José Sarney

O SUDS e o SUS

Está sendo lançado Saúde no Brasil — Provocações e Reflexões, livro da maior importância para o País. Embora reunindo textos escritos ao longo de vários anos, e José Aristodemo Pinotti, seu autor, tenha falecido há dez anos, a reação do Brasil à pandemia enfatiza a necessidade de que todos os responsáveis pela Saúde o leiam e reflitam sobre sua mensagem.

Um aspecto essencial é sermos um país com sistema de atendimento universal à saúde — o único com mais de cem milhões de habitantes. Sem ele nem podemos imaginar a escala — já desmesurada — que teria entre nós a catástrofe da Covid-19. Os pobres sabem que sua única esperança, nessa hora, é o SUS.

O SUS não nasceu com esse nome. Chamava-se SUDS. Fora uma sugestão cristalizada na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Fui aconselhado a não comparecer, pois seria “de esquerda” — era presidida pelo Sérgio Arouca, da Fiocruz, filiado ao PCB —, mas não só compareci, acompanhado dos ministros Rafael de Almeida Magalhães e Roberto Santos, como determinei que suas conclusões fossem observadas. Daí surgiram as normas que criaram os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde, implementados por meio de convênios com o governo federal.

Pinotti era Secretário da Saúde de São Paulo e criou Sistemas Locais de Saúde em todo o Estado. Com o conhecimento do grande médico que foi um dos heróis da saúde pública no País — além de constituinte e reitor da Unicamp — Pinotti mostra como o SUDS virou SUS na Constituição e depois de meu governo o ter implantado passou por um período de desmonte, de que nunca se recuperou. Seu livro revela alguns dos aspectos mais críticos da política brasileira de saúde pública — aliás, da ausência de uma Política de Estado de Saúde Pública.

Uma vez lembrei aqui a apropriação de minhas iniciativas, citando o conto de Erasmo Dias, O roubo dos personagens. Começa pela lei de incentivos fiscais à cultura, a Lei Sarney, que acabaram para recriar como Lei Rouanet. Fui eu quem, no manifesto da Bossa Nova da UDN, falou pela primeira vez em “desenvolvimento com justiça social”. Fui também pioneiro em propor cotas raciais, o programa do leite, o vale-transporte e por aí iríamos longe. Rafael de Almeida Magalhães, algum tempo antes de falecer, me escreveu uma carta lembrando o caso do SUS, a equiparação dos direitos previdenciários do trabalhador rural ao urbano, o benefício de prestação continuada — renda mensal vitalícia a idosos, incapacitados e deficientes, que é dada 4,8 milhões de pessoas e no valor de 29 bilhões. E lembro ainda a lei de distribuição gratuita do coquetel contra a AIDS, levada pela ONU a vários países por todo o mundo.

O Dr. Dráuzio Varella diz que o SUS é “a maior revolução da história da medicina brasileira” e que “sem o SUS é a barbárie”. É com a autoridade de seu criador que fico chocado com a notícia de que a taxa de cura da Covid é 50% maior na rede privada. É um indicador da desigualdade social incompatível com o espírito que criou o SUS e com os próprios princípios básicos do Estado brasileiro.

Salvemos o SUS! O Dr. Pinotti dá o caminho.

O corona e a muriçoca

Quando Mário Meireles, o grande historiador maranhense, que deixou uma lacuna impreenchível, morreu, uma filha sua comentou: “Meu pai, que resistiu a tantas doenças e tantos obstáculos, foi morto por um mosquito.” Ele tinha falecido de dengue.

 

Agora, as grandes potências, que desenvolveram arsenais de armas de destruição, treinaram milhões de homens para destruir e conquistar, criaram indústrias dedicadas a fazer armas cada vez mais mortíferas, usaram por tantos anos tantos cientistas para desintegrar o átomo e construir armas que ameaçam a destruição da Humanidade, de repente se deparam com um competidor na capacidade de matar e destruir. O corona é um micro-organismo tão pequeno que o cientista precisa de um microscópio eletrônico que aumente um milhão de vezes sua imagem, e assim possa ver suas coroas e estudar seu poder destruidor, que não ainda não foi completamente revelado: só mostrou que é capaz de matar mais de meio milhão de seres humanos, infectar treze milhões, desmontar a economia mundial, criar centenas de milhões de desempregados, espalhar a fome, disseminar o desmonte dos sistemas de comércio, abalar a economia, provocar uma matança de empresas, atingindo brutalmente os mais pobres e ameaçando o sono dos ricos. Um simples — ou melhor, altamente complexo — nanométrico vírus. Um ser que talvez não seja vivo, mas nada tem de morto, pois vive de mudar e reproduzir. Entre uma célula que explora e outra, é um ácido nucleico com algumas proteínas; nas células, parasitas de seus cromossomos.

