José Sarney

Aeroporto: belo sonho sonhado

É a realização de belo sonho o aeroporto de Macapá, inaugurado sexta feira. Quando fui eleito Senador pelo Amapá, sonhei dotar o Estado de uma infraestrutura capaz de transformá-lo num grande estado. Pensava alto. Nada de plantar couve, plantar carvalho, como dizia Rui Barbosa.

Em 1990 o aeroporto era modestíssimo, pequeno barracão de embarque. Apenas uma linha da Varig, representada por Zagury, servia a cidade. O porto de Santana era em Belém, de onde vinham as cargas para cá, em balsas. A estrada de asfalto que existia, a BR para o Oiapoque, tinha apenas cento e poucos quilômetros, até Ferreira Gomes, já construída por mim quando Presidente da República. Vim inaugurá-la juntamente com a ponte sobre o Rio Araguari, também feita no MEU GOVERNO. Energia, apenas quatro motores a óleo, que forneciam a Macapá eletricidade intermitente, com apagões mais da metade do dia.

Resolvi o problema da energia com os motores novos que consegui da Bahia, com o Governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, e depois, definitivamente, com o Linhão de Tucuruí. Consegui a transferência do porto de Belém para Santana e construímos lá o terminal de Contêineres para atender à Zona de Livre Comércio Macapá-Santana, obra que me custou grande luta. Assim, o Amapá tem hoje nela o motor de sua economia e a História do Estado se divide em antes e depois dela. Antes ia-se daqui para Belém para comprar, hoje de Belém se vem aqui para se abastecer. O que seria do Estado se não existisse?

Parti para consegui construir um novo aeroporto. Trouxe o Brigadeiro Adir, então presidente da Infraero, para fazê-lo. Mas naquele tempo havia uma longa lista e, para sermos prioridade, o governo do Estado tinha de participar da obra: apenas 10%. Mas o Governo alegou que não tinha recursos para participar. O meu sonho e o sonho do povo do Amapá foi adiado.

Quando Lula foi eleito, escolheu para presidente da Infraero o ex-Senador Carlos Wilson, que era meu velho amigo. Pedi a Lula o aeroporto novo para Macapá. Foi a primeira obra autorizada por ele. Carlos Wilson, para ajudar, mandou que o projeto básico fosse o mesmo que fora construído em Palmas. Quando me mostrou não tinha pontes que levassem o passageiro até o avião. Não concordei e o modificaram.

Foi feita a licitação. O consórcio que ganhou faliu. A obra parou e depois várias tentativas para termina-lo fracassaram por problemas dos construtores com o TCU. Continuamos lutando, até que conseguimos a retomada das obras, já então com recursos apresentados por emendas da bancada federal, que tiveram grande participação.

Agora está sendo inaugurado. Saúdo o povo do Amapá com meus parabéns. Eu amo este Estado. A ele devo um pedaço da minha vida. Aqui tenho grande amigos e sou grato ao seu povo.

Dizem os chineses que quem for beber água num poço deve lembrar de quem abriu o poço. Está no livro do Gênesis que no princípio era o verbo, o sonho.

Macapá agora tem novo ícone, o belo Aeroporto. Parabéns.

Velhos guerreiros

O tempo destrói tudo. E constrói. É dele que se faz a vida. Comovem, como exemplo, pessoas que, sendo o presente, são passos do passado. Lembro nossos velhos comunistas, intransigentes, ranzinzas nas posições inabaláveis. Como os santos, acreditavam em Deus e no Diabo. Contra este, matavam; por Aquele, morriam.
Essas reflexões ocorreram-me quando li uma entrevista de Santiago Carrillo, o velho líder comunista espanhol. Ele é da geração e da estirpe dos nossos Prestes, João Amazonas, Giocondo Dias, Álvaro Cunhal, o português. Isso significa vidas – umas mais, outras menos – de exílio, prisões, clandestinidade. Naqueles últimos dias, transcorreram na Espanha os 25 anos da matança da rua Atocha, 55, em Madri, começo da abertura política. O rei Juan Carlos tinha dado o sinal verde. Adolfo Suarez iniciou o processo. Um grupo de ultradireita invadiu o escritório dos advogados dos presos comunistas e assassinou cinco deles, cantando “Cara al Sol”, o hino franquista. Queriam deter a abertura.

