José Sarney
O imbróglio das redes sociais
Há alguns anos, em discurso no Senado, abordei o tema dos dias de perplexidade e indagações que vivemos, em que existem mais perguntas no ar do que respostas a dar.Estamos não num mundo em transformação, mas num mundo já transformado.
Participei, como convidado da ONU, de uma conferência mundial, em Bilbao, sobre o impacto da Internet nos direitos à privacidade. Com a sociedade da comunicação que passamos a ter, depois da morte da sociedade industrial, nada mais tem a garantia do sigilo, e a palavra da moda é transparência.
Uma das consequências foi tornar-se mais atual a indagação de Pilatos a Jesus, que consta em todos os evangelhos sinóticos: “O que é a verdade?” É difícil não só responder à pergunta, mas encontrar seu objeto. Sobre qualquer coisa existem tantas versões na Internet que não se sabe qual a verdadeira. E são tantas as verdades que não se sabe mais onde está a verdade. O resultado de tudo isso é que nasceram duas expressões, as mais usadas no mundo no ano passado: fake news e pós-verdade. A primeira significa notícias falsas e a segunda fica mais difícil de definir, pois é uma mentira que se tornou verdade.
Dentro desse quadro, as redes sociais — em que não há centro, mas o controle, como se descobre agora, de empresas que manipulam os acessos e as opiniões — deitam e rolam, possibilitando a cada pessoa ter a sua verdade ou a sua mentira.
Daí a discussão mundial sobre isso e o fato de se procurar, em todo lugar, vacinas e bloqueios contra as fake news, além de legislações para evitá-las ou reprimi-las. O diabo é que, quando o remédio aparece, o estrago já está feito e não há como repará-lo. É um pouco daquilo que o Padre Vieira falava sobre a calúnia: que eram penas de galinha arrancadas e soltas ao vento — depois era impossível juntá-las.
Outra coisa que tive oportunidade de ressaltar nessa conferência de Bilbao foi a nova tendência, trazida pela Internet, da democracia direta, aquela que existia no mundo antigo,em que cada pessoa votava por sua palavra em praça pública. Assim, no dia em que cada pessoa tiver seu iphone e a tecnologia assegurar certas garantias necessárias ao voto, toda parafernália da eleição desaparecerá.
Mas a Internet mal-usada é mesmo o perigoso instrumento da calúnia, do insulto, da difamação, da denúncia vazia e das notícias falsas.
No Maranhão, agora por outros meios, usa-se desse mal costume. Eu, pelo menos, sou uma vítima predileta, alvo de insultos, dia e noite, desde que entrei na política. E ainda dizem que fazem política nova, mas usam a mais velha, bolorenta e nociva de todas as políticas.
O mistério da Paixão
Nas Sexta-feiras da Paixão, em que todos os anos tenho de aqui refletir sobre ela, ainda vivo aquele tempo da minha infância em que as imagens eram cobertas de pano roxo, em que íamos ao Senhor Morto beijar-lhe os pés, e eu sabia que ele ali estava, na Igreja de Pinheiro, velando pela vila, atendendo às minhas orações de menino e pronto para reprimir os meus pecados, que não existiam, porque eram tão puros que era santidade.
A Semana Santa nos remete aos ensinamentos básicos do cristianismo.
Quantas vezes, todos os anos, todos os dias, a cena da crucificação se repete, sem envelhecer? O símbolo da Cruz é o do sofrimento mas, sobretudo, o da ressurreição. Muitos vêem Cristo sem a cruz, outros, a cruz sem Cristo. Mas é impossível qualquer separação. São indissolúveis no mistério da Paixão, que só pode ser entendido pela fé. É Cristo amando os homens até o fim, como afirma S. João, e, neste amor maior, a eternidade que se começa a ver pelos olhos daquelas Marias que de madrugada olhavam o Santo Sepulcro, vazio.
Certa noite, em Lisboa, com Antonio Alçada Baptista, o grande escritor português, autor de “Peregrinação Interior”, numa Sexta-Feira da paixão, falamos de ser cristão e ele tirou os óculos, olhou-me e disse:
“José, hoje é o dia do grande mistério. Nada de perguntar sobre ele. É o grande e insondável mistério”.