 

Toda ciência mundial está mobilizada contra o SARS-CoV-2 e contra a Covid-19, os grandes cientistas disputando para ver quem chega primeiro na corrida para produzir a vacina — ao que tudo indica, desistiram de produzir um remédio que destrua o vírus.

 

Esse exemplo da pequenez da arrogância do poder não seria a oportunidade do homem se impregnar pelo sentimento e pela consciência da solidariedade? Pensar que, se com a Terra ninguém acaba, as cidades e as maravilhas que o homem construiu de nada adiantam, porque o que está ameaçado é o gênero humano, que pode desaparecer vítima das doenças desconhecidas, mal conhecidas e bem conhecidas que estão sempre nos atacando. Paralisia infantil, varíola, malária, gripe espanhola, tifo, tuberculose, pneumonia, aids — até hoje sem uma cura definitiva —, ebola, cólera, H1N1, Covid, com as mutações e estratégias de vírus e bactérias trazendo doenças pelos milhares de séculos que ainda virão pela frente. De nada servem as bombas nucleares, as armas letais de toda natureza, contra elas.

 

Por que não procurar construir um mundo de justiça social, pacífico, em vez de acumular riqueza e construir tanques, porta-aviões, foguetes e tudo mais que representa hegemonia e poder?

 

Por que não banir a fome, criar uma sociedade menos egoísta e mais voltada para as coisas do espírito, um mundo de paz?

 

Se Deus nos deu a graça da vida e o livre arbítrio, não podemos, em vez de utilizar e completar a obra do Criador, caminhar para o suicídio coletivo da Humanidade.

 

Que esse vírus crie a consciência de um homem novo, que ame ao próximo como a si mesmo.

A força do saber

Quando recebi o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Pequim, resolvi falar sobre o tema do saber, defendendo a tese de que todo conhecimento humano era resultado de longo processo de acumulação de saberes que vinha desde o homem da pedra lascada até as descobertas que nos fascinam, como conhecer a estrutura do Coronavírus SARS-CoV-2. O vírus tem de 50 a 200 nanómetros (0,0000002 m) e precisa de microscópio eletrônico capaz de aumento de cem mil a um milhão de vezes para ser estudado. Esse “invisível” organismo, é contudo capaz de afetar o gênero humano mais do que qualquer bomba atômica existente ou que venha ainda a ser descoberta (já matou 10 vezes mais que a bomba de Hiroshima).

Pois dizia eu que, sendo assim, o saber era um patrimônio da História do homem e, como tal, não devia ser objeto de comércio. Agora, sou obrigado a rever meus argumentos, sem abandonar seus fundamentos. Essa corrida em busca da descoberta da vacina e de medicamentos de cura teria acontecido se não fossem o capitalismo e a ganância do lucro? Com a divisão do mundo em busca de poder, de hegemonia, de domínio talvez tivesse sido impossível haver coordenação de forças para o mais rápido possível chegar-se à descoberta da vacina e da cura da Covid-19. Resta saber como será a disputa pela distribuição, se será igualitária, se atingirá a todos, pobres e ricos. Sabemos que a difusão da penicilina, descoberta em 1928 por Fleming, mas que lentamente passava do conhecimento científico para o uso, só aconteceu por causa da 2ª Guerra Mundial, com o War Production Board. Será o capitalismo mais eficiente? A OMS sairá fortificada ou será destruída pelas ambições de alguns chefes de estado?

De qualquer forma o futuro da Humanidade não será de países grandes ou pequenos, mas daqueles que dominem tecnologia e ciência. Os outros estão condenados à colonização cultural e econômica para ter acesso aos benefícios das descobertas — e sofrerão as consequências.

