sua própria transformação.
A tecnologia da escrita foi usada, desde o começo, como instrumento de poder. Claude Lévi-Strauss — que foi meu amigo e com quem mantive razoável correspondência — tem uma frase muito forte: a escrita “era usada para facilitar a escravidão de outros seres humanos”. A escrita esteve associada com a estruturação das sociedades, a formação de hierarquias internas e de supremacia externa.
A capacidade de aprender sem mestre foi uma das grandes façanhas da escrita. Mas o verdadeiro feito foi acelerar a velocidade em que o conhecimento — informação e também sabedoria —, era transmitido. Os intervalos da natureza estão sempre em aceleração, e este impulso foi maior: a vida tem 4,3 bilhões de anos; primatas, 10 milhões; Homo, 2,5 milhões; Homo sapiens e linguagem falada, 200 mil; escrita, 5 mil e trezentos anos. O brusco passo da difusão da cultura oral para a cultura escrita levou 25, 30 séculos. Uma eternidade, mas um instante. Da escrita para cá corre a História.
Em Roma, os grandes homens deviam ser também escritores. Era parte essencial de sua reputação a qualidade do que escreviam. Assim a memória de Cícero e César encontra a de Virgílio e Plutarco.
A leitura e o livro caminharam. Na Idade Média a cópia era uma arte, os livros e as bibliotecas, preciosidades. As bibliotecas das primeiras universidades, como a Sorbonne, tinham umas poucas centenas de exemplares. Foi quando chegou a revolução de Gutenberg. Com a imprensa, a difusão do conhecimento daria um salto.
Assim chegamos à era atual em que a internet ameaça o livro em papel.
Nessa era o livro vencerá. É a mais nova tecnologia. Cai e não quebra. Tem todos os programas de computador. Não precisa de energia. Pode ser levado e lido (em) a qualquer lugar: no ônibus, no automóvel, no avião e no banheiro.
Como é gostoso seu cheiro e poder voltar a página para verificar o que foi lido!
Não há melhor presente do que um livro.
Quando visitei os Estados Unidos como chefe de Estado, a Srª Selwa Roosevelt, então chefe do cerimonial da Casa Branca, que escreveu suas memórias, disse que a mais fácil escolha de presente que teve para o Presidente que visitava os Estados Unidos foi o meu, porque soube que eu gostava de livro e que ela tinha predileção por Walt Whitman, poeta americano. E dos grandes. Ela comprou a coleção de suas obras completas e ofertou-me.
O Presidente Reagan as autografou: “Melhor homenagem eu não poderia fazer ao meu amigo, o Livro, senão estas palavras, desejando que ele faça parte da vida de todos os brasileiros e brasileiras.”
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José Sarney, 95 anos: uma celebração à vida e à história
Nesta quinta-feira (24), José Sarney, ex-presidente da República (1985–1990), completou 95 anos de vida. A data, além de marcar o aniversário de um dos nomes mais influentes da política brasileira, tornou-se um momento de reconhecimento e memória pela sua contribuição histórica à democracia do país.
A celebração aconteceu na Fundação da Memória Republicana Brasileira (FMRB), em São Luís, em uma cerimônia que reuniu autoridades, amigos e familiares para homenagear a trajetória de Sarney. Um dos pontos altos do evento foi o lançamento do selo e do carimbo comemorativos pelos 40 anos da redemocratização. A imagem escolhida para o selo traz Sarney ao lado de Tancredo Neves, símbolo de um Brasil que, após anos de repressão, voltava a respirar liberdade e esperança.
A solenidade também marcou a abertura da exposição “Ecos da Democracia: fios de memória e resistência”, que resgata, por meio de documentos e imagens, o caminho da reconstrução democrática e os desafios vividos por quem lutou por um país mais justo.
O evento contou com a presença de diversas lideranças políticas e representantes institucionais, entre eles o governador do Maranhão, Carlos Brandão; os deputados federais Juscelino Filho e Roseana Sarney, filha do presidente José Sarney; o ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas; o governador do Pará, Helder Barbalho; a presidente da Assembleia Legislativa do Maranhão, Iracema Vale; além de representantes dos Correios, do Ministério das Comunicações, do Tribunal de Justiça do Estado e da própria Fundação.
