José Sarney

Divagações sobre a paciência

Meu avô Assuero, quando eu entrei para a Academia Maranhense de Letras, ficou muito feliz. Ele era um lavrador do interior, nordestino que tinha emigrado do Ingá do Bacamarte, na Paraíba, cidade que só perdia, na fama de matar gente, para o Catolé do Rocha; o velho era uma força da natureza. Falava por provérbios. Fiz-lhe uma carta dizendo da minha glória provinciana. Ele a recebeu, soltou foguetes e ficou só alegria. Dona Tudinha, sua vizinha, vendo-o dessa maneira, perguntou-lhe por que tanta festa. Ele respondeu:

– Meu neto José entrou para a Academia.
– E o que é Academia, seu Assuero?
O velho respondeu:
– Não sei, dona Tudinha, mas sei que é coisa grande.

Nunca soube ao longo da vida de definição melhor. Lembrei-me dele ao indagar-me sobre a paciência.

O que é a paciência? A gente sabe o que é, ou mesmo não sabe, mas sabe que é coisa difícil.

É uma virtude que nos “permite suportar com resignação as infelicidades da vida, as injúrias, as ações dos outros”. Sem dúvida é uma virtude cristã perto do perdoar, longe da lei mosaica. De Gaulle dizia que ela era a virtude do estadista, e muitas vezes ele não a teve. Pompidou, este sim, teve demais e louvou a paciência como ninguém. Dela eu sempre fui devoto. Não faz mal a ninguém. Na paciência está a calma, a prudência, “a doçura que prepara os espíritos”, a “pureza de intenção e a piedade”, a “força que resiste aos obstáculos”, expressões de Talleyrand, citadas por Orieux.

Plutarco, em sua “Vidas paralelas”, ao falar de Péricles, chama-o de “admirável homem, não só pela brandura e suavidade, senão por sua grande prudência, e entre suas boas ações, a melhor, não ter dado poder à inveja e à ira nem olhado nenhum dos seus inimigos como irreconciliáveis”. E gloriosamente consagra-o como “digno da natureza dos deuses”.

Todos que tiveram responsabilidade de decisão, de uma maneira ou de outra, falaram da paciência. Não a arte de saber esperar, a calma de revide. Mas a virtude da prudência que, como diz um provérbio africano, “não é um remédio que se possa engolir”. É uma qualidade, uma conduta de vida.

Na minha última mensagem ao Congresso dediquei um título à “Paciência e Liberdade”, afirmando que “semeei o exemplo da paciência e da compreensão; preferi ser injustiçado a cometer injustiças, silenciar, a fazer calar, para que o país reencontrasse, na paz, o caminho da reconciliação de uma sociedade dividida pelo ódio, pelo ressentimento, pela amargura, pela prepotência”. Da paciência ninguém se arrepende; da impaciência, muitas vezes. Magalhães Pinto, um dia, disse-me um brocardo que não esqueci: “Nunca me arrependi das coisas que não fiz. A gente só se arrepende do que faz”. Da impaciência não me arrependerei, porque Jamais foi santa do meu altar.

Paciência, também, é o nome de uma planta europeia. Uma erva comestível, de cor verde, gostosa. Segundo os botânicos, é a única que contém “enxofre livre”. Não sei avaliar o que isso significa. Já o enxofre solto pelo vulcão Pinatubo nós sabemos que espalhou a morte e a devastação. Neste caso, por impaciência das forças da natureza. Também não sei a relação do enxofre com a impaciência, a não ser que é de enxofre a fumaça do Inferno.

E quem mora nos infernos? A paciência ou a impaciência? Mistérios do Céu.

Laboratório de sonhos

Eu sempre confesso que sou amarrado em bulas e remédios. Tenho problemas de insônia desde a juventude. O mal de Medéia: “Não dormirás jamais”. Mas não desisto de curar-me. Sempre estou atrás de médicos e sempre opino. Certa vez, em Nova York, no Centro de Pesquisas sobre Distúrbios do Sono, o doutor Torphy me atendeu com grande atenção. Perguntei-lhe:

“Doctor Torphy, seria possível fazer um laboratório de sono?”

Doctor Torphy, gentilmente, destruindo minha ilusão e minha vocação para prescrever condutas médicas: “No scientific!”

Não aguentei. Como não-científico o que havia lido em tantas revistas, tantas fantasias construídas nas seções médicas dos grandes jornais do mundo inteiro?