Essas reflexões me ocorrem na disputa da vacina, cujos reflexos transbordam até para o Brasil. Os laboratórios nacionais entram nessa corrida, comprando parcerias e investindo até mesmo no escuro sem saber se terão êxito ou não. Mas até aí o conhecimento influi. Isso só é possível porque temos duas instituições públicas de excelência, reconhecidas mundialmente na área de pesquisa: o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e o Butantã em São Paulo. Um ligado à pesquisa de vacina de Oxford, na Inglaterra; o outro, à pesquisa chinesa, já na fase três, isto é já sendo testada em humanos, fase essa a ser aplicada no Brasil a partir do dia 20 deste mês.

Agora, com imensa contestação no meio científico, surge a Índia anunciando que uma vacina, que eles chamaram Covaxin, desenvolvida em tempo recorde e já sendo testada em humanos, deverá estar disponível para ser aplicada a 15 de agosto. Esse anúncio provocou esperanças e expectativas. Que seja exitosa é o desejo mundial.

Outro anúncio de revolução tecnológica foi o de um filtro de espuma de níquel aquecida que destruiria — se, como se pensa agora, o vírus se espalhar também em aerossol — quase 100% do Coronavírus em suspensão, ao ser usado por aparelhos de ar condicionado em ambiente fechado: aviões, navios de turismo, ônibus etc.

Estamos mais uma vez nas mãos dos cientistas, graças a Deus.

Norte-Sul chega a São Paulo

Mais uma vez escrevo sobre a Norte-Sul, a estrada de ferro que eu lancei como Presidente da República e que naquela época foi combatida de toda maneira, chamada de, como foi a Belém-Brasília, estrada das onças — que ligava o nada a coisa nenhuma —, mas com o passar dos anos fez todos os críticos morderem a língua e pedir desculpas, desfazendo as críticas. E a Norte-Sul fez parte dos programas de todos os governos que me sucederam.

 

Ainda consegui fazer o trecho Itaqui-Estreito, a ponte sobre o Rio Tocantins, e um trecho no estado de Goiás — onde, em Janaúba, presidi ao início das obras. Meu desejo era deixá-la concluída até o fim do meu mandato, mas o combate foi tão violento que não consegui avançar.

 

A Norte-Sul colocou o modelo ferroviário concorrendo com o rodoviário, o predominante no País — e daí surgiu a grande resistência. As estradas de ferro foram a grande alavanca do comércio e do desenvolvimento no século XIX e, em grande parte do mundo, acompanharam a modernização da logística e continuam sendo o principal eixo em muitos dos maiores países. Nós chegamos a ter 40 mil quilômetros de ferrovias; quando assumi, apenas 10% desses estavam modernizados — muitos tinham simplesmente sido abandonados. Os trens modernos mantêm a vanguarda no transporte de passageiros, com os trens de grande velocidade imbatíveis em médias distâncias pois, param nos centros urbanos, evitando os longos deslocamentos até os aeroportos; por outro lado as alternativas de carga intermodal oferecem trunfos extraordinários nos custos de produção — lembrando ainda a importância na proteção do meio-ambiente, pois concorre com poluidores intensivos, como aviões, caminhões e automóveis.

 

O projeto era traçado da Norte-Sul cortando o Brasil e o integrando de Sul a Norte. Ela seria complementada por outra de Oeste a Leste, saindo de Cuiabá, interligando-se com a rede paulista até Santos, que já existe, e uma terceira, a Transnordestina, ligando o Brasil Central até o litoral da Bahia. A Norte-Sul vai do Itaqui até Brasília, aí interliga-se com a Rede Ferroviária Sul e vai até Santos.

 

Assim o Itaqui passa a ser o grande porto do Brasil Central e São Luís se torna o escoadouro natural de grande parte da produção de cereais e o remetente de combustíveis para a produção do Planalto Central, Mato Grosso e Goiás. No futuro o Itaqui será um dos maiores do mundo.

 

A Norte-Sul está pronta e já traz carga dessa região para embarcar no Itaqui. Falta agora só a aparelhar com infraestrutura e logística. Mas o anúncio de sua chegada a São Paulo significa que a interligação planejada está feita, o sonho realizado.

 

O Maranhão vislumbra assim o que sempre pensei: em torno de um grande porto se estabelece uma grande civilização.