Pascal, que pensava que é o coração que sente Deus, e não a razão, deixou nos fragmentos das Pensées muitas indagações sobre esses mistérios. Por quê os Evangelistas fazem Jesus frágil na agonia? Era tão fácil fazê-lo heroico! E o filósofo sugere: quando Ele está perturbado, é perturbado por si mesmo; quando os homens o perturbam,
Ele é forte. “Jesus sofre em sua paixão tormentos que lhe fazem os homens, mas na agonia sofre os tormentos que dá a si mesmo.”
E lembra as frases no jardim de Getsémani: “Minha alma está triste até à morte.” (Mc 14:32) — a única vez que o Cristo se queixa; e “Pai, se quiseres, afasta este cálice de mim: porém que seja feita não a minha vontade, mas a Vossa.” (Lc 22:42) — e Jesus pede uma vez que o cálice se afaste, mas duas vezes que ele venha, se é necessário. No Gólgota, à hora nona, na cruz, Jesus pergunta em aramaico: “Eloí, eloí, lemá sabachtáni?” (“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”).
Quem era Jesus Cristo?
No Evangelho de São João ele responde muitas vezes esta pergunta, muitas vezes com novos mistérios: “Eu sou o pão da vida” e “o pão vivo” lembra a eucaristia e o caminho para a terra prometida; “o caminho, a verdade e a vida”, respondendo a Pilatos — que lhe faz a pergunta mais difícil, “o que é a verdade?”; “a porta das ovelhas” e “a porta”, por onde quem entrar salvar-se-á; “o bom pastor”, que dá a vida pelas ovelhas.
“Eu sou a ressurreição e a vida.” São Paulo diz que, sem ressurreição, não há cristianismo. A certeza da ressurreição é a grande fonte e marca da esperança.
“Eu sou a vinha verdadeira”, o sangue da aliança; “antes de Abraão ter existido já Eu Sou.” Como muitas vezes no Novo Testamento, Jesus lembra — ou os Evangelistas assinalam — passagens importantes do Antigo Testamento. No Livro do Êxodo (3:14), Deus diz a Moisés: “Eu Sou o que Sou.”
Nos seus curtos anos de vida (esquecemos como era jovem quando foi crucificado) Jesus é eterno, como Pai, omnipresente, como Espírito Santo. Ele É, na plenitude, que inclui toda a existência da Humanidade e do Universo, com os espíritos e a caridade.
Volto a Pascal: “A distância infinita dos corpos aos espíritos representa a distância infinitamente mais infinita dos espíritos à caridade.”
Jesus Cristo morreu para que nos amássemos uns aos outros. Morreu por amor a nós, e esse amor retira esta Sexta-feira Santa das sombras e a transforma em fonte de meditação e vida. No mistério da encarnação e da ressurreição.
A transparência e a liberdade
A revelação de que a assessoria política de uma firma inglesa incluía a manipulação de 50 milhões de contas do Facebook me faz retomar algumas reflexões que escrevi há quinze anos e não perderam atualidade.
O paradoxo do século XXI parece residir no feito de que o indivíduo considerado livre aparece como nunca destinado à opressão. Ele é livre e soberano, porém ao mesmo tempo frágil e vulnerável. E passa a ser o único culpado pelas decisões que toma.
A exigência de transparência na sociedade de informação se tornou uma exigência fundamental. Porém, se por um lado dá poder aos cidadãos e permite acompanhar a discussão do poder por meio da difusão do controle, por outro, em nome da transparência, o poder constrói uma série de sombras bárbaras que não são identificáveis nem controláveis.
A diferença entre espaço público e privado — o direito do cidadão à privacidade — é considerado como garantia fundamental das liberdades públicas. Cada ser humano deveria ter assegurado seu sigilo, sendo a inviolabilidade de correspondência e a proteção ao domicílio ícones dos direitos fundamentais.
A definição do equilíbrio fundamental entre a abertura que enriquece, porém debilita, e a sombra que empobrece, porém consolida, entre a transparência que ilumina a comunidade e o sigilo que a protege, se descreve por meio de novos termos, e definir este equilíbrio se torna impossível.