É que sempre tive a convicção de que os laboratórios de sono diziam quando a gente deixava de dormir e começava a sonhar. Nesse estágio, afirmava a literatura médica, os olhos reviravam, entrava-se em sono profundo e vinha o estágio necessário e preciso para que os médicos pudessem fazer o diagnóstico exato. Tudo desapareceu.

E agora? Como iria saber o que acontecia comigo? Não tive outra alternativa. Sonhar acordado, uma reação de compensar a frustração do sonho de um laboratório de sono.

Terminado o exame imaginário, perguntaria: “Qual o resultado?” A resposta: “O senhor não dorme porque foi presidente do PDS”. “Como? Eu fui presidente do PDS em 1979 e não durmo desde 1946, quando era da Esquerda Democrática”. “Por isso mesmo. O senhor mergulhou na insônia da política”. “E a cura?” “Entre para o Partido Verde. Tome chá de alface toda noite!”

É trágica a insônia, porque dormir é ter a possibilidade de sonhar. Leio em Gonzalo Montaner G. que o Chile, com todos os seus problemas, deve esquecer seus sonhos como nação. Coisa terrível! Condenar uma nação a esquecer os seus sonhos.

E depois, em vez de me preocupar com a falta de dormir, andava preocupado com a desgraça que seria para o Brasil esquecer seus sonhos de grande nação.

Haviam alguns indicadores graves de que o país poderia estar entrando numa fase de abandonar a possibilidade de sonhar e caminhar no pesadelo de uma abertura selvagem. Estava abrindo tudo sem negociar nada. Como quando queria abrir sua navegação de cabotagem sem pedir reciprocidade.

É alto demais o preço que estamos pagando pela nossa inserção na modernidade e na globalização. Pequenos países podem deixar de sonhar. O Brasil não pode. Deus nos fez grandes para os sonhos, para influirmos no destino do mundo, para não sermos pequenos. Para ajudarmos os menores e falarmos forte junto aos grandes.

Estávamos perdendo essa noção de grandeza. E senti a profundidade da afirmação: “La grandeur!”, como dizia De Gaulle. O Brasil não pode ser satélite. Tem de ser grande, não pode ajoelhar-se, como diz o povo.

Vamos tomar chá de alface para voltar a dormir e sonhar. Se necessário, com catuaba, barbatimão e pimenta-malagueta.

América, uma paixão.

Colombo era um herói fanático. Possuído pelo demônio da alucinação, via um mundo desconhecido e mágico, onde cresciam terras no oceano, fazia cálculos e fórmulas de distâncias irracionais e tinha pesadelos de venturas. Não era navegador. Sua profissão era delirar. Os sonhos de suas viagens tropeçavam sempre em imensuráveis pretensões. No meio das dificuldades, mais uma: a Guerra de Málaga. Mas ele não desistiu. Acompanha a caravana real, para onde se desloca, Córdoba ou Sevilha, pedindo, pregando, incendiando as imaginações da corte. Isto era por volta de 1487. E o dinheiro começou a aparecer. Um recibo do tesoureiro González: “Dí a Cristóbal Colomo (!) cuatro mil maravedís que Sus Altezas le mandara, por cédula del obispo.”

Sua nacionalidade é contestada. Ora genovês, ora sem precisão de origem. Um documento, até agora inédito, recibo, também do caixa da rainha Isabel, a Católica, chamado Pedro de Toledo, o identifica como “português” e tem o testemunho do contador Alonso de Quintanilha, do conselheiro Maldonado e do confessor Frei Hernando de Talavera.

A América foi descoberta sob o signo das mulheres. Foi a rainha quem acreditou em Colombo. Foi ela quem lhe abriu os cofres e as portas. Diz-se que o grande feito do almirante não foi ter vindo, mas ter voltado. E o meu amigo Augusto Marzagão deu a Colombo mais um título: foi o primeiro economista do mundo. Quando chegou, não sabia onde estava; quando saiu, não sabia onde esteve. E tudo por conta do governo.