Memórias
Logo no início da cerimônia, um vídeo emocionou os presentes ao relembrar os tempos difíceis da Ditadura Militar, os ecos da censura e a importância do papel de Sarney na condução pacífica e democrática da transição. Juscelino Filho, que abriu os discursos, ressaltou a responsabilidade de cada brasileiro em defender os direitos fundamentais e destacou a atuação de Sarney na promoção do diálogo, da cultura e dos direitos humanos.
O governador Carlos Brandão classificou a noite como histórica. “Hoje celebramos não apenas os 95 anos de vida de José Sarney, mas os 40 anos de um marco essencial da nossa história: a redemocratização do Brasil. Falar de Sarney é falar de uma presença constante nas grandes decisões do país nas últimas seis décadas”, afirmou.
Visivelmente emocionado, José Sarney agradeceu as homenagens com a voz carregada de gratidão. Relembrou a amizade e a importância de Tancredo Neves naquele momento decisivo para o país, e saudou os presentes com seu tradicional “Brasileiros e brasileiras” — uma marca de sua passagem pela Presidência da República. “Falo com o coração cheio de emoção e gratidão, porque a gratidão é a memória do coração. Essa homenagem tem um valor especial porque vem da minha terra, do meu povo, do meu chão”, declarou.
Sarney também destacou o papel da Fundação da Memória Republicana como um espaço essencial para a preservação da história e para o acesso de pesquisadores a documentos e registros do período em que esteve à frente do governo.
Mais do que uma celebração de aniversário, a data foi um tributo à memória viva de um homem que ajudou a escrever capítulos importantes da história brasileira — e que, aos 95 anos, segue sendo lembrado com respeito, carinho e reverência.
Morte e Vida de Deus
“Nosso tempo só pode ser interpretado à luz da Sexta-Feira Santa. Estamos mergulhados num imenso vazio, entre a morte de Deus e a esperança de Sua ressurreição”. Estas são palavras do poeta Pierre Emmanuel, da Academia Francesa.
- Paulo já doutrinava que, sem a ressurreição, não existe cristianismo, e João Paulo II (S. João Paulo II) repetiu muitas vezes, inclusive no Brasil, na imagem de que muitos queriam Cristo sem a cruz e outros, a cruz sem Cristo, na análise das cobranças entre o espiritual e o temporal na missão da Igreja.
A grande revelação do cristianismo está contida na ressurreição. O homem vendo finalmente a face de Deus e, na vida, liberto da angústia, da lei do “olho por olho e dente por dente”, vivendo a bondade, perdoando a todos e a tudo, sem ódio e sem medo, o homem bom, cristão, encontraria a essência da vida: a paz interior.
Dois mil anos depois, o cristianismo não alcançou transformar o homem, ainda prisioneiro da violência, do pecado, como síntese de toda a escravidão, do corpo e da alma.
O autor mais lido da Humanidade é o Cristo. Um homem que não escreveu nada, ao que se sabe, apenas algumas palavras na areia. Contudo, a força de sua doutrina desencadeou uma revolução na História do mundo pela palavra. Ele revelou, num tempo de escravos e senhores, de uma sociedade perdida pela divisão de castas, condições e submissões, uma verdade simples: a de que todos somos irmãos, todos iguais, todos filhos de Deus e todos destinados à salvação. Ele nos ensinou a buscar a Paz interior. Não a ausência da guerra, mas a presença da Paz dentro de nós mesmos, sem nada a cobrar, sem ressentimentos, sem a desgraça que não passa, corroendo o corpo e a alma pela escravidão da maldade.
Cristo nos ensinou a perdoar e nos assegurou o caminho da salvação: encontrar a felicidade na certeza de que o homem tem um destino transcendental. “O fim sem fim do começo de tudo”, como afirmava o padre Vieira.