 

O Maranhão tem a sua vocação encontrada. Depois virão o gás, Alcântara e a frente agrícola que vem de Balsas, a qual nos tornará também um grande produtor de cereais.

DOUTOR PAPALÉO

Recebi a notícia da morte do doutor Papaléo, como o povo e o Estado inteiro sempre o conheceu, com profunda comoção. Tinha por ele, além de uma grande amizade, uma excepcional admiração pelas suas qualidades de honestidade, simplicidade, correção e grande espírito cívico. Perdeu o Amapá um dos seus melhores homens públicos, de uma conduta impecável, de uma vida exemplar, modelo de cidadão, de chefe de família e de dedicação ao seu Estado. Passou pelo Senado, onde deixou um nome notável, uma marca de seriedade, de trabalho, de correção e dedicação ao trabalho parlamentar.

Foi cada vez mais conquistando minha admiração pela lealdade com que sempre se conduziu comigo, pela solidariedade que sempre me deu naquela Casa, onde gozava do respeito de todos os senadores, independente de partido e apenas pelo reconhecimento de suas qualidades morais. Até hoje é ali lembrado como um dos grandes senadores que por ali passaram.

Conheci Doutor Papaléo quando cheguei ao Amapá, em 1990, e ele era candidato a Governador pelo Prona, do famoso Enéas e logo passou a participar dos meus atos de campanha, de uma maneira espontânea, apenas por solidariedade ao meu nome e à biografia com que aqui cheguei, colocando-a a serviço do Amapá.

A partir daí criamos uma amizade sólida, afeição e estima que não me abandonará.

Quero associar-me e participar da maneira mais estreita a sua família, Dra. Josélia e suas filhas, que criou com tanto desvelo e que herdaram suas qualidades, neste momento de sofrimento. Calculo a profunda dor que estão sentindo e a falta que vai fazer, não somente aos seus familiares, mas ao Estado e ao País com seu desparecimento.

Eu, Marly, Roseana, Sarney Filho e Fernando nos juntamos a todos os seus amigos e ao povo do Amapá pela grande perda. Doutor Papaléo, já na eternidade, faz parte da História política do nosso Estado, e quero colocar minhas lágrimas em sua memória.

O preço da violência

Durante o tempo em que estava no Senado fiz vários discursos e apresentei alguns projetos dizendo que diante da violência cotidiana — o domínio do crime organizado, a impunidade dos homicidas, a faculdade do assassino defender-se solto, o aumento das mortes violentas, tanta falta de respeito à dignidade humana — o povo brasileiro não se revoltava mais e estava se transformando num povo frio, sem capacidade de reagir e de se sensibilizar com os crimes mais hediondos.

Isto começou a consolidar-se depois que a Constituição de 88 deu muito melhor tratamento ao criminoso do que à vítima. O criminoso passou a ter direito a pensão mensal, assistência social, garantias à sua família etc. A vítima só tem a perda do seu futuro, as necessidades geradas pela sua ausência, o sofrimento de sua família, a orfandade de seus filhos, a viuvez de sua esposa e as lágrimas de sua família, pais, irmãos.

Eu posso falar, como dizia Camões, de experiência vivida. Malherbe dizia na Consolation à M. Du Périer que: “A morte tem rigores que a nada se assemelham […] E a Guarda que vela nas barreiras do Louvre / Nem mesmo defende nossos reis.”

O Brasil apresenta a maior quantidade de homicídios do mundo. Temos 12% das vítimas — e somos menos de 3% da população. E o pior ainda é que as estatísticas mostram que os jovens estão sendo assassinados e são jovens que estão matando.

Em nossa família já fomos atingidos brutalmente, porque, como disse, ninguém escapa da violência; já perdi três sobrinhos-netos, vítimas do desprezo pela vida que assola o País. O primeiro, Augusto, sobrinho da minha mulher, filho do meu cunhado Cláudio Macieira, assassinado quando roubaram sua motocicleta, no dia em que ia receber o seu diploma de engenheiro — e quando eu era presidente da República. Ele tentou resistir e foi abatido com um tiro na cabeça. A segunda, minha sobrinha Mariana, quando hediondamente foi asfixiada. E o terceiro, esta semana, Diogo, filho de minha sobrinha Concy, covardemente morto com um tiro à queima-roupa, quando tentou falar com o motorista de um carro que o trancara. O assassino não deixou nem que ele se aproximasse. De dentro do carro sacou uma arma e o matou com um tiro no pescoço.

