José Sarney

Mundo, Vasto Mundo

Nova Iorque. — Estou aqui nos Estados Unidos acompanhando minha esposa, que se submeteu a uma difícil operação no joelho, buscando voltar a andar, ela que há quatro anos está em cadeira de rodas. Mas o nosso interesse político está sempre ligado.

A primeira coisa que constato é a verdade do nosso velho ditado: “Aqui e lá más fadas há”. Eu estou no lá (EUA), mas também no aqui (Brasil). O que nós chamamos nossas desgraças não são somente nossas, mas de todos.

Aqui (EUA) vemos o que já se processa há muitos anos no mundo ocidental, e não sabemos para o que caminhamos, com uma forte tendência que nos aponta para o fim da democracia representativa. O modelo que exercitamos de representantes do povo, eleitos periodicamente, está agonizante. Em todo lugar os deputados são alvos de profunda desmoralização, acusados de corrupção e de gozo de privilégios, prato diário da imprensa. A internet, através das redes sociais, e a televisão, como formadora da opinião pública, tornaram-se os principais interlocutores da sociedade democrática.

A pergunta que fazem é quem representa o povo: o parlamento, a imprensa ou a mídia como um todo?

Todas as respostas demonstram que estamos não num mundo em transformação, mas num mundo já transformado. Tudo mudou e muda. Sabemos que os parlamentos vivem momentos difíceis e de perplexidades. Mas foi neles que a democracia moderna se consolidou e passou a existir de fato, a partir da notável Magna Carta (1215), imposta ao Rei João Sem Terra, na Inglaterra. Daí em diante chegou-se à instituição do parlamento, depois exportado para o mundo todo, acoplado à fórmula de Montesquieu dos três poderes: legislativo, executivo e judiciário, um fiscalizando o outro, os charmosos checks and balances — fórmula que surge na época da criação da Constituição americana. Mas o que vai substituí-los? Eu, há alguns anos, analisando este fenômeno disse, em discurso no Senado, que as tendências estavam a indicar a democracia direta, isto é, onde cada um governaria pessoalmente. Mas como isso ocorrerá? Será que a tecnologia vai tornar possível que do celular cada cidadão possa tomar decisões de Estado? Até chegarmos lá muita água vai rolar.

Aqui (nos EUA), como no Brasil, o executivo e o legislativo estão em grande desgaste. O presidente Trump é alvo de todas as acusações, que invadem sua família, seu passado de aventureiro econômico, sua predileção por atrizes pornográficas e seus negócios obscuros. TV e jornais se encarregam disso. A Justiça já está chamada à colação, e os procuradores também dela participam. Apenas a Corte Suprema, como é da tradição americana, não fala, não ouve, não opina e mantém sua posição de proteger a Constituição, que aqui é sagrada: tem mais de duzentos anos, e é muito difícil emendá-la.

Para complicar tudo isso, Trump, depois da desastrosa ocupação do Iraque por W. Bush,desencadeou agora outra perspectiva de tensão nuclear, denunciando o acordo do Irã.

Graças a Deus, estamos livres disso desde que Alfonsín e eu acabamos com a disputa pela bomba nuclear entre Brasil e Argentina, prestando à humanidade o grande serviço de desnuclearizar a América do Sul — que eu consolidei propondo e aprovando na ONU a Resolução que considera o Atlântico Sul área livre de armas nucleares.

E, assim, vejo os EUA muito diferentes daquele que visitei pela primeira vez, em 1961, passando três meses nas Nações Unidas, como membro da Comissão de Política Especial da XVI Assembleia Geral, onde anunciei, pela primeira vez naquela Casa, a posição do Brasil condenando o apartheid, a famigerada política da África do Sul de segregação dos negros.

Mas este é um país extraordinário, que não podemos deixar de admirar e louvar, que fez com que surgisse da América a nação dos direitos humanos, da liberdade, da igualdade e dos grandes ideais democráticos.

A condição humana

A condição humana é uma expressão que pode significar várias coisas: a fragilidade do homem e a inevitabilidade da morte, com Montaigne; o engajamento revolucionário, a solidão, o medo, como André Malraux num dos romances mais importantes do século XX; para os mais humildes, pura e simplesmente a sobrevivência, a sua situação na sociedade.