O cidadão que luta por mais transparência para exercer seus direitos e deveres acaba tendo que ser, ele mesmo, transparente. A sociedade de informação o posiciona diante de alternativas cruéis: ou opta pela solidão de um ermitão, e oculta todos seus sigilos, porém em liberdade, ou pela escravidão do ascetismo, ou ainda revela-se em cada um de seus personagens com o risco de ser preso pelos fios de uma tela invisível. Evitar que os fios se encontrem, fragmentar a informação de si mesmos, multiplicar suas custódias e impedi-las de estabelecer relações entre si, se torna então a única garantia fundamental da liberdade.
A melhor maneira de prevenir eventuais abusos não é concentrar a informação, o que é frágil. Deve-se, ao contrário, dispersá-la de maneira que fique longe de qualquer predador. Para que não se torne absoluta, a transparência deve ser organizada e fragmentada.
Ela deve adquirir os contornos de uma comunidade particular e dividir-se, seguindo lógicas funcionais, de maneira que ninguém, nem qualquer autoridade, possa acessar a soma das informações relativas a uma pessoa. Não somente cada pessoa tem direito a sua parte do sigilo, como a comunidade será definida pelos sigilos que ela compartilha com seus membros. Assim, um novo dilema se apresenta a cada pessoa, pois quanto mais aceitamos compartilhar, mais nos tornamos transparentes, mais ficamos sob a vigilância do grupo, e quanto mais protegemos nossa parte do sigilo, menos solidariedade podemos pedir ao grupo.
Quando, no entanto, a tecnologia que nos é oferecida como segura para revelarmos nossos gostos e segredos é passada a manipuladores de nossas opiniões, mergulhamos não numa ducha fria, mas num mar glacial de outra categoria: agora o que temos a temer não é o Estado, mas devemos temer pelo Estado, que, incapaz de nos proteger, torna-se vulnerável aos assaltos soturnos e impalpáveis das ambições.
A verdade e a mentira
As palavras que estão hoje mais em moda são fake news (notícias falsas) e pós-verdade(verdades também falsas) — no fundo, nada mais são do que uma fórmula atual de mentira.
Em 2003, fui convidado pelas Nações Unidas para participar de um congresso mundial, em Bilbao, norte da Espanha, para discutir a influência da internet na violação dos direitos individuais, o fim da privacidade, invadida pelas redes sociais.
Sustentei que a maior de todas as ameaças e suas consequências era a que pesava sobre a Verdade.
Hoje sobre um mesmo fato existem tantas versões e tantas verdades que ficou difícil saber onde está a verdade. Em geral, ela é escolhida por formadores de opinião pública, sem que eles mesmos saibam onde está o fato verdadeiro.
Marshall Mcluhan, quem primeiro abriu caminho para louvar e denunciar os perigos da sociedade virtual — ainda nos anos 60 —, já advertia para a possibilidade do que ele chamava de “pseudofato”.
É melhor darmos um exemplo do que explicar o que era isso. Se numa cidade existisse abundância de alimentos, mas a televisão mostrasse uma prateleira vazia, dizendo que a falta de alimentos e a fome dominavam numa cidade, esta versão era maior do que a verdade.
Isto me leva a pensar sobre nosso Estado e aquilo que o Padre Vieira fez e que nos dói até hoje: lançar sobre o Maranhão, no famoso sermão dos MM, o M da Mentira, o M da Maranha, e o M de Maldizer. Chegou ao exagero de afirmar que aqui até o Sol mentia.
É o que se tem visto nos últimos anos. Eu tenho sido talvez a vítima maior desses hábitos, pois resolveu-se atribuir o que era bom na nossa atuação para transformar no que era mal. Hoje, todos vivemos sob o império do medo. Medo da (in)segurança pública, das agressões, do ódio, da inveja e da perseguição, sob a égide do poder público.
Quantos desempregados? Quantas famílias em sofrimento?
Por politicagem, sob a invocação do comunismo, transformam-se divergentes e adversários em inimigos, adotando a teoria leninista de que à política, ao contrário do que dizia Clauzewitz,, deviam ser aplicadas as leis da guerra: inimigo é para ser morto, exterminado, sem que se julgue o que é justiça ou injustiça.