A Igreja tem buscado, ao longo dos séculos, acrescentar caminhos, descobrir outras mensagens na Mensagem primeira do cristianismo. Tudo é necessário, mas a força maior que chegou até nós, e se prolongará até o século dos séculos, é aquela que nasceu na Igreja das catacumbas: a revelação do próprio Cristo.
A missão social da Igreja passou a preocupar a própria Igreja a partir da Revolução Francesa, quando surgiu a expressão democracia cristã. A identidade católica devia ser a base de uma sociedade democrática.
As pressões amadureceram e tomaram corpo na doutrina, com o correr dos tempos, na Rerum Novarum. A Graves Communi limitava a visão social, terreno da caridade (1901). Muitas outras encíclicas vieram. Mater et Magister (1961), Pacem in Terris (1963), os documentos do Concílio Vaticano 2º (1965), a Populorum Progressio (1967), Evangelii Nuntiandi (1975) de Paulo 6º, passando pela Laborem Exercens até a carta de João Paulo II à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a excelente Laudato Si’, de Francisco, sobre meio ambiente, hoje no seu aniversário de dez anos. A CNBB deflagrou a Campanha da Fraternidade neste ano optando pelo tema “Fraternidade e Ecologia Integral”, invocando o Livro dos Gênesis para lembrar que, quando fez a Terra, “Deus viu que tudo era muito bom”.
Hoje se discute a relação entre Igreja e partidos políticos. Seria a doutrina social cristã a terceira linha entre socialismo e capitalismo? E, com o desmoronamento do socialismo de Estado, há uma convergência entre democracia cristã e social-democracia. Como a Igreja deve se comportar neste instante em que as estatísticas apontam o crescimento do ateísmo, a invasão das seitas e a onda do materialismo científico, que volta ao tema da morte de Deus?
Hegel falou, em 1802, numa “Sexta-feira Santa especulativa”, anunciando a descoberta da morte de Deus. Nietszche assumiu a autoria desse assassinato: “Deus morreu. Nós o matamos.” Assim também pensaram Marx e Freud. Mas nunca esteve tão vivo e nós precisando tanto Dele.
Está vivo! A Sexta-Feira Santa é não o dia da Sua morte, porque Deus não morre: é o Dia da Ressurreição.
Esta Sexta Santa de hoje nos convida a meditar e ouvir os exemplos da Paixão. É Cristo amando os homens até o fim, como afirma S. João e, neste Amor Maior, a Eternidade que se começa a ver pelos olhos daquelas Marias — Maria Madalena, Maria Salomé e Maria de Cléofas —, que de madrugada olhavam o Santo Sepulcro: estava vazio.
O Anjo lhes disse: Non est hic. Ibi est. (Não está aqui. Está LÁ = no Céu)
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O carvalho e a couve
Nós, brasileiros, temos o hábito de cultivar o pessimismo em relação ao nosso País. O nosso olhar é um pouco o de ver a árvore, e não a floresta, como no apólogo que Rui Barbosa invocou quando discutia uma lei de anistia: ele citou a diferença entre plantar couve e plantar carvalhos e concluiu: nós gostamos sempre de olhar a couve sem ver os carvalhos.
Quero fazer uma reflexão sobre a satisfação e a alegria de ser brasileiro, alegria de termos construído uma sociedade de convivência sem problemas de fronteira, que o Barão do Rio Branco resolveu no princípio do século; de religião, pois temos no Brasil liberdade de consciência e, sobretudo, convivência entre crenças e convicções; de raça, pois aprendemos a não ter preconceitos raciais e a conviver com alegria. De tal sorte que dizia Gilberto Amado ser a expressão carinhosa que usamos em relação a uma mulher de qualquer cor “ó, minha neguinha” uma referência a uma mulher linda e inteligente, por quem temos admiração, afeto, carinho e amor.
Agora quando estamos comemorando 40 anos de Democracia, é necessário deixar de ver somente a couve.