O que restou a todos nós: suas mães, seus pais, seus filhos, seus avós, seus irmãos, seus tios, seus primos, parentes, amigos, colegas? Lágrimas, dor intensa, saudade que não passará.

Diogo, jovem rapaz, com um futuro pela frente, cheio de vida, da alegria de viver, mergulha na eternidade, sem o conforto nem duma morte cercado pela ternura de sua mãe e dos seus, para cair no asfalto escaldante, deixando para trás seu maior dom: a vida.

Pela misericórdia divina, minha mãe Kiola o receberá no Céu, o acolherá em seu colo pela eternidade e o levará à presença de Deus.

Quarentena, solidão e medo

Nunca pensei em minha vida que passaria meses em prisão domiciliar, sem culpa nenhuma, mas por absoluta necessidade de autodefesa.

Só que esta circunstância também é inédita no mundo, pois jamais a Humanidade esteve sob a ameaça de um vírus de ação tão “eficiente”. Ele veio montado na globalização dos meios de transporte, capazes de cobrir o mundo em vinte e quatro horas.

A quarentena, na acepção de reclusão e isolamento para evitar contágio, é atualmente a única maneira que temos para evitar a Covid-19. O esforço mundial para descobrir vacinas, remédios e curas tem mobilizado os laboratórios e centros de pesquisa do mundo inteiro e é até agora infrutífero.

O isolamento para evitar o contágio é prática muito antiga, já registrada na lei mosaica (o Levítico é do século VII a.C.) e na lei islâmica (século VII d.C.). A Newsweek reproduziu esta semana instruções do Profeta: “Se ouvir notícia de praga numa terra, não entre nela; mas se a praga começa num lugar onde você está, não saia dele.” Talvez daí venha certa irritação com a OMS: mandou fazer o mesmo.

O nome que usamos para essa prática de saúde pública data do século 14, para combater a peste negra que se julgava — e era — trazida pelas galeras que aportavam em Veneza. A palavra veneta quarentena queria dizer quarenta dias.

Até as primeiras décadas do século passado, era costume depois do parto as mulheres cumprirem um período chamado de quarentena ou resguardo, para atravessar o puerpério, período a que a OMS considera que não se dá suficiente atenção.

Muitas tribos brasileiras são mais machistas e, em vez da mulher cumprir essa quarentena, são os homens que descansam, ficando recolhidos enquanto as mulheres logo começam a trabalhar. Como as mulheres sofreram ao longo da evolução e ainda continuam na luta para evitar a discriminação!

Eu desejava falar mesmo era sobre a nossa quarentena. No princípio a encaramos com certa naturalidade. Com o desenrolar do tempo, diante do avanço da doença — destruindo todas as economias nacionais, dizimando o emprego, espalhando a fome e colocando à mostra a fragilidade dos sistemas de saúde do mundo inteiro, que não estavam preparados —, foi invadindo todos nós uma solidão misturada com medo, e foi crescendo dentro da gente a falta dos amigos, o martelar das notícias cada vez mais trágicas e certa apatia pelos fatos, distantes e próximos, e ela cada vez mais chegando perto de nossa rua, de nossa casa, com a perda dos amigos sem a misericórdia de um sepultamento cristão, e começou a crescer dentro da gente um sentimento para o qual não fomos feitos. Se pensarmos em algo semelhante, lembramos o banzo, que misturava saudade e o sentimento permanente da morte.

Nossa esperança está na fé de que Deus nos criou e mandou Seu filho à Terra para que não nos sentíssemos abandonados e sem algo superior ao nosso lado.

O medo e a solidão doem. Como dizia Drummond de Itabira: “Apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”

Vamos sair logo de tudo isso e voltarão a alegria e a vida, se Deus quiser!

Meu Destino é Sofrer

A cena trágica do assassinato cruel de George Floyd em Minneapolis, nos Estados unidos, mais uma vez põe como fratura exposta a situação racial americana, viva em seus requintes de brutalidade e sordidez. Em nenhum lugar do mundo esse problema de discriminação permanece com as características de tanta violência quanto ali. As raízes remontam à escravidão — como aqui —, que precisou de uma Guerra Civil para ser legalmente banida e teve como um de seus marcos o assassinato do grande presidente Lincoln, que teve a coragem de enfrentar o problema.