Para não me alongar mais, vou invocar a própria História do Maranhão e, em vez de Vieira, o Marquês de Pombal, que recomendou ao seu sobrinho Melo e Póvoas, quando o nomeou governador do Maranhão, o seguinte:
“Engana-se quem entende que o temor com que se faz obedecer é mais conveniente do que a benignidade com que se faz amar. A obediência forçada é violência. Em qualquer resolução que tiver que tomar, adote três coisas: prudência para deliberar, destreza para dispor e perseverança para acabar.”
Como eu durmo tranquilo por nunca ter perseguido ninguém, por ter nascido com a absoluta incapacidade de ter ódio e perdoar os inimigos, sabendo que tudo que se fez aqui em benefício do nosso povo tem a minha mão, e não a da “oligarquia discriminadora”, que foi — e é — uma fake news (notícia falsa) que alimenta tantos pobres de espírito.
É a velha mentira de ontem e de hoje.
O gosto do pudim
Estamos em ano de alternância do poder.
Eu tenho a noção de que a Presidência da República é um cargo muito difícil de exercer. Henry Stimson, que foi ministro da guerra de Franklin Roosevelt, dizia uma frase célebre: “A prova do pudim só se faz comendo” — só sabe o gosto do pudim quem o provou.
Os que desejam ser presidentes não sabem o gosto da presidência. Eu já fiz essa prova e confesso que não é agradável.
Governei o País em tempos de tempestade.
Sou uma espécie rara, em extinção — sobrevivente de um período de transição do autoritarismo para a democracia. E transição é a tarefa mais difícil da política. Ela tem sido o túmulo de grandes estadistas: transforma heróis em vilões, santos em demônios, mártires em inquisidores, democratas em ditadores e reduz a cinzas grandes lideranças.
Na transição tudo tem a marca do Já. Mudança já. Desenvolvimento já. Pleno emprego já. Paraíso já para agora. A panela ferve. Tira-se a tampa, sai calor, fumaça, tudo queima e está em ebulição. A violência é uma sedução permanente. A demagogia ganha foros de seriedade. Propõem-se soluções simplistas para problemas insolúveis.
O Brasil, depois desse período, ultrapassou o gargalo institucional.
Não foi um passo de circunstância, foi uma opção definitiva de sua História. Há uma consciência civilista consolidada: há uma opção liberal pela economia de mercado, acabou-se a gangorra militarismo versus populismo. O jogo democrático passou a ser o único jogo. Não há opção conspirativa, não há lugar para grupos de ação extremista. O País viveu o choque da democracia e saiu em paz e ileso. É claro que pagamos e continuamos a pagar altos custos políticos, econômicos e sociais.
Mas temos muitas interrogações: qual o espaço que vamos ocupar? Quando superaremos as crises? Qual nosso lugar no panorama mundial? Como apressar a solução dos trágicos problemas sociais e econômicos? Estas perguntas nos levam a outras.
Por exemplo: a posição dos Estados Unidos neste processo. No meu tempo, provei o sabor dos conservadores republicanos — que dizem ser melhores para nós, contradizendo minha experiência. Ronald Reagan e o primeiro Bush nunca facilitaram nossas relações ou nos apoiaram na cena internacional. Trump, no entanto, reconheço, faz com que o mundo daquele tempo pareça menos amargo. A carga de dificuldades pesa mais para quem está começando uma recuperação.
A ninguém interessa essa situação. É preciso criar novos espaços e superar a agenda de sanções e protecionismos que caracterizou a década de 80 e marca novamente as relações com o governo norte-americano. Cabe a nós construir, criar, imaginar uma agenda positiva, aberta a todas as formas de cooperação.
Eu sou político e poeta. Não deixo de acreditar no impossível, nem de sonhar com otimismo.
