José Sarney

O medo e o sapo

A primeira coisa que existiu no mundo foi o medo.

Na expressão dos romanos Petronius, autor do célebre Satyricon, o primeiro romance, e Statius, “dolce poeta”, segundo Dante, “primus in orbe deos fecit timor” (no mundo o medo criou primeiro os deuses). Dizia Bergson, o grande filósofo, comentando esta frase, que “a religião vem menos do medo do que de uma reação contra o medo”.

O medo de que quero falar não é o filosófico, mas o real, principalmente na política maranhense, onde ele atualmente cresceu e muito, conforme afirmou em sua vigorosa entrevista a O Estado do Maranhão e à Rádio Mirante o Senador Roberto Rocha, candidato a Governador.

Além do interventor nos anos 30 do século passado, Martins de Almeida, o chamado Bala na Agulha, quando se formou um bando de capangas, conhecido de Turma do Papai Noel, que fez atrocidades, como invadir a Associação Comercial e dissolver uma reunião a chibata, quero lembrar João Lisboa, que no Jornal de Timon, ao tratar de Partidos e Eleições no Maranhão, já relatava a promiscuidade entre o medo e a política. Era Donana Jansen, tatibitate, dizendo “cute o que cutá meu filho Manezinho tem que ser deputá” — e haja cacete nas seções eleitorais, e deportações, como a de Candido Mendes de Almeida, embarcado à força num patacho para fora de sua terra. Há menos tempo, Neiva Moreira e Erasmo Dias apanharam na praça João Lisboa.

Se fazia o diabo na política do Maranhão, não só a agressão física, mas a coação moral, a compra de votos, e as demissões em massa.

Os comerciantes eram proibidos de embarcar mercadorias para transporte na Estrada de Ferro de quem não desse o apoio “certo”, como aconteceu com a grande firma Lages & Cia., que faliu vítima desse método. Hoje existe a quebra dos pequenos comerciantes, com os impostos que não podem pagar, além dos carros e motos apreendidos.

Eu, quando fui Governador, acabei com isso. Foi um período de paz duradoura que sobreviveu até recentemente. Não demiti ninguém, acabei com a nomeação e perseguição política do cobrador de imposto. Meu temperamento sereno, paciente, aberto ao diálogo, funcionou.

Agora, o medo está aí. É medo de bandido, de bala perdida, de perder o emprego, de sofrer perseguição, da violência que campeia solta. Só num dia tivemos cinco homicídios na cidade.

Quando eu era menino tinha um medo danado de alma, da Manguda, uma visagem que aparecia nas noites de lua, e de sapo.

Hoje o mundo político está sem medo de alma nem de sapo. Mas haja medo de perseguição, de perder asfalto, de receber desaforos e de ter as emendas orçamentárias para obras em seus municípios suspensas.

Mas eu continuo com medo de mau-olhado e de olhos excomungados. Inveja e ódio.

O Maranhão precisa de grandeza de espírito e de paz e segurança, de ser como sempre foi, uma família sem ódio e sem medo de perseguição.

Ainda uma vez o livro

ESTE ESPAÇO jamais pode ser usado para assuntos pessoais. Aqui, não tenho a política para atrapalhar-me, e sim o gosto de escrever. E nada melhor do que escrever sobre o livro.

Sempre acreditei que o livro e o jornal jamais acabariam. Sempre que surge uma nova tecnologia eles entram na berlinda. Leio, citado pelo jornalista espanhol Antonio Milan, que em 1894 perguntaram a um especialista qual seria o destino do livro no futuro: “Se por livro entendermos as inumeráveis somas de papel impresso, encadernadas sob uma capa com um título, reconheço que a invenção de Gutenberg cairá em desuso”. Para ele a vez era da reprodução fonográfica.

Era o som que entrava com tudo.
Com o advento da sociedade de comunicação, essa discussão aumentou e o fim do livro foi anunciado. Agora é a vez do “e-book” e do “kindle”. Este é capaz de armazenar milhares de obras que podem ser lidas, anotadas e folheadas. É uma tecnologia mágica, uma dessas porções que os bruxos da Idade Média buscavam criar.
Ela não deve ser descartada, mas não substitui o livro. Creio que sua maior aplicação será para estudantes, que, em vez de uma mochila cheia de cadernos e tratados, vão poder ter todos os livros de consulta à mão. Mas o livro impresso é uma tecnologia mais avançada.