Sempre fui muito ligado à causa negra no Brasil. Escrevi bastante sobre o assunto e considero a ausência de resgate da escravidão como a maior mancha de nossa História. Desde a Lei Afonso Arinos, que criminalizou a discriminação racial, até hoje, apenas arranhamos a superfície do problema.

Eu era Presidente do Brasil quando ocorreu o centenário da abolição da escravatura e, em vez de fazer festas na data, resolvi marcar o meu ponto de vista de que só se resolve o problema com a ascensão da raça negra, inserindo-a na sociedade de maneira a que ela possa ser realmente colocada em igualdade com a raça branca. Criei então a Fundação Palmares, que infelizmente desviou-se de seus objetivos. Há quase duzentos anos, José Bonifácio afirmou que a Independência não estava completa porque não enfrentara e resolvera a questão da escravidão e a política de brutalidade seguida durante a Colônia, com a dizimação de tribos indígenas inteiras.

Com essa visão, fui eu quem levantei no Brasil a política de cotas, não somente nas universidades, mas também nos financiamentos e concursos públicos e alcançando as empresas privadas. Apresentei o primeiro projeto de lei estabelecendo cotas, que foram implantadas por iniciativas esparsas e só passaram a vigorar no Brasil quando, com o meu acordo, foram incorporadas parcialmente no Estatuto da Igualdade Racial.

Ao lado de Zumbi – recebi o prêmio que tem seu nome – coloco como símbolo o Negro Cosme, maranhense que fundou o maior quilombo do Brasil e cuja primeira iniciativa foi fundar ali uma escola, enforcado em Itapecuru Mirim.
Fico solidário e, se fosse mais novo, ia engajar-me no movimento mundial de protesto pelo assassinato de George Floyd. Recompensa ver o mundo inteiro levantar-se e unir-se nessa revolta.

Nabuco disse que o assunto “versa sobre as aspirações, os sofrimentos, as esperanças, os direitos, as lágrimas, a morte de milhares e milhares de gentes como nós; que não é mais uma questão abstrata, mas concreta, e concreta no que há de mais sensível e mais sagrado na personalidade humana”.

Não há como negar o que aconteceu: uns foram escravos, outros foram senhores. Uns eram negros, outros eram brancos. O trabalho de resgate não aconteceu, nem no Brasil nem nos Estados Unidos.

Portanto, a nossa tarefa é fazê-lo. Os pretos, de todos os discriminados no mundo, são os que mais sofreram. Seu destino tem sido esse.

Vamos acabar com isso e colocar os pretos entre os que formam a elite brasileira. É o mínimo que se pode fazer para pagar a impagável dívida do sofrimento da raça negra.

O perigo é maior

humanidade foi surpreendida por uma ameaça que, embora profetizada por esporádicas vozes, nunca foi levada a sério. Ao longo de nossa história atravessamos muitas doenças que dizimaram populações inteiras, mas todas elas foram superadas.

A última grande e fundada ameaça foi a descoberta da fissão atômica. Ele deu ao homem o domínio de liberar forças gigantescas, capazes de destruir imensas regiões da Terra. A primeira noção que tivemos da brutalidade desse poder veio quando, estarrecido, o mundo viu as tragédias de Hiroshima e Nagasaki. E não existe nenhuma garantia de que ela não possa fugir do controle do homem e antecipar a catástrofe da destruição da vida na face da Terra com os instrumentos que o próprio homem construiu.

Hoje o arsenal de ogivas nucleares armazenados pelos países que dominam a fissão e a fusão nuclear é de mais de nove mil, somadas as de todas as potências nucleares. Daí o esforço do mundo inteiro no sentido de conter esse avanço através de organismos e tratados internacionais. No fundo a luta pelo poder hegemônico do mundo repousa sobre a força.

Esse esforço e essa corrida armamentista monstruosa— retomada nos últimos tempos por Trump e Putin — de repente foi colocada em segundo plano. A ameaça mais eficaz e rápida apareceu de um micro-organismo que, para ser visto, precisa ser aumentado 1 milhão de vezes num microscópio eletrônico.