Estou escrevendo sobre esse assunto porque li que um membro da esquerda radical, do Grupo dos Autênticos, que era muito atuante no tempo em que iniciamos a Redemocratização do País, disse que a posição da esquerda radical era a de que a Transição fora inconclusa. Essa opinião estava baseada na percepção deles de que a transição fora um pacto das elites, porque absorvera os militares.
A couve, nessa visão, seria a Transição por negociação e pelo diálogo entre todas as correntes, e não pela outra fórmula. Nosso objetivo era a Democracia e, com ela, a liberdade, a saída do regime autoritário. Eles pensavam numa revolta dentro das Forças Armadas, tomando os militares a iniciativa de entregar o poder. A outra era uma guerra civil, o que implicaria no derramamento de sangue. Nunca em nossa História fizemos essa opção.
Nossa transição foi considerada a mais exitosa de todas, justamente porque abrangeu os militares, que voltaram aos quartéis e tinham, em grande parte, a visão de que chegara a hora de transmitir o poder aos civis.
Uma vez em conversa com Ulysses Guimarães, ele me pedia que punisse, como um sinal, um chefe militar. Eu lhe respondi: Ulysses, não ganhamos pelas armas, mas, sim, por um processo de engenharia política conduzida por você, Tancredo e por mim, com a participação do Aureliano, Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Petronio Portela, Leonidas Pires Gonçalves e muitos outros. Por uma vitória armada, não teríamos jamais a volta da Democracia. A única tentativa que tivemos nessa direção foi a Guerrilha do Araguaia, que deu argumento aos militares de que estavam prontos a destruir, pela luta armada, qualquer enfrentamento ao regime.
Entre os momentos mais difíceis, e talvez o mais importante, no processo de negociação da Transição Democrática, há 40 anos, foi a negociação da anistia com a área militar e com os políticos da ultraesquerda, que se fixavam mais na extinção do Colégio Eleitoral.
Aos pessimistas, que estão muito presentes, tenho a pedir-lhes que examinem os carvalhos que foram plantados, porque as couves têm um período muito curto de vida.
Somos uma Democracia de massa, a sétima economia do mundo, o que por si só afirma a grandeza do nosso País. Instalamos um Estado Social de Direito em que o lado social obteve muitas conquistas, como a liberdade sindical, com a anistia que concedi a todos os líderes que estavam na clandestinidade e chegamos aos 100 anos da República com um operário Presidente, motivo de orgulho e uma marca histórica por ter vindo justamente da classe de trabalhadores, o que mostra a força das instituições brasileiras e seu amadurecimento.
O Brasil é um País de oportunidades, aberto a todas as classes, que podem ascender em qualquer segmento da sociedade.
Não devemos, assim, nos fixar nos aspectos negativos e olhar os positivos, que ultrapassam os negativos. Os erros serão corrigidos, e o que ocorre em nossas vidas é fruto do processo de desenvolvimento e da rotina de todas as nações do mundo.
Vamos olhar o carvalho. Deixar a couve para o almoço.
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OAB celebra trajetória de José Sarney
Com informações da assessoria
Ao reconhecer o papel histórico de José Sarney na redemocratização do país, o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, entregou ao advogado e ex-presidente da República a Medalha Raymundo Faoro, dedicada a quem tem o compromisso com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais da cidadania. A homenagem ocorreu durante a sessão ordinária do Conselho Pleno, nesta segunda-feira (7/4), na OAB-DF.
“No marco dos 40 anos do mais longo período democrático da República, esta homenagem celebra quem inaugurou esse novo ciclo na história nacional. Ao homenageá-lo, a OAB presta um tributo a quem liderou o Brasil em um dos momentos mais sensíveis de sua vida republicana”, disse Simonetti.
O presidente da entidade explicou que a concessão da comenda expressa, ao mesmo tempo, reconhecimento e memória. “Reconhecimento por sua liderança na reconstrução democrática do Brasil. Memória, porque sua presença é indissociável da narrativa constitucional do país”, pontuou, lembrando aos presentes que coube ao presidente Sarney conduzir a transição democrática, convocar a Assembleia Nacional Constituinte e garantir, “com coragem e equilíbrio”, a promulgação da Constituição de 1988.