As mulheres da América foram, ao longo da conquista, um deslumbramento. Ricardo Werren, que publicou um livro de muito sucesso, “A Conquista Erótica das Índias”, nos fala dessa paixão. Os descobridores ficaram, de logo, transtornados com as índias nuas. “Aquelas mulheres eram muito formosas, com os seios livres e as partes do mesmo modo, sem véu”, diz um cronista da época. É que na Europa as mulheres, com todas as visões do pecado, cultivavam os vestidos. O acosso sexual, como está na moda dizer-se, foi o primeiro crime. Diz Werren que foi uma maratona, uma carga de cavalaria. Este contato, mais do que as guerras, com a disseminação de doenças, matou mais da metade da população indígena. As mulheres serviam como fêmeas concubinas dos intendentes das tropas, serviçais. Esta página de maldição, agora, é estudada. Há exemplos fantásticos. Aguirre, governador de Tucumán, conquistador do Chile, foi o mais procriador: teve 500 filhos e um número indeterminado de amantes!

Cortez, sobre quem pesará para a eternidade o massacre do povo asteca, feroz, inteligente e hipócrita, um homem “típico do Renascimento”, tinha uma fascinação para com as índias e foi um grande promíscuo. Continuava o velho costume dos conquistadores. Horácio já recomendava possuir as “escravas”. Lembro-me de uma carta do Marquês de Pombal a Melo e Póvoas, então governador da recém-criada província do Rio Negro (Amazonas), na qual recomendava aos soldados: “Juntem-se às índias para preservar o sangue português.” Desse relacionamento surgiu uma fusão de raças e culturas, que hoje tem uma característica própria no fenômeno da mestiçagem, marca do continente americano.

A América recebeu doenças, importou sementes e exportou as suas plantas originais, como a batata, o tabaco, o milho e o tomate, mas, como revanche, exportou também a sífilis, daqui originária, cuja primeira vítima foi o arcebispo de Creta!

As orelhas

Por mim, o boxe não teria sucesso nem assistente. Não acho graça em um sujeito cair de murro no outro. Coisa de temperamento. Toda violência me agride. Não vi a tal luta de Mike Tyson nem a mordida de orelha que escandalizou o mundo. Mas ouvi muita conversa de gente indignada e de gente perplexa. “Foi coisa de animal”, disse o meu chofer. “O senhor não viu?” “Não, não vi”, respondi. “Pois veja” Eu disse, como diziam os franceses da Resistência: “Jamais” – e encerrei o diálogo.

“Coisa de animal” é como definiram esse tipo de esporte. Não sei se Freud o estudou para analisar o que leva as pessoas a gostar de ver indivíduos trocando sopapos, quebrando caras, maxilares, brutamontes enraivecidos, sangrando e todos pedindo mais.

Com certa perplexidade vi senhores sisudos, com ares de sábios, a Junta do Boxe de Nevada, num tribunal com todo o ritual da Justiça, proibindo Tyson de lutar, com o veredicto de que morder orelha desmoraliza o boxe. Ora, a orelha é um pedaço do corpo humano que tem raízes mitológicas. Ela era consagrada a Mnemósine, que, tendo como companheiro Zeus, foi mãe das nove Musas, cada uma tendo a seu encargo presidir uma ciência ou arte específica. Clio, a história; Talia, comédia e poesia; Euterpe, a música; Terpsicore, a dança; Melpômone, a tragédia; Erato, a lírica; Caliope, a épica; Polímnia, a retórica; e Urânia, a astronomia.

Pois é a orelha, com todos esses mantos de proteção, que Tyson violou. O padre Vieira, não propriamente da orelha, mas dos ouvidos que fazem parte do conjunto, dizia que os que governam tinham que ter dois ouvidos, um para ouvir o ausente e outro, o presente, acrescentando que o Espírito Santo tinha espinhos nas orelhas para que as coisas não entrassem de uma vez, dessem tempo à reflexão.

Popularmente, diz-se que fulano torceu a orelha, isto é, pagou pelo que fez, e muitas vezes para advertência o gesto que se faz é de “vou puxar tua orelha”. As velhas professoras do passado ensinavam com a mão agarrada na orelha, para que não se esquecesse do que se aprendia. Não sei se os lutadores do passado tinham as regras de Nevada ou se podiam morder as orelhas e dar golpes baixos.

Mas o certo é que Lucrécio, no seu “De Natura Rerum”, afirma que as armas antigas eram “manus, ungues, dentesque fuerunt”, isto é, mãos, unhas e dentes. No caso, Tyson entrou com os dentes e o Holyfield com a orelha. Costuma-se dizer que a briga de mulheres, não afeitas às armas, é com unhas e dentes. Depois, viu-se que no boxe isso também existe.