A ameaça das doenças desconhecidas mostrou suas garras na pandemia da Covid-19, cuja capacidade destruidora, que atinge todos os setores, econômicos, sociais, políticos e globais, nunca tinha sido sonhada pela humanidade.

Se as potências mundiais tivessem concentrado seus recursos na busca do controle científico da saúde humana, em vez de empenhá-los na sofisticação das armas, talvez não estivéssemos passando esta crise previsível e anunciada, capaz de revirar o mundo de cabeça para baixo, nos deixando sem saber o que vem do futuro: o caos ou um mundo transformado, mais humano e solidário, de olhos voltados para o próprio homem e não para o domínio de povos sobre povos.

O homem esqueceu que ele é vulnerável a si próprio e não deve buscar a força e com ela destruir a obra construída pela mais bem-sucedida espécie de mamífero, em que Deus nos deu a graça da vida, o Homo sapiens, que existe há 350 mil anos, um nada diante da eternidade.

E o Brasil? Em meio a esse transcendental desafio, em vez de inserir-se no esforço mundial para enfrentar o Corona, fica mergulhados em lutas estéreis, em confrontos menores, quando devia concentrar todas as suas forças numa união geral, sem qualquer barreira e defender-se do desastre que ameaça a humanidade.

Uma escolha sem Sofia

Estamos diante de uma ameaça sempre temida ao futuro da humanidade: as doenças desconhecidas. Ao longo da história dos seres vivos que habitaram o nosso planeta, milhões de espécies já desapareceram. Para citar o episódio mais fascinante, citemos os dinossauros, que em teoria foi provocada por um meteoro gigante que caiu no Golfo do México, transformando a atmosfera, devastando todo o planeta e levando de roldão quase toda a vida, extinguindo muitas espécies, inclusive as mais bem-sucedidas entre elas, as dos gigantes sauros. Mas nada nos diz que não tenha sido uma doença dessas.

O gênero “homo” foi o mais bem-sucedido entre os mamíferos, embora seja recente, três milhões anos, o que é nada no tempo cósmico. Já venceu várias pandemias, resistindo a todos e, há setenta mil anos, se tornou sapiens sapiens esse a quem Deus escolheu dando-lhe consciência e fala. E ainda lhe deu capacidade de dominar o saber das coisas, defender-se delas e, através da ciência, poder salvar-nos.

Estamos diante de um desafio inédito. O Covid-19 não tem remédio, não tem vacina e pegou a humanidade de surpresa. É um vírus que se transmite numa velocidade que nenhum outro, de pessoa a pessoa, quase nada sabemos sobre ele e somente agora todo o saber científico do mundo se mobiliza para cercá-lo e encontrar um meio de enfrentá-lo.

Nenhum país do mundo estava preparado para esse desafio, os hospitais jamais pensaram necessitar dos equipamentos que demanda na quantidade de infectados. Só temos uma maneira de tentar evitá-lo: o confinamento. Esse procedimento gera muitas consequências de natureza social, econômica e pessoal. Não podemos avaliar suas consequências e amplitude.

Pelo lado humano estamos todos submetidos a um stress muito grande. Testemunhamos as tragédias pessoais das vítimas ­– pais, esposos, filhos, avós – e participamos de sua emoção com nossas lágrimas.

Dentre essas tragédias que todos vivemos a mais heroica é a dos que estão nas linhas de frentes, como médicos, enfermeiros e todos que trabalham para salvar vidas e aliviar o sofrimento dos doentes.

A parte psicológica é a mais atingida. Li hoje a história de renomado anestesista, dr. Alexandre Teruya. Acostumado ao risco da intubação dos pacientes, ele confessa que teve medo quando teve que colocar a sonda na traqueia do primeiro paciente com a Covid-19. Tendo passado aos filhos a necessidade do ritual de descontaminação, a volta para casa não era mais o alívio, mas a exacerbação do risco. A solução foi se mudar para o hospital.

A escolha de Sofia, expressão que retrata a necessidade de escolher uma de alternativas insuportáveis – no romance original, escolher um dos filhos para salvar ou ter os dois mortos pelos nazistas – tornou-se já um desafio real para os profissionais da saúde. Por isso devemos a eles nossa gratidão e nosso apoio.

O terrível dessa virose é que a única coisa que podemos fazer é ficar em casa.