Carrilo depõe: “A partir desse instante, tudo mudou”. Todos se uniram para enfrentar o radicalismo. Surgiu Moncloa e a legalização do Partido Comunista Espanhol. Quando se fala na democratização espanhola, esquecemos que foi marcada por um banho de sangue.

O Brasil fez a transição mais pacífica de todas. Lembro-me da legalização dos partidos comunistas. Hoje parece um assunto banal. Ser comunista despertava ódio e ameaças. Tancredo Neves, diante do problema, que era crucial para os militares, disse que a legalização do PC era um assunto do Judiciário, não do Executivo. Quando assumi o governo, minha conduta foi remover de uma vez todos os impasses. Tancredo, com sua força política e sua liderança, poderia ter estratégias de aproximação sucessivas. Eu não. Tinha de ganhar tempo para evitar reações. Assim, antes de qualquer discussão, surpreendi a todos recebendo Giocondo Dias, João Amazonas e os líderes dos partidos chamados fora-da-lei. A partir daquele instante, não havia mais o que discutir sobre partidos comunistas. Estavam incorporados ao processo político, com o aval do convívio com o presidente, o que acabava com o preconceito e com a discriminação.

Conheci então, de perto, Giocondo Dias, de quem Jorge Amado gostava muito. Homem simples, patriota e bom. E João Amazonas, que assumiu a sua aposentadoria, cercado pelo respeito nacional, uma vida de firmeza missionária. Quando conversava com ele, ouvia os passos de sua geração de resistência. Tempos depois, encontrei-o em um avião, já no esforço da velhice, ainda na paixão da luta. Era o mesmo idealista. Prestes, pessoalmente, vi uma só vez – foi visitar-me numa peregrinação que fez ao Congresso. A foto de sua visita foi aproveitada num filme que rodou nos quartéis para mostrar a cumplicidade dos comunistas com a chapa Tancredo-Sarney.

Vejo com o mesmo olhar Castelo Branco, Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto, Raul Pila, Juarez Távora, Austregésilo de Athayde, Barbosa Lima Sobrinho, Arthur Bernardes, Tristão da Cunha. De todos, esquerda ou direita, podíamos discordar, mas jamais deixar de respeitar suas idéias e louvar suas vidas. Nossos velhos são a nossa história.
Hoje, muitos falam da transição democrática citando pessoas com um sotaque de discriminações.
Eu, oleiro desse período, que amassei o duro barro da restauração das instituições, quando vi a Espanha lembrar seus massacres político-ideológicos, recordei a paz e a tolerância com que o Brasil voltou à democracia.

Tempo de orações

Começou a Quaresma? Não sei. Antigamente era período religioso fixo que se iniciava na Quarta-Feira de Cinzas. Hoje, depende. Na Bahia ninguém sabe bem quando acaba o Carnaval e, se o Carnaval não acaba, não começa a Quaresma.

No Maranhão, a Quaresma verdadeiramente só começa depois do “lava-pratos” na igreja de São José do Ribamar, o santo padroeiro do Estado, no domingo após o Carnaval, quando se reúnem todos os blocos e foliões, entre ressacas e devoções.

Nos Estados Unidos, de onde acaba de chegar o doutor Armínio Fraga, presidente do Banco Central, não há Quaresma porque não existe Carnaval. Em Veneza há um Carnaval lerdo, mas, como é tradição na Itália, na quarta-feira os sinos tocam em dobrados de tristeza chamando os fiéis às cinzas.
No Brasil muitas vozes pedem que diminua esse espírito de Carnaval permanente, mas a tendência é as Quaresmas eventuais diminuírem.
Afinal, o Carnaval é a preparação dos cristãos, permitindo-lhes uma concentração de alegrias, para enfrentar os 40 dias bíblicos de Moisés e Jesus Cristo, no deserto, mergulhados em oração e sofrimento, para chegar à semana da Paixão.

