José Sarney
Olimpíada “a la Brasil”
A definição de Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional, de que íamos ter uma Olimpíada “a la Brasil”, mereceu dele mesmo duas interpretações: a primeira, sutil e subliminar, de que a desorganização seria a marca; a segunda, já acossado pelas críticas da nossa inquieta imprensa, que seria com “paixão e alegria”, acalmou as coisas e todos ficaram satisfeitos. As duas definições, contudo, estão certas: uma certa desorganização é o jeitinho brasileiro de fazer as coisas, finalizando-as na última hora, e a segunda, bem verdadeira, porque é da alma nacional pôr sentimento no que faz e sobretudo alegria, alegria.
O Embaixador Lincoln Gordon, que ficou célebre pela maneira muito discutida como exercera sua missão na saída de João Goulart em 1964, disse-me uma noite em Nova Iorque, num cocktail nas Nações Unidas, que compreendeu o nosso País graças às Escolas de Samba. E contou-me a seguinte história: que, quando era embaixador no Rio, chegou o Carnaval e ele teve uma curiosidade danada de visitar um desses barracões onde se fazem as alegorias. E dirigiu-se à sede da Salgueiro, uma semana antes do carnaval. Qual não foi sua surpresa ao chegar lá e encontrar uma centena de carnavalescos numa bagunça imensa, entre bonecos sendo pintados, madeira por todo lado compondo os carros e dezenas de costureiras cozendo as fantasias. Ele me disse que olhou aquela balbúrdia e desorganização e perguntou ao seu guia: “O Carnaval é daqui a uma semana e vocês pensam que estarão prontos para desfilar?” Ele respondeu-lhe: “No domingo, quando o apito de juntar a nossa macacada soar, os tamborins da bateria entrarão no ritmo e vamos entrar na Avenida para ganhar o título.” O Embaixador então me disse que duvidou que aquilo ficasse pronto e que daquela confusão e mixórdia pudesse surgir um milagre.
Então, quando chegou o domingo e iniciou-se o desfile, aconteceu o que lhe tinham dito: o samba-enredo começou, o apito de arregimentação tocou, a bateria entrou em ordem na pista e os carros, que eram aquelas engrenagens, surgiram agora como carros alegóricos belíssimos, as mulatas dançando trepadas no alto das carruagens e tudo funcionando como um relógio.
Concluiu o Lincoln Gordon: “Então compreendi o Brasil. A improvisação e a garra, a paixão e alegria constroem as coisas.”
O sr. Thomas Bach, sem querer, disse o que era o modelo “a la Brasil”: somos desorganizados e incapazes de planejar. Mas tudo acontece dentro dos nossos objetivos e, graças a isso, somos o País da alegria, da solidariedade, da fraternidade — e os estrangeiros quando olham os nossos milagres e as nossas festas ficam de queixo caído.
A la Brasil foi a Copa, a la Brasil estão sendo as Olimpíadas, com um sucesso danado e o povo vivendo o jeito nosso de ser feliz nas festas coletivas.
Então, quando aparecem aquelas mulatas de corpo lindo e, como dizia Roberto Campos, mostrando tudo e escondendo o essencial, é um delírio!
A desigualdade continua
A igualdade sempre foi o grande sonho do homem, desde que teve consciência de sua condição humana. Fizeram-se revoluções, escreveram-se tratados, pensadores, poetas e políticos construíram formulas e meios de chegarmos a ela. A grande Revolução Francesa de 1789, considerada um marco na história da humanidade, resumiu seus ideais em três palavras chaves e divinas: liberdade, igualdade e fraternidade. Na Declaração da Independência americana Thomas Jefferson ampliava essas aspirações, dizendo que todos os homens têm direito à “busca da felicidade”. Associava-se a felicidade aos anseios do homem.
Chegou-se mesmo a considerar que o século 18 fosse o da liberdade, o 19 da igualdade e o 20 da fraternidade. E qual seria o século da felicidade? Os poetas divagaram muito sobre ela e até mesmo se existe. Hoje, os estudiosos da alma humana buscam em Yung a visão de que todos morremos frustrados, com a mágoa de não termos vivido a vida que devíamos ter vivido. E aí entra a angústia dos erros, dos pecados e até mesmo de ter pecado.
