José Sarney

Violência, lá e cá

Vemos, nessa época da comunicação em tempo real, o mundo mergulhado na violência e no terror. O retrato da Síria e do Iraque, com suas duas faces: o múltiplo enfrentamento do Estado Islâmico, dos grupos rebeldes, dos curdos e do ditador Assad, de um lado; e as vítimas que jazem nos escombros ou se espalham na busca de paz, encontrando a indiferença ou a hostilidade. As crueldades que cruzam a África, com rastros de fome e intolerância religiosa. O terror oficial do presidente Duterte, das Filipinas. O clássico modo de conquistar da Rússia, que Hélène Carrère d’Encausse, secretária perpétua da Academia Francesa, chamou de “malheur russe”, desgraça russa, hoje com o nome de Putin. E o prenúncio de um mundo mais difícil com as primeiras patéticas semanas de Trump e sua visão do mundo dividido!

O Brasil devia estar noutra esfera. Afinal, temos a cultura da alegria, futebol e carnaval, gol e passo do sambista. E, de repente, com a economia dando sinais de reversão, começa a renascer uma esperança de recuperação, que poderá diminuir o desemprego, com a queda já consistente da inflação.

Mas a violência não cala em nosso País. Temos há muitos anos números de vítimas que nos equiparam a conflitos regionais, e que crescem sistematicamente, já passando dos 55 mil mortos por ano. Já me repeti, mas continuo a repetir, que é um estado de coisas inaceitável, que deve mobilizar os esforços de todos. Algumas estatísticas não se explicam, mas explicam muito o descontrole do sistema de segurança, como a de que menos de 3% dos homicídios chega ao estágio da denúncia, ou a de que para cada presidiário condenado há um mandado de prisão por cumprir.

Há também essa loucura que explode no mundo-cão das rebeliões em presídios, cada um com várias vezes sua capacidade, cada um com mais dramático tratamento a seus detentos, que acabam se tornando capazes de crueldade inimaginável. A situação chegou a um ponto em que se tem que aceitar a loucura da separação dos prisioneiros por “facção” — até com uma muralha de containers levantada entre elas, como no Rio Grande do Norte — na absoluta incapacidade de aplicar a separação por tipo de crime que manda a lei. Trabalho remunerado? Como, onde?, se o espaço é insuficiente para que se deitem e precisam revezar-se para dormir?

E a situação das polícias? Os homicídios praticados por nossos policiais são destaque no mundo inteiro. É claro que há muitos que se comportam com heroísmo, mas os que esquecem os seus deveres os relegam para um segundo plano.

Agora o Espírito Santo, que tinha deixado para trás seu exemplo de má polícia e se destacado pela melhora de sua segurança, inventa uma nova maneira de fazer a greve — isto é, motim, rebelião, pois todos sabem que a greve de policiais é ilegal — sujeitando-se ao doce constrangimento de suas mulheres sentadas nas portas dos quartéis. A covardia de usá-las só é superada pela covardia contra o resto da população, deparada com o medo da violência que inunda suas ruas e atinge todo o estado. Violência que espanta em sua gratuidade.

Deus queira que por trás dela não esteja alguma mão política oculta, no eco do terrorismo que varre o mundo e de que o Brasil estava salvo até hoje. Gomes de Castro dizia que tínhamos um anjo mau que surgia das nuvens, invadia o País e fazia as coisas ferverem.

Só nos resta a oração, dizia João Paulo II; e lamentar as lágrimas e consolar os aflitos, que são muitos.

A democracia e os poderes

Foi um ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal quem, há mais de 10 anos, profetizou que se estava estabelecendo no Brasil um procedimento que iria dar muito trabalho às instituições. Era o fato de que, quando se criava um impasse político, em geral no Legislativo, estava se criando também uma oportunidade de o submeter à Justiça, uma espécie de terceira instância, dando ao STF a função de harmonizar conflitos que deviam ser resolvidos pela própria política. Era o tempo do procurador Luís Francisco, que passou a ser popularíssimo porque tomava a frente para ser o xerife das mazelas do País e da política.

