José Sarney

A Venezuela num abismo

Estamos assistindo à situação trágica e triste da Venezuela. Não é com satisfação que invoco ter sido a primeira voz a levantar-se no Brasil, em discurso no Senado, contra os atos ditatoriais iniciais de Hugo Chávez, fechando rádios e televisões, começando o esmagamento da democracia.

A começar pela falsidade de chamar o seu movimento de “democracia socialista bolivariana”, uma vez que Bolívar morreu em 1828, sua luta era contra as monarquias e a favor da implantação de repúblicas na América do Sul — e a palavra socialismo aparece pela primeira vez nas enciclopédias em 1838, dez anos após à morte do Libertador. A escalada para a morte do estado de direito venezuelano prosseguiu com a prisão dos líderes oposicionistas, lembremos Lopez e Ledezma e suas heróicas mulheres Lilian e Mitzy correndo o mundo para sua libertação.

Felipe González, ex-primeiro-ministro da Espanha, meu amigo, com uma carta minha de solidariedade, foi à Venezuela para integrar-se aos protestos contra a ditadura que ali se implantava. Tragédia maior estava por ocorrer: Chávez, que rejubilava-se de ficar no governo até 2013, morre, e o substitui essa figura bizarra e grotesca de Maduro. Chávez tinha um objetivo, que ele resumia no seu lema “pátria, socialismo ou morte”, e em querer que a Venezuela se tornasse potência militar do continente. Nos tempos áureos do petróleo de preços altíssimos, compra 60 bilhões de dólares de armas, mais de 160 caças russos, 600 mil bombas guiadas por GPS, estações de radar chinesas ultra-sofisticadas, 138 navios, 15 submarinos, 100 mil rifles AK-103, distribuídos às milícias, e o direito de produzi-los.

Perguntava eu no Senado, àquele tempo: “Já que habitamos um continente pacífico, armar-se desta maneira contra quem? Para quem? Com que objetivo?” Evidentemente que tamanho poderio militar colocava o Brasil numa situação de inferioridade no continente e vulnerável em sua soberania. Denunciei que seu objetivo era retomar o território de Essequibo da Guiana — questão de limites da qual o Brasil participou e em que perdeu, no laudo do Rei da Itália, a parte do nosso território que levava nossa fronteira à bacia do rio Essequibo. Logo, uma guerra dessa natureza, que agora Maduro confessa ser um de seus objetivos, nos oferece uma visão do perigo que representa para nós uma ditadura dessas na Venezuela.

Chávez ainda dizia “a revolução na Venezuela é pacífica, mas não desprovida de armas”, o que se inspirava na frase de Lenine quando afirmou, na revolução de 1917 com o partido único: “Camaradas, agora não necessitamos de oposição: é melhor discutir com os rifles.”

Não deixemos passar essa oportunidade: o continente, bem como todas as nações civilizadas, deve se unir para encontrar uma solução pacífica para retirar a Venezuela dessa ditadura cruel e restituir o estado de direito ao país, que está à beira de uma guerra civil e vive uma catástrofe humanitária.

A indignação necessária

Não há olhos no Brasil que não tenham tido lágrimas ou vontade de tê-las com a tragédia da barragem de Brumadinho: os mortos sufocados por uma brutal e avassaladora corrente de lama e pó de ferro; a irresponsabilidade daqueles que não foram capazes de pensar que um dia isso poderia acontecer; a burrice e a estupidez das instalações administrativas e refeitórios a jusante da barragem… Para lembrar Fernando Pessoa, “quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram!” Quantas noivas perderam a esperança e o sonho de um bem-amado, quantas viúvas, qual Penélope, esperam em vão o retorno dos seus maridos?

Uma cidade condenada à morte e guardando para sempre a memória desses mortos. Os anos que passarem serão incapazes de sepultá-los ou esquecê-los. E a pergunta aterradora, que nos revolta qualquer que seja sua resposta — de quem é a culpa? E a dor de ver a procura dos corpos, procurados na esperança de poder dar-lhes uma sepultura cristã? E a dor dos olhos dos seus amantes e amados, na saudade de ver de novo?
Mariana ainda sangra, e Brumadinho sangra mais ainda. Uma, sangue da natureza e de gente; outra, hemorragia de gente, sofrimento, dor e morte dos rios Doce e, agora, Paraopeba; águas que não saciarão mais a sede de ninguém e se tornaram assassinas dos peixes e dos sapos. Ali não poderão mais beber as capivaras, os veados, as vacas e os bois. Tudo é lama, água e barro, pau e ferro.