E as cinzas? São o simbolismo da dor, conforme os textos sagrados. Tamar, quando violentada por Amnom, rasga as vestes e passa “cinza na testa”. O rei de Nínive, avisado pelo profeta Jonas da destruição da cidade, deita-se “sobre cinzas”. As cinzas sempre lembram o infortúnio e o destino do homem: o pó, o nada.

E nada mais ausente do espírito carnavalesco do que a lembrança da morte. O Carnaval tem o dom de fazer esquecer tristezas. O país, nessa época, tira férias. Não só do trabalho, mas de suas preocupações e problemas. É tempo de tréguas. Não há governo nem oposição, nem Bolsa, nem dólar, nem recessão, nem inflação. Se os governos durassem os dias de Carnaval, seriam lembrados como os melhores governos, justamente porque no tempo de Carnaval a sensação geral é de falta de governo. O poder é exercido diretamente pelo povo nas ruas, numa manifestação de poder anárquico.

Afonso Arinos dizia que não se podia falar de poder sem pensar em pessoas. Esse é mais um fenômeno na área da sociologia do que na da ciência política. O poder é um grupo de pessoas que fala em nome de todos.

Senti isso quando ouvi uma passista de escola de samba dizer na TV, banhada em felicidade: “Hoje é meu dia. Eu mando e desmando, sou rainha, posso tudo, sou dona de mim e de todos”. Para concluir: “Dura pouco, mas sou total”.

Esse é o espírito do poder total da alegria. Nada mais democrático do que um dia de Carnaval; ninguém é rico nem pobre, nem chefão nem comandante. Todos estão nivelados por uma força interior de busca da felicidade momesca.

Como em tudo, a porta da perdição é mais larga do que a da salvação. Alguns em busca do Carnaval que invade e se prolonga na plenitude de todos os gostos. Agora, com ou sem Carnaval requentado, é enfrentar a Quaresma, tempo de meditação. E o Brasil está precisando muito de muita meditação, de preces e indulgências. o Amapá também.

Imprensa e governo

É um tema que jamais se esgotará as relações imprensa versus governo. Foi no século 18 que se estabeleceu uma grande regra sobre esse antagonismo: a primeira emenda à Constituição Americana, de autoria de Thomas Jefferson, que assegurava a liberdade de imprensa, contrabalançando a inviolabilidade da palavra dos congressistas.

Àquele tempo, a imprensa jeffersoniana era um panfleto-jornal, do tamanho do que é hoje uma página de livro, impresso em prensa artesanal, papel grosso e molhado. Duzentos anos se passaram. Hoje, tudo mudou. O jornal é o rádio, a televisão, o outdoor, a Internet e centenas de meios maiores, menores, imaginativos, grosseiros, o chamado instrumental da comunicação, não para contrabalançar a inviolabilidade da palavra do Legislativo, mas para influir sobre as pessoas, criar opiniões, induzir o consumo, os hábitos, monitorar e forçar decisões. Deixou de ser o quarto poder para ser aquele sobre o qual nenhum controle institucional é lícito existir.

Comunicação tem mais a ver com o conjunto das atividades econômicas do que com o governo. Mas há, por trás desse processo, um aspecto político que evidencia a obsolescência do sistema concebido por Montesquieu, que durou 250 anos e está em total desintegração. Agora, a discussão é saber: quem representa o povo? O Legislativo ou a mídia? A mídia já ganhou essa batalha. Há uma falência da democracia representativa que não pode concorrer com a massificação dos assuntos, em tempo real.