A Constituição de 88 criou as figuras da ADIN, dos direitos difusos — estes até fui eu quem criou, em 1985, quando mandei a Lei da Ação Civil Pública, que deu ao Ministério Público o grande instrumento de força que hoje tem —, e das ações cautelares que agregaram ao Poder Judiciário um protagonismo muito grande. A esse protagonismo chamou o Ministro Jobim de judicialização da política. E realmente isto aconteceu, com a consequência inevitável de politização da Justiça, hoje envolvida na solução das questões maiores e mais complicadas do Executivo, com grande apelo a aquilo que Ulisses Guimarães chamou a voz das ruas.

O Brasil sempre foi acostumado ao Poder Moderador, exercido no Império pelo Imperador, assessorado pelo Conselho de Estado. Como o Imperador tinha o poder de dissolver o Congresso e convocar eleições, quando surgia o impasse ele vinha e usava seu poder moderador. Graças a isso os partidos não se perpetuavam no poder, já que ele gostava da alternância. Se esse poder o auxiliou a governar com a Constituição que mais tempo durou — a de 1824 —, por outro lado criou o germe do republicanismo, a que aderiram aqueles que ficavam prejudicados com as mudanças de gabinete.

Na República, não havendo Poder Moderador e as crises continuando, como é próprio do Estado e da política, os militares, que a tinham fundado, passaram a exercê-lo, com as intervenções salvacionistas de que sofremos até 1985.

Agora surge uma grave crise institucional entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, e isso é muito mal para o País, necessitando que todos nós, brasileiros, lutemos para que ela seja superada. Ninguém mais do que eu, quando exerci a política ativa, prestigiou o Judiciário, compreendendo que, nas democracias fortes, é ele que assegura a força das instituições e sua vigilância. Assim, devemos dar condições aos nossos juízes para que ele cumpra a função moderadora necessária nas democracias fortes.

A democracia começou a tomar corpo, na instituição do Estado moderno, com a evolução da separação dos poderes de somente entre executivo e legislativo para a antiga fórmula de Aristóteles, retomada sucessivamente por teóricos como Maquiavel, Locke, Bodin, Hobbes até assumir a forma tripartite consagrada em O Espírito das Leis, do barão de Montesquieu, em que o Judiciário se torna a chave do sistema. É sobre ele que pesa a maior responsabilidade da harmonia entre os poderes.

É hora de fortificar o Poder Judiciário e acabar com esse mal-estar entre Congresso, STF e MP.

No meu tempo …

Minha geração está indo embora e a nostalgia nos leva a fazer um balanço de nossas vidas. Daí o gosto dos velhos por contar histórias. As nossas conversas começam sempre com aquele chavão “no meu tempo…” E realmente cada tempo é seu tempo.

Quero citar como exemplo a cidade de São Luís da minha juventude. Por aí surge a saudade dos nossos bondes, da intimidade que tínhamos com os motorneiros e cobradores, conhecíamos a todos pelos nomes. Como eram diferentes as ruas, os becos, a arborização da cidade, o Largo do Carmo — com os belos e numerosos pés de oiti e a Igreja do Carmo tendo a longa escadaria na frente da igreja e não abrindo para os lados, como agora, e sem esses monstrengos que são os abrigos. E sem a derrubada dos oitizeiros.

A febre da modernidade era cortar árvores e, quando isso acontecia, todos consideravam: “o Prefeito está trabalhando”, numa visão errada. Assim foram destruindo a cidade do meu tempo. Ela hoje só existe na minha cabeça. Cada um tem a sua cidade que foi desaparecendo ao longo de sua vida, para chegarmos até a cidade atual, que também muda a cada dia.

A violência naquele tempo resumia-se a pequenas querelas de embriaguez, de briga de vizinhança, de rusgas de convivência; não existia a violência coletiva. Os crimes eram raros. Quando ocorria um homicídio, era assunto para desenrolar-se durante muito tempo. Havia também as brigas de festas, sempre na base do cacete, com cabeças e braços quebrados, e escoriações provocadas por pancadas.

Essas lembranças despertaram com a morte de Ferreira Gullar — como eu, nascido José Ribamar. Lembrei as meninas do nosso tempo, de saia azul e blusa branca, todas bonitas, porque a lembrança delas está associada à juventude e à beleza.

Gullar, Burnett, Tribuzzi, Belo Parga, Lucy Teixeira, Evandro Sarney — também grande poeta —, Carlos Madeira cada um sem o saber o seu futuro. Acima de nós todos, Odylo Costa, filho, nosso inspirador. Já velho, fiz tudo para Gullar entrar para a Academia Brasileira de Letras. Ele não queria, tendo uma aversão pela ABL, acho que resquício de nossos primeiros versos, que repeliam os sonetos parnasianos que marcavam as academias, na visão daquele nosso tempo associadas ao passadismo, quando queríamos ser modernos… Tudo mudou.