Não julgar por apenas uma estação
Um homem tinha quatro filhos. Ele queria que aprendessem a não julgar as coisas de modo apressado e, por isso, mandou cada um em uma viagem para observar uma certa amendoeira que estava plantada num lugar distante. O primeiro filho foi lá no inverno, o segundo na primavera, o terceiro no verão e o quarto no outono. Quando todos voltaram, os reuniu e pediu para que cada um contasse o que tinham visto. O primeiro disse que a árvore era feia e retorcida, morta, talvez. O segundo disse que não, ela estava recoberta de botões verdes e cheia de promessas. O terceiro filho discordou, disse que ela estava cheia de flores e o cheiro era doce e agradável. O quarto filho discordou de todos: a amendoeira estava cheia de vida e de frutos. O pai explicou aos filhos: “Vocês estão todos certos, porque viram a árvore somente numa estação de sua vida. Porém não se pode julgar uma árvore, ou uma pessoa, por apenas um momento. O amor e as alegrias da vida, como também as provações e os sofrimentos, podem ser avaliados somente ao final, quando todas as estações estarão completas. Se vocês desistirem quando for inverno, perderão as promessas da primavera, a beleza do verão e os frutos do outono.
No segundo domingo da Quaresma, encontramos sempre o evangelho da Transfiguração. Desta vez, conforme o evangelista Marcos. Em geral, entendemos esta experiência tão singular, oferecida aos três discípulos Pedro, Tiago e João, como uma antecipação da visão celestial. Um convite a não julgar Jesus pelo escândalo da cruz, mas a aguardar a glória da ressurreição. O trecho inteiro está repleto de referências ao Antigo Testamen to. A montanha, a nuvem e as tendas, lembram o caminho do povo no deserto. Foi um tempo de provações, mas também de esperanças e descobertas. O povo viveu momentos de luz e de revelações e momentos de tentações e incertezas, mas Deus sempre se revelou paciente e fiel às suas promessas. O que manteve os israelitas no caminho certo, até a terra prometida, foi o diálogo com Deus. Ele falava com Moisés e este ao povo. Demoraram quarenta anos, mas chegaram.
O que mudou, agora, e o que continua? Do lado de Deus o que mudou é que agora ele fala através do Filho amado. É a Jesus que devemos escutar, nas suas palavras e no seu agir. Ele fala com sua vida e sua morte. O que continua é o compromisso, por parte do povo, dos cristãos que somos nós, de escutar a sua voz, de entender as suas palavras e viver seguindo o seu exemplo. Esta ainda é a parte mais difícil. O Êxodo, que podemos chamar também de “caminho pascal, de m orte e ressurreição”, deve ser algo que, aos poucos, muda a nossa vida. O importante é caminhar, fazer “descer”, no dia a dia, a maravilha do amor de Deus. A visão celestial, o encontro pleno com Deus, é a meta final da nossa vida, mas desde já deve ser a luz que norteia o nosso caminhar. O “bom” já está dentro de nós, escondido no coração de cada ser humano, quando aprendemos a dar atenção aos nossos anseios de paz, alegria, amor e fraternidade, quando construímos o bem para todos e não procuramos somente riquezas materiais e passageiras.
Contudo, para nós cristãos, algo mais deve acontecer. Pelo batismo, nós já estamos em comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não estamos mais sozinhos. Escutamos a sua Palavra, alimentamo-nos com a Santa Eucaristia, experimentamos na comunidade de fé a força que vem da partilha e da comunhão fraterna. Assim deveria ser. O cristão deve espalhar ao seu redor um pouco da luz de Cristo, das suas palavras, do seu amor sem medida. De outra forma, os irm&ati lde;os, que encontramos nos caminhos da vida, não vão acreditar que subimos a montanha, encontramos o Senhor e de lá descemos para viver o que escutamos, aprendemos, descobrimos. Ser cristãos é fadigoso, mas vale a pena. É uma missão permanente. Sempre subindo ao encontro com Deus e sempre descendo ao encontro com os irmãos. Sem pressa, sem julgar vitórias e fracassos antes do tempo. Sempre animados pela esperança de brilhar, um dia, com Jesus, o crucificado ressuscitado. Ele, o amor, que venceu todo mal e pecado, que venceu a morte.