Nasceu um novo interlocutor da sociedade democrática: a opinião pública, que se expressa pela mídia, que é um dos maiores ramos econômicos mundiais e influencia todos os outros negócios públicos ou privados, direta ou indiretamente. Orienta o mercado financeiro, o consumo, os hábitos e tem o poder de acuar governos. Não há mais vínculo com a instituição jeffersoniana do século 18.

A legitimidade de governar no sistema representativo é dada pelas eleições. Essas são, hoje, um ritual meramente formal. As eleições envelhecem. São apenas um momento, um estado de espírito. Não é incomum, um mês depois de eleito, um mandatário perder a legitimidade. Esta reside na opinião pública, aferida por pesquisas de opinião.

Duas grandes revoluções ocorreram: o alto desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação e a libertação da mídia da publicidade governamental. O grande faturamento vem de setores particulares. Esses necessitam da mídia para ganhar dinheiro, e a mídia libertou-se do governo. A única ameaça que ronda seu poder é a Internet, mas a mídia já invadiu a Internet e com ela tem estreita relação.

O livro do senhor Mario Conti, “Notícias do Planalto”, acabou reacendendo essa discussão que, além do perigo da manipulação política, pesquisada com correção e trabalho exaustivo, nos remete a uma reflexão sobre um novo modelo, pós-democracia representativa, que certamente vai surgir, tema de efervescência entre os cientistas políticos. Acham estes que o Muro de Berlim não caiu somente sobre o comunismo, mas sobre o modelo político do Ocidente, abalado por dois setores novos: a mídia e as ONGs.

O horror via internet

Os dois atentados desta semana trágica têm uma advertência: a internet, como toda tecnologia, pode ser usada pelo bem ou pelo mal, para o bem ou para o mal. Assim, temos que ficar atentos aos desafios de evitar, ou frear, essa face.

O caso mais emblemático foi o duplo atentado terrorista da Nova Zelândia. Lá o assassino atingiu duas mesquitas. Preso pela polícia, disse esta monstruosidade: “Não era preciso mirar, eu tinha alvos à vontade.”

Antes de chegar à mesquita de Al Noor, em plena hora das preces, quando cerca de 400 pessoas rezavam, ele parou, olhou para a câmara que o filmava e citou o nome de PewDiePee — um cômico que nada tem a ver com o terror, até há pouco tempo o mais acessado youtuber, pedindo que subscrevessem seu site. Um truque para que a transmissão do crime ao vivo, via Facebook, fosse assistida por mais pessoas.

Dali ele partiu para a primeira etapa do atentado, atirando a esmo entre os fiéis e matando 41 pessoas — um dos muitos feridos morreu depois num hospital. Frio, voltou ao carro e dirigiu até outra mesquita, onde mais sete morreram.

Enquanto isso, na internet, ocorria uma caça de gato e rato: a corrida entre os serviços do Facebook para fechar os links e as reproduções dos atos e sua reação em cadeia, como numa bomba nuclear, logo continuada em outros aplicativos. Mas o papel da internet no atentado não se limitou à exposição. Um manifesto do terror vinculou sua inspiração aos cultos da extrema-direita, citando o nome dos principais sacerdotes dessa religião, já antiga, mas agora renovada, da morte cega.

O assassino usou cinco armas, de pistolas a rifle automático. A Primeira-Ministra da Nova Zelândia foi enfática: as leis sobre armas do país vão se tornar mais rígidas, para aumentar a segurança. A nação do Pacífico é muito pacífica, e os 49 mortos desta trágica sexta-feira bateram, num só dia, seu total anual de homicídios.
Se o número de mortos lá foi maior, a nossa tragédia de Suzano nos fere mais o coração. Esses dois rapazes que também se prepararam frequentando páginas de doutrinação não agiram contra o “inimigo” do outro lado, mas contra os mais próximos de si. O tio que queria que um deles estudasse, os professores que representavam a educação, os colegas de bairro e escola.