Quando comecei a fazer versos, num sarau no Lítero Recreativo recitei A louca Jorgina, com toda dramaticidade e algum sucesso. Era um episódio de minha infância: uma mulher tida como louca perambulava pelas ruas em andrajos, cantando e gritando, às vezes tornando-se inconveniente para os costumes da época. Um dia ouvi uma algazarra. Ela gritava, dizia palavrões e estava parcialmente nua. Os guardas queriam submetê-la e levá-la para a cadeia, único recolhimento de vagabundos e loucos. Ela reagia.

Em 1950 eu julgava que minha vocação e meu futuro seriam a literatura e a ela dedicaria minha vida. Tinha um certo preconceito pelos “ismos”, que eram a febre da mocidade. Começavam a circular os primeiros jornais de esquerda. Mas minha vocação literária foi tocada pelas figuras dos escritores na UDN. Seguia os intelectuais e a esquerda democrática, que queriam o fim do Estado Novo. Surgiu o meu destino, a política.

O meu mundo era a cidade de São Luís. Depois, quando mudei-me para o Amapá, há exatos vinte e cinco anos, tive contato com essa terra maravilhosa, de gente ordeira e hospitaleira, um lugar de natureza inigualável, de onde cheguei até a pular de um trapiche nos lagos do Amapá. Desde então também passei a dizer “no meu tempo de Amapá”.

Mário Soares, fundador do Portugal moderno

Meu primeiro contato com Mário Soares foi quando, eleito Presidente da República, ele também Presidente de Portugal, me chamou ao telefone em agosto de 1985, pedindo-me que no meu discurso, que deveria proferir em setembro, abrindo a Assembleia Geral das Nações Unidas, cobrasse a desocupação de Timor Leste — uma possessão portuguesa — pela Indonésia, hipoteca da Guerra Fria. O movimento de libertação era frágil e Xanana Gusmão, seu líder, estava preso. Foi Mário Soares quem, com sua conhecida coragem e obstinação, não deixou morrer esta causa — e hoje Timor Leste voltou a ser parte da Comunidade de Língua Portuguesa.

Mário Soares lutou bravamente contra Salazar, foi preso doze vezes, passou três anos encarcerado e sua bravura e convicção não se abalaram. Com a morte de Salazar e a caída da ditadura, no momento em que, após a Revolução dos Cravos, o comunismo quis transformar Portugal em uma Cuba na Europa, foi ele quem assumiu a resistência, evitando que Cunhal e os Capitães de Abril implantassem o socialismo de estado, o que teria consequências imprevisíveis na segurança de toda a Europa. O mundo ficou a dever-lhe o enfrentamento que evitou.

Construiu o Partido Socialista e surgiu como o grande estabilizador da vida portuguesa, pacificando e consolidando a democracia. Mantendo a coerência de sua vida inteira, apressou e liderou o processo de descolonização da África, lutando para ali também chegarem a democracia e a liberdade.

Assumindo com sua visão de estadista europeu e mundial, iniciou a luta pela entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu, movimento vitorioso, e iniciou a fundação do Portugal moderno, hoje uma pedra lapidada e centro de turismo do mundo inteiro. Construiu as bases de um Portugal que tinha o peso da história e se preparava para integrar-se à Europa.

Mário Soares se transformou no presidente de todos os portugueses. Sempre presente nas grandes causas, foi português e foi cidadão do mundo. Ninguém o excedeu na coerência e na dignidade, e ninguém teve o mesmo respeito mundial.

Foi um grande amigo do Brasil, pelo qual tinha amor. Era o maior de uma geração que compreendia como se entrelaçavam o passado e o presente de Portugal e Brasil. Defendia que um Portugal europeu não podia deixar de ter obras voltadas para nosso país. Aqui era uma presença permanente.

Ao Maranhão veio duas vezes, a segunda ligada a um acontecimento histórico: aqui criamos, eu, ele e todos os presidentes dos países lusófonos, o Instituto da Língua Portuguesa, no Palácio dos Leões, em 1989. Eufemismo que utilizamos para poder criar a comunidade das nações de língua portuguesa em face das sequelas que ainda restavam das lutas coloniais, e que hoje é a CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que nos reúne a todos na unidade da história.