O primeiro motivo do político é esta visão da condição humana. É a sua transformação, a busca da felicidade — no fecho da fórmula feliz que Thomas Jefferson colocou na Declaração de Independência americana —, que nos leva a lutar. O medo da morte, que nos leva a construir a sociedade, é superado pelo medo da vida, que nos expulsa dela, que exige de cada um mais que o esforço e o trabalho, a sorte, o acaso, para poder levar para casa o pão de cada dia. O medo do desemprego.

Foi essa a ideia que me levou a afastar sempre as receitas clássicas de combater a inflação com recessão.

O Brasil enfrenta, hoje, como seu problema mais grave, uma crise de emprego terrível. A grande dificuldade do governo federal tem sido encontrar um equilíbrio entre a solução de crescer com inflação e a de acabar com a inflação para crescer. Com esta opção, temos hoje 14 milhões de pessoas desocupadas, entre as que procuram emprego — as que nem procuram mais são três milhões. A taxa de desemprego é de 13,1%. Mais de quatro milhões desistiram de procurar emprego. Mais de 26 milhões de pessoas queriam trabalhar mais, mas não conseguiram. Pensem em cada pessoa sem esperança, e depois juntem a ela cada uma das outras, .

Presidente da República, tive bem presente essa ameaça, para mim a mais danosa, pois destrói a dignidade do homem. Vínhamos de grandes níveis de inflação e de desemprego. Resolvi buscar outra solução, e para isso mandei estudar os planos de Israel e da Argentina, que tentavam caminhos novos. Fiz o Plano Cruzado, com a coragem do congelamento de preços. Sem ele não teríamos saído da recessão. Com ele alcançamos o menor nível de desemprego de nossa História — 2,16% —, e o mantivemos baixo até o fim do governo, tendo uma média de 3,59% — praticamente o pleno emprego. A inflação — preço que pagamos — vinha com correção monetária, isto é, o salário, no fim do mês, comprava o mesmo. Embora isso complicasse a economia, mais complicaria não ter salário no fim do mês, e, portanto, as compras não existirem.

E lá no Maranhão?
O emprego estava crescendo no período de Roseana. A taxa de desocupação caíra em 2014 para 7,4%. Depois de seu governo ela subiu: em 2015 foi para 8,6%; em 2016 para 11,7%; em 2017 para 13,3% — 359 mil pessoas. Em São Luís ela subiu de um nível já muito alto — 11,3% —, para se tornar o maior das capitais brasileiras, 19,8%.

Esta semana novos índices retratam a situação terrível de nosso Estado e de nossa gente: cresceram os índices de pobreza extrema. No Estado, hoje, são cerca de um milhão e 200 mil pessoas; e em São Luís, onde ela explodiu, aumentando 48%, são 147 mil.

Esses números, é claro, não nos alegram. Ficamos com pena do povo maranhense, na última das situações, que é o desemprego. A “mudança” veio, mas foi essa.

Volto a lembrar que é o sofrimento, a situação de cada pessoa que tem que ser levada em conta pelo político. A frieza dos números obscurece a carga trágica que cada uma delas carrega, a dor cotidiana, o desânimo, a desilusão, a ansiedade, a fome, as doenças. A condição humana, que cada um deseja transformar para alcançar a felicidade, não pode ser abstraída da realidade pessoal. Ela é a soma de todos os infinitos sentimentos humanos, de suas condições materiais, de sua força espiritual. É a imensa lição que essas pessoas nos dão: apesar de tudo, ter esperança.

Nem medo nem provocação

O processo democrático no Brasil não conseguiu aprofundar-se depois da redemocratização do País.

O sistema eleitoral brasileiro, com seu bolorento anacronismo, só tem contribuído para que o gargalo institucional que atravessamos, depois de sepultar as intervenções salvacionistas dos militares — iniciadas com a República —, volte a figurar em nossas preocupações. Não soubemos fazer uma reforma política que restaurasse e fortificasse os partidos e possa assegurar a execução de um programa de governo que tenha sido aprovado pelo povo através da eleição. Esta não pode ser esse espetáculo em que se transformou, no qual o êxito está no dinheiro, na capacidade de arregimentar apoios quase sempre tocados por interesses subalternos.

Enquanto a reforma não ocorre, ficamos expostos à violência dos debates, aos insultos pessoais, em que o objetivo maior é desqualificar o adversário e não valorizar as ideias.