Borges falava mesmo que se tivesse que viver de novo não seria tão prudente quanto foi, sempre “usando paraquedas”. Divagações a parte, vivemos um período em que a desigualdade diminuiu no país e milhões de brasileiros romperam a linha da pobreza, e que foi freado pela crise dos últimos anos. Mas me preocupam, não só a desigualdade de pessoas, como as desigualdades espaciais. Estas são as que marcarão o futuro dos países e do mundo. Já vinte países, no balanço alimentar e de modos de sobrevivência, não têm condições de existir e vivem da caridade.
Surge o problema da água como o mais dramático dos tempos que virão. Todos somos água e faltará água para que a vida continue. Onde ela existe não se pode mudar, pois a geografia é a única coisa imexível, como diria certo ministro dos anos 90, embora o mistério que Deus utilizou para fazer o mundo ainda não nos permita saber o que acontecerá com as mudanças climáticas, se reagiremos a tempo ou marcharemos para o desastre.
Continuo pensando que, no Brasil, o grande problema ainda é e será o das desigualdades regionais. O Centro Sul transformou se num buraco negro, que é um lugar em que a gravidade é tanta que nem a luz escapa de sua atração. É o que acontece com as regiões pobres do Brasil, sugadas pelo Centro-Sul. O único período em que as desigualdades regionais inverteram suas setas de maneira consistente foi nos anos 85-90. Mais recentemente houve um pequeno aumento da desigualdade na região Sudeste, enquanto o resto do Brasil teve diminuição. Consequência do desemprego, que chegou primeiro nas áreas mais industrializadas. Mas continua a concentração irresistível. Essa semana uma pessoa falou-me das saudades e da beleza de sua cidade em Goiás, mas terminou dizendo-me: “Me corta o coração porque a população está diminuindo, só ficam os velhos.” Os novos são atraídos pelo Centro Sul. O interior vira fantasma e no Norte e no Nordeste é pior, além do êxodo fica a solidão e a saudade dos que jamais voltarão.
Esperança à vista
O Brasil saiu das eleições de 2014 numa situação que poucas vezes atravessara: dividido, e, ainda mais, numa situação de radicalismo e intolerância que em alguns momentos descambava para o ódio.
Nossa tradição era — devemos dizer que é — de tolerância e convivência entre adversários. Tancredo Neves tinha como grande ídolo o Marquês do Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, que construiu o Ministério da Conciliação, reunindo conservadores e liberais. E essa conciliação foi feita por grandes brasileiros, como Nabuco de Araújo, autor de um discurso admirável, o da Ponte de Ouro, em que dizia que uns e outros deviam abrir mão das diferenças para encontrar o terreno comum do interesse do País.
A sentença conhecida, que pretendia afirmar a identidade de maus hábitos políticos, dizia “não há nada mais parecido com um saquarema (conservador) que um luzia (liberal) no poder”. A verdade é que a derrubada, feita pelo Imperador, de um partido, e sua substituição pelo outro, dizia respeito ao sistema eleitoral, que levou à constante busca de reformas que durou até à queda do Império, mas encontrava uma realidade mais forte, que era a necessidade de executar o programa que estava maduro, o programa do outro. Assim, por exemplo, a maior causa liberal, a dos negros, foi levada avante por gabinetes conservadores.
O espírito que vimos sair das últimas eleições foi o contrário disso. Se o outro pensava, era ruim. Se o outro sugeria, era preciso derrubar. Se o outro fazia, era preciso desfazer. As famílias se fragmentavam, irmãos, pais e filhos, deixavam de se falar. Nas mídias sociais, as pessoas desconectavam os que pensavam diferentemente, e ficavam falando para si mesmo, sem ouvir outras opiniões. Prevalecia o insulto sobre o argumento.
O resultado inevitável foi a desesperança. As pessoas deixaram de acreditar nos mais próximos, na comunidade, nos amigos, na política, na sociedade. O Brasil meteu-se ladeira abaixo. Foram os tempos terríveis de que estamos saindo.
Renasce a esperança. A maior parte dos brasileiros procura caminhos comuns. Começamos a ver uma luz.
Mas nosso caminho ladeira acima será difícil, e temos que ter consciência disso para que não esperemos resultados impossíveis. O buraco do orçamento é alarmante, provavelmente teremos um déficit de 200 bilhões no fim do ano. O desemprego está em alturas nunca vistas — entre os jovens está na casa de 24% (só para dar uma referência, no meu governo foi inferior a 4%).