Éramos muito amigos. Com ele mantinha correspondência regular, nos falávamos permanentemente, trocando ideias sobre o mundo, o Brasil e os problemas de nosso tempo.

Liguei-me também à sua família, seu filho João Soares, que foi prefeito de Lisboa, sua filha Isabel, brilhante educadora, por quem temos grande carinho, e sua mulher Maria Barroso — mulher excepcional, brilhante, grande artista e pessoa humana extremamente bondosa. Eles se completavam num casal unido pelas ideias, pela solidariedade, pelo amor por mais de cinquenta anos. Quando ela faleceu, há um ano, ele também morreu para a vida. Disse-me então: estou destroçado.

Temer fez um gesto de quem tem a visão da história e da importância de nossas relações com Portugal e compareceu às suas exéquias. Sabendo das minhas ligações e amizade com Mário Soares, convidou-me a acompanhá-lo e comigo foi de extrema delicadeza.

Deu-me a oportunidade de estar ali nos Jerônimos, diante da relíquia do corpo de tão grande amigo. Preso de dois sentimentos antagônicos: da dor pelo seu desaparecimento, pela sua falta, pela ausência de sua companhia, com a sua morte; e da alegria de poder derramar duas lágrimas — por estar ouvindo o hino português e os réquiens de Mozart e Fauré, a voz de Mário Soares na assinatura do tratado de adesão à Comunidade Europeia, a voz de Maria Barroso recitando os dois Poemas de Amor da Hora Triste, de Álvaro Feijó —, e de prestar a última das homenagens ao estadista de quem tinha orgulho de ser amigo, entregando ao solo português o corpo do maior de seus homens públicos, exemplo de combatividade, de coragem, de intelectual: Mário Soares, o fundador do Portugal moderno.

Ano novo, vida nova

Esse ditado popular, velho que nem a Sé de Braga, em Portugal, onde as relíquias de São Gonçalo das Moças, com seu cinturão de corda, fazem milagres inacreditáveis, mesmo sem o Viagra, encerra uma sentença que nunca se cumpriu.
Ao contrário, ano novo, vida velha, que não se modifica com a simples passagem da meia-noite. Estas datas próximas – a missa do Galo e a virada do ano –, eram marcadas pela vigília, pela expectativa da transformação, uma pela encarnação de Deus, outra pela chegada do novo tempo. Hoje isso não importa mais, até mesmo porque já temos duas horas diferentes, uma na metade do Brasil e a outra, que resistimos para ficar como sempre foi. Mas houve um tempo em que tínhamos o horário de verão aqui também.
Eu era Governador e o grande Arcebispo Dom João Mota celebrava, na velha tradição, a missa cantada pelo orfeão dos Maristas, do qual eu tinha feito parte na minha infância. Cheguei às 12 horas, pontual, e o Arcebispo não apareceu. Esperei cerca de 50 minutos, e chegou Dom Mota, num passo devagar e me disse:
– Desculpe, Governador, pensei que a missa seria na hora velha.
Gostava muito dele e fui logo cortando:
– Esperaria Vossa Eminentíssima figura até de manhã!
No calendário litúrgico, o fim do ano pertence ao Tempo do Natal, que se estende até à Epifania, a manifestação do Senhor, marcada pela visita dos magos – e também por Seu batismo e pelo começo de sua vida pública –, comemorada dia 6 de janeiro. O Evangelho deste sábado é este mistério na fórmula de São João: “No princípio era o Verbo… e o Verbo se fez carne e habitou entre nós.”
O começo do ano pertence, portanto, ao ciclo das festas natalinas, com a festa de Santa Maria, Mãe de Deus, como em nossa oração. Mas desde 1968 o Papa Paulo VI fez do 1o de janeiro o dia mundial da paz. No dia 8 de dezembro, festa de Nossa Senhora da Conceição, o Papa escreve a mensagem que inaugura o novo ano com o desejo de paz: segundo João XXIII, “paz baseada na verdade, na justiça, na liberdade, no amor”. Assim, é a própria Igreja que une a festa religiosa com a festa civil.
Estamos aguardando o ano de 2017 com uma grande esperança de que ele traga melhores dias, que ele engula a crise, dê emprego aos desempregados, baixe o custo de vida, nos dê a fé da Oração de São Francisco e nos faça renovar a nossa crença de que “na vida tudo passa, só Deus não passa”.
O Padre Antônio Vieira fazia os votos de bons-anos, mas via em sua realização dificuldades, pois argumentava que, num mundo tão avaro, mal se encontrava um simples “bom dia”. Por isso no fim do ano deveríamos ser mais generosos e, em vez de desejar somente uma esperança de felicidade limitada, a devíamos desejar para muitos anos, não somente o que entrava, mas todos os outros que viriam.
No Maranhão a tradição sempre foi de festa, ceia, foguetes e café com bolo.
E conta-se que um português, no dia 31 de dezembro, chamou a mulher e disse:
– Vamos matar um peru para a ceia de Ano; lembre-se que também é aniversário do nosso casamento.
E ela respondeu:
– Mas, Manoel que culpa tem o peru pelo nosso casamento?!
Bons-anos!