Não precisa de chips em placas que se encaixam uma às outras de modo a levar à tela os textos, necessitando de energia nas baterias, que devem ser alimentadas de tempos em tempos. O livro não precisa de nada disso, não quebra e pode cair.

Não sei se é por amor ao livro, mas tenho como dogma, desses de fanáticos, que eles continuarão, assim como os jornais, e jamais serão passados para trás. Há no livro o gosto, livro tem gosto, desde o táctil até o cheiro bom.

Um amigo, o grande tradutor francês Jean Orecchioni, certa vez me disse que leu num livro uma descrição tão realista do mar que ficou enjoado e teve de tomar remédio para o balanço dos barcos.

Por milhares de livros que possam acumular essas máquinas, elas jamais acumularão os tantos livros que existem num livro. Quantos livros há no “Dom Quixote”, o cavaleiro da triste figura? São milhares, e cada frase é um livro. São emoções que não acredito que se possa ter num livro eletrônico em que a própria tecnologia interfere em sua leitura, que tem de permanentemente manusear os botões de sua máquina.

Mas salvará definitivamente o livro a poesia. Ela não cabe numa tela e não precisa do mercado, porque seus leitores são os restritos poetas que fizeram o provérbio “Poetas por poetas sejam lidos”.

Sempre precisaremos desse companheiro, que, como dizia o poeta espanhol Manuel Machado, nos leve da “prosa ao sonho”.

Da humildade

Depois da rotina das pesquisas de opinião, governar ficou mais humilde. O poder tem muitas definições e é acusado de produzir muitos efeitos. É considerado perigoso, com aspectos transgênicos que transformam normais em super, fracos em fortes, fortes em débeis, ignorantes em sábios, sábios em bobos, honestos em amorais e estes em respeitáveis criaturas. Aguça vaidades, constrói cegueiras, instiga a maldade e, não raro, transforma virtuosos em pecadores. Mas há os que nele descobrem outras virtudes, como Clinton e Kissinger, que o consideram afrodisíaco, sedutor e sensual. Há os que o vivem como sublimação de vaidades e prazeres. Tem todos os gostos.

Mas o poder político, síntese de todos os poderes, é nobre. Intrinsicamente é bom, seus pressupostos são o governo da sociedade e o bem geral, construído ao longo do tempo, para possibilitar o ordenamento da sociedade e do Estado. Os antropólogos acompanharam o surgimento do poder (como nasceu, como se estruturou, a quem serviu) desde as tribos primitivas até a sofisticação dos tempos atuais, como um instrumento necessário aos níveis de conviver.
Como a criação do homem tem duas faces, é tudo isso e nada disso. O poder, por definição, dá às pessoas a faculdade de se fazer obedecer, pela força, por outras pessoas. É uma arma tão perigosa que Deus, detentor absoluto de todos os poderes, se revelou para não exercê-lo e sufocar o livre arbítrio da criação. E, assim, foi humilde.
O poder se desdobra.

Há poder pessoal e há poder coletivo, mas este, em geral, transforma-se em pessoal,pela tendência a ser delegado. Weber diz haver uma espécie de poder pago pela sociedade, entre cientistas, que não deve ser exercido “como empresarial”.

O poder é sempre ardiloso. No terreno abstrato, a religião tentou cercá-lo pela invocação de preceitos morais. No campo da realidade, criou-se a lei, um poder atemporal e impessoal, como uma maneira de enquadrar os governos, o Estado de direito, das leis e não dos homens, com o controle de um poder sobre o outro, na busca de equilíbrio e harmonia.

Destaco uma característica no poder que deve ser meditada por todos que o exercem: o princípio e o fim. Quando acaba, não resta nada. Plácido Castelo, antigo governador do Ceará, numa imagem simples, falava que o “poder é uma caneta com prazo marcado”. Quando acaba a tinta, não escreve mais. É o que está acontecendo com a de muitos que agora estão em desespero, porque sentem que está chegando ao fim.