Vamos avançar na reconstrução de um país unido, que supera as diferenças, recupera sua economia, resolve os problemas sociais — as crises gravíssimas da educação, da saúde, da segurança —, reencontra o espaço do convívio humano, das famílias e das comunidades, e reconstrói seu futuro.
Violas afinadas
Paulo Tarso Flecha de Lima é um dos melhores profissionais da diplomacia brasileira, tão rica de talentos e que tantos serviços tem prestado ao país. Ele não se situa no presente, mas na história do Itamaraty. Conheci de perto o seu trabalho. É feito com paixão, nada superficial, aprofunda-se nos temas e tem uma visão universal dos problemas e muito clara dos interesses nacionais.
Estas considerações servem para avalizar seu testemunho corajoso sobre a missão de ser embaixador em Washington: “Sou um embaixador que tem a grande frustração de trabalhar nos Estados Unidos, porque, infelizmente, não há uma visão política da nossa relação comercial”.
Não esqueço um café-da-manhã oferecido por Bush, na visita que fiz àquele país, em 1987, com a presença do secretário Baker, de Funaro, Saad, Ricupero e a minha. A discussão era sobre relações comerciais. Baker não se conformava com os sucessivos superávits do Brasil, no comércio bilateral. Saad deu-lhe uma tábua histórica, provando que, a longo termo, a vantagem era americana. Lembre que o nosso esforço de exportação naquela época era necessário para cobrir o exorbitante serviço da dívida em face das altas taxas dos juros internacionais. Lutávamos, como agora, pela queda de barreiras, sobretudo as não-tarifárias, e os produtos eram quase os mesmos: aço, tecidos, sucos, açúcar, café etc. A conversa azedou. Queríamos o levantamento de sanções e a abertura de barreiras. Nossa posição foi firme. Não era possível um tratamento desse tipo. Nenhuma visão política sobre o comércio e a dívida, num momento em que começávamos a maior onda de democratização no mundo, depois da Segunda Guerra, que era a que ocorria na América do Sul. Diante do tom inamistoso do encontro, Bush, diplomaticamente, observou que não tínhamos mais tempo em face de outros compromissos posteriores.
Vejo que nada caminhou. O mundo mudou. Mudaram nossas relações. Não existe mais confrontação. O Brasil não tem nenhum problema político pendente com os americanos. Mas o comércio continua com os mesmos problemas.
Pedem os Estados Unidos a abertura de nossos mercados, falam da necessidade de concretizarmos a Alca, a zona de livre comércio da Patagônia ao Alasca. Nós já fizemos nossa parte. Eles não fizeram a deles. A balança comercial brasileira é a favor dos Estados Unidos com grande diferença, que cresce cada vez mais.
Devemos distinguir o povo americano, o governo americano e o sistema americano de relacionamento com o mundo. Este não mudou, o sistema é o mesmo. Defesa, acima de tudo, de seus interesses comerciais. Nada de ingenuidade de nossa parte, portanto, em aderir à Alca. Ela é um instrumento contra nós.
Bem disse o ministro Lampreia, que cada vez fica melhor, que nós não iríamos derramar lágrimas porque o Congresso americano negou o “fast track”, isto é, a autorização para o Executivo negociar os acordos internacionais. Acrescentou o ministro Lampreia que “a Alca estava em banho-maria”. Ótimas notícias, e que como foi bom ver o então Lampreia aprovar e secundar as declarações do embaixador Paulo Tarso. Com as violas afinadas vamos bem.
Um escorregão eleitoral
Estive envolvido, por todos os motivos, com as questões do Mercosul. Este começou como fruto de uma determinação histórica, cuja perspectiva não posso perder. Na sua criação, o Brasil teve uma posição generosa, abdicando de seduções hegemônicas com o objetivo maior de mudar a história de divergências e separações do continente sul-americano. A Argentina, tendo à frente do seu governo o grande estadista Raúl Alfonsín, da estirpe de Sarmiento, Sans Peña e San Martin, teve a mesma visão da grande mudança. Acabou-se a tão sofrida questão do Prata que produziu tantos equívocos, até perspectiva de corrida nuclear.