E na política, como é a luta? Acredito que com unhas, dentes, paus e pedras, facas no escuro e tiroteios. É uma luta, também, primitiva. É um vale-tudo. Comem-se orelhas de todo mundo, a toda hora, e ninguém é expulso, punido ou multado.

Na campanha presidencial que virá, na linguagem antiga, dir-se-ia ser hora de colocar as barbas de molho. Nos tempos modernos a coisa é diferente. Com reeleição e tudo é hora de proteger as orelhas das dentadas. Eu, de minha parte, usando a prudência, já estou procurando esconder as minhas.

Cruzado, o início da estabilidade econômica

O Brasil fez 30 anos do início da estabilidade econômica com o Plano Cruzado. Nenhum plano despertou tanta paixão: os especuladores de 1986 ainda o odeiam e o povo consumidor também não o esquece, pois foi a primeira grande distribuição de renda do Brasil: 30 milhões saíram da pobreza.

Os problemas que a Nova República herdara ameaçavam a estabilidade do País. Embora tivéssemos conseguido crescer em 1985, a economia estava desorganizada. A receita que queriam nos impor era a ortodoxia do FMI e da banca internacional. Enfrentei-os. Eu sabia dos riscos e perigos de fazê-lo, mas tive a coragem de congelar os preços e a taxa de câmbio, entre outras medidas. Derrotei-os, pois o Brasil a partir dali nunca mais seria o mesmo.

A Europa vive até hoje o que é o combate ortodoxo da crise de 2008. Desemprego alto, a agonia do estado social, isto é, o direito do povo à saúde, à educação, à aposentadoria e à seguridade social. O Plano Cruzado buscou a saída do mercado interno, barrou a especulação de preços e moeda. O capital internacional nos cercou e o interno seguiu o seu exemplo. Cortaram todas as linhas de crédito. Foi uma guerra. Quando perdemos na economia, ainda fiz a correção mensal dos salários como um colchão para defender o povo.

Hoje vemos o perigo da solução da recessão, com o nosso PIB caindo numa taxa histórica de -4% — que só havíamos visto em 1990 —, e o desemprego subindo a olhos vistos.

O Cruzado não foi somente um plano econômico. Foi um plano de consequências políticas que mudaram o país. Ele legitimou-me como Presidente da República, e sem ele eu seria deposto, com retrocesso democrático à vista. Ele possibilitou funcionar a Constituinte, que deu ao povo direitos sociais, garantias individuais, direitos do consumidor. Com ele fiz o seguro-desemprego, o vale-transporte, o programa do leite, a farmácia básica; dobrei o salário-mínimo. Houve a criação de uma sociedade democrática. Os “fiscais do Sarney” foram o acesso à cidadania.

Paguei — e até hoje pago — um custo de feridas não cicatrizadas. Mas foi nossa decisão que, desdobrada nos planos Bresser e Verão, veio até o Real. Este já estava idealizado pelo Ministro Sayad. Mas eu não tinha condições políticas de fazê-lo. O Presidente Fernando Henrique contou que, quando reuniu os economistas para construir um novo plano, eles lhe disseram: “Já está pronto, é só implantá-lo.”

Assim, o Cruzado foi vitorioso. Baixou o desemprego a uma média de 3,59% — a menor até hoje do Brasil —, chegando a 2,16% durante 1986. Nos meus 5 anos o crescimento do PIB per capita foi de 11,78% e o do PIB total de 23,74%. Graças ao Plano Cruzado a década de 1980 não foi década perdida para o Brasil.

O pleno emprego criado pelo Cruzado deu força aos trabalhadores, e não é sem motivo que já em 1989 quase fizeram o presidente.

No futuro, quando se escrever a história desses anos, o Cruzado receberá justiça como uma heroica decisão que mudou o modo de enfrentar crises e o Brasil.

Dia de eleição

poder democrático é sempre fruto de eleições periódicas. Sem elas não há legitimidade nos governos e nas casas legislativas, o Estado de Direito desaparece. Que elas continuem, e muitas, e sempre. Este ano são 463 mil candidatos a vereador, 16 mil a prefeitos. Um mundo de gente. E, embora 60% esteja na faixa entre 35 e 55 anos, 42 candidatos têm mais de 90 anos, doze mais de cem. Gente que acredita na democracia e nas eleições.

Mas as eleições, para os candidatos, são um momento difícil. Há uma velha história que corre entre os políticos. Um deles caminhava entre velhos túmulos de um cemitério. Num, a tradicional inscrição: “Aqui repousa em paz.” Não teve dúvidas: pegou um pincel e acrescentou: “Porque jamais concorreu a uma eleição.”