Não estou falando do quadro estadual, minha análise é do processo eleitoral brasileiro, de cujo debate participo há 60 anos, quer apresentando projetos, quer advogando a necessidade de melhorar o sistema eleitoral. Data de 1977 o meu projeto do voto distrital. Passei a defender o modelo alemão, em que podemos fazer a metade da representação por votos proporcionais e a outra metade por lista partidária. Mas para isso teremos de criar partidos com democracia interna, que assegure uma vida partidária e a formação de lideranças, substituindo os cartórios de registro de candidatos que são, na realidade, essa multidão de siglas.

A República, que não teve povo quando começou, resolveu fazer as eleições com declaração de voto. O eleitor saía da seção já com cópia autêntica de seu voto, para apresentar a quem de direito. Não havia erro. Mas, se escapasse algum, ele era corrigido: a Comissão de Reconhecimento de Poderes era a guilhotina que garantia a fidelidade.

Quem operava isso era o gaúcho Pinheiro Machado. Era um homem de mediana cultura, péssimo orador, falava baixo e sem emoção, pausado e lento. Por que então tornou-se o centro das decisões nacionais? Não tinha as qualidades intelectuais da elite republicana, mas possuía uma que era a mais necessária para o momento: saber comandar e chefiar. Sagaz, valente, homem de lança e palavra. Ele conseguiu firmar-se na posição de operador dos instrumentos que a República montou para sobreviver. Dizia que era contra as intervenções para agradar os governadores, porque estas eram espadas em suas cabeças, mas delas se utilizava para o jogo entre facções e fidelidades.

Virgílio de Melo Franco, que foi um dos líderes do fim da República Velha em 1930 e do fim do Estado Novo em 1945, foi, muito jovem, apresentado a Pinheiro Machado, que lhe pretendeu passar lição, dizendo que precisava estudar para ser alguém. Virgílio retrucou que sabia de exemplo do contrário… Ele gostava de contar que viu Machado passar de carro, em meio a vaias, e dizer ao motorista, enquanto fazia que lia um documento:

“Ande nem tão depressa que pareça medo, nem tão devagar que pareça provocação.”

O tempo de Pinheiro Machado passou. Hoje temos a urna eletrônica, o voto é secreto. Mas as campanhas precisam ser livres, sem ameaças de cacete, como se fazia no tempo de João Lisboa. Eleitores e candidatos não podem ter medo de votar. A democracia precisa de bom senso, sem demagogia e sem provocação.

A raiz da crise

A Constituição de 1988 está completando 30 anos. Todos sabem que dela fui um crítico firme durante sua elaboração e depois.

Agora estamos atravessando a maior crise que o País já viveu no âmbito político e econômico. Eu atribuo o que está passando o Brasil à Constituição de 88 e isso eu disse com todas as letras, pagando caro quando, iniciado o segundo turno de votação do projeto, afirmei, em pronunciamento por rede de rádio e televisão, dirigindo-me aos constituintes: “O país vai ficar ingovernável” — e ficou. Foi um desastre anunciado. Vale recordar minhas palavras daquele tempo:

“Primeiro: há o receio de que alguns dos seus artigos desencorajem a produção, afastem capitais, sejam adversos à iniciativa privada e terminem por induzir ao ócio e à improdutividade.

“Segundo: que outros dispositivos possam transformar o Brasil, um país novo, que precisa de trabalho, em uma máquina emperrada e em retrocesso. E que o povo, em vez de enriquecer, venha a empobrecer; e possa regredir, em vez de progredir.

“Em suma: OS BRASILEIROS RECEIAM QUE A CONSTITUIÇÃO TORNE O PAÍS INGOVERNÁVEL. E isso não pode acontecer.

“O País sabe que nós não dispomos de recursos suficientes para atender a todas as necessidades e finalidades do Estado.

“A futura Constituição, aprovados esses dispositivos, agrava o quadro ao determinar uma perda de receita próxima de 20% já em 89. No plano interno, em valores de junho deste ano, os impactos diretos e imediatos sobre o orçamento geral da União ultrapassam dois trilhões e 200 bilhões de cruzados — cerca de 12 bilhões e 600 milhões de dólares. Este número representa o dobro do que sobra à União na arrecadação do IPI e do Imposto de Renda, ou duas vezes os programas federais, estaduais e municipais de saúde. Ou 32 anos de programa de distribuição gratuita de leite. Ou, por fim, o dobro do déficit orçamentário da União este ano.