Repetimos a pergunta amarga: de quem é a culpa?

Dos que pensaram que ali podiam barrar águas de rejeitos sem temor de que um dia poderiam destruir tudo; dos que, pela ganância, julgaram que era mais importante ganhar dinheiro, buscando o mais fácil em vez do mais seguro. Dos que autorizaram esse caminho. Dos que autorizaram essa torpeza. Dos que pensaram mais em ganhar mais, do que na vida e na morte dos que ali iam trabalhar, e escolheram aquelas montanhas e belíssimas paisagens ouvindo o silêncio das florestas e das águas para buscar repouso em pousadas, sítios, lugar de descanso e meditação.

Brumadinho é uma tragédia e, mais do que uma tragédia, uma dor que dói hoje, vai doer amanhã e vai doer para sempre. Que ela seja um símbolo a ser seguido, e não esquecido, como Mariana, e que todas as barragens feitas e alicerçadas nessas mazelas sejam transformadas em obras seguras de engenharia, embaixo das quais todos possam dormir sem medo de ser tragados por elas.

Não me apresentem desculpas: não há desculpas. Não busquem argumentos: eles não existem. Grita mais alto a realidade dos fatos: que se enterre com os mortos de Brumadinho a falsa engenharia, a ganância, e que aflore daí, como exemplo, a punição de todos os culpados, pois ninguém resgatará mais a vida dos que morreram. A revolta do Brasil é justa, a indignação do Brasil, muito mais. Junto-me à dor de todas as famílias dos que morreram.

O leite da loba

O mundo inteiro ficou comovido com a história inusitada de um menino de rua, no México, que, fugindo de casa, perdido e sem nada para se alimentar, despertou o afeto de uma cadela -talvez da raça itzcuintl, sem pelos, que os astecas criavam para comer-, que passou a amamentá-lo ao lado de seus filhos.

Diferente foi a índia guajá, que também comoveu – e teve fotos em jornais e revistas de toda parte – ao entregar o seu peito a um porco-do-mato que, como o menino, apareceu perdido em sua palhoça. Num caso e noutro, a mulher e a cachorra valeram-se do sentimento da maternidade e do fato de o menino e o macaco terem fome.

História parecida com essa realidade de interação entre homens e bichos foi a saga de Rômulo e Remo. A lenda relata que ambos eram filhos do deus Marte com a troiana Réia Silvia e tinham sido jogados no rio Tibre. Chegando à margem, também com fome e frio, foram mamar numa loba, uma loba selvagem, mas de bons sentimentos, visão histórica e leite forte. Tão forte que os amamentados fundaram Roma, Rômulo fez muitas estripulias guerreiras e a loba virou estátua-símbolo da cidade -tão iconográfica que uma cópia dela veio parar em frente ao Palácio do Buriti, em Brasília, onde milhares transitam e vêem aqueles dois meninos mamando na bichinha.

No Brasil, temos aquele dito popular para marcar pessoas capazes de tudo, que diz: “Tem coragem de mamar em onça”, ou, se é sobre esperteza, “Tirar leite de pedra” ou “de cobra”.
Ultimamente, com as campanhas de amamentação, não se pode dizer que é por falta de seio materno que as crianças estão mamando em bicho. Passou aquele modismo capenga de que amamentar prejudicava a estética feminina. Ao contrário, não há evidências científicas de que boca de menino destrua a beleza dos seios de jovens mães, aconchego tão terno que, para dizer da idade de um bebê, a referência é de que “é menino de peito”.

Eu, de minha parte, criei o Programa do Leite, que chegou a atingir 8 milhões de crianças por dia e, graças a Deus, não vi notícia àquele tempo de nenhum menino tentando mamar em ovelha, cabra ou seja que bicho for para matar a fome.