Certa noite, no princípio da minha vida política, depois de estafante jornada de comícios, reuniões, passeatas, apertos de mão, manifestações de apoio e recusas enérgicas de apoio, estávamos descansando, candidatos e cabos eleitorais, quando o Cavour Maciel, aspirante a prefeito de Penalva, deu a sentença: “Quem inventou eleição está no Inferno.”

José Marques, cabo eleitoral, reagiu pronto: “Pois para mim está no Céu. Ô tempo bom! Eleitor passa bem, é abraço para cá, beijo para lá, convites para almoço, para jantar, bailes e esperanças. É a hora do já-fiz e do tou-fazendo. Já fiz isto, aquilo e mais aquilo e estou fazendo mais e mais…”

Cavour não se rendeu: “É obra do Diabo!”
Em Água Branca (atualmente Vitorino Freire), o orador da cidade era Alcides Sarmento, um homem muito falante, mas sem muita instrução. O chefe político do lugar era o coronel Pedro Bogéa. O Alcides Sarmento iniciou com a seguinte saudação ao coronel:

— Coronel Pedro Bogéa, o maior reprodutor do Mearim.

Dirigiu-se a todos nós, que estávamos presentes:

— Quero saudar também a ilustre comandita que hoje nos visita!

E por aí foi o Alcides Sarmento…

No tempo do Império se considerava pedir votos tão errado como hoje o comprar votos. Joaquim Nabuco visitava os eleitores, mas se escandalizava com a hipótese de ir além de expor suas ideias, e a condenação ao voto por conveniência era severa: “A prática de mendigar votos é absurda, perniciosa e está em completo desacordo com os verdadeiros princípios do governo representativo. O voto do eleitor não deve ser pedido, nem dado, como um favor pessoal. Pedir a um homem de bem que vote de acordo com sua consciência é absurdo.”

A República mudou a relação com o eleitor. Rui Barbosa, velho, vinha das eleições do Império, mas carregava a experiência da Campanha Civilista, a primeira verdadeira disputa eleitoral para Presidente da República. Já́ com a morte à vista, percorria a Bahia, pedindo votos. Ele dizia:

Vou falar baixo para que não ouçam que, nesta idade, eu ainda esteja mendigando sufrágios.

Já o deputado Vieira da Silva estava tão preocupado e receoso de derrota que não quis aceitar a vitória. Procurou-me e disse: “Aquele fulano me traiu, beltrano fez corpo mole e deu nisso: não vou ser eleito.” Com o boletim do TRE na mão, respondi: “Mas não é isso que está aqui na apuração da eleição: você está eleito.” Mas ele garantiu: “Não estou eleito!”

Foi difícil convencê-lo de que ele tinha ganhado a eleição.
Bom voto!

Em campanha

Quando fui governador, Jânio Quadros esteve no Maranhão na campanha eleitoral para a sua eleição à Presidência da República. Fizemos um programa de visitas a quatro cidades: Coroatá, Pedreiras, Caxias e Timon.

Quando fomos pegar o avião que nos levaria ao interior — era um Cessna 170, um dos três primeiros aviões que, fretados, faziam viagens para o interior do Maranhão —, o Jânio, ao olhar o avião aproximar-se, vendo que era um aparelho muito antigo, cujo aspecto não inspirava qualquer sentimento de segurança, aproximou-se de mim e disse:

— Sarney, é nesse avião que vamos? Você quer um presidente vivo ou um candidato morto?
E afirmou em seguida:

— Nesse avião eu não entro!

Eu fiquei meio sem graça e respondi:

— Governador, o senhor, em São Paulo, tem bons aviões, novos e de último modelo. Mas o senhor é candidato a presidente do Brasil todo. Aqui, nesse avião, viajo com minha mulher e meus filhos. Jamais iria expor o senhor a qualquer temeridade, tenho certeza de sua absoluta segurança.

Falei isso com certo tom de irritação e concluí:

— Mas, já que o senhor não quer ir, nós não vamos.

Ele, então, virou-se para mim e disse (ele gostava de falar dessa maneira quando queria agradar a alguém):
— Sarney, meu bem, você sabe que eu vou, por que fica zangado assim?
Então, entramos no avião, mas ele não deu uma palavra, nem comigo, nem com ninguém.
O avião comportava quatro pessoas: eu, Jânio, o piloto e Millet, presidente das Oposições Coligadas, que apoiavam o Jânio.