Ajoelhou tem de rezar
O Tempo da Quaresma começou. São os quarenta dias que antecedem a Páscoa, a Ressureição, que, como diz São Paulo, é a essência do catolicismo, chegando mesmo a afirmar que “sem ressureição não há cristianismo”. Este número de quarenta, cheio de significado no Antigo Testamento, também está ligado a várias passagens da vida de Cristo. Seus pais José e Maria levaram quarenta dias para levá-lo ao templo, quarenta dias, como dizem S. Lucas e S. Mateus, levou Jesus no deserto meditando antes de entrar em sua vida pública, e quarenta dias levou o Cristo para subir ao Céu depois da Ressureição.
A Quaresma também é tempo de conversão dos ateus, dos agnósticos, dos ímpios e dos que seguem toda forma de não acreditar em Deus.
Marx dizia que a religião era o ópio do povo, porque o levava a esquecer os problemas materiais e a se dedicar a uma esperança vã de um ser superior, que lhe havia dado a graça de criar o mundo e criar a nossa vida.
No Maranhão estamos vendo o milagre da conversão dos comunistas, renegando o materialismo para acreditar em Deus, e ajoelhar-se para receber a benção quaresmal. São raros os milagres que acontecem em terras nossas, como esse a que nós estamos assistindo. Quando o Maranhão se formou, Nossa Senhora transformou a areia da praia em pólvora. Agora nós estamos vendo o círculo de pastores evangélicos impondo as mãos sobre as autoridades para que elas cumpram o ditado popular: “Ajoelhou tem de rezar”. E eles, contritos, rezaram, e na quarta-feira, foram receber as cinzas, quando o sacerdote proclama as palavras eternas que conscientiza os homens no ritual cristão: “Memento, homo, quia pulvis es et tu in pulverem reverterem.” — “Lembre, homem, que sois pó e em pó vos haveis de tornar.”
Isto nos deu uma visão de homens contritos, de tal modo que o Prefeito baixou tanto a cabeça que parecia mais um daqueles presos da Lava Jato, escondendo o rosto para não ser reconhecido, com o japonês ao lado.
E a conversão aconteceu, saíram de casa, brincaram o Carnaval, não deram dinheiro para os outros brincarem e se recolheram à meditação, deixando o comunismo, Marx e quejandos chupando o dedo, enquanto eles entravam na área das bem-aventuranças, passando pela ala dos santos e das virgens.
O glorioso poder dos fariseus que fingiam e a quem Jesus Cristo apostrofou: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos. Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia!” (Evangelho segundo São Mateus 23, 27-28 — Palavras de Jesus Cristo!)
Depois do dilúvio, cessada a chuva, foram necessários quarenta dias para que as águas baixassem e os homens — e os outros animais — pudessem pisar em terra firme. É o tempo dos milagres.
Oh! Maranhão de Nossa Senhora da Vitória, bravos agradecemos a conversão dos infiéis e que abandonem o ódio e as penas de pavão.
Ajoelhou, tem de rezar em grego: “Kyrie eleison! Christe eleison!”
O ano vai começar
O Brasil tem calendários diferentes dos resto do mundo, a começar pelas estações do ano.
Aqui só temos inverno e verão, inverno quando chove, verão, quando as chuvas não aparecem, e se surgem são atribuídas às frutas: do caju, da manga e assim por diante.
Estas são sempre seguidas de muito trovão e raio e passam rápido.
Depois, as nossas divisões do ano são marcadas pelas festas, santas ou pagãs. O Carnaval marca os dois primeiros meses. Depois vem a Quaresma, que dura quarenta dias, até o Domingo de Ramos. A Semana Santa culmina com a celebração da Eucaristia na Quinta-Feira, do Sacrifício na Sexta-Feira, a Aleluia e a Páscoa; a Paixão de Cristo sempre encenada e movimentando a população, como as procissões do Bom Jesus da Cana Verde, do Encontro e, para misturar tudo, a malhação do Judas — um Carnaval fora de época, com os bailes das aleluias, uma “páscoa” regada às toneladas de chocolate, referência especial de Gramado, e que os baianos não deixam passar em branco. Depois vem o São João com as quadrilhas, os forrós e as danças de São Gonçalo das Moças.