O que havia de triste naquela história do menino do México não foram os peitos da cachorra, mas a tragédia dos meninos de rua, que enchem as cidades do mundo inteiro, famintos, doentes, abandonados. Como retrato desse fato, nada mais dramático e comovedor do que a figura que ficou símbolo da fome em Uganda, aquela mater dolorosa com o filho exangue no colo, o olhar triste para aquele corpo, que não tinha mais carne, só pele sobre os ossos. A essa imagem, que nos fez pensar no destino do gênero humano, junta-se, hoje, a paisagem dos meninos aidéticos africanos, amontoados, esperando o fim sem remissão.

Voltando ao leite, enquanto nos revoltamos com o problema da infância abandonada, temos aquela turma catalogada pelo humor brasileiro: “Mamando nas tetas do Tesouro Nacional” ou, como diz o Elio Gaspari, na Viúva.

O enterro da verdade

Falei, na última semana, da questão da verdade. Continuo minhas reflexões. Citei o grande Unamuno — e lembro o mais espanhol dos pintores, Goya.
Goya foi o retratista insuperável da corte espanhola, mas sua obra tem uma vertente de crítica social que cresce a partir da Revolução Francesa. As guerras pela independência e contra o absolutismo no começo do século XIX foram brutais. Ele as comenta em “Los desastres de la guerra”. No fecho da série, depois das violências dilacerantes que mostra, uma gravura se intitula “Murió la verdad”: o corpo de uma jovem de seios nus ilumina a cena, sendo enterrada por figuras grotescas, a Justiça caída ao lado, suas balanças no chão. A jovem é La Pepa, apelido da primeira constituição espanhola, feita em Cádis, que vigeu de 1812 a 1814 e de 1820 a 1823 — e no começo de 1822 foi, por um dia, a primeira constituição do Brasil. Em 2012, na comemoração dos 200 anos de La Pepa — que marcou profundamente o século XIX e foi mais influente na América que a constituição francesa —, fui convidado para fazer a conferência de abertura do grande evento. Foi uma manhã memorável porque a solenidade se realizou no Oratório de São Felipe Néri, a capela barroca onde foi escrita a constituição, tendo ao fundo, ornamentando o altar-mor, lindo quadro da Imaculada Conceição, considerado uma das melhores obras de Murillo.

Para Goya a verdade era o símbolo dos grandes princípios políticos da Revolução Americana, cristalizados por Jefferson como direito a vida, liberdade e busca da felicidade, e da Revolução Francesa, liberdade, igualdade, fraternidade.

Dois professores de Harvard, Levitsky e Ziblatt, estudaram Como as Democracias Morrem. Identificaram alguns padrões: a rejeição pelos políticos das regras democráticas do jogo, a negação da legitimidade aos oponentes políticos, o encorajamento à violência e as restrições às liberdades, inclusive de imprensa. Cada um deles, por si, atestaria que a democracia está em risco. No cenário norte-americano, no último século, só Nixon se enquadrara num deles — e, agora, Trump se encaixa nos quatro. E um dos seus principais instrumentos seriam as fake news.
Dizia eu, falando sobre a comunicação no mundo digital, que nele “as fronteiras entre o original e suas cópias parecem ter desaparecido. Ao não distinguirmos mais os originais das cópias, todo o problema da alteridade parece se complicar. O que era antes verdadeiro, vaga hoje na incerteza. As informações ganham valor de verdade simplesmente por estarem na internet.”

É a antiga brincadeira do telefone sem fio, em que uma frase é repetida ao longo de uma roda e, ao chegar ao primeiro autor, já é outra. Na internet, uma informação alcança milhões de pessoas num instante, sem exame crítico, aceita por vir da pessoa ao lado, diante da qual desarmamos os filtros do senso crítico. A verdade é atestada pela proximidade.

A interferência russa na eleição americana, que é fake news, segundo Trump, mas não é fake news, é verdade, foi feita não com uma grande mentira, mas com milhares de pequenos incentivos nas redes sociais aos preconceitos de grupos: aos carvoeiros desempregados, aos criacionistas desconfiados da ciência, aos brancos que têm medo de pretos, aos pretos com medo dos imigrantes… As fake news são pedrinhas lançadas morro abaixo que levam de roldão pedras, matos, florestas inteiras.