Na ocasião, Beto Simonetti lembrou da atuação de Sarney marcada pela escuta, pela moderação e pelo compromisso com as instituições. “Uma liderança que compreendeu o papel do Direito na reconstrução da República e o valor da estabilidade institucional como pilar da liberdade e do avanço social. Ao longo de décadas, demonstrou profundo respeito à advocacia, com reconhecimento efetivo do papel da classe na consolidação do Estado Democrático de Direito”, destacou Simonetti.
Natureza constitucional
Às vésperas de completar 95 anos, Sarney, que também é advogado, afirmou que a OAB tem mantido sua tradição, coragem, bravura e a sua importância no cenário nacional. “E hoje, de maneira singular, talvez seja no mundo a única sociedade que tenha o status de natureza constitucional”, apontou o homenageado.
Sarney afirmou que Beto Simonetti tem a mesma grandeza dos ex-presidentes da entidade Raymundo Faoro, que dá nome à comenda, e Marcus Vinicius Furtado Coêlho, a quem exaltou. “No STF [Supremo Tribunal Federal], no STJ [Superior Tribunal de Justiça], e em todos os eventos que nos encontramos, Simonetti tem mantido a independência e a coragem de Rui Barbosa, dizendo as coisas que devem ser ditas”, elogiou.
Prerrogativas da advocacia
O procurador constitucional, presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais e membro honorário vitalício da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, iniciou a homenagem destacando que Sarney é uma das mais emblemáticas figuras da vida política institucional brasileira. “José Sarney é um homem que se confunde com a história recente do Brasil. Parlamentar de vocação rara, intelectual de pena refinada, homem público de espírito democrático, coube a ele a complexa missão de liderar o país em um dos momentos mais delicados e determinantes de nossa história, a transição da ditadura para democracia. Naquela quadra histórica, marcada por expectativas, temores e esperanças, Sarney assumiu a Presidência da República após o falecimento de Tancredo Neves. O fez com sobriedade, serenidade e profundo respeito à nova ordem democrática que se formava. Em seu governo, consolidaram-se as bases da redemocratização, com a reinstalação das liberdades civis e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte”, disse.
Na ocasião, Coêlho elencou a importância da atuação de Sarney para a advocacia, tanto quando ocupou a Presidência da República (1985-1990) quanto o Senado Federal. “Compreendeu, como poucos, que o Estado Democrático de Direito se faz com fortalecimento das instituições, com respeito às garantias fundamentais e com a valorização dos profissionais que possuem a Justiça como ofício. Nesse contexto, foi incansável na defesa da advocacia e de suas prerrogativas. Como senador, protagonizou importantes batalhas em defesa do livre exercício da profissão do advogado como voz de cidadão. Em momentos decisivo, ergueu a sua palavra com lucidez em favor da imunidade do exercício da profissão do advogado e da inviolabilidade dos escritórios de advocacia, marco histórico na proteção das prerrogativas”, ressaltou o ex-presidente da OAB Nacional, lembrando, ainda, sua importante contribuição para a elaboração do Código de Processo Civil (CPC).
José Sarney também foi governador do Maranhão (1966-1970) e deputado federal (1955-1966).
A solenidade foi prestigiada pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Herman Benjamin; o ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca; o ex-senador Edison Lobão; a diretoria da OAB; presidentes das seccionais da Ordem; conselheiros federais; desembargadores federais; entre outras autoridades.
Honraria
Criada em 2008, a Medalha Raymundo Faoro é a mais alta distinção concedida pela advocacia brasileira com o propósito de distinguir personalidades cuja atuação pública se destaca pelo compromisso com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais da cidadania, valores que moldam a história da OAB.
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Liberdade de Imprensa
A liberdade de imprensa passou a ser um ponto alto para a existência da Democracia. Nasceu da visão extraordinária de um homem público, um dos fundadores e pensadores maiores da independência dos Estados Unidos da América, Thomas Jefferson.