Se tem Copa do Mundo aí é que a coisa pega fogo, porque o país para de vez e é Carnaval todo dia, com ruas enfeitadas, bandeirinhas e bandeirolas, cerveja em toda porta de casa com amigos e aderentes, todos na torcida e improvisando botequins nas calçadas e em todos os andares dos edifícios.
Vem o 7 de setembro e o patriotismo por uns dias toma conta, sobretudo da meninada, e vai ao máximo se tem Esquadrilha da Fumaça.
Em anos de eleição este mês é o auge de trabalho de moças e moços, que, de bandeiras nas mãos, espalhados por todos os congestionamentos de trânsito, gritam o nome de candidatos de que nunca ouviram falar, nem sabem de quem se trata, tudo por cinquenta reais por tarde!
Chega outubro com as grandes concentrações religiosas do Círio de Nazaré, de Aparecida, do Juazeiro do Padre Cicero. Quando começa novembro começamos a ouvir longe os primeiros sinais dos sinos do Natal.
Afinal, depois de falarmos do ano inteiro, o essencial é dizer que o ano realmente começa depois do Carnaval. Essa é a festa das festas, aquela de que até hoje se discute quando começou. Os mais fanáticos dizem que vem das famosas bacanais romanas, importadas da Grécia, em que se homenageava o deus Baco, regadas a vinhos e orgias, e que de tal modo se excederam que o Senado Romano as suspendeu no ano 186 antes de Cristo. Outros o ligam às Saturnálias, também livres e pândegas, festas do deus Saturno, que também eram célebres na antiguidade.
Não vamos dizer que o nosso Carnaval seja tanto …assim… como aquelas festas do passado, porque a nossa só faz com que as mulheres de todas as idades mostrem seu corpo e as novas, queimadas de sol, aproveitem para também mostrar os seios, guardando o essencial, tudo para se preparar para as abstinências da Quaresma…
Outros povos comemoram também outros calendários, como o chinês, o judaico, o ortodoxo Juliano e um do meu avô, que dizia que ano novo era o do seu aniversário, nada do começado em janeiro.
É assim que o ano passa, e vai começar agora, neste ano que tem Carnaval, São João, Copa e eleição. Haja paciência para tanta monotonia!
A cada um seu Carnaval
O Carnaval é um ser vivo, tem sua dinâmica, sua transformação e é influenciado pela geografia, pelo clima, pela natureza, pela gente que o faz e desfaz. Não vem da Roma das orgias saturnais nem da Grécia das bacanais e dionisíacas. É do Brasil mesmo.
Há vários e incontáveis Carnavais. Um é da vila mais longe no meio da água da Amazônia, onde se pinta o corpo, faz baile no rio e sexo na mata. Outro é o de Pernambuco, onde as crianças já nascem com as articulações próprias para enrolar as pernas no ritmo do frevo que não se sabe de onde vem ou como começou e que o Capiba aproveitou para compor excitantes tocados.
O Carnaval da Bahia é o da Bahia, não há como descrever. É ainda Moraes Moreira, Ivete Sangalo, Chiclete com Banana, Carlinhos Brown e os Filhos de Gandhi.
O do Maranhão, com os nomes dos blocos picantes, cada um querendo ser mais criativo e escatológico, como o Siri-na-Vara, o Máquina-de-descascar-alho. E o Carnaval da roça, com galinhas mortas e peladas lanceadas em varas em honra a São Belibeu, o Bicho-Terra e a riqueza de nossa imaginação.
No Amapá o Carnaval também é uma festa da imaginação em cada lugar e em cada um. É muito criativo, que o digam o Futebol à Fantasia, no Trem e, claro, a Banda na terça-feira gorda…
O do Rio é um teatro a céu aberto, enredo que não se entende, o Marquês de Sapucaí caindo no samba na Marquês de Sapucaí, e na homenagem a Cervantes esse verso: “Vencer mais um gigante nessa história surreal”, que mistura “meu bom cangaceiro” com honra do negro, Graciliano, Rosa e Machado, e canhões. E também os blocos, que retornaram com toda a força no fim do século passado e hoje juntou aos antigos, como o Cordão da Bola Preta e a Banda de Ipanema, os novos “tradicionais”, como o Suvaco do Cristo, o Monobloco, o Simpatia é Quase Amor.