Mas nós devemos também meditar sobre que dizia o Padre António Vieira: que o Maranhão era a terra da mentira — e como tem mentira!

Sei quem ela é

m senhor, de certa idade, chegou ao posto de saúde para fazer um curativo na mão. Estava agoniado, mas não por causa do ferimento e sim porque estava com pressa.

– Tenho um compromisso e já estou atrasado, disse o homem.

– Será que não pode esperar alguns minutinhos?, perguntou a enfermeira.

– Sabe o que é, continuou o homem, todas as manhãs eu vou ao Asilo Santa Lúcia visitar a minha esposa e tomar café com ela. Ela já está lá há alguns tempos, pois sofre de Alzheimer.

A enfermeira ficou encantada com a serenidade do velho e, quando acabou o curativo, disse: – Pronto, agora pode ir. Será que a sua esposa vai ficar zangada por alguns minutos de atraso?

– Com certeza não, respondeu o senhor, ela já não sabe que horas são; nem mesmo sabe quem eu sou. Faz quase um ano que não me reconhece. A enfermeira perguntou, então, por que tanta necessidade de ir ao asilo todos os dias e no mesmo horário. Ele respondeu:

– Ela não sabe quem eu sou, mas eu sei muito bem quem ela é!

Com o domingo do Batismo de Jesus no Rio Jordão junto a João Batista, encerramos o tempo do Natal. A página do evangelho de Lucas retoma a apresentação de João de si mesmo e de Jesus. Ele, o Batista, batiza com água, mas o mais forte que virá “vos batizará no Espírito Santo e no fogo”. Essa será a missão de Jesus, mas para saber quem ele é precisa a voz do Pai: “Tu, és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer”.

Já entendemos que existem várias formas de conhecimento. O mais imediato é o intelectual que, geralmente, vem do estudo ou da experiência prática. Na literatura, encontramos o conhecimento do “coração”, quando alguém é “cativado” pelo outro ou pela outra, como lemos no Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry. No Antigo Testamento se fala de “sabedoria” e no Novo de uma revelação e de um “conhecer” que são dons de Deus Pai, palavras e gestos de Jesus, o Filho, e frutos do Espírito Santo. Com isso, entendemos algo simples. Têm “conhecimentos” que ficam na cabeça e não passam nunca no coração e na vida. Têm outros, porém, que envolvem, em diferentes graus, a pessoa toda: inteligência, sentimentos e decisões a respeito do próprio agir. Tem crist ãos que se consideram tais, porque leem a Bíblia, conhecem a Doutrina Cristã e as normas da Igreja. No entanto, Jesus Cristo não é um retrato ou um crucifixo pendurado na parede ou no pescoço, não é um livro para ler e, menos ainda, um conjunto de leis. Ele é uma pessoa.

Cada pessoa é alguém que deve ser encontrado e descoberto através da convivência, da familiaridade, da escuta. O mesmo acontece para cada um de nós: é mais o que não sabemos de uma pessoa, daquilo que aparece aos nossos olhos ou da ideia que nós fazemos dela. Por isso, os esposos nunca acabam de se conhecer e os pais nunca devem pensar que conhecem os seus filhos. Sempre tem algo de novo e, às vezes, até nós nos surpreendemos conosco. Não sabíamos que tínhamos aquele talento ou aquele defeito. Mas não devemos ter medo, ao contrário. Talvez essa seja a beleza da vida: ninguém nasce programado ou pré-fabricado, temos muitas chances de nos ajudarmos uns aos outros a construir as nossas personalidades. É um trabalho maravilhoso e desafiador que nunca acaba. Igualmente, para quem não quer ficar cristão só pela “cabe ça”, mas quer sê-lo também pelo coração e pela vida, é necessário sempre renovar e melhorar o próprio, digamos, entrosamento com Jesus.

Como ser seguidores de quem não conhecemos bem? Como “arriscar” sobre a sua palavra? O “batismo” de Jesus marca o início da sua vida pública. Com o nascimento, ele assumiu a solidariedade com a natureza humana, agora, com a sua vida, paixão, morte e ressurreição, vai transformar os acontecimentos em história de “salvação”, de reconciliação entre Deus e cada pessoa de boa vontade. Mais nada do que é humano ficará fora do projeto de amor do Pai, nem o sofrimento e nem a morte. Somente quem se envolve e ama consegue entender um pouco da missão de Jesus. Vamos acompanhá-lo, vamos conhecê-lo mais. Sem ele, nem nós sabemos mais quem somos.