Quando a constituição americana foi elaborada — feita em 1789, subsiste há mais de 200 anos —, prescreveu em sua primeira emenda, extraída do Bill of Rights, ser a liberdade de imprensa essencial à democracia, pois, uma vez que os deputados tinham imunidade parlamentar, era necessário que o povo também tivesse liberdade para que pudessem dizer o que quisessem, ou seja, criticar o governo como um direito inalienável e básico para o funcionamento do regime democrático.
Assim, o povo teve na imprensa o seu grande instrumento para vigiar a democracia, exercendo livremente a liberdade de manifestar sua opinião. Isso fez com que naquele tempo a liberdade de imprensa fosse exercida livremente nos jornais impressos, em prelos de madeira, e hoje se tornou — com a expansão possibilitada pela tecnologia e o desenvolvimento das mídias, abrangendo imprensa, televisão, rádio e todos os instrumentos que a internet hoje possibilita — não mais como uma manifestação coletiva, mas como um direito individual exercido em blogs, Whatsapp, sites, vlogs, entre outros — e não sabemos até onde no futuro alcançará essa expansão.
Eu tenho muito respeito pela imprensa e pela mídia em geral, pois estudioso de sua liberdade. Tive oportunidade que o destino me deu de exercer, como jornalista, todos os escalões de sua estrutura. Comecei em O Imparcial, no Maranhão. Fui o chamado “Foca”, experiência que vivi durante dois anos, visitando as delegacias de polícia, todos os dias e, ao percorrê-las, pinçar os fatos criminais ali registrados e, através desse registro, procurar vítimas e autores para abastecer nossas redações. Depois, por avaliação interna, fui repórter de redação, nomenclatura essa que desapareceu, chegando a secretário de redação. Através do jornalismo, pude exercer minha vocação intelectual e literária.
Por iniciativa minha, o jornal criou seu suplemento literário, onde eu podia também exercer minha vocação literária, publicando crônicas, rodapés de críticas, poesias, dando apoio ao movimento chamado “neomodernista”, que então surgia, depois de 1945 nos Estados brasileiros, significativamente, em suplementos literários. Esse movimento desejava ser a continuidade da Semana de Arte Moderna de 1922, o grande movimento literário. Correspondíamos com todos: no Rio Grande do Sul, com a Revista Quixote, vamos fazer barbaridade, editada por Raimundo Faoro, que depois veio a ser o grande jurista referência nacional e um dos lutadores contra o regime autoritário. No Rio de Janeiro, Ledo Ivo, que também chegou à Academia, com a revista Branca.
Eles seguiam, no Ceará, no Correio do Ceará e depois nas revistas Clã; no Paraná, Joaquim; na Região, em Pernambuco, por iniciativa de Edson Régis e no Diário de Pernambuco, cujo suplemento era coordenado por Mauro Mota, também grande poeta, membro da Academia Brasileira de Letras — tive a honra de ser votado por ele quando fui escolhido para aquela Casa, na vaga de José Américo de Almeida, cadeira 38, sendo hoje o decano da própria Academia. No Maranhão, Tribuzzi, Lago Burnett, Carlos Madeira (que chegou a ministro do Supremo Tribunal Federal), Luci Teixeira, eu, e um grupo de pintores, formado por Floriano Teixeira, que depois mudou-se para a Bahia, onde foi ilustrador dos livros de Jorge Amado; Almeida, Paiva e todo o grupo de jovens intelectuais que se reuniam na Movelaria Guanabara, em São Luís. Esse grupo também pensava que o Maranhão não podia ficar somente na área literária, mas teria que romper o atraso em que se encontrava, cabendo, por minha personalidade política, ser o líder dessa vertente, que me levou à Presidência da República.
A imprensa livre, por consequência, a mídia e todos os meios de comunicação, têm um poder criativo que pode, a qualquer tempo, retificar, fazer uma releitura, como eu já disse, dos seus excessos. O coração da Democracia é a liberdade: a liberdade de opinião como o coração da Democracia.