Essa noção de fugacidade desperta o único e definitivo antídoto contra suas demoníacas tentações: a necessidade de sermos humildes no exercício do poder. Se exercido com humildade, quando desaparece não faz falta, não destrói as pessoas. A humildade não faz mal a ninguém. Ela é tranquilizadora, benéfica e ajuda a viver.

Isto é o que tem faltado e tem transformado os tempos atuais no Maranhão em tempos de arrogância, de autoritarismo e de desprezo às pessoas.

Certa vez estava com Tancredo e resolvemos indagar quais as dez maiores virtudes para governar. Tancredo falou em primeiro lugar.

Bateu na minha perna e disse: “As sete primeiras são humildade e paciência; as três que faltam você, Sarney, pode preenchê-las.” “As minha três também são em primeiro lugar humildade, em segundo paciência, e em terceiro humildade.”

São duas coisas que têm faltado atualmente na política: paciência para ouvir e tratar bem aqueles que necessitam ser tratados bem; e humildade, inimiga da arrogância, da perseguição, do ódio, da inveja — e amiga de Deus.

Quero acrescentar também uma advertência: aqueles que fingem e simulam fé não enganam ninguém. Os fariseus são bem conhecidos e aqui, agora, escondem seu autoritarismo e simulam fé. Que bom te ver, Roseana, e saber que vamos ter paciência, humildade e fé.

O orador não soube parar

Conta Mark Twain: “Alguns anos atrás, estava assistindo a um ofício religioso quando um missionário veio fazer a pregação do dia. Começou a falar sobre a caridade, com um brilho, que a todos comoveu. Não fugi ao sentimento geral, e já tinha uma nota de 100 dólares na mão para colocar na bandeja das doações. Via gente até com mais dinheiro nas mãos para doar. Atingido o clímax, o orador não soube parar, e continuou falando e falando. O calor ia ficando mais forte e o sono se apoderando dos o uvintes. Mas o entusiasmo foi descendo, descendo até 50 dólares. O homem continuou a falar, e meu entusiasmo e meus dólares continuaram a descer. Finalmente, quando a bandeja passou por mim, coloquei nela 10 centavos.”

Seguimos, neste domingo, com o evangelho de Marcos e ele nos prepara ao momento daquela que estamos acostumados a chamar de “multiplicação dos pães e dos peixes”. Jesus tem compaixão do povo que tem fome da sua palavra e fome de pastores capazes de o guiar no caminho certo. O olhar de Jesus é o mesmo olhar misericordioso do Pai. Aquelas “ovelhas”, a numerosa multidão daquele tempo e a humanidade inteira, parecem-se com um rebanho perdido que não sabe mais para onde ir. No meio de tanta confusão de palavras e ideias, perderam o rumo e não tem quem possa ir à sua frente. Quem lhes dirá uma palavra confiável que valha a pena ser seguida e obedecida?

Jesus responde ensinando a todos a oferecer o pouco que tem. O evangelista não explicita nos detalhes o ensinamento de Jesus, mas apresenta os seus frutos, como veremos nos próximos domingos nos quais a Liturgia da Palavra nos fará ler o capítulo 6 do evangelho de João. Nele, Jesus será apresentado como o Pão da Vida (Jo 6,35), verdadeira comida e verdadeira bebida, mas também como aquele que tem “palavras de Vida Eterna” (Jo 6,68). Pão e palavra andam juntos. São as duas necessidades fundamentais da vida de qualquer ser huma no: o alimento “material” para não morrer e satisfazer as nossas necessidades vitais e o alimento “espiritual” indispensável para sermos pessoas de relação e de amor. Por isso, por enquanto, Jesus ensina.

Marcos parece nos dizer que a fome da Palavra vem antes da fome corporal que Jesus também irá, depois, satisfazer. Se a mensagem de Jesus fosse acolhida seriamente seriam resolvidas a fome material e a fome de comunhão fraterna da humanidade. A proposta dele é sempre aquela do amor a Deus e ao próximo. Um amor real feito de sentimentos e razões, mas, sobretudo, de ações capazes de aproximar as pessoas, torna-las mais fraternas e amigas, construtoras de um mundo de paz e justiça. Com efeito, se ainda milhões de seres humanos passam fome e morrem de doenças, há tempo vencidas em outros lugares, é porque falta solidariedade e partilha. Esta é a Palavra-Boa Notícia que Jesus oferece a toda pessoa que decida reconhecer aos outros a mesma dignidade e o mesmo direito ao bem-viver. Para continuarmos a ser egoístas e interesseiros, cada um defendendo as suas vantagens e os seus privilégios através de armas atômicas, riquezas mal distribuídas ou leis injustas, não precisava que Deus Pai enviasse o seu Filho até nós.