“A situação da seguridade social é igualmente difícil. Muitos dos seus gastos não podem ser avaliados. Mas, a parte calculável permite estimar custos adicionais da Previdência em mais de um trilhão de cruzados por ano (5,6 bilhões de dólares). […]

“Eu não estou pensando no meu Governo. Ele será o menos atingido. O que eu estou pensando é no País, no futuro, nas dificuldades dos governos futuros, que não terão condição nenhuma de conduzir esta grande Nação, como nós desejamos que ela seja conduzida.

“Como Presidente, eu tenho de visualizar o que é permanente, não o que é transitório.Tenho que enxergar além do meu mandato e tenho que evitar, na trajetória, que se instalem caminhos inviáveis, inconvenientes ao interesse nacional.

“Refiro-me, particularmente, à brutal explosão de gastos públicos decorrentes de benefícios desejáveis, que todos nós desejaríamos atender, mas que infelizmente não temos como atender. Como pagar contas astronômicas sem asfixiar os contribuintes, sem inviabilizar nosso crescimento, sem suprimir empregos, sem conviver com uma superinflação? […]

“O Brasil corre também o risco de tornar-se ingovernável nas empresas, nas relações de trabalho, nas famílias e na sociedade. […]

“O Estado não cria recursos. Ele apenas os administra. Mas se sufocarmos os trabalhadores e a classe média, e se impedirmos as empresas de ter lucros, quem sobrará para pagar impostos? A classe média, vítima de impostos confiscatórios dos salários, pouco poderá comprar além dos suprimentos das necessidades básicas. […]

“O Brasil precisa, mais do que nunca, de recursos para ajudar os que nada têm. Os que não têm nem emprego. Os que não têm aposentadoria.”

Quando leio estas linhas do meu pronunciamento, que é longo, acredito que fui, infelizmente, profético.

A Constituição, sob o ponto de vista econômico, paralisou o país. É hibrida, parlamentarista e presidencialista. Provocou uma desordem entre os poderes, que hoje estão se estraçalhando, destruiu os partidos e os políticos.

Implantou um populismo anárquico, um niilismo que nos levou à corrupção que invadiu todos os setores do País.

A única coisa que se salva é o capítulo sobre direitos individuais e sociais, redigido pelo grande Afonso Arinos.

Hoje vivemos o caos, do qual ninguém vê a saída.

Qualidade do Ensino

O grande problema da educação no Brasil é a qualidade do ensino, a evasão escolar e a formação dos professores, que, abandonados e com baixos salários, vegetam na rotina da repetição das aulas.

No Maranhão o grande problema também incluía a baixa escolaridade, principalmente no interior, onde não chegava nem a professora nem a escola. Então, com o Professor José Maria Cabral iniciamos a era do planejamento e a elaboração de um programa de metas, que foi exemplarmente executado. Assim é que criamos e atingimos o objetivo de uma faculdade por ano, um ginásio por mês e uma escola por dia. Era o celebrado Programa João de Barro, até hoje objeto de teses universitárias, que criou mil e quinhentas salas de aulas, com a escola sustentável, construída pela comunidade, operada por professores às expensas do Estado, e os materiais de ensino pagos pelo município. E o Estado inteiro foi coberto de escolas, simples, mas eficientes. Era um passo à frente do programa de Djalma Maranhão, do Rio Grande do Norte, “De Pé no Chão Também se Estuda”. O nosso programa era tão revolucionário que o regime militar de 64 julgou-o subversivo e depois que saí do governo foi determinada sua extinção.

Oficial só existia no ensino médio o Liceu Maranhense. Criamos o programa dos Ginásios Bandeirantes; foram construídos 64 no interior e, a partir daí, no interior ninguém precisou mais sair em busca de preparação para universidade em S. Luís. Quantas pessoas que estão hoje na magistratura, no ministério público e noutros altos postos do estado e do país não me encontram e dizem para meu orgulho: “Eu estudei no Ginásio Bandeirantes”, para em seguida dizer o seu município.

No ensino universitário só tínhamos públicas as escolas de Direito, Farmácia e Odontologia. Pela ação de Dom Delgado fundara-se a Universidade Católica do Maranhão. Então, diante dessa precariedade, resolvemos criar uma escola por ano e criamos as faculdades de Administração, Agricultura, Engenharia, Comunicação e para marcar o primeiro passo para o futuro, a Faculdade de Educação de Caxias, interiorizando o ensino superior no Maranhão. Depois foi pelas mãos do Presidente Castelo Branco que unimos todas as escolas e fundamos a UFMA.