Com o Mercosul, todos lucramos. A Argentina saiu da crise herdada dos governos militares e da Guerra das Malvinas. Quem governa tem que saber que há tempo de semear e de colher. O semeador foi Alfonsín. O mercado argentino, depois do Tratado de Integração, cresceu, estendeu-se aos 160 milhões [na época] de consumidores brasileiros com a tarifa zero. A siderurgia argentina, sucateada, renasceu, possibilitando a volta das grandes indústrias de base, à frente a automobilística, com suas fábricas reabertas. O petróleo argentino, o gás, o trigo encontraram grande expansão, mesmo com prejuízo e reações de setores brasileiros prejudicados. A causa maior justificava. Nosso comércio, relações políticas, culturais e de intercâmbio tiveram um desenvolvimento extraordinário que não pára de crescer.
Menem nunca foi entusiasta do Mercosul. A ele aderiu forçado pelos fatos. Sua doutrina, que ficará célebre na história diplomática do continente, foi a de “relações carnais com os Estados Unidos”. Com o Brasil – e outros países da área -, relações econômicas; com os americanos, relações mais íntimas, como essa história de ser membro da Otan, o que é uma ameaça à segurança e estabilidade do continente. Ele nunca entendeu o grande projeto que está no bojo do Mercosul.
Uma união do porte do Mercosul sempre tem problemas. O perigo era o governo brasileiro fazer o jogo eleitoral de Menem, esticando a corda. Caminhamos muito no projeto de integração com a Argentina. Repito que nossa aliança foi o fato mais importante depois de nossas independências. Aqui também tivemos resistências. Quero lembrar que o presidente Geisel, por quem tenho uma grande admiração, lembra no seu livro de memórias que me disse ser contrário ao Mercosul. Alegava que o Brasil caminhara muito na sua inserção mundial para desperdiçar esforços num projeto regional. A tudo superamos e o Brasil é unânime na aprovação ao projeto de amizade, cooperação e integração com a Argentina.
As declarações do ministro Clóvis Carvalho, que entrara com o pé direito no Ministério do Desenvolvimento, foram competentes e equilibradas, com a visão e a perspectiva dos interesses nacionais e importância do Mercosul.
Nada de retaliações, nada de represálias. Menem passaria, como passou. O povo argentino é eterno e está a favor da integração com o Cone Sul.
No mundo globalizado ninguém pode viver sem responsabilidades compartilhadas. Dificuldades teremos sempre. Os estadistas estão aí para solucioná-las.
A geografia nos uniu e a história nos reservou um destino comum, de crescermos juntos.
Exportar ou morrer
Há certas afirmações fortes e bombásticas que são ditas e ficam. No geral, sínteses de emoções momentâneas. Delas é feita a história dos homens e a estória da História.
A mais célebre das nossas palavras-gestos foi a de dom Pedro e está ligada à fantasia da independência. Para fixá-la, num tempo em que a imagem era a pintura, Victor Meirelles nos deu aquele cavalo fogoso, montado por um jovem ardente que desembainhava a espada na colina do Ipiranga, perto de abandonada pousada, e gritava aos ermos para não ser escutado por ninguém, apenas pelos ouvidos do futuro: “Independência ou morte”.
Esse dom Pedro é uma figura. Se quiséssemos defini-lo na linguagem popular do Nordeste, diríamos que era um “arretado”. Sangue quente, tocado pelos calores do Brasil, não atendeu à determinação das cortes de Lisboa de ir para Portugal, bradou o “Fico”, cortou vínculos de pátria e família e fundou o único império que existiu nestas Américas.
Otávio Tarquínio de Souza, seu biógrafo, nos diz que a viagem paulista em que tomou a decisão da independência está ligada também aos sofrimentos do imperador, que, além da contrariedade às ordens de Lisboa, tinha o desconforto e a saudade dos amores da marquesa de Santos. Assim, antes do grito, escrevia à amada que estava “pingando”. Não tinha nada do pai, dom João 6º, nunca banana, esperto, com idéias arrumadas, pensando num reino sólido, preocupado com as artes e com as ciências.
Dom Pedro puxara mais à mãe, Carlota – estouvada, liberada, metida sempre em complôs e confusões contra o marido e sonhando ser a rainha do Prata. Como sua mãe, ele era aventureiro, estabanado e tinha compulsão para ter amantes.