Na internet treinaram nos vídeo-games e compraram parte, ao menos, de suas armas. Nós, também, temos que denunciar a facilidade do acesso às armas de fogo, responsável por nos colocar no terrível destaque mundial de país com mais homicídios do mundo.

E, no Maranhão, por exemplo, é necessário que se mude com urgência a política de segurança. Não é possível que os números mensais sejam equivalentes ao total anual de mortos da Nova Zelândia.

Ajoelhou tem de rezar

O Tempo da Quaresma começou. São os quarenta dias que antecedem a Páscoa, a Ressurreição, que, como diz São Paulo, é a essência do catolicismo, chegando mesmo a afirmar que “sem ressurreição não há cristianismo”. Este número de quarenta, cheio de significado no Antigo Testamento, também está ligado a várias passagens da vida de Cristo. Seus pais José e Maria levaram quarenta dias para levá-lo ao templo, quarenta dias, como dizem S. Lucas e S. Mateus, levou Jesus no deserto meditando antes de entrar em sua vida pública, e quarenta dias levou o Cristo para subir ao Céu depois da Ressurreição.

A Quaresma também é tempo de conversão dos ateus, dos agnósticos, dos ímpios e dos que seguem toda forma de não acreditar em Deus.

Marx dizia que a religião era o ópio do povo, porque o levava a esquecer os problemas materiais e a se dedicar a uma esperança vã de um ser superior, que lhe havia dado a graça de criar o mundo e criar a nossa vida.

No Maranhão estamos vendo o milagre da conversão dos comunistas, renegando o materialismo para acreditar em Deus, e ajoelhar-se para receber a benção quaresmal. São raros os milagres que acontecem em terras nossas, como esse a que nós estamos assistindo. Quando o Maranhão se formou, Nossa Senhora transformou a areia da praia em pólvora. Agora nós estamos vendo o círculo de pastores evangélicos impondo as mãos sobre as autoridades para que elas cumpram o ditado popular: “Ajoelhou tem de rezar”. E eles, contritos, rezaram, e na quarta-feira, foram receber as cinzas, quando o sacerdote proclama as palavras eternas que conscientiza os homens no ritual cristão: “Memento, homo, quia pulvis es et tu in pulverem reverterem.” — “Lembre, homem, que sois pó e em pó vos haveis de tornar.”

Isto nos deu uma visão de homens contritos, de tal modo que o Prefeito baixou tanto a cabeça que parecia mais um daqueles presos da Lava Jato, escondendo o rosto para não ser reconhecido, com o japonês ao lado.

E a conversão aconteceu, saíram de casa, brincaram o Carnaval, não deram dinheiro para os outros brincarem e se recolheram à meditação, deixando o comunismo, Marx e quejandos chupando o dedo, enquanto eles entravam na área das bem-aventuranças, passando pela ala dos santos e das virgens.

O glorioso poder dos fariseus que fingiam e a quem Jesus Cristo apostrofou: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos. Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia!” (Evangelho segundo São Mateus 23, 27-28 — Palavras de Jesus Cristo!)

Depois do dilúvio, cessada a chuva, foram necessários quarenta dias para que as águas baixassem e os homens — e os outros animais — pudessem pisar em terra firme. É o tempo dos milagres.

Oh! Maranhão de Nossa Senhora da Vitória, bravos agradecemos a conversão dos infiéis e que abandonem o ódio e as penas de pavão.

Ajoelhou, tem de rezar em grego: “Kyrie eleison! Christe eleison!”

Eu te conheço Carnaval

Eu tinha um tio Ferdinand, funcionário do Banco do Brasil, que era completamente louco pelo Carnaval. Para ele, o reinado de Momo começava no dia 31 de dezembro, quando nos costumes do velho Maranhão, abriam os bailes populares, de dominó, em que as mulheres reprimidas pela discriminação tinham uma oportunidade de, sob o anonimato, ”rodar a baiana”, e outros, homossexuais banidos e martirizados pela segregação, vestidos de mulher, soltar “a franga”. O baile de máscara acabou e foi até uma marchinha do tempo do Cafeteira (Cafeteira não quer/ máscara neste Carnaval!) e começou a modernidade menos carnavalesca e mais luxuosa das escolas de samba.