Com uma visão moderna, mandei ao Japão, para melhorar a qualidade do nosso ensino, buscar novas tecnologias, os irmãos Lobato e Anselmo. Fomos os primeiros no Brasil a instalar os circuitos fechados de TV e colégios com esse instrumento e as novas tecnologias. E inventamos a TV Didática, que depois chamou-se Educativa, há 50 anos no Maranhão. Assim fizemos História.

Agora leio que escola digna é “na antiga sala de taboa, uma salinha improvisada e um quadro verde, com um desenho em giz do sistema solar, feito por um professor”. E que o Governador teve a maior emoção de sua vida!

Veja-se o quanto regredimos: há 50 anos 1500 salas de aula, ensino médio onde não existia nada e faculdades onde faltava tudo!

Essa é a “Escola Digna” e o “Plano B” (leia a subliminar indução a PC do B)! “Escola Digna” é um quadro verde e Plano PC do B, “Plano B”.

E a qualidade do ensino? Antigamente tínhamos os Centros de Qualificação e Reciclagem. Hoje o futuro está no “Quadro Verde (B)”, exemplo para o Brasil. É: o Facebook tem de estender o programa de acabar com as fake news.

O imbróglio das redes sociais

Há alguns anos, em discurso no Senado, abordei o tema dos dias de perplexidade e indagações que vivemos, em que existem mais perguntas no ar do que respostas a dar.Estamos não num mundo em transformação, mas num mundo já transformado.

Participei, como convidado da ONU, de uma conferência mundial, em Bilbao, sobre o impacto da Internet nos direitos à privacidade. Com a sociedade da comunicação que passamos a ter, depois da morte da sociedade industrial, nada mais tem a garantia do sigilo, e a palavra da moda é transparência.

Uma das consequências foi tornar-se mais atual a indagação de Pilatos a Jesus, que consta em todos os evangelhos sinóticos: “O que é a verdade?” É difícil não só responder à pergunta, mas encontrar seu objeto. Sobre qualquer coisa existem tantas versões na Internet que não se sabe qual a verdadeira. E são tantas as verdades que não se sabe mais onde está a verdade. O resultado de tudo isso é que nasceram duas expressões, as mais usadas no mundo no ano passado: fake news e pós-verdade. A primeira significa notícias falsas e a segunda fica mais difícil de definir, pois é uma mentira que se tornou verdade.

Dentro desse quadro, as redes sociais — em que não há centro, mas o controle, como se descobre agora, de empresas que manipulam os acessos e as opiniões — deitam e rolam, possibilitando a cada pessoa ter a sua verdade ou a sua mentira.

Daí a discussão mundial sobre isso e o fato de se procurar, em todo lugar, vacinas e bloqueios contra as fake news, além de legislações para evitá-las ou reprimi-las. O diabo é que, quando o remédio aparece, o estrago já está feito e não há como repará-lo. É um pouco daquilo que o Padre Vieira falava sobre a calúnia: que eram penas de galinha arrancadas e soltas ao vento — depois era impossível juntá-las.

Outra coisa que tive oportunidade de ressaltar nessa conferência de Bilbao foi a nova tendência, trazida pela Internet, da democracia direta, aquela que existia no mundo antigo,em que cada pessoa votava por sua palavra em praça pública. Assim, no dia em que cada pessoa tiver seu iphone e a tecnologia assegurar certas garantias necessárias ao voto, toda parafernália da eleição desaparecerá.

Mas a Internet mal-usada é mesmo o perigoso instrumento da calúnia, do insulto, da difamação, da denúncia vazia e das notícias falsas.

No Maranhão, agora por outros meios, usa-se desse mal costume. Eu, pelo menos, sou uma vítima predileta, alvo de insultos, dia e noite, desde que entrei na política. E ainda dizem que fazem política nova, mas usam a mais velha, bolorenta e nociva de todas as políticas.

O mistério da Paixão

Nas Sexta-feiras da Paixão, em que todos os anos tenho de aqui refletir sobre ela, ainda vivo aquele tempo da minha infância em que as imagens eram cobertas de pano roxo, em que íamos ao Senhor Morto beijar-lhe os pés, e eu sabia que ele ali estava, na Igreja de Pinheiro, velando pela vila, atendendo às minhas orações de menino e pronto para reprimir os meus pecados, que não existiam, porque eram tão puros que era santidade.