As Domingas do Advento

O cristianismo se define em dois momentos: a vinda de Cristo e a Páscoa, o nascimento e a ressurreição. Em torno desses marcos gira o ano litúrgico. Tudo começa com a chegada do Menino Jesus, que se celebra em quatro semanas e quatro domingas, resumo de uma expectativa milenar, anunciada ao longo da Bíblia.

Essas domingas — os ofícios dos domingos — foram sempre tempo de grande chamamento à penitência, pois, celebrando “a palavra, que acaba de acontecer” (Lc 2, 15), nos preparamos para a palavra anunciada pelo próprio Cristo. O Padre Antonio Vieira deixou vários sermões de domingas do Advento, seguindo a antiga tradição de Santo Agostinho. Neles, ele é severo com o homem, especialmente — pregava na Capela Real ou em São Roque, a igreja dos Jesuítas em Lisboa — com a corte. Chama a atenção para a fragilidade da vida terrestre, quando o que importa é a vida eterna; e a vida eterna depende de nós: “porque não trabalharemos muito por nascer muito honradamente?” E, respondendo à doutrina do “sola gratia” (somente a graça) de Lutero, explica: “Para um homem se converter, não basta só vida, e saúde, e juízo, mas é principalmente necessária a graça de Deus. [Mas] parece-vos que é boa diligência multiplicar as ofensas a Deus para granjear a graça de Deus?”

Uma das referências do Advento é São João Batista, que, com o batismo, limpa o homem para o encontro futuro, e com uma limpeza a que se submete, enquanto homem, Deus. Esse lavar não é apenas a purificação ritual que precede o sacrifício, mas o despojamento, pelo homem, do mal. Vieira lembra que o importante não é o primeiro nascer, mas o segundo. A referência é justamente o Batista, “entre os nascidos das mulheres nenhum ressuscitou maior” (Mt 11,11): “Ser o maior dos nascidos, enquanto ressuscitado, isso é verdadeiramente ser o maior, e na nossa mão está, se o quisermos ser.”

Essa vontade de transformação interior, que se torna exterior por, ao abrirmos os olhos para nos vermos por dentro, deixarmos de ver uma coisa por outra e abandonar a cegueira, é o efeito do batismo, o que não sei se poderíamos chamar de preparação para a ressurreição.

Mas ponhamos os pés na terra. Aqui fora o mundo se contorce, enquanto nossos corações se afligem no contraste entre a expectativa, a esperança da chegada do Menino Jesus e a guerra, a fome, a violência, a injustiça. Como podemos suportar o martírio de Alepo? O que fazer? Afastar a indiferença, para nós, que estamos tão distantes que o gesto material se dissolveria no espaço, é estender e aprofundar nossa fraternidade. Se não podemos chegar a Alepo, cumprir o simples mandamento: “amai ao próximo”.

Amando ao próximo, em toda a extensão de seu significado, é que estaremos preparados para Sua vinda, para a chegada do Menino Jesus.

A democracia e os poderes

Foi um ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal quem, há mais de 10 anos, profetizou que se estava estabelecendo no Brasil um procedimento que iria dar muito trabalho às instituições. Era o fato de que, quando se criava um impasse político, em geral no Legislativo, estava se criando também uma oportunidade de o submeter à Justiça, uma espécie de terceira instância, dando ao STF a função de harmonizar conflitos que deviam ser resolvidos pela própria política. Era o tempo do procurador Luís Francisco, que passou a ser popularíssimo porque tomava a frente para ser o xerife das mazelas do País e da política.