Gostou do Brasil. Ao modo da antiga nobreza, ávida de sentimento de posse. Abdicou para não perder o trono, salvando-o para seu filho. Ao embarcar para o exílio e ouvir os lamentos do marquês de Barbacena, que reclamava por estar abandonando os amigos, reagiu indócil: “Você não pode se queixar. Está de bolso cheio – cheio do dinheiro que roubou para tratar do meu casamento com dona Amélia”. Era o mesmo dom Pedro que dissera ao marquês de Quixeramobim sobre Gonçalves Ledo, quando este o defendia: “É a terceira vez que o compro e de todas me tem servido bem”.
Em terras lusitanas, dom Pedro salta no Porto, inicia a luta contra seu irmão dom Miguel, vence a parada e torna-se dom Pedro 1º do Brasil e dom Pedro 4º de Portugal. Morre no Palácio de Queluz – onde nascera – aos 34 anos, de tuberculose, doença que o acompanhava desde as lutas do Porto. Deixa os dois filhos – dom Pedro 2º, no trono do Brasil e, no de Portugal, dona Maria da Glória.
“Independência ou morte” é a mais forte das mensagens brasileiras. Tamandaré gritou no Riachuelo: “Os que forem brasileiros que me sigam”. Fernando Henrique, “Exportar ou morrer”. Washington Luís, “Governar é fazer estradas” e o Barão de Itararé, “Quando pobre come galinha, um dos dois está doente”.
Fiquemos com o padre Xavier, que, no dia 7 de setembro de 1822, gritou três vezes, no teatro Ópera de São Paulo, para dom Pedro: “Viva o primeiro rei do Brasil”. Depois, vieram o Pelé e o rei Momo.
Um mundo de paradoxos
Abro os jornais e leio que o desemprego aumentou nos Estados Unidos, que os juros vão crescer, que isso significa dificuldades para muitas famílias. É uma notícia triste. Estou errado. Para as Bolsas, não há nada de triste, ao contrário, é motivo de euforia, vão subir, estão felizes porque o desemprego e a recessão são bons sinais para a saúde delas. Quanto pior fica a vida para os que precisam de trabalho, melhor a daqueles que têm excesso de dinheiro e necessitam especular. É o que me ensina o presidente da Bolsa de Nova York, que foi além da euforia: “Melhor notícia não podíamos ter”.
Lembrei-me de uma história que já contei aqui, mas que não resisto a repeti-la. Severo Gomes era ministro da Indústria e Comércio e recebeu um relatório de um grande laboratório internacional, destinado a seus acionistas, justificando os seus lucros baixos naquele ano: “O inverno foi muito fraco e, com o tempo bom, não tivemos a incidência de pneumonia nem complicações respiratórias. Os casos de gripe foram muito aquém de nossas previsões e os gastos com anúncios sobre nossos produtos, excessivos. Assim, pedimos a compreensão dos nossos acionistas para os baixos lucros, que não foram decorrentes da falta de esforço de nossos executivos”. E continuava: “Contudo as perspectivas de melhoria são excelentes. Todas as previsões meteorológicas indicam que vamos ter um rigoroso inverno, com novos vírus gripais, não sendo descartada a hipótese de incidência de epidemias. Assim, o volume de consumo dos nossos medicamentos vai ser muito grande e explosivo, compensando o fraco desempenho deste ano”. Severo deu-me conhecimento do relatório e uma boa risada, advertindo que essa é a lógica capitalista.
No Carnaval, vi a grande discussão sobre se os desfiles deviam ou não incluir temas religiosos. Houve uma guerra de liminares. Quando as primeiras foram concedidas, proibindo a participação de Nossa Senhora da Esperança e do símbolo cristão da cruz, pensei que os carnavalescos estavam tristes. Ao contrário, estavam alegres, pois o fato aumentava a curiosidade sobre as escolas. Por outro lado, um dos organizadores do desfile considerou a proibição boa porque agora iam fazer uma ala só de cardeais, padres, bispos e monges, que seria obrigatória no Carnaval do próximo ano.
Uma jovem passista, que ia aos desfiles todos os anos e que foi pioneira no topless, ficara feliz com a liberação geral dos bustos, mas eu estava enganado. Ela declarou que estava triste porque agora ninguém olha para a novidade do seu próprio. Em Viena, sem ser Carnaval, em vez de mulheres, uma multidão de homens nus entrou na loja Kassa. Julguei que era gosto de andar pelado, mas era justamente o contrário: eles queriam vestir-se e ganhar uma mala de roupa, que seria dada pela loja numa promoção aos primeiros que chegassem.