A Semana Santa nos remete aos ensinamentos básicos do cristianismo.

Quantas vezes, todos os anos, todos os dias, a cena da crucificação se repete, sem envelhecer? O símbolo da Cruz é o do sofrimento mas, sobretudo, o da ressurreição. Muitos vêem Cristo sem a cruz, outros, a cruz sem Cristo. Mas é impossível qualquer separação. São indissolúveis no mistério da Paixão, que só pode ser entendido pela fé. É Cristo amando os homens até o fim, como afirma S. João, e, neste amor maior, a eternidade que se começa a ver pelos olhos daquelas Marias que de madrugada olhavam o Santo Sepulcro, vazio.

Certa noite, em Lisboa, com Antonio Alçada Baptista, o grande escritor português, autor de “Peregrinação Interior”, numa Sexta-Feira da paixão, falamos de ser cristão e ele tirou os óculos, olhou-me e disse:

“José, hoje é o dia do grande mistério. Nada de perguntar sobre ele. É o grande e insondável mistério”.

Pascal, que pensava que é o coração que sente Deus, e não a razão, deixou nos fragmentos das Pensées muitas indagações sobre esses mistérios. Por quê os Evangelistas fazem Jesus frágil na agonia? Era tão fácil fazê-lo heroico! E o filósofo sugere: quando Ele está perturbado, é perturbado por si mesmo; quando os homens o perturbam,

Ele é forte. “Jesus sofre em sua paixão tormentos que lhe fazem os homens, mas na agonia sofre os tormentos que dá a si mesmo.”

E lembra as frases no jardim de Getsémani: “Minha alma está triste até à morte.” (Mc 14:32) — a única vez que o Cristo se queixa; e “Pai, se quiseres, afasta este cálice de mim: porém que seja feita não a minha vontade, mas a Vossa.” (Lc 22:42) — e Jesus pede uma vez que o cálice se afaste, mas duas vezes que ele venha, se é necessário. No Gólgota, à hora nona, na cruz, Jesus pergunta em aramaico: “Eloí, eloí, lemá sabachtáni?” (“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”).

Quem era Jesus Cristo?

No Evangelho de São João ele responde muitas vezes esta pergunta, muitas vezes com novos mistérios: “Eu sou o pão da vida” e “o pão vivo” lembra a eucaristia e o caminho para a terra prometida; “o caminho, a verdade e a vida”, respondendo a Pilatos — que lhe faz a pergunta mais difícil, “o que é a verdade?”; “a porta das ovelhas” e “a porta”, por onde quem entrar salvar-se-á; “o bom pastor”, que dá a vida pelas ovelhas.

“Eu sou a ressurreição e a vida.” São Paulo diz que, sem ressurreição, não há cristianismo. A certeza da ressurreição é a grande fonte e marca da esperança.

“Eu sou a vinha verdadeira”, o sangue da aliança; “antes de Abraão ter existido já Eu Sou.” Como muitas vezes no Novo Testamento, Jesus lembra — ou os Evangelistas assinalam — passagens importantes do Antigo Testamento. No Livro do Êxodo (3:14), Deus diz a Moisés: “Eu Sou o que Sou.”

Nos seus curtos anos de vida (esquecemos como era jovem quando foi crucificado) Jesus é eterno, como Pai, omnipresente, como Espírito Santo. Ele É, na plenitude, que inclui toda a existência da Humanidade e do Universo, com os espíritos e a caridade.

Volto a Pascal: “A distância infinita dos corpos aos espíritos representa a distância infinitamente mais infinita dos espíritos à caridade.”

Jesus Cristo morreu para que nos amássemos uns aos outros. Morreu por amor a nós, e esse amor retira esta Sexta-feira Santa das sombras e a transforma em fonte de meditação e vida. No mistério da encarnação e da ressurreição.

A transparência e a liberdade

A revelação de que a assessoria política de uma firma inglesa incluía a manipulação de 50 milhões de contas do Facebook me faz retomar algumas reflexões que escrevi há quinze anos e não perderam atualidade.

O paradoxo do século XXI parece residir no feito de que o indivíduo considerado livre aparece como nunca destinado à opressão. Ele é livre e soberano, porém ao mesmo tempo frágil e vulnerável. E passa a ser o único culpado pelas decisões que toma.