Dos bailes populares o mais célebre era do Moisés, uma figura simpática e alegre que conhecia todos os segredos e desejos que nascem e morrem no Carnaval. O Moisés todo ano abria o seu baile, sempre num sobradão desalugado, com grande pompa. Não só meu tio, meu pai e eu também, éramos seus fregueses. Eu menos do que eles, porque sempre fui retraído para a folia.

Outro dia, escrevi aqui sobre os folguedos populares e sobre a identidade brasileira e afirmei que o forte do Brasil era a música e incluí o Carnaval entre as referências maiores. O Carnaval é a mais alta manifestação da cultura da alegria do brasileiro, momento para a picardia e o riso, além de outras coisas boas que ele desperta. Com algum exagero, hoje, tendem alguns radicais religiosos e o Ministério da Saúde a julgá-lo um bacanal. Veja-se os anúncios que o Ministério divulga nas campanhas dos preservativos: “Tenha um Carnaval seguro, use a camisinha”. É até uma negação do significado de Carnaval, que todos afirmam vir do latim CARNE VALE, adeus a carne, porque anunciava um período que precedia a quaresma, tempo de jejum, inclusive do corpo.

Não sei por que me lembrei associar este Carnaval ao meu tio Ferdinand. Ele me traz à memória o seu bloco “O Bando da Lua”, sua participação no Corso lendário de domingo gordo, quando desfilava no carro da Chicó, entre aquelas mulheres de saias grandes colocadas para fora das carrocerias dos carros enfeitados. Seu espírito boêmio incorpora uma estória que fazia parte da história da nossa família. Um tio-avô nosso morreu no sábado de Carnaval, em São Bento. Ele recebeu um telegrama com a triste notícia. Leu e disse à esposa: “Guarde este telegrama e não diga nada a ninguém. Na quarta-feira de cinzas abra e comunique os amigos. Feche a metade da porta – como era costume – e vamos começar o luto”.

E esbaldou-se na farra durante o Carnaval. Algum abelhudo descobriu a morte do velho e cobrou dele, que pulava e não cantava no Bloco: “Canta Ferdinand!”, e ele respondia: “Não posso, estou de luto”.

Todos à folia.

Dom Motta E O Horário De Deus

No Amapá não existe mais horário de verão, sentido pela população apenas nas mudanças dos programas de televisão. Mas quando ele começou, na década de 1960, foi um inconformismo grande. Eu era governador do Maranhão em 1965, o último eleito diretamente pelo povo depois do movimento de 1964.

O povo chamava o horário de verão de horário novo e o outro, de horário velho ou “horário de Deus”. Era uma confusão muito grande porque ninguém obedecia ao relógio. Quando se marcava um encontro, vinha a primeira pergunta: “É no horário novo ou no horário de Deus?”

Senti isso na própria carne de maneira dramática, pois àquele tempo tínhamos ainda, no Natal, a Missa de Galo celebrada à meia-noite. Fazia parte dos costumes e dos respeitos a presença do Governador e do Sr. Arcebispo, àquele tempo, Dom João Motta, irmão do meu querido amigo e depois colega da Academia Brasileira de Letras, o grande poeta Mauro Motta. À meia-noite, cumprindo o horário de verão, cheguei à Igreja da Sé e lá sentei-me com minha mulher no lugar que nos era reservado.

E aí é que vem a história. Deu meia-noite e quinze, meia-noite e trinta, quinze para a uma, e o Arcebispo não chegava. Fiquei preocupado e com medo de que tivesse acontecido alguma coisa com ele.