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A liberdade abriu as asas
Nessas comemorações dos 40 anos da Democracia no Brasil, devemos fazer algumas reflexões. Otávio Mangabeira dizia que a Democracia é uma plantinha tenra que necessita ser irrigada e vigiada todos os dias. Já nós, ao tempo da União Democrática Nacional – UDN, no combate à ditadura Vargas, tínhamos como lema que “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.
Assim, quando todos nós, em uníssono, no País inteiro, comemoramos a liberdade que conseguimos implantar, devemos ter em mira que ela necessita de ser vigiada, adubada, protegida, até que se torne uma consciência individual, de cada cidadão de nosso País, sabendo que goza dos direitos que tem por causa do regime democrático.
Se não fosse a transição democrática, o operário Lula da Silva não teria sido jamais Presidente do Brasil. Ele o foi, e é, graças ao regime democrático. E a ele devemos um governo dos trabalhadores de grandes avanços.
Assim como tenho a alegria de ver a Democracia reconhecida e proclamada neste mês, tenho a responsabilidade também pessoal de defendê-la. Repito uma vez mais: em minhas mãos o Brasil passou de um estado de exceção para um Estado Democrático de Direito. Uma transição pacífica.
O Brasil tem uma longa tradição de crises. Testemunhei muitas delas, estudei com atenção as outras. A maior parte foram crises que não envolviam as instituições. Mas algumas as envolviam, e o Brasil pagou caro por elas.
Alto foi o preço da crise de 1823, que fechou a nossa primeira Constituinte — ao afastar José Bonifácio, o novo País recusou solução para os problemas da escravidão, da reforma agrária, da questão indígena, da educação. Alto foi o preço de 1831, pago durante as regências. Alto foi o preço de não se ter feito a abolição com a incorporação dos escravos e seus descendentes à sociedade — ainda o estamos pagando. Alto foi o preço de termos feito a República por um golpe militar e a mantermos pela fraude eleitoral por quase quarenta anos. Alto foi o preço do golpe de 1930, que nos levou a quinze anos de um projeto pessoal. Alto foi o preço da crise de 1961, que nos afastou do parlamentarismo ao usá-lo para tolher o mandato do Presidente da República. Alto foi o preço de 1964, com vinte anos de regime militar.
Fui o Presidente, repito, que conduziu a transição para a democracia. E ela se realizou completamente com a votação da Constituição de 1988 — e fui o primeiro a jurá-la.
Tenho a convicção de que nossas instituições estão fortes e capazes de enfrentar qualquer ataque, como já o fez, por duas vezes, com os dois impeachments que tivemos; e de superar os acontecimentos de 8 de janeiro, que não se completaram graças à atuação das Forças Armadas, que repeliram esses fatos, numa demonstração de que as Forças voltaram aos quartéis e estão a serviço da Pátria, para manter o regime democrático dentro da lei e da ordem, na forma da Constituição, que é guardada, em um dos seus dispositivos principais, pela Justiça, sob a égide do Supremo Tribunal Federal.
Sem instituições fortes, não há Democracia forte. E sem Parlamento, não há Democracia, que, ao representar o povo, talvez seja o coração dela.
Portanto, deve fazer parte dos nossos compromissos a comemoração do regime de que desfrutamos e o juramento de defender a liberdade com eterna vigilância, sem jamais permitir qualquer ofensa; em caso de ataque, que seja repelido com força e caráter por todos nós.
Tancredo morreu pela liberdade e, em sua memória, renovamos o compromisso de dedicar nossas vidas a sua defesa: a Democracia chegou e é irreversível.
Democracia é liberdade. E esta tem um poder criativo capaz de se estender por uma grande capilaridade a toda a sociedade, que desfruta de direitos e deveres como cidadão habitante de um país em que se vive em absoluto Estado de Direito.
A Transição trouxe a liberdade. E a liberdade abriu as asas sobre nós.