Ficou tenso durante todo o nosso voo, olhando para baixo, os olhos fixos no chão — que estava perto, porque esses aviões pequenos voavam mais próximos do solo.

Quando chegou a hora de pousar em Coroatá vimos que o campo de pouso, como todos os campos da época, era muito pequeno e gramado. Lembrava um campo de futebol. Aí eu realmente passei a ficar preocupado e pensei: “E se acontece alguma coisa com esse avião e o Jânio? Realmente, estou cometendo uma temeridade.”

Pousamos, e uma multidão imensa, gritando, com vassouras na mão — que era o símbolo do lema do Jânio, do “Varre-varre, vassourinha!” —, cercou o avião.

Para descer, tivemos uma dificuldade muito grande, porque havia uma desorganização extraordinária, sem nenhuma preocupação com a segurança. A única coisa que estava pronta para sair era o cortejo, que ia desfilar pela cidade até a casa do prefeito e, de lá, aguardar a hora do comício, à noite.
Quando viu a multidão, Jânio transformou-se: era só sorrisos! Quando ele olhou o povo e começou a receber as manifestações de entusiasmo, era outro homem: abriu o rosto, começou a sorrir e dizer, repetindo:

— Que gente boa e animada! Que gente boa!

Ao chegarmos à casa do prefeito, ele foi para o quarto que lhe havia sido designado, trancou-se, chamou o João Brás, o mordomo que o acompanhava nas viagens, e pediu-lhe, discretamente, uma garrafa de uísque — que foi encontrada vazia pelas pessoas que entraram no quarto depois que ele saiu da casa, na hora do comício.

O certo é que nenhum orador ouvi ou conheci que tivesse uma técnica de levantar massas e despertar entusiasmo maior do que a do Jânio Quadros. Não sei se era milagre da bebida ou puro talento de orador popular!

Tenha cuidado com o cartaz

Estamos tendo uma eleição sob a regulamentação de uma nova lei. Esta lei bastante discutida teve — e agora tem — o objetivo de conter o poder econômico nas eleições, proibindo a doação de empresas privadas, limitando o tempo de campanha a quarenta e cinco dias, encurtando prazos para as muitas exigências legais, registro, campanha, julgamento de recursos, tudo para diminuir gastos eleitorais. Vamos ver se as coisas vão acontecer conforme o objetivo dos legisladores. A notícia é que estamos tendo uma campanha fria, sem a paixão de outros pleitos.

A verdade é que, na história do Brasil, sempre foi uma constante a busca de reformar as leis eleitorais para acabar com as mazelas que cada eleição apontava. Já atravessamos o tempo do combate às fraudes, do bico de pena, da eleição a cacete — como era no Império, criando um paladino de reformas, encarnado no Conselheiro Saraiva, tido como entendido em matéria eleitoral. Em 1881 tivemos então a lei Saraiva, que era esperada há muitos anos pela classe política. Não foi um sucesso e muitos furos deixaram margem a fraudes. O DesembargadorTrayahu Moreira, que era do Brejo, contava que sua cidade fora citada na Câmara dos Comuns da Inglaterra como exemplo de que as eleições diretas eram vulneráveis, e tinham burlado a Lei Saraiva, que implantava esse sistema.

Eu mesmo, na minha longa vida política, assisti à votação de dezenas de leis eleitorais — e nenhuma funcionou. Dessas a grande batalha foi pela cédula oficial, substituindo as cédulas particulares distribuídas pelos partidos. Com a minha experiência, quando presidente da República chamei o ministro Néri da Silveira ao Palácio do Planalto e propus a informatização das eleições, começando pelo título eleitoral, trilhando assim o longo caminho da urna eletrônica, que possibilitou eleições legítimas, sem fraudes e de apuração rápida. Hoje somos exemplo para o mundo. Ele foi ao Maranhão naquela época e no TRE entregou-me o primeiro título eleitoral emitido por esse sistema.

Agora é a vez de baratear eleições e evitar abuso do poder econômico.