A saga dos remédios

“Não há bem mais precioso do que a saúde!” Que frase mais perfeita pode existir para um lugar-comum? Pois bem, esse é o lema de todos aqueles que, ao longo dos tempos, nos impingiram tratamentos e remédios.

Na minha meninice, numa cidade pequena do interior do Maranhão, lugar de honra era do Almanaque de Bristol, que orientava sobre doenças e prescrevia remédios. Editado por um laboratório americano, Murray e Lanman, de Nova York, dizia na contracapa que “era registrado em conformidade com o Ato do Congresso americano de 1869, por Lanman e Kemp”.

Era um folheto de propaganda de remédios importados, vendidos em todas as farmácias e tidos como drogas milagrosas. No almanaque, a cada mês correspondia, ao lado, o anúncio de uma maravilha de remédio. No meu mês de nascimento, abril, estava estampada uma bela foto de mulher e os milagres do “Tônico Oriental, preferido das damas elegantes, o único que evita a queda de cabelos”. Mais adiante era a “legítima Água da Flórida”, para curar todos os males. A malária era explicada: “A febre terçã não é uma doença, é um sintoma. O fígado é a parte afetada e é para esse órgão que se deve dirigir o medicamento”. O “Cholagougue Índia de Osgood é o remédio apropriado. Revigora o fígado, livra o sistema de toda a acumulação biliosa”. Adiante, vinham anúncios do “Extrato Duplo de Aveleira Mágica”, para lombrigas, “Pílulas de Bristol”, “Óleo Elétrico” contra dores e por aí andava.

O brasileiro, há mais de um século, engorda os laboratórios internacionais. Nos EUA, nos disse Teresa Cruvinel, glória de Coramandel em Minas e que cada vez está escrevendo melhor, que a senhora Hillary Clinton, depois de superar os problemas do Salão Oval da Casa Branca, estava envolvida na campanha para baratear os remédios pregando que se acabe com a proibição de importar remédios baratos. Aqui, a situação é diferente, queremos é consumir os remédios nacionais menos caros.

Quando tivemos a pressão internacional para votar a Lei de Patentes, sob a acusação do Brasil pirata, condenamos o chamado “pipe line”, que tinha o poder da ressurreição de patentes caducas. Depois, o governo reconheceu em MP que estávamos certos. A abertura selvagem da química fina e a Lei de Patentes fizeram que o povo brasileiro destinasse uma fatia maior do seu salário para remédios, cujos preços subiram cinco vezes, a farra medicamentosa do boi.

Hoje, como ontem, a situação é a mesma. A indústria da saúde passou a ser um negócio dos mais rentáveis. Remédios e planos de saúde abocanham o mercado. O desmonte do estado do bem-estar social evita que os governos sejam humanitários. Outrora eram as pílulas milagrosas, hoje, os preços. Esse é um setor dominado pelo capital internacional e é difícil lutar contra ele. Comissões de inquérito pegam os gerenciadores. Atrás de tudo está o modelo contra o qual nenhuma liberdade é possível. A única que sobrevive talvez seja aquela que era anunciada na rua do Petits-Champs, em Paris, número 91, no Depotici, pelos anos 30, recomendando o Purgativo Eau de Glauber. “Das liberdades, a melhor é ainda a liberdade do ventre!”