A Constituição de 88 criou as figuras da ADIN, dos direitos difusos — estes até fui eu quem criou, em 1985, quando mandei a Lei da Ação Civil Pública, que deu ao Ministério Público o grande instrumento de força que hoje tem —, e das ações cautelares que agregaram ao Poder Judiciário um protagonismo muito grande. A esse protagonismo chamou o Ministro Jobim de judicialização da política. E realmente isto aconteceu, com a consequência inevitável de politização da Justiça, hoje envolvida na solução das questões maiores e mais complicadas do Executivo, com grande apelo a aquilo que Ulisses Guimarães chamou a voz das ruas.

O Brasil sempre foi acostumado ao Poder Moderador, exercido no Império pelo Imperador, assessorado pelo Conselho de Estado. Como o Imperador tinha o poder de dissolver o Congresso e convocar eleições, quando surgia o impasse ele vinha e usava seu poder moderador. Graças a isso os partidos não se perpetuavam no poder, já que ele gostava da alternância. Se esse poder o auxiliou a governar com a Constituição que mais tempo durou — a de 1824 —, por outro lado criou o germe do republicanismo, a que aderiram aqueles que ficavam prejudicados com as mudanças de gabinete.

Na República, não havendo Poder Moderador e as crises continuando, como é próprio do Estado e da política, os militares, que a tinham fundado, passaram a exercê-lo, com as intervenções salvacionistas de que sofremos até 1985.

Agora surge uma grave crise institucional entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, e isso é muito mal para o País, necessitando que todos nós, brasileiros, lutemos para que ela seja superada. Ninguém mais do que eu, quando exerci a política ativa, prestigiou o Judiciário, compreendendo que, nas democracias fortes, é ele que assegura a força das instituições e sua vigilância. Assim, devemos dar condições aos nossos juízes para que ele cumpra a função moderadora necessária nas democracias fortes.

A democracia começou a tomar corpo, na instituição do Estado moderno, com a evolução da separação dos poderes de somente entre executivo e legislativo para a antiga fórmula de Aristóteles, retomada sucessivamente por teóricos como Maquiavel, Locke, Bodin, Hobbes até assumir a forma tripartite consagrada em O Espírito das Leis, do barão de Montesquieu, em que o Judiciário se torna a chave do sistema. É sobre ele que pesa a maior responsabilidade da harmonia entre os poderes.

É hora de fortificar o Poder Judiciário e acabar com esse mal-estar entre Congresso, STF e MP.

Adversário ou inimigo

A democracia é uma disputa entre pessoas que desejam influir ou exercer o poder, desde que começou a ser exercida pelos Estados criados ao longo de séculos de experiências, em busca de como evitar a violência e constituir-se o poder baseado em leis e não em homens, aquilo que hoje chama-se o Estado de Direito. Um dos métodos políticos do mundo democrático, no entanto, foi o de desclassificar o adversário.

Essa técnica ficou tão consolidada que agora mesmo, na maior potência do mundo, os Estados Unidos, a campanha presidencial foi feita com ataques pessoais, na descoberta e criação de escândalos, muitos deles tão escabrosos que parecia estarmos num país de instituições primárias. Assim, levou vantagem quem mais desmoralizou o adversário. Foi quase que um episódio vergonhoso ver o chefe da FBI anunciar, poucos dias antes da eleições, uma investigação que comprometeu a candidata do Partido Democrático, sob o pretexto de que poderia haver, num computador do marido de uma colaboradora, mensagens confidenciais de quando era Secretária de Estado. Veja-se os métodos que foram capazes de alterar decisivamente o resultado da eleição.

A luta pessoal, se por si mesma já é condenável pela baixaria que possibilita, fica mais grave quando o Estado participa nessa desclassificação do adversário. É como se a tortura fosse usada como uma política de Estado — o que aliás faz parte dos mandamentos de crueldade de Trump.

O Brasil atravessa atualmente uma fase de histeria contra os políticos, e se tenta não apenas desmoralizar as pessoas, mas demonizar a atividade política, generalizando o conceito de que todos os políticos são desonestos, sem dizer o que deve substituí-los. O maior perigo desse procedimento é ser uma proposta escatológica. Se ele já tivesse tido êxito em outro lugar do mundo, poderia ser um exemplo a seguir, mas julgar que é o Brasil que vai descobri-lo é também esquecer que, em toda parte que foi tentado, o resultado foi ou levar o poder aos militares ou destruir os países. Eles levaram a vários tipos de dissolução da sociedade e às ideologias que construíram os maiores campos de terror do mundo, como o nazismo e fascismo.