Todos percebemos que há muitas coisas erradas no mundo e que não foi Deus que as quis. No entanto, o nosso anseio de mudança é muito fraco. Não nos atormenta como a fome de comida e a sede de água. Basta pouco para nos distrair ou basta alcançar um degrau a mais na sociedade para esquecermos da exclusão dos demais. Sempre olhamos para aqueles que achamos mais no alto da escada da vida, dificilmente olhamos para baixo. Pela situação confusa, culpamos os outros, o sistema, o destino, ou até mesmo Deus. Aceitar a responsabilidade de cada um, a nossa também, se feita de pequenos gestos de indiferença e de falsidade, nos custa muito. Nos falta escutar o ensinamento de Jesus e confiar mais na sua Palavra. Enchemo-nos demais com as nossas conversas. Acabamos saturados como numa pregação enjoada que nunca acaba. Um pouco de silêncio como aquele ao qual Jesus convidou os discípulos nos faria muito bem.

Ainda uma vez o livro

ESTE ESPAÇO jamais pode ser usado para assuntos pessoais.

Aqui, não tenho o Senado para atrapalhar-me, e sim o gosto de escrever. E nada melhor do que escrever sobre o livro.

Sempre acreditei que o livro e o jornal jamais acabariam. Sempre que surge uma nova tecnologia eles entram na berlinda. Leio, citado pelo jornalista espanhol Antonio Milan, que em 1894 perguntaram a um especialista qual seria o destino do livro no futuro: “Se por livro entendermos as inumeráveis somas de papel impresso, encadernadas sob uma capa com um título, reconheço que a invenção de Gutenberg cairá em desuso”. Para ele a vez era da reprodução fonográfica.

Era o som que entrava com tudo.

Com o advento da sociedade de comunicação, essa discussão aumentou e o fim do livro foi anunciado. Agora é a vez do “e-book” e do “kindle”. Este é capaz de armazenar milhares de obras que podem ser lidas, anotadas e folheadas. É uma tecnologia mágica, uma dessas porções que os bruxos da Idade Média buscavam criar.

Ela não deve ser descartada, mas não substitui o livro. Creio que sua maior aplicação será para estudantes, que, em vez de uma mochila cheia de cadernos e tratados, vão poder ter todos os livros de consulta à mão. Mas o livro impresso é uma tecnologia mais avançada.

Não precisa de chips em placas que se encaixam uma às outras de modo a levar à tela os textos, necessitando de energia nas baterias, que devem ser alimentadas de tempos em tempos. O livro não precisa de nada disso, não quebra e pode cair.

Não sei se é por amor ao livro, mas tenho como dogma, desses de fanáticos, que eles continuarão, assim como os jornais, e jamais serão passados para trás. Há no livro o gosto, livro tem gosto, desde o táctil até o cheiro bom.

Um amigo, o grande tradutor francês Jean Orecchioni, certa vez me disse que leu num livro uma descrição tão realista do mar que ficou enjoado e teve de tomar remédio para o balanço dos barcos.
Por milhares de livros que possam acumular essas máquinas, elas jamais acumularão os tantos livros que existem num livro. Quantos livros há no “Dom Quixote”, o cavaleiro da triste figura? São milhares, e cada frase é um livro. São emoções que não acredito que se possa ter num livro eletrônico em que a própria tecnologia interfere em sua leitura, que tem de permanentemente manusear os botões de sua máquina.

Mas salvará definitivamente o livro a poesia. Ela não cabe numa tela e não precisa do mercado, porque seus leitores são os restritos poetas que fizeram o provérbio “Poetas por poetas sejam lidos”.
Sempre precisaremos desse companheiro, que, como dizia o poeta espanhol Manuel Machado, nos leve da “prosa ao sonho”.