A exigência de transparência na sociedade de informação se tornou uma exigência fundamental. Porém, se por um lado dá poder aos cidadãos e permite acompanhar a discussão do poder por meio da difusão do controle, por outro, em nome da transparência, o poder constrói uma série de sombras bárbaras que não são identificáveis nem controláveis.

A diferença entre espaço público e privado — o direito do cidadão à privacidade — é considerado como garantia fundamental das liberdades públicas. Cada ser humano deveria ter assegurado seu sigilo, sendo a inviolabilidade de correspondência e a proteção ao domicílio ícones dos direitos fundamentais.

A definição do equilíbrio fundamental entre a abertura que enriquece, porém debilita, e a sombra que empobrece, porém consolida, entre a transparência que ilumina a comunidade e o sigilo que a protege, se descreve por meio de novos termos, e definir este equilíbrio se torna impossível.

O cidadão que luta por mais transparência para exercer seus direitos e deveres acaba tendo que ser, ele mesmo, transparente. A sociedade de informação o posiciona diante de alternativas cruéis: ou opta pela solidão de um ermitão, e oculta todos seus sigilos, porém em liberdade, ou pela escravidão do ascetismo, ou ainda revela-se em cada um de seus personagens com o risco de ser preso pelos fios de uma tela invisível. Evitar que os fios se encontrem, fragmentar a informação de si mesmos, multiplicar suas custódias e impedi-las de estabelecer relações entre si, se torna então a única garantia fundamental da liberdade.

A melhor maneira de prevenir eventuais abusos não é concentrar a informação, o que é frágil. Deve-se, ao contrário, dispersá-la de maneira que fique longe de qualquer predador. Para que não se torne absoluta, a transparência deve ser organizada e fragmentada.

Ela deve adquirir os contornos de uma comunidade particular e dividir-se, seguindo lógicas funcionais, de maneira que ninguém, nem qualquer autoridade, possa acessar a soma das informações relativas a uma pessoa. Não somente cada pessoa tem direito a sua parte do sigilo, como a comunidade será definida pelos sigilos que ela compartilha com seus membros. Assim, um novo dilema se apresenta a cada pessoa, pois quanto mais aceitamos compartilhar, mais nos tornamos transparentes, mais ficamos sob a vigilância do grupo, e quanto mais protegemos nossa parte do sigilo, menos solidariedade podemos pedir ao grupo.

Quando, no entanto, a tecnologia que nos é oferecida como segura para revelarmos nossos gostos e segredos é passada a manipuladores de nossas opiniões, mergulhamos não numa ducha fria, mas num mar glacial de outra categoria: agora o que temos a temer não é o Estado, mas devemos temer pelo Estado, que, incapaz de nos proteger, torna-se vulnerável aos assaltos soturnos e impalpáveis das ambições.

A verdade e a mentira

As palavras que estão hoje mais em moda são fake news (notícias falsas) e pós-verdade(verdades também falsas) — no fundo, nada mais são do que uma fórmula atual de mentira.

Em 2003, fui convidado pelas Nações Unidas para participar de um congresso mundial, em Bilbao, norte da Espanha, para discutir a influência da internet na violação dos direitos individuais, o fim da privacidade, invadida pelas redes sociais.

Sustentei que a maior de todas as ameaças e suas consequências era a que pesava sobre a Verdade.

Hoje sobre um mesmo fato existem tantas versões e tantas verdades que ficou difícil saber onde está a verdade. Em geral, ela é escolhida por formadores de opinião pública, sem que eles mesmos saibam onde está o fato verdadeiro.

Marshall Mcluhan, quem primeiro abriu caminho para louvar e denunciar os perigos da sociedade virtual — ainda nos anos 60 —, já advertia para a possibilidade do que ele chamava de “pseudofato”.

É melhor darmos um exemplo do que explicar o que era isso. Se numa cidade existisse abundância de alimentos, mas a televisão mostrasse uma prateleira vazia, dizendo que a falta de alimentos e a fome dominavam numa cidade, esta versão era maior do que a verdade.

Isto me leva a pensar sobre nosso Estado e aquilo que o Padre Vieira fez e que nos dói até hoje: lançar sobre o Maranhão, no famoso sermão dos MM, o M da Mentira, o M da Maranha, e o M de Maldizer. Chegou ao exagero de afirmar que aqui até o Sol mentia.