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Um Presidente Emotivo
Fiquei profundamente emocionado no Senado e na Câmara dos Deputados quando comemoramos os 40 Anos de Democracia no Brasil. Recordei que, aos 25 anos, no Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, onde funcionava a Câmara dos Deputados, eu jurava, pela primeira vez na vida, cumprir os deveres do mandato, de defender a Constituição e as leis do País. Depois, por mais uma vez no Rio, em 1959, novamente cumpria esta solenidade. Em 1960, quando Juscelino Kubitschek transferiu a capital para Brasília, transferia-me para esta cidade, de malas e bagagens, e aqui estou há 65 anos. Neste período estão incluídos os 40 anos que passei no Senado, sendo hoje o político mais longevo do País.
Tudo isso se passava em minha cabeça, chegando aos momentos trágicos da doença de Tancredo Neves e depois, com sua morte, indo à Câmara dos Deputados, onde jurei cumprir a Constituição, que seria revogada, uma vez que convoquei a Constituinte que iria elaborar a Constituição de 1988, a Constituição cidadã, como a chamou Ulysses Guimarães.
Assumi a Presidência levitando, tomado pela antevisão dos problemas que iria enfrentar. Com habilidade, consegui legitimar-me e sobreviver.
Pacifiquei o País. Enfrentei doze mil greves que ameaçavam jogar o Brasil na desordem. Nesse momento não contava com o apoio de grande parte do meu Partido, nem dispunha do capital político de Tancredo Neves. Como Vice-Presidente, não escolhera o Ministério nem participara da elaboração do Plano de Governo.
Foram cinco anos de profundas emoções e lutas. A Democracia, de que hoje desfrutamos, foi construída com muitas dificuldades. Dei a minha contribuição, sofrendo grandes ataques da mídia.
Mas deixei o País no exercício tão pleno da Democracia que passei o governo a um opositor que fora muito agressivo em ataques durante a campanha.
A Fundação Astrojildo Pereira e o Instituto Cidadania, com o apoio do Correio Braziliense — que realiza notável exposição desses 40 Anos com fotos históricas — realizaram uma solenidade no Panteão da Pátria, que, pela primeira vez, abriu suas portas para celebrar a Democracia.
Nessas comemorações dos 40 Anos, vivi profundas emoções, até comoção, pelas lembranças da minha vida: nascido numa pequena casa de 50 metros quadrados, em Pinheiro, pequeníssima cidade — naquela época de apenas duas ruas —, somente com a presença de meu pai, minha avó, da parteira e da empregada, Emília, que me encheu de carinho por toda a infância. Chovia, e abri meus olhos para o mundo. E nada mais belo do que a terra natal.
Máximo Gorki, famoso escritor russo, dizia que os batentes de sua aldeia eram mais belos do que os vitrais da Catedral de Strasbourg, considerados os mais belos do mundo.
Tudo isso me tomou nesses dias. Os discursos que ouvi de Senadores, Deputados, Ministros me destruíram a vaidade, mas não a humildade.
Aí está o País gozando dos ventos da liberdade. O povo dono do seu destino. A cidadania exercida em sua plenitude.
A Democracia não resolve outros problemas senão os da liberdade, dos direitos individuais e civis. Mas a nossa Democracia foi além. Avançou nos direitos sociais.
Deixamos uma Constituição que assegurou ao Brasil 40 Anos de Democracia sem rupturas institucionais. Sem nova Constituição, não estaria completa a redemocratização. Ela é o coração da Transição Democrática.
Peço desculpas aos meus leitores pela vaidade. Perdoem-me. É um desabafo ameno. Vivi tantas emoções nesta semana que não tive tempo senão de confessar estas minhas fraquezas.
Mas a Democracia tem que permanecer vigilante. Sempre tem inimigos. E o País não pode ficar dividido, repito, com uns condenados à salvação, e outros, à perdição. Fim da luta entre amor e ódio. Todos somos irmãos.
E o dever dos políticos é defender o espírito de união, a esconjuração da desonestidade e a busca da Paz.
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