O mundo gira, a Rússia roda

Visitei a Rússia como presidente da República em 1988. Era o tempo da glasnost e da perestroika. Gorbatchov flutuava em meio aos desmontes do combalido império soviético. Mas os símbolos da utopia socialista estavam vivos. A moeda em circulação trazia, numa face, a foice e o martelo, na outra, a efígie de Lênin. A bandeira vermelha tremulava em todos os mastros, o hino nacional tocava os acordes triunfais do orgulho nacional, com versos que invocavam: “A força do povo nos leva ao triunfo do comunismo”.

Voltei dez anos depois. Tudo mudado. A moeda da foice e do martelo fora substituída pela da águia bicéfala, símbolo dos Romanof, usado secularmente pela dinastia czarista que foi derrubada pela Revolução de Outubro. Nicolau 2º, assassinado com a família nos primeiros dias da vitória, tornara-se santo canonizado pela Igreja Ortodoxa Russa. Entrei numa delas e vi o seu retrato rodeado de flores e pessoas rezando diante dele.

Mas o mais impressionante me aguardava ainda. Foi o que vi no velho restaurante São Petersburgo, em frente à igreja de São Salvador em Sangue, de luzes baças e polcas dançadas por belas jovens que saudavam as noites brancas de junho, eternizadas por Dostoiévski. Entrei e, após sentar-me, vi que ao meu lado estava Lênin, com seu boné, seu dólmã severo, seu cavanhaque inconfundível, sua pele amarelada, magro, o olhar fanático. Ao seu lado, um fotógrafo. Lênin, delicadamente, perguntou-me se podia sentar-se ao meu lado e ofereceu ser batida uma fotografia, que, esclareceu-me, custaria cinco dólares! O mito do século, com o corpo embalsamado no seu mausoléu, em Moscou, ali estava, como sósia de restaurante, lembrança turística da bela cidade de Pedro, o Grande!

Recordo esse fato porque li que Putin, atual presidente da Rússia, depois de uma consulta popular, resolveu recuperar símbolos nacionais. E fez uma salada. O país passara a ter duas bandeiras. Uma, a velha bandeira tradicional da Rússia czarista, branca, azul e vermelha; a outra, vermelha, da extinta URSS, que será de uso exclusivo das Forças Armadas, como seu estandarte. Como hino nacional, foi abandonado aquele que Ieltsin mandou compor e voltou o velho hino soviético, sem letra, porque a antiga, que falava “Lênin iluminou nossas vidas; Stálin nos deu formação”, já vinha sendo modificada desde os tempos de Kruschev. O novo escudo nacional voltou a ser, oficialmente, a velha águia de duas cabeças dos czares.

Quando a República foi proclamada, no dia 15 de novembro de 1889, levaram a Deodoro, no dia 17, proposta para substituir a bandeira e o hino. Ele decidiu: “A bandeira nacional, já tão conhecida e reconhecidamente bela, continua, substituindo-se a coroa sobre o escudo pelo Cruzeiro do Sul”. Depois, os positivistas acrescentaram “Ordem e Progresso”.

Na minha juventude, a frase mais divulgada e colocada em todos os lados não era “proibido fumar” nem sinais de trânsito, era uma regra de higiene: “Não cuspa no chão”.

Começamos o século como um país sem povo e chegamos ao ano 2000 com uma forte sociedade democrática e um PIB que ia se aproximando do trilhão de reais.

Dá vontade de lembrar Drummond: “mundo, vasto mundo” e plagiar um slogan de uma antiga transportadora: “O mundo gira, a Rússia roda”, e Lênin é atração num restaurante de São Petersburgo!!!

O novo esporte nacional

Deus me deu uma longa vida para que eu tivesse de ver passar muitas coisas — muitas delas até mesmo conflitantes. Na minha juventude, adolescência e maturidade, tínhamos um grande orgulho do Brasil. Todos amávamos a nossa terra, suas riquezas, suas belezas, seu povo. Hoje a moda é falar mal do Brasil: coitado dele, tão bom, mas vítima de surras do seu próprio povo. Muitos até mesmo têm inveja de outros países e pensam em sair daqui.