A Hora dos Mágicos

Oscar Wilde tem um poema — Balada do Cárcere de Reading — com uns versos que queimam: “Todos os homens matam aquilo que amam. Os valentes com a espada, os covardes com um beijo.”
O cotidiano dos tempos atuais tem o prazer de destruir ilusões. Há um gosto meio endemoniado de acabar com elas. Papai Noel é vítima constante desses ataques. É claro que ele existe, as crianças precisam acreditar nele, é necessário que sua lenda continue, com seu trenó, longas barbas brancas e neve. Uma vez fiquei revoltado ao ler num jornal a dúvida de que “se Papai Noel existe, é um velho muito safado que vive a enganar as crianças”. Coitado, logo ele?!
E a “cegonha”? Ela que vinha trazendo no bico, enrolados em um pano branco de linho, os bebês. Como era pura essa ave. Os meninos e as meninas de hoje, com aula de educação sexual desde os 2 anos, mataram a cegonha.
Como tenho saudades das assombrações da minha infância em Pinheiro: a manguda, o cabeça-de-cuia, a curacanga. Elas faziam e fazem parte de minha vida.
O rei Momo não morreu porque existe. O gosto atual é matar ilusões e sonhos. O rei do Carnaval é um tributo, peculiar do Brasil, à realeza. Somos um país monárquico que gosta de reis e rainhas. É rainha do rádio, rainha das baterias, rei Pelé, rei Roberto Carlos, rainha da beleza, rainha da soja, da laranja e da maçã.
Agora há fobia contra os mágicos. Desvendar os seus truques, como se não bastassem naves, sondas e Hubbles desnudando o mistério da Lua, das estrelas, das galáxias?
Como é excitante um coelho sair da cartola de um homem de casaca, num tablado de um circo de cavalinhos e trapézios! O mágico é uma figura tão definitiva que o fraque só sobreviveu graças a ele. Contou-me Otto Lara Rezende que quando Juscelino visitou Paris levava na comitiva o Autran Dourado, que tinha de ir a uma solenidade a rigor, mas não tinha traje. Foram ao Mercado das Pulgas comprar um. Quando disseram ao vendedor “queremos um fraque”, ele perguntou: “O senhor é mágico?” Os fraques desapareceram, os mágicos não.
Depois surgiu a mania de explicar que a mulher que os mágicos cortam ao meio, que levita no palco, fica presa e se solta não é cortada de verdade, é apenas fruto de uma armação feita para enganar o público? Isso não se faz. A mágica existe, ela é uma das coisas que ainda permitem que se comprem ilusões, a que têm acesso os ricos e os pobres.
Foi com satisfação que li a revelação de que o responsável pela tentativa de desmoralização da mágica era um mágico fracassado, inventando essas explicações para fingir que sabia de mágica e não sabia. Não ocorre o que ele dizia. O ilusionismo existe e só os mágicos sabem o mistério de tirar pombos da cartola e lenços da mão.
Não podemos matar o que amamos, nem com espada nem com beijo.
Não nos resta nem a ilusão da economia. Esta ainda nos oferecia coelhos, fitas, fitinhas e lenços coloridos escondidos, dentro de uma cartola do FMI. Acabou o que era doce.
Quero de novo repetir como é atual o que li num muro da Cidade do México: “Nada de fatos, queremos promessas.”