Lenine e Stalin tentaram estabelecer outro tipo de luta, pregando que a política é uma guerra, onde não há adversários, mas sim inimigos num campo de batalha, em que o objetivo da luta é destruir, matar, dissolver o outro lado.

Em seu livro Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, George Orwell criou o domínio do Big Brother, que controlava a vida de todos, numa antecipação da vigilância eletrônica das câmeras e gravadores, com seus ministérios promovendo o contrário de seus nomes: o da Verdade, a mentira; o do Amor, a tortura; o da Paz, a guerra; e o da Fartura, a fome.

Quantas violências e injustiças estão sendo feitas em nome da corrupção, que existe desde que surgiu o homem na face da terra e só desaparecerá quando a humanidade desaparecer.

No Maranhão estamos vendo uma forma trivial desse procedimento: espalhar o medo, ameaçar as pessoas, perseguir e jogar a polícia e a justiça para chegar ao objetivo de desconstruir os adversários ou inimigos.

Graças a Deus isto tem sido tentado por vários ditadorezinhos de papel e o fim de todos eles é a derrota e o esquecimento.

O medo como intimidação

Já citei muitas vezes o aforismo greco-romano de que “primeiro no mundo o medo criou Deus”. O medo é um sentimento que nos une aos animais e está relacionado com o conhecido e o desconhecido. Sabemos o que podemos sofrer e imaginamos o que podemos sofrer.

Com a vida social, o homem foi se libertando do medo. O Leviatã nos explica que o medo da morte leva o homem a buscar a paz que só a sociedade pode garantir. Mas à paz se opõe o desejo de poder. A busca de poder desequilibra a harmonia social e reintroduz o medo.

Se no começo o medo era simples — de animais, de fenômenos naturais ou do vizinho —, hoje, sem abandonar essas sensações atávicas, inclusive a visão do lobisomem e do bicho papão, ele tornou-se muito complexo. Sabemos que existe um arsenal nuclear que pode destruir, várias vezes, a vida sobre a terra; ou podemos ter o mesmo resultado se não formos capazes de reverter a marcha do aquecimento global — que Deus dê ao Trump o bom senso que ele não parece ter! E conhecemos as guerras, as mais midiáticas, como as da Síria e do Iraque, ou as mais escondidas, como a do Sudão do Sul, que tomam a forma do genocídio. E a fome, que tanta gente passa, e é outra maneira de morrer.

Quem não tem medo da violência, seja a das armas, que mantém o Brasil numa triste liderança mundial, e que chegou aos estados com a sua brutalidade, seja a dos acidentes de trânsito, com a legião de vítimas aumentando agora pelo uso do smartphone? Ou de perder o emprego, de não poder ganhar o pão nosso de cada dia? Ou de ficar doente, e não ter socorro, tal é o estado de calamidade em que está a rede de saúde? E a ideia de aprender, da educação melhorar a vida das gentes, que vai por água abaixo?

Michel de Montaigne, que viveu em época de guerra de religiões, quando bastava uma suspeita para um massacre, escreveu um dos capítulos de seus Ensaios sobre o medo. Ele lembra que “aqueles que têm um medo forte de perder seus bens, de ser exilados, de ser subjugados, vivem em completa agonia, sem conseguir beber, comer e repousar, enquanto os pobres, os banidos, os criados vivem frequentemente em completa alegria. E tantas pessoas que, na impaciência causada pelo medo, se enforcaram, afogaram e precipitaram, nos ensinando que o medo é ainda mais insuportável que a morte.” E tem uma frase definitiva: “O de que tenho mais medo é do medo.”

É que o medo é escorregadio, ele se insinua nos espíritos e coloca as pessoas fora de si, capazes de fazer o que não fariam — contra o próximo e contra si mesmo. Voltando ao que Hobbes colocou no Leviatã, pior que o medo é o uso do medo como instrumento do poder.