Morreu um irmão de minha avó num sábado de Carnaval. Um tio meu, farrista e carnavalesco, já tinha mandado fazer a fantasia e pediu à família: “Só me comuniquem quarta-feira, para começar meu luto.”
É assim o Carnaval. Nem os cemitérios escapam da fuzarca. Desde sempre, blocos de bêbados os invadem, para despertar os mortos com as velhas marchinhas do “Eu quero mamar” ou “Chiquita bacana lá da Martinica”.
Hoje o Carnaval é uma coisa. Ano que vem é outra. Sinto ainda falta do Joãozinho Trinta, não dele mesmo, mas das mulatas com seus corpos belos, esculturas de Deus, substituídas por esculturas de bisturi e com mais lantejoulas que gingado.
É difícil entender o Brasil sem o Carnaval. É a cultura da convivência, do amor ao corpo, da explosão de alegria. Isso é viver.
Enquanto todos brincam, eu vou passar o carnaval aqui em minha cama de hospital, onde me recupero de uma das piores coisas que podem acontecer com os velhos: queda. Ao menos espero estar protegido do Aedes aegypti e da dengue, da chicungunha e da febre zika.
É. A cada um o seu pecado.
Eu te conheço Carnaval
Eu tinha um tio Ferdinand, funcionário do Banco do Brasil, que era completamente louco pelo Carnaval. Para ele, o reinado de Momo começava no dia 31 de dezembro, quando nos costumes do velho Maranhão, abriam os bailes populares, de dominó, em que as mulheres reprimidas pela discriminação tinham uma oportunidade de, sob o anonimato, ”rodar a baiana”, e outros, homossexuais banidos e martirizados pela segregação, vestidos de mulher, soltar “a franga”. O baile de máscara acabou e foi até uma marchinha do tempo do Cafeteira (Cafeteira não quer/ máscara neste Carnaval!) e começou a modernidade menos carnavalesca e mais luxuosa das escolas de samba.
Dos bailes populares o mais célebre era do Moisés, uma figura simpática e alegre que conhecia todos os segredos e desejos que nascem e morrem no Carnaval. O Moisés todo ano abria o seu baile, sempre num sobradão desalugado, com grande pompa. Não só meu tio, meu pai e eu também, éramos seus fregueses. Eu menos do que eles, porque sempre fui retraído para a folia.
Outro dia, escrevi aqui sobre os folguedos populares e sobre a identidade brasileira e afirmei que o forte do Brasil era a música e incluí o Carnaval entre as referências maiores. O Carnaval é a mais alta manifestação da cultura da alegria do brasileiro, momento para a picardia e o riso, além de outras coisas boas que ele desperta. Com algum exagero, hoje, tendem alguns radicais religiosos e o Ministério da Saúde a julgá-lo um bacanal. Veja-se os anúncios que o Ministério divulga nas campanhas dos preservativos: “Tenha um Carnaval seguro, use a camisinha”. É até uma negação do significado de Carnaval, que todos afirmam vir do latim CARNE VALE, adeus a carne, porque anunciava um período que precedia a quaresma, tempo de jejum, inclusive do corpo.
Não sei por que me lembrei associar este Carnaval ao meu tio Ferdinand. Ele me traz à memória o seu bloco “O Bando da Lua”, sua participação no Corso lendário de domingo gordo, quando desfilava no carro da Chicó, entre aquelas mulheres de saias grandes colocadas para fora das carrocerias dos carros enfeitados. Seu espírito boêmio incorpora uma estória que fazia parte da história da nossa família. Um tio-avô nosso morreu no sábado de Carnaval, em São Bento. Ele recebeu um telegrama com a triste notícia. Leu e disse à esposa: “Guarde este telegrama e não diga nada a ninguém. Na quarta-feira de cinzas abra e comunique os amigos. Feche a metade da porta – como era costume – e vamos começar o luto”.
E esbaldou-se na farra durante o Carnaval. Algum abelhudo descobriu a morte do velho e cobrou dele, que pulava e não cantava no Bloco: “Canta Ferdinand!”, e ele respondia: “Não posso, estou de luto”.
Todos à folia.