Quanto mais viajo, mais orgulho tenho do Brasil. E, como dizia o meu avô sobre o Maranhão, “Se a minha alma tiver vergonha, nem ela deixará esta terra tão extraordinária.” (?) Os seus defeitos são muito melhores do que os dos outros.

E agora que temos uma vez mais a fantástica visão da alegria do povo brasileiro com o futebol, mas vivendo as agruras da Copa — essa corrida de obstáculos em que o que mais sofremos é com os nossos jogadores —, sentimos até as distensões das pernas dos nossos craques.

Mas agora estamos assistindo a outro esporte nacional: malhar os políticos mais do que malhavam Judas no sábado da aleluia. Hoje acho que Judas está melhor do que os políticos, porque não há roda em que se falava do futebol em que hoje a bola da vez não sejam os políticos.

De tal modo que leio agora que um candidato a senador, oriundo dos meios de comunicação, diz que vai entrar na política, em que pode ser até uma porcaria de político, acrescentando que

“vocês podem ter um político de péssima qualidade, mas vão ter um cara que vai ser uma coisa só: honesto com você”.

Ora, eu sempre tenho dito que há políticos e políticos, políticos bons e políticos maus. Os bons, Joaquim Nabuco, no seu livro A minha formação, diz que “devem ser escritos com P maiúsculo”. Realmente, os políticos maus desmoralizaram bastante essa atividade das mais nobres dentro da sociedade.

E com que surpresa abro a Oração Devocional do Papa Francisco, do dia 22 de julho, com esta afirmação:

“Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. Nós, cristãos, não podemos brincar de Pilatos, lavar as mãos. Devemos nos envolver na política, pois a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. E os leigos cristãos devem trabalhar na política.”

A alusão que ele faz é àquela resposta de Pilatos: “Estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa“, quando ele responde ao povo que gritava que ele devia crucificar Cristo.

O bom político é aquele que está convicto de que sua atividade é pensar nos outros, fazer o bem, defender a igualdade e os que mais precisam. Os que agem diferente não são políticos, mas dela se utilizam, manchando-a.

Assim, concluo dizendo, como o Papa Francisco, que devemos abandonar esse esporte de falar mal do Brasil e da política. Condenemos os maus políticos, mas não deixemos que eles atinjam, com suas atitudes condenáveis e nada morais, o nosso País, onde abrimos todos, brasileiros, os olhos para a vida.

Cesta básica não tem leite

Acho que há no Brasil um preconceito contra o leite. Gilberto Amado foi o primeiro que me despertou para esse fato. “Jamais no meu estômago entrou uma gota de leite”, disse-me com gosto de ironia o autor da “História da minha infância”, numa noite fria de Nova York, em 1961, no bar do Black Stone Hotel. Alegava que fazia mal e citava o exemplo da vaca que dava coices no bezerro, quando ele, grande, queria mamar. “Leite é bebida de criança, adulto não deve tomar”.

Disse-lhe que era o alimento mais saudável da face da Terra e que não passava noite sem que antes de dormir bebesse um copo de leite. Nos meus anos de vida não me arrependo desse hábito. Lembro-me de Gilberto e do leite quando leio que na cesta básica que iria ser distribuída aos flagelados, não teria mais leite e sim um quilo de farinha de mandioca, para substituí-lo.

Quando presidente da República, eu criei o Programa do Leite, e chegamos a distribuir, por dia, 8 milhões de litros. Às vezes, segundo relatos da época, era o único alimento que era encontrado na mesa de muitas famílias, adicionado à farinha e ao arroz.
É verdade científica que a falta de alimentação até os seis anos de idade, ou alimentação deficiente, acarreta às crianças um dano irreparável ao desenvolvimento do cérebro, condenando-as a uma condição subumana.

O Programa do Leite foi extinto. Também muitos outros, como Farmácia Básica, Merenda Escolar ao seu irmão de seis anos, levando-o à escola, assistência infantil, com as recomendações da OMS e em cooperação com a Pastoral da Infância, e muitos e muitos outros.

Ora, num país de desnutrição endêmica, de grandes bolsões de miséria, de pobreza, ninguém pense que o Estado está desonerado de dar comida ao povo. Nos Estados Unidos, país riquíssimo, sem os nossos males sociais, o governo fornece à população os “bônus de alimentação”, para aqueles que são pobres. Eles os trocam por comida nos supermercados.