Eis que, calmamente, então, Dom Motta veio entrando na Igreja, me cumprimenta na primeira fila, e eu, ingenuamente, pergunto: “Houve alguma coisa com o senhor?” Evidentemente, me referindo à demora. Ele, calmamente, me respondeu: “Ah, o senhor veio no horário novo? Eu vim no horário de Deus.”

A verdade é que, no Norte e Nordeste, ninguém se conformava com essa mudança de horário. Antônio Carlos Magalhães, com um projeto de lei, acabou com ele no Nordeste e na Amazônia. Nessas regiões, era uma confusão danada em todas as solenidades e festas. Muita gente perdia avião, enterro, batizado e casamento.

A justificativa de sua existência era a do consumo de energia e de a luz do sol entrar pelas primeiras horas da noite deixando as luzes públicas e residenciais apagadas.Pelos cálculos que tenho lido, ao longo desse tempo, a economia mensal tem sido de cerca de 5%.

Hoje, dezesseis de fevereiro, à meia-noite, no sul, eles vão aumentar os relógios em uma hora. Deus queira que, com o novo horário, desapareça o urubu que pousou na nossa sorte neste início de 2019. Brumadinho, restos de Mariana, jogadores do Flamengo queimados, jornalista Boechat vítima de lamentável acidente aéreo, Presidente Bolsonaro operado — graças a Deus já voltou —; o Fluminense ganhou do meu Flamengo de 1 x 0, o meu Bode Gregório suou para bater no Santa Quitéria, e eu, não encontrando assunto, estou malhando o horário de verão.

Que Deus nos afaste essa onda de tragédia!

As Migrações Massivas

Desde 1992, pertenço a um órgão internacional de ex-presidentes da República e Chefes de Governo que se chama InterAction Council, composto de quarenta membros. Foi fundado pelo grande estadista japonês Takeo Fukuda, ex-Primeiro Ministro do Japão, e por Helmut Schmidt, Chanceler da Alemanha e um dos grandes homens de Estado da Europa, conhecido por seu talento e suas virtudes pessoais. Da América Latina eram três escolhidos: Miguel de la Madrid, do México; eu, José Sarney, do Brasil; e Raúl Alfonsín, da Argentina.

Ali convivi com grandes personagens mundiais. Do InterAction faziam parte Carter, Clinton, Valéry Giscard d’Estaing, Trudeau, o próprio Fukuda, Helmut Schmidt, Mikahil Gorbachev, Lee Kuan Yew, Felipe Gonzaga e tantos outros grandes homens. Discutíamos duas vezes por ano, tendo como convidados grandes conferencistas (McNamara, Kissinger…), e a temática era sobre assuntos mundiais da atualidade.

Mas recorro a essas lembranças para recordar a genialidade de Helmut Schmidt, o maior orador que conheci, de quem disse Élio Gaspari que, quando falava, era como se ouvíssemos um concerto de Bach. Numa dessas reuniões o tema era Os Problemas do Futuro da Humanidade: doenças desconhecidas, armas nucleares, vetores etc.

Helmut Schmidt propôs: “migrações massivas”. Isto há 30 anos. Ele, como profeta e homem público visionário, defendeu a introdução desse tema, dizendo que no futuro, com o fim das barreiras físicas e a formação de blocos regionais, as populações iam mover-se em busca de melhoria de vida, fugindo da miséria, do confronto de civilizações, das guerras, das perseguições religiosas e da insustentabilidade de alguns países, inclusive em balanço hídrico e alimentação — o que já se verifica, especialmente em alguns países da África.

Minha intervenção foi sobre armas nucleares: “enquanto existir uma ogiva nuclear na face da Terra, a humanidade estará sempre em perigo”. Hoje, quando assistimos ao começo de uma nova corrida armamentista, essa perspectiva nos assusta.
O que eu queria ressaltar é a genialidade de Helmut Schmidt ao prever as migrações e suas consequências. Hoje a Europa é invadida por refugiados do Oriente Médio e da África. Diariamente assistimos à tragédia da travessia do Mediterrâneo, com navios cheios de migrantes desesperados e quase morrendo. Podemos vê-los aqui mesmo na América Latina, com as migrações vindas do Haiti e da Venezuela, além das menores, de bolivianos, paraguaios e outros.