É o que se tem visto nos últimos anos. Eu tenho sido talvez a vítima maior desses hábitos, pois resolveu-se atribuir o que era bom na nossa atuação para transformar no que era mal. Hoje, todos vivemos sob o império do medo. Medo da (in)segurança pública, das agressões, do ódio, da inveja e da perseguição, sob a égide do poder público.

Quantos desempregados? Quantas famílias em sofrimento?

Por politicagem, sob a invocação do comunismo, transformam-se divergentes e adversários em inimigos, adotando a teoria leninista de que à política, ao contrário do que dizia Clauzewitz,, deviam ser aplicadas as leis da guerra: inimigo é para ser morto, exterminado, sem que se julgue o que é justiça ou injustiça.

Para não me alongar mais, vou invocar a própria História do Maranhão e, em vez de Vieira, o Marquês de Pombal, que recomendou ao seu sobrinho Melo e Póvoas, quando o nomeou governador do Maranhão, o seguinte:

“Engana-se quem entende que o temor com que se faz obedecer é mais conveniente do que a benignidade com que se faz amar. A obediência forçada é violência. Em qualquer resolução que tiver que tomar, adote três coisas: prudência para deliberar, destreza para dispor e perseverança para acabar.”

Como eu durmo tranquilo por nunca ter perseguido ninguém, por ter nascido com a absoluta incapacidade de ter ódio e perdoar os inimigos, sabendo que tudo que se fez aqui em benefício do nosso povo tem a minha mão, e não a da “oligarquia discriminadora”, que foi — e é — uma fake news (notícia falsa) que alimenta tantos pobres de espírito.

É a velha mentira de ontem e de hoje.

O gosto do pudim

Estamos em ano de alternância do poder.

Eu tenho a noção de que a Presidência da República é um cargo muito difícil de exercer. Henry Stimson, que foi ministro da guerra de Franklin Roosevelt, dizia uma frase célebre: “A prova do pudim só se faz comendo” — só sabe o gosto do pudim quem o provou.

Os que desejam ser presidentes não sabem o gosto da presidência. Eu já fiz essa prova e confesso que não é agradável.

Governei o País em tempos de tempestade.

Sou uma espécie rara, em extinção — sobrevivente de um período de transição do autoritarismo para a democracia. E transição é a tarefa mais difícil da política. Ela tem sido o túmulo de grandes estadistas: transforma heróis em vilões, santos em demônios, mártires em inquisidores, democratas em ditadores e reduz a cinzas grandes lideranças.

Na transição tudo tem a marca do Já. Mudança já. Desenvolvimento já. Pleno emprego já. Paraíso já para agora. A panela ferve. Tira-se a tampa, sai calor, fumaça, tudo queima e está em ebulição. A violência é uma sedução permanente. A demagogia ganha foros de seriedade. Propõem-se soluções simplistas para problemas insolúveis.

O Brasil, depois desse período, ultrapassou o gargalo institucional.

Não foi um passo de circunstância, foi uma opção definitiva de sua História. Há uma consciência civilista consolidada: há uma opção liberal pela economia de mercado, acabou-se a gangorra militarismo versus populismo. O jogo democrático passou a ser o único jogo. Não há opção conspirativa, não há lugar para grupos de ação extremista. O País viveu o choque da democracia e saiu em paz e ileso. É claro que pagamos e continuamos a pagar altos custos políticos, econômicos e sociais.

Mas temos muitas interrogações: qual o espaço que vamos ocupar? Quando superaremos as crises? Qual nosso lugar no panorama mundial? Como apressar a solução dos trágicos problemas sociais e econômicos? Estas perguntas nos levam a outras.

Por exemplo: a posição dos Estados Unidos neste processo. No meu tempo, provei o sabor dos conservadores republicanos — que dizem ser melhores para nós, contradizendo minha experiência. Ronald Reagan e o primeiro Bush nunca facilitaram nossas relações ou nos apoiaram na cena internacional. Trump, no entanto, reconheço, faz com que o mundo daquele tempo pareça menos amargo. A carga de dificuldades pesa mais para quem está começando uma recuperação.

A ninguém interessa essa situação. É preciso criar novos espaços e superar a agenda de sanções e protecionismos que caracterizou a década de 80 e marca novamente as relações com o governo norte-americano. Cabe a nós construir, criar, imaginar uma agenda positiva, aberta a todas as formas de cooperação.

Eu sou político e poeta. Não deixo de acreditar no impossível, nem de sonhar com otimismo.