No Maranhão, por exemplo, hoje o medo é esse instrumento, utilizado politicamente. Todos têm medo: os comerciantes têm medo das fiscalizações dirigidas; os políticos têm medo das comissões de inquérito, semelhantes às da Inquisição, que levavam às fogueiras; os funcionários têm medo das ameaças e das demissões; cada cidadão tem medo de uma forma de perseguição. Uma denúncia aqui, uma demissão acolá, uma ameaça mais além, chantagens, pressões, insinuações, calúnias, difamações, falsidades… Tudo isso rasga a coesão social, rompe a vida das famílias, mina o futuro.

A ideologia semeia os dogmas — e ai daqueles que não acreditem. Hoje ela desapareceu, tornou-se retórica antiquada; só fez mal à humanidade. Nada fez mais medo, nem a guerra nuclear, que o regime encarnado em Stalin, que matou mais de 30 milhões de pessoas. Será que alguém pensa que o comunismo pode renascer no Maranhão?

Que saudade do medo simples de minha infância, quando — é minha primeira memória — eu e meus irmãos espiávamos, de detrás da porta, os índios que entravam na cidade em fila!

O que o medo não pode nos tirar é a esperança.

Divagações sobre o passado

Muitas vezes me disseram que era necessário dar um murro na mesa. A expressão, bem simplista, é daqueles que acreditam que se podem resolver impasses com gesto de força. Respondia que podia quebrar a mesa ou quebrar a mão, sem excluir quebrar as duas.

Cada vez mais consolido minha visão de que governar é harmonizar conflitos, exercer até o extremo a arte da paciência e da prudência. Isso não exclui o dever de ser firme quanto à defesa do interesse público. Não há maior coragem do que resistir ao emprego da coragem. Num regime democrático é preciso ter democratas. E a democracia começa dentro de cada um, é a consciência do óbvio, de que o nosso direito termina onde começa o dos outros.

A força é sempre a inconformação com os limites que nos são impostos pelo direito, pela lei, pela ética, pela moral. É o poder ilegítimo de impor vontades. Os custos dos impasses são maiores que os da negociação e do diálogo. Infelizmente, as instituições no Brasil são frágeis, por elas mesmas e pelos outros para as quais são feitas.

Tenho guardado silêncio sobre as circunstâncias do meu governo. Já fui julgado pelo povo brasileiro, no respeito com que me trata, nas lembranças com que me recorda. Agora mesmo, em recente pesquisa sobre os ex-presidentes, após Getúlio (e pour cause) estou empatado com Juscelino. Lembro esse fato porque a toda hora surgem julgamentos carregados de velhos preconceitos e distorções, como se nada houvesse acontecido depois que fui presidente, há 14 anos.

O grande problema brasileiro continua sendo político. O subdesenvolvimento político cria solidariedade com o econômico e o social.

Quero apenas lembrar que, em 1989, último ano do meu governo, a taxa de desemprego foi de 2,85%, residual, o PIB cresceu 25%, uma Argentina, tivemos as maiores safras agrícolas da nossa história, a geração de energia aumentou 31% e as linhas de distribuição, 57%, também recorde. Passamos a Inglaterra e a Itália. O Brasil saiu do 8º lugar para ser a 7ª potência industrial do mundo. A siderurgia expandiu-se 25% e a dívida externa diminuiu de 37,5% do PIB para 24,8%. Petróleo, as reservas aumentaram três vezes. Construímos os gasodutos de Mossoró, no Rio Grande do Norte, a Camaçari, na Bahia. De Campos, no Rio de Janeiro, a São Paulo, SP. A balança comercial superavitária era a terceira do mundo, ultrapassada apenas pelo Japão e Alemanha. Os programas sociais alcançaram índices jamais superados. O analfabetismo caiu 15% e a mortalidade infantil, 30%. Na área fiscal, encontrei um déficit de 2,58% e deixei, em 1989, um superávit primário de 0,08%, isto é, mais baixo 34%, um esforço fiscal extraordinário.

Mas a grande tarefa foi a transição sem traumas, conduzida com serenidade e tolerância. A inflação? A correção monetária distorcia os números e a economia convivia com várias moedas, o dólar, ORTN, moeda escritural e, por definição, moeda circulante, esta vulnerável ao pânico que surgiu com as expectativas do novo governo.
A correção mensal, dentro das circunstâncias daquele tempo, era a melhor vacina contra a recessão e a grande proteção dos salários.
Enfim, criamos uma sociedade democrática e o Brasil atravessou o gargalo institucional. E ficou o econômico, que é o cotidiano das nações.