Pelo meu lado, agora que Trump e Putin acabam com os tratados de contenção nuclear INF (Intermediate-Range Nuclear Forces), de 1987, e START (Strategic Arms Reduction Treaty), de 1991, renovado em 1993 e 2010, e a Rússia desenvolve um míssil nuclear com cinco vezes a velocidade do som, em resposta ao anúncio americano de que desenvolve bombas nucleares de pouca potência (as velhas “bombas táticas”, que poderiam ser usadas mais facilmente por terem “danos limitados”), volto a ter medo de que o mundo possa acabar na insensatez dos homenzinhos e no inferno do holocausto nuclear.

A Venezuela num abismo

Estamos assistindo à situação trágica e triste da Venezuela. Não é com satisfação que invoco ter sido a primeira voz a levantar-se no Brasil, em discurso no Senado, contra os atos ditatoriais iniciais de Hugo Chávez, fechando rádios e televisões, começando o esmagamento da democracia.

A começar pela falsidade de chamar o seu movimento de “democracia socialista bolivariana”, uma vez que Bolívar morreu em 1828, sua luta era contra as monarquias e a favor da implantação de repúblicas na América do Sul — e a palavra socialismo aparece pela primeira vez nas enciclopédias em 1838, dez anos após à morte do Libertador. A escalada para a morte do estado de direito venezuelano prosseguiu com a prisão dos líderes oposicionistas, lembremos Lopez e Ledezma e suas heróicas mulheres Lilian e Mitzy correndo o mundo para sua libertação.

Felipe González, ex-primeiro-ministro da Espanha, meu amigo, com uma carta minha de solidariedade, foi à Venezuela para integrar-se aos protestos contra a ditadura que ali se implantava. Tragédia maior estava por ocorrer: Chávez, que rejubilava-se de ficar no governo até 2013, morre, e o substitui essa figura bizarra e grotesca de Maduro. Chávez tinha um objetivo, que ele resumia no seu lema “pátria, socialismo ou morte”, e em querer que a Venezuela se tornasse potência militar do continente. Nos tempos áureos do petróleo de preços altíssimos, compra 60 bilhões de dólares de armas, mais de 160 caças russos, 600 mil bombas guiadas por GPS, estações de radar chinesas ultra-sofisticadas, 138 navios, 15 submarinos, 100 mil rifles AK-103, distribuídos às milícias, e o direito de produzi-los.

Perguntava eu no Senado, àquele tempo: “Já que habitamos um continente pacífico, armar-se desta maneira contra quem? Para quem? Com que objetivo?” Evidentemente que tamanho poderio militar colocava o Brasil numa situação de inferioridade no continente e vulnerável em sua soberania. Denunciei que seu objetivo era retomar o território de Essequibo da Guiana — questão de limites da qual o Brasil participou e em que perdeu, no laudo do Rei da Itália, a parte do nosso território que levava nossa fronteira à bacia do rio Essequibo. Logo, uma guerra dessa natureza, que agora Maduro confessa ser um de seus objetivos, nos oferece uma visão do perigo que representa para nós uma ditadura dessas na Venezuela.

Chávez ainda dizia “a revolução na Venezuela é pacífica, mas não desprovida de armas”, o que se inspirava na frase de Lenine quando afirmou, na revolução de 1917 com o partido único: “Camaradas, agora não necessitamos de oposição: é melhor discutir com os rifles.”

Não deixemos passar essa oportunidade: o continente, bem como todas as nações civilizadas, deve se unir para encontrar uma solução pacífica para retirar a Venezuela dessa ditadura cruel e restituir o estado de direito ao país, que está à beira de uma guerra civil e vive uma catástrofe humanitária.