O Natal do Menino Jesus

São Paulo resume a felicidade de ser cristão, quando, na sua segunda Carta a Timóteo, diz: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, e guardei a fé.”
Guardar a fé é o mais difícil de cumprir entre os deveres cristãos. Fugir das vacilações, das tentações do agnosticismo e acreditar até o fim nos fundamentos do cristianismo.
Quem me fez cristão, pregando os seus mandamentos, foi minha mãe. Nunca presenciarei ninguém que tenha tido tanta fé quanto ela, fortificando-a a cada dia, e, coerente com sua vida, sua última palavra foi Jesus. Mas minha mãe não ensinava só o catecismo, mas a base do cristianismo, aqueles mandamentos simples que o Cristo trouxe: “todos somos filhos de Deus” – e aí está o mistério do Natal; “amai-vos uns aos outros”, “perdoai os vossos inimigos” e orai, porque a oração é a ponte do nosso cotidiano com Deus.
A forte lembrança do Natal está associada a minha infância em São Bento. A missa do galo e o comando de minha avó, reunindo o rebanho da família. As cantatas de Natal e a Igreja de São Bento com as colunas pintadas, imitando mármore, que para mim eram tão bonitas que cheguei ao exagero de considerá-las iguais às da Basílica de São Pedro, no Vaticano.
Tempos da infância em que se chamava pelo Menino Jesus – que hoje deixou de ser a primeira figura do Natal: Papai Noel tomou o seu lugar e, em vez do incenso a perfumar nossas almas, criou-se o gosto do chocolate.
O Natal é o mistério de um menino: Deus que assumiu a condição humana, para mostrar que não estamos sós na face da terra, que ele está conosco, conhece as vicissitudes de viver e de nascer.
Desse nascimento surgem as figuras da mãe, de quem recebemos a graça da vida, e do pai, São José, que aceitou a missão de, mais que pai, ser o companheiro de Maria. Sua presença é silenciosa, talvez a mais silenciosa do Novo Testamento, na sua simplicidade de carpinteiro.
O Natal tem uma palavra chave, amor. O Amor de Deus encarnado nesse menino que teve um destino trágico, pregado na cruz. São João, talvez o mais belo e brilhante dos Evangelistas, diz que “Jesus amou os homens até o fim”. E o Padre Vieira pegou este mote para dizer que se colocássemos em Cristo o coração dos homens e nos homens o coração de Cristo, esse transplante de coração iria dar aos homens a plenitude do amor e a Cristo a maldade dos homens.
O Natal é a festa do cristianismo, da Esperança que não deve desaparecer nunca, da alegria de que todos estamos destinados a salvação. O Papa Francisco diz, no seu último Angelus, como deve ser a nossa atitude diante do mistério do Natal: “Maria ajuda-nos a colocar-nos em atitude de disponibilidade para receber o Filho de Deus na nossa vida concreta, na nossa própria carne. José estimula-nós a procurar sempre a vontade de Deus e a segui-la com plena confiança. Ambos se deixaram aproximar por Deus.
O Natal é festa do Menino e de sua mãe, da maternidade, da glória de ser mãe e da transmissão da vida que traz a eternidade, pela graça do nascer.
O nosso Natal é o Natal do Menino Jesus e de, em nossa alegria, lembrar o cântico que diz tudo: “Glória Deusa nas Alturas e Paz na Terra aos homens de boa vontade.”

A arte de jogar dados

Que momento em que surgiu o homem. Os segredos da sorte, o jogo da vida, do corpo, da alma estão no homem.

O mais moderno e excitante é o da Bolsa, caótico, barulhento, histérico, cheio de gestos, telefones e balbúrdia, em que participam visíveis e invisíveis, na mesa de operação e nos mais altos cenáculos de decisões.

Sua invenção cibernética é do fim do século passado e estruturada em avançadas tecnologias de computador e meios de comunicação. É tão sofisticado, porque, jogado no mundo inteiro, caminha com o fuso horário, gira com a Terra e envolve apostas cósmicas e danos fenomenais. Pode ser jogado, também, nos computadores programados para processar variáveis e oportunidades.

Meu avô dizia que os vícios do homem eram cinco: beber, fumar, tomar rapé, jogar e gostar de mulher. Não sei por que testemunhava que já vira pessoas que abandonavam quatro desses prazeres, mas nunca conhecera ninguém que abandonasse o vício de jogar. É o único que não é atingido pelas restrições da idade e da saúde, como os outros.

O Brasil globalizado não escapa da festa. Joga-se na loteria. Joga-se na Super Sena, na Mega Sena, na Sena, na Quina, na Loto, no Bicho, na Loteria, na raspadinha, nos bingos, na televisão, em casa, na rua, no trabalho, em certas igrejas e até na compra de produtos. Se tanto não bastasse, ainda querem abrir os cassinos, como se já não tivéssemos tudo de um grande cassino. Cada jogo tem uma justificativa. A abertura dos cassinos é necessária para a criação de empregos (sic!).

O poeta Correa de Araújo, grande parnasiano, desenvolveu-me certa vez a teoria de que o jogo do bicho fora inventado por Deus, para acudir a pobreza, e não pelo barão de Drumond, para ajudar o zoológico. Assim, o Criador fazia o pobre sonhar, e do sonho vinha o palpite, e do palpite, o ganho que o socorria em dias de dificuldade.