Tenho recebido queixas de que até mandar fazer cartazes tem sido difícil, com os pequenos tetos para os gastos nessa eleição. Ora, o cartaz era o instrumento mais visível das eleições: colar cartazes, rasgar cartazes era uma saga que ensejava brigas imensas entre candidatos e partidos. Eu tive um grande amigo e chefe político de Araioses, junto com Leônidas Quaresma, Sebastião Furtado, que desvendava nos cartazes com a cara dos candidatos suas possiblidades eleitorais. Assim, uma vez, levei os cartazes do Brigadeiro Cunha Machado, nosso candidato a governador. Fiz uma grande apologia de suas qualidades e das possibilidades de nossa vitória, pedindo seu engajamento na campanha. Ele me disse: “Deixe eu ver o cartaz dele.” Eu mostrei. Sebastião olhou aquele cartaz bonito e disse-me: “Olhe, deputado Sarney, com essa cara não ganha não. Tem os olhos com jeito de ervado (!).” Eu respondi: “Não, Sebastião, olhe bem que a vitória está em seu rosto.” Ele me disse: “Deputado, com minha longa vida política eu conheço candidato que ganha pelo cartaz.” Eu não esqueci e sempre tomei cuidado com meus cartazes!

Bem, com as eleições está vindo a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré: que ela proteja nosso Amapá e evite as recorrentes tragédias que também leio: dos acidentes de trânsito, dos assaltos e dos homicídios. Mortes brutais.

Valei-me mãe das almas!, como as rezadeiras cantam nas incelências de defuntos do interior.

O tempo das amoras

Quando cheguei à Câmara dos Deputados pela primeira vez, como suplente, o presidente da Casa era Carlos Luz, que se envolveu no episódio do Golpe de 1955, desfechado pelo Marechal Lott, e, afastado, sofreu um impeachment, e foi substituído por Flores da Cunha. Deste eu guardo recordações indeléveis, desde a primeira vez que me viu no plenário e perguntou-me: “Donde vens?” “Do Maranhão”, respondi; e ele retrucou: “Isto aqui já é Jardim de Infância?” Eu tinha 25 anos de idade, e estava deslumbrado com aquele cenário do Palácio Tiradentes do ano de 1955.

Ali via os ídolos do nosso partido e outras figuras notáveis da política brasileira. Via Octávio Mangabeira, Gustavo Capanema, Vieira de Melo, Carlos Lacerda, Afonso Arinos e tantas figuras cujos nomes o tempo foi apagando. Lembro-me também de Raimundo Padilha, grande orador, de Raul Fernandes, que Lacerda chamava a raposa de Valença, de Luís Viana, de Magalhães Pinto, de Rondon Pacheco, de Oscar Dias Correia, de Pedro Aleixo, de José Bonifácio, de Aliomar Baleeiro, de Bilac Pinto e de um dos maiores estadistas que conheci, Adauto Lúcio Cardoso, homem de grande integridade e referência moral de todos os tempos no parlamento brasileiro.

Com eles ao longo do tempo convivi, de alguns deles tornei-me amigo, e por eles fui escolhido, em 1958, vice-líder da UDN, sendo líder Carlos Lacerda. Era a famosa Banda de Música, onde eu tocava reco-reco.

Foi então eleito presidente da Casa, numa rebelião da Ala Moça do PSD, Ulysses Guimarães. Depois Ranieri Mazzilli, que foi presidente sete anos e presidia a Casa com um ar de imponência e um peito que Lacerda dizia ser de tenor italiano. O último presidente que tive na Câmara foi o Bilac Pinto, de quem também fui grande amigo.

Na minha memória vinham os presidentes do Império: Pedro de Araújo Lima (Marquês de Olinda), Martim Francisco de Andrada, Limpo de Abreu (Marquês de Abaeté), Zacarias de Góis, Araújo Viana (Marques de Sapucaí), Paulino de Souza, Gomes de Castro — parente de meu bisavô, a quem Ruy Barbosa reconhecia como um dos maiores oradores e com quem teve grandes e acirrados debates, inclusive sobre a anistia. E os que não foram presidentes, como o próprio Ruy, e Joaquim Nabuco!

Tantos homens, tantos talentos!

Depois fui para o Senado, já tendo sido Governador do Maranhão, passando por todos os postos da política, inclusive sendo presidente da Casa por quatro vezes, durante oito anos; e ao deixar a vida partidária era o parlamentar mais antigo da história da República e o segundo incluindo o Império. Fui Vice-Presidente e Presidente da República. Quando saí do Senado tinha a impressão de ter deixado um parlamento que não era mais o do meu tempo. Vi tudo e fui tudo na política.