Aqui, esses problemas de fome vão ser resolvidos pela competição do mercado? É fácil condenar o assistencialismo necessário, quando se está de “barriga cheia”, como dizia Tobias Barreto no “Discurso de Manga de Camisa”. Temos grandes problemas que desafiam o Brasil, mas o lado humano e o social não podem ter postergação.

“Tudo pelo social”, um slogan que foi ridicularizado. Agora, todos gritam que é preciso caminhar para resolver esses problemas.

Quando submeti meu nome como candidato ao PMDB à Presidência da República, perguntaram-me qual seria meu primeiro ato caso fosse de novo presidente. Respondi: “Retomar o programa do leite”.

Médici, visitando o Nordeste num ano de seca, pronunciou a frase que não morreu: “O governo vai bem, mas o povo vai mal”.

Já não pesam sobre meus ombros os terríveis ódios políticos que motivaram a extinção do Programa do Leite e da Lei Sarney de incentivos à cultura.

Nada mais necessário, útil e grandioso do que quando o presidente Fernando Henrique, em meio à crise social que abalava o país, restaurou os programas sociais, principalmente o Programa do Leite e, em sua totalidade, os incentivos à cultura.

A Velha Época

Nova Iorque — A primeira vez que estive em Nova Iorque foi em 1961. Lá se vão 57 anos, mais de meio século. Ainda encontrei a cidade na transição daquilo que se chamou “La Belle Époque”, que acelerara a sua decadência com o fim da Segunda Guerra Mundial, para os anos dourados do início da Guerra Fria, que continuou a guerra por outros meios. O mundo se preparava para o longo período, que não se findou, da “Era Nuclear” — de que um dos mais burlescos capítulos acabamos de presenciar com o encontro Trump x Kim Jong-un. A então URSS (União Soviética) descobrira os segredos da bomba atômica, e a população dos Estados Unidos foi tomada de um medo que levou os jornais a publicarem anúncios da venda de “abrigos nucleares”.

Mas a cidade, como dizia Hemingway de Paris, “era uma festa”. Ainda existia o “American Dream”, o sonho utópico que o país formara de uma América-novo-continente, em que o homem encontraria o ideal de Jefferson “da busca da felicidade”, mas onde ainda se encontrava, de maneira revoltante, a discriminação racial, os negros segregados no Harlem (um gueto) e uma sociedade racista. Entretanto, os musicais, o movimento cultural, a alegria das pessoas, a crença de um mundo novo, o debate muito vivo de ideias, sem as mesquinharias dos dias de hoje, tudo nos levava a crer que estávamos nas auroras de uma nova era.

Meu mundo dentro da cidade era as Nações Unidas, onde eu era (já disse isso nesta Coluna) delegado do Brasil na Comissão de Política Especial e sentava ao lado de Golda Meir, a mulher símbolo de Israel. Não havia Emirados Árabes, e os velhos sultões desfilavam com suas roupas coloridas e suntuosas buscando reaver seus territórios. Nessa Comissão da ONU, discutíamos a Questão Palestina — que hoje é guerra — e tratávamos dos Refugiados Árabes da Palestina, isto é, aqueles que tinham saído dos territórios destinados ao Estado de Israel. Tratava-se também do apartheid da África do Sul, essa ignomínia cometida contra a raça negra. Orgulho-me de ter sido o primeiro, como intérprete do meu País, a anunciar, na ONU, a posição do Brasil contra o apartheid. Mas a discussão maior era o debate comunismo versus capitalismo. Foi nesse tempo que o representante de Cuba na ONU (eu vi) disse que seu país aderira ao mundo comunista.

Como tudo mudou! Mudou o mundo, mudaram os países, mudaram as pessoas, e os problemas atuais são gigantescos. Discutem-se as doenças desconhecidas, a sociedade de comunicação, as armas de destruição do mundo, as migrações massivas e o colapso da democracia constitucional, invadida pelo terrorismo, pelo populismo, pela destruição das instituições.