Genolino Amado também contava na Academia o caso de sua empregada que ganhou uma bolada no número 380. E lhe disse que foi Deus que a iluminara. Ao sair de casa, meteu o pé num buraco e imediatamente desvendou o palpite: buraco é zero e ela calçava 38, ficou fácil compor o 380 e acertou no milhar. É o pecado do Santo Nome em vão.
Cervantes, nas “Novelas Exemplares”, conta a história de dois espertos, Cortado e Rincón, que eram exímios na “ciência vilhanesca”, assim chamada porque atribuíam a um desconhecido Vilhán a descoberta do jogo de cartas.

Eram tão hábeis que, em poucos minutos, entre tramóias e habilidades, ganhavam “dois reais e vinte e dois maravedis”. Comparando com o jogo da Bolsa, é um fóssil lúdico, coisa de anjo e cheira a mofo.

Einstein, o homem da relatividade, afirmou, quando descobriu as regras imutáveis das leis físicas que governam o universo, que “Deus não joga dados”. Pois, hoje, com o mercado financeiro neoliberal globalizado, somente Ele escapa de fazer sua aposta.

O vício do jogo serviu nos primórdios para encher o ócio, ocupar o tempo e, agora, é um tormento capaz de destruir economias e nações, com o mais moderno deles, o jogo da especulação financeira, ou melhor, a “ciência soronesca”, de Soros, o filósofo.

É que as leis físicas são imutáveis, ciências exatas. As outras ficam ao sabor da sorte, que agora não está muito para a nossa roleta.

Salários e Greve

Leio que médicos e rodoviários têm greve marcada, a começar segunda-feira. O Sindicato dos Médicos e o Conselho Regional de Medicina, presidido pelo operoso dr. Abdon Murad, dizem que a motivação é o atraso dos salários.

Até hoje mantenho o recorde de enfrentamento de greve: mais de doze mil. Nenhuma por atraso de salários. Estabeleci também a maneira de tratá-las: nunca por enfrentamento, sempre por negociação. A greve é um direito assegurado ao trabalhador para forçar o reconhecimento de outro direito.

Quando assumi a Presidência minha principal missão era a transição, fazer voltar a democracia.

Com 4 dias de governo, em 1985, reabilitei a vida sindical, com uma anistia ampla, fazendo voltar aos cargos de que estavam afastados os dirigentes sindicais. Em seguida decretei o fim da censura.

Legalizei as Centrais Sindicais. Estabeleci a antiga e grande aspiração dos trabalhadores: o salário-desemprego, que desde então — e até hoje — socorre os desempregados em seus momentos mais difíceis. Criei o Vale-Transporte, que paga o deslocamento dos trabalhadores, e o Vale-Alimentação.

Para assegurar a efetividade da Justiça do Trabalho, criamos 340 novas Juntas de Conciliação e Julgamento. Demos o adicional de periculosidade aos eletricitários. Também poucos dias depois da posse aumentamos (Decreto 91.213/85) o salário mínimo em 112%.

Fizemos, com ousadia e coragem, o Plano Cruzado, rompendo com a velha fórmula de combater a inflação pela recessão. O congelamento de preços criou os “fiscais do Sarney”, e nasceram daí os direitos do consumidor e o exercício efetivo da cidadania. Foi a maior distribuição de renda da História do Brasil. Os que viveram aquele tempo e ainda estão vivos são testemunhas da felicidade do povo brasileiro e de como sua vida prosperou.

Vivemos o pleno emprego, com toda a indústria utilizando sua parte ociosa e obtivemos a menor taxa de desemprego em todos os tempos. A média do desemprego no meu governo foi de 3,86% e em dezembro de 1989, meu último ano, ele foi de 2,36%. O trabalhador escolhia onde trabalhar e, assim, consolidaram-se as lideranças sindicais, que a partir daí tiveram vez e voz nas decisões nacionais.

Também, para completar nossa política trabalhista, assinamos muitas Convenções na Organização Internacional do Trabalho que estabeleciam conquistas para a dignidade do trabalhador.

Sempre tive uma grande preocupação pelos direitos sociais. Quando fundamos a Bossa Nova da UDN, em 1959, o manifesto, redigido por mim, tinha como objetivo apoiar a política desenvolvimentista do Juscelino, MAS COM JUSTIÇA SOCIAL.

Vamos torcer para que cada vez mais se desenvolva a proteção aos direitos do trabalhador e à dignidade do trabalho.