Não deixa de ser paradoxal que os nossos homens públicos, depois de carreiras exitosas, estejam frustrados, não pelo bem que fizeram, mas pelo papel que poderiam ter desempenhado. O presidente Fernando Henrique queria ter sido ator; Pitta, bailarino do Municipal; Maluf, pianista no Metropolitan.
Picasso, nesse jogo de “o que quer ser”, disse que se fosse padre seria papa; militar, marechal; quis ser pintor e era Pablo Picasso! A vida é assim…
O mistério corubo
Além de tantos mistérios que povoam a nossa história e o nosso cotidiano, a Funai excitou a nossa imaginação com a descoberta dos índios corubos, uma tribo nômade que anda nos cursos dos rios Itui e Quixito, que nunca tinha tido nenhum contato com a civilização. Seu território é a vasta reserva do vale do Javari, maior do que a França e a Alemanha juntas. O Brasil é o único país do mundo que tem índios nesse estado, parados no tempo, na Idade da Pedra Lascada. Nestes mais de 500 anos do descobrimento, a perplexidade dos índios com o machado descrita na carta de Caminha é a mesma dos corubos com a máquina fotográfica: mataram um sertanista a cacete quando disparou sua kodak.
É o mistério do tempo e do Brasil. Isso apareceu também numa Copa quando, também, estivemos mergulhados no mistério Ronaldinho. Foram ouvidas tantas versões que fiquei confuso. Uma delas é que Ronaldinho foi tomar um suco e o garçom francês, no hotel Château de Grande Romaine, em Lésigny, onde florescem gerânios e lírios, disse-lhe: se vocês ganharem a Copa, nós franceses ficaremos com o Banco do Brasil. Vejam bem: a Holanda perdeu, vocês deram o Real; a Inglaterra saiu, vocês perderam o Bamerindus para o inglês HSBC; a Espanha foi eliminada, o Excel foi absorvido pelo Bilbao Vizcaya. Então era a nossa vez: o Banco do Brasil!
Ronaldinho ficou perturbado e se sentiu mal. O resultado já se sabe.
Depois veio outro mistério. Percebeu-se que, silenciosamente, 38% das obras civis brasileiras estavam em mãos de firmas estrangeiras que se chamavam Brown, Root & Murphy, Vivendi, Compagnie Génerale des Eaux, BRP, todas silenciosas e misteriosas como os corubos. O gás já era. Nacional mesmo vão ser os nossos misteriosos índios e a banana pacova que não interessa às companhias globais.
Outro mistério ainda não desvendado é o da renúncia de Jânio. O que aconteceu naquela noite de Brasília, agosto, no Palácio da Alvorada, quando o presidente resolveu ir embora, sepultando o sonho de milhões de brasileiros que votaram na vassoura varrendo o atraso e a corrupção? Uns afirmam que ele havia bebido. Outros, que teria tido uma crise de nervos e perdido o controle. A verdade? Ninguém sabe nem vai saber. Unamuno, no seu livro “O Sentimento Trágico da Vida”, diz que a pergunta mais profunda do Novo Testamento é a de Pilatos: “O que é a verdade?”.
E o mistério Getúlio? Aquele tiro numa noite de agosto, no Rio, 1954, Palácio do Catete! Qual o verdadeiro motivo? Até a carta que ele escreveu, até hoje, tem sua autoria contestada.
Corubos, Ronaldinho, Jânio, Getúlio, bancos, teles, construção civil, tudo mistério. O que está por trás e na cabeça dos homens em tudo isso? Difícil desvendar.
Mais fácil saber o que estava pensando a cadela chow-chow, de nome Sharon, que Ronaldinho trouxe para sua amada e que, comportadamente, desceu a escada do DC-10 que pousou em Brasília com os vice-campeões, que passaram a ostentar a Medalha da Ordem Nacional do Mérito, cara condecoração brasileira possuída por Santos Dumont, Magdalena Tagliaferro, Bidu Sayão, Afonso Arinos e Bebeto, excepcionalmente concedida a menores de 25 anos, conforme estabelece o decreto de criação da Ordem.
Mistérios, tudo é mistério. Até os pobres corubos, cuja “fala bota medo na gente”, isto é, “ifan, ubi-boa-nec-tchói”, como traduziu o sertanista Nantes, da Funai.