Tudo mudou
A Nova Iorque de hoje que eu encontro é outra cidade, e não aquela de 1961. Tudo mudou. É um grande shopping center. Resistem apenas os grandes museus, o espírito da cidade e os mais lúcidos tentando manter a imagem da cidade do coração símbolo de Nova York. A Time continua a publicar edições com o tema “NY, City of Love”. O New Yorker, o semanário local, continua na liderança do pensamento liberal no país.

A grande América resiste, país extraordinário de progresso e liderança mundial, na ciência, na tecnologia — e no consumismo. Não é mais a cidade que eu conheci com o encanto de meus trinta anos. Mudou a cidade ou eu fiquei velho?

É outra geração que surge, são outras cidades, outros mundos.
É hora de lembrar o nosso Machado: “Mudou o Natal ou mudei eu?”

Festas juninas sem boi

Nova York — Aqui nos Estados Unidos, aproximando-se as festas juninas, vou sentindo uma imensa saudade do meu bumba-meu-boi, do boi do Maranhão — que tem também no Amapá. Estas festas, tão importantes no calendário brasileiro desde que vieram de Portugal, assumiram no Maranhão essa face luminosa das fitas coloridas, das miçangas, dos brincantes e, sobretudo, desse boi mitológico, touro negro e boi espaço e injustiça das relações sociais, numa sociedade que ainda tem raízes agrárias, mas também transpôs para a vida urbana os preconceitos, as diferenças da sorte, as paixões e as tragédias de amor.

Sempre lembro que Roseana desenvolveu os passos que dei para prestigiar a cultura popular e desde cedo se tornou a defensora de sua arte, prestigiando seus artistas pelo que são, sem nenhum intuito eleitoral ou interesseiro.

Acompanhando mais de perto o que acontece neste país, em vez de boi as pessoas se distraem, se irritam e se amedrontam com os delírios de seu presidente. Agora o mais importante é o encontro entre as duas figuras histriônicas e patéticas de Donald Trump e Kim Jong-un. Marcado e desmarcado e remarcado, o encontro se dará num hotel de Singapura, se não houver desistências de última hora, no dia 12 de junho. Na mesa parece que não estarão, infelizmente, o fim do programa de armas nucleares norte-coreanas — que os coreanos só aceitam se os americanos acabassem com o seu, o que seria uma boa ideia —, nem a paz entre as Coreias do Norte e do Sul. Os dois dirão que ganharam a disputa de cabelos exóticos, pedirão o prêmio Nobel da Paz por quem faz mais ameaças de destruição e tudo continuará como dantes no reino de Abrantes.

Trump adora uma briga e uma provocação, mas frequentemente elas se voltam contra ele. Há alguns dias ele disse que tem o poder de perdoar a si mesmo. Veio o Paul Ryan, Speaker (Presidente) da Câmara dos Deputados, um dos principais líderes republicanos, e adverte: nem pensar. Agora, na reunião do G-7, ele chegou propondo que o grupo aceite de volta a Rússia, expulsa desde a invasão da Ucrânia. A reação foi a proposta de retirar os Estados Unidos do grupo.

É claro que nisso está o pano de fundo de seu afastamento das regras da OMC, a Organização Mundial do Comércio, para seguir seu talento de negociador — com o qual já foi à falência várias vezes. Assim, tem ameaçado impor restrições alfandegárias a todo mundo “para acabar com o déficit comercial” americano e, depois da mordida, assopra. Como do outro lado muitas vezes encontra pessoas com alguma experiência — tipo Merkel ou Xi Jinping —, seu sucesso é bem relativo. E as críticas surgem também do lado americano, como os plantadores de soja que temem perder o mercado chinês para outros países, como o Brasil.

Nem toda a sua loucura, no entanto, abala a grandeza americana, com crescimento e taxas de emprego de fazer inveja a muito país.

Mas nem tudo me distancia do Brasil.
Esta semana Machado de Assis é louvado largamente pelo lançamento de “The Collected Stories of Machado de Assis”.

O New York Times diz: “Poucos autores de ficção escreveram tão afetuosamente sobre ideias, como se fossem pessoas reais; ele está sempre descrevendo como as ideias surgem e se modificam, o modo como podem perder seu curso e entrar em choque com outras.”

Machado é a glória que fica, eleva, honra e consola, como ele disse da Academia ao inaugurá-la. Glória que atinge a todos nós brasileiros.