Para completar, vejo agora uma coisa inédita, que jamais poderia imaginar: o Presidente da Câmara foi suspenso e afastado do mandato, com uma série de acusações que eram impensáveis nos velhos tempos.

Mas a História é feita dessas grandes surpresas. O próprio ministro Teori Zavascki disse ser um caso “extraordinário, excepcional e, por isso, pontual e individualizado.”

Já diziam os latinos “O tempora, o mores.” Padre Newton, meu professor de latim, achava que a melhor tradução desse provérbio não era “oh! tempo, oh! costumes”, mas o tempo das amoras.

É o que estamos vivendo, o tempo das amoras.

A hora e a vez dos Vice

Mais uma vez na história do Brasil um vice-presidente assume a Presidência da República. Quem abriu a contagem foi o Marechal Floriano Peixoto, que se desentendeu com o Marechal Deodoro da Fonseca, provocando uma séria divisão nas Forças Aramadas, responsáveis pela derrubada do Império e pela implantação do regime republicano. Essa briga foi alimentada também com a divergência entre o presidente da República e o presidente da Câmara dos Deputados, Prudente de Morais. Deodoro era um homem colérico, de rompantes, e disso beneficiaram-se os republicanos. Ele fechou a Câmara, depois teve de reabri-la, mas renunciou à Presidência. Ficou tão indignado com seus colegas que mandou colocar o seu uniforme numa lata, soldá-la e jogar no mar, determinando que fosse enterrado com roupa civil.

Floriano foi o Marechal de Ferro, governou com dureza, mas atribui-se a ele ter consolidado a República.

O segundo foi Nilo Peçanha, que completou o mandato de Afonso Pena. Nilo Peçanha era um grande chefe político do Estado do Rio, hábil e de bom temperamento, mas excessivamente atraído pela politicagem provinciana que o levou a fazer sucessivas intervenções nos estados.

O terceiro foi Delfim Moreira, que substituiu Rodrigues Alves, vítima da gripe espanhola. Mas não teve tempo de governar muito. Tinha como regente — era o que se dizia — Afrânio de Melo Franco, grande expressão da política mineira. Delfim Moreira não teve como governar. Já estava vitimado por doença mental que o impedia de exercer o cargo. Foi eleito para sucedê-lo Artur Bernardes, que tinha como vice o nosso grande conterrâneo Urbano Santos da Costa Araújo.

O quarto foi Café Filho, vice de Getúlio Vargas que, com o suicídio deste, assumiu a Presidência. Também, na onda de instabilidade da política brasileira, foi deposto pelas Forças Armadas, comprometidas com Juscelino, que fora eleito em 1955 — Café era acusado de estar envolvido numa conspiração para não dar posse a Juscelino Kubitschek.

O quinto foi Jango, João Goulart, que assumiu na renúncia de Jânio Quadros. Fez um governo conturbado. Sua posse foi difícil e para ser aceito como presidente engoliu um transitório e capenga regime parlamentarista.

Anote-se também que tivemos um vice que foi impedido de tomar posse pelas Forças Armadas, Pedro Aleixo, que devia substituir Costa e Silva.

O sexto fui eu, com a morte de Tancredo. Só eu sei o que é um vice assumir sem saber nada sobre os programas do presidente que se foi e cercado sempre por insegurança e crises.

O sétimo foi Itamar Franco, no impeachment de Fernando Collor. Era um homem sério, correto, que teve a oportunidade de fazer o Plano Real — seguindo o caminho aberto pelo Cruzado — e derrubar a inflação.

O oitavo vice é agora o Michel Temer. Penso o que deve estar na sua cabeça, mas os problemas que herda são quase insolúveis e precisam de longo prazo para serem resolvidos. Somos todos testemunhas destes tempos difíceis e das incertezas que existem. Porém ele é um homem experiente, sensato e com domínio da arte da política.

Mas relacionei todos estes fatos para dizer que agora ficou provada e testada nossa democracia, nossas instituições, que funcionaram na harmonia constitucional, com ampla liberdade, o povo tendo uma participação efetiva. O comportamento das Forças Armadas foi impecável, assegurando a sustentação das instituições.

Fico feliz pelo que me toca, pois fui o responsável pela transição democrática, assegurando a realização de uma Assembleia Constituinte e a promulgação de uma nova constituição, que assegurou direitos sociais e mostrou-se capaz de colocar-nos entre as grandes democracias do mundo.