José Sarney

Trump quer destruir a democracia

Costumo dizer que não estamos vivendo em um mundo em transformação, mas num mundo transformado. Com o Covid-19 especula-se que vamos viver um novo normal. Ninguém pode dizer o que isto será. Mas antes que ele venha estou estupefato diante de algo que jamais pensei que pudesse ver.

A minha admiração pelos Estados Unidos vem do orgulho de que tenha saído do Continente Americano o país que transformou o mundo, tornando-se a maior nação da terra, líder e exemplo para todos os povos. Deles surgiu o sistema político que Fukuyama afirmou ter levado ao fim da História, com o domínio da democracia liberal e da economia de mercado.

Formou-se um sistema de governo capaz de garantir a ideia de que todos são iguais perante a lei e ninguém pode ser discriminado em razão de cor, raça ou religião. Cristalizaram-se as ideias de liberdade, direitos humanos, dignidade humana, governo do povo e para o povo. E esses direitos foram consagrados de tal maneira que passaram a ser um ideal universal.

Alexis de Tocqueville escreveu em 1835 um livro clássico, no qual ele profetizou que os Estados Unidos iriam “por algum desígnio secreto um dia controlar em suas mãos os destinos de metade do mundo”. E sempre afirmei que foi a grande sorte do mundo. Calcule se saísse da velha Europa ou de qualquer parte outro país que tivesse como bandeira ideal usar a força, a supremacia de raça — como aconteceu na Alemanha de Hitler — ou pregasse a religião como base das nações. Estamos presenciando um conflito de civilização no Oriente Médio. Mas foram os Estados Unidos que pregaram a liberdade, como forma de vida que venceu.

Pois não é que agora, com grande espanto, em pleno século XXI, ouvimos sair da boca de um Presidente dos Estados Unidos que ele pode não aceitar o resultado de uma eleição e não entregar o poder, como se seu país fosse qualquer republiqueta dos séculos passados, quando a alternância do poder pudesse ainda ir contra a decisão soberana do povo.

Isso eu considero a maior e mais impensável coisa a que pudéssemos assistir. A solidez do maior e mais forte país democrático do mundo comportar uma afirmação dessa natureza. Jefferson, Madison, Washington devem ter tremido em seus túmulos e abominar pela eternidade um Trump, negar-lhe a companhia dos homens que fizeram a Constituição de Filadélfia, o maior documento produzido pelo homem para regular suas relações e o viver pacífico em sociedade.

Trump, com seu comportamento e sua frase, acaba por fazer uma síntese do que buscou ao longo de seu governo. Foi caminhando para o isolamento americano, para a divisão da sociedade, para uma nova guerra fria — e até quente. Seu objetivo é inaceitável: destruir a democracia!

Todo poder à vacina

A vacina é o único socorro de esperança contra a ameaça da Covid. Já falei mais de uma vez do cálculo de Malthus sobre a expansão da Humanidade e da narrativa que Jared Diamond faz da ascensão e queda das civilizações: nos cenários, guerras e germes. A história das pragas é uma desgraça: desde as sete pragas do Egito, que são dez, o que se vê são as populações dizimadas. Dizimadas não: o decimatio castigava um em cada dez soldados, mas as pestes sempre foram mais radicais. A praga de Justiniano matou mais da metade da Humanidade; a peste negra, um quarto.

 

Para uma doença virar epidemia ou pandemia, ela precisa ser contagiosa e viajar. Assim nossas cidades marítimas não escaparam da reviravolta da natureza — pois é isso o que acontece quando mexemos com o meio ambiente, mesmo na “inocente” domesticação de rebanhos. Varíola, gripe, malária, dengue, febre amarela, SARS passaram por aqui. Houve a gripe suína, que era em parte aviária, mas tinha até fragmentos dos vírus da gripe espanhola; esta, com bagagem de 100 milhões de mortos, matou Rodrigues Alves, que acabara com a febre amarela; doença que o africano Aedes aegypti trouxe em 1685/6 para Recife e Salvador; mosquito que nós erradicamos duas vezes, mas continua matando com a dengue. A colheita das pragas é grande, e temos algumas vitórias e muitas derrotas. A maior, o impaludismo, nos bate há 10 mil anos.

 

O Brasil tinha uma história de vacinação. A primeira foi em 1804. Em 1811 tivemos mesmo uma Junta Vacínica. Com o uso direto do vírus ativo, acontecia de ser pior que o soneto. Um século depois, Rodrigues Alves chamou Osvaldo Cruz, jovem médico a quem não conhecia, para acabar com a febre amarela e a varíola. A imprensa, um grupo de médicos negacionistas e alguns conspiradores militares ficaram contra ele. Consideravam absurdo que os mata-mosquitos pudessem entrar nas casas para acabar com o Aedes.

 

A Lei 1261/1904 tornou obrigatória a vacina contra a varíola. A conspiração positivista, que faria chefe da ditadura a Lauro Sodré, partiu para a ação. Revoltou-se o Rio de Janeiro. O dia 14 de novembro foi de conflito armado. O governo dominou, com dificuldade, a situação. Na discussão do pedido de estado de sítio, Rui Barbosa, nosso maior intelectual, numa posição incompreensível, ataca: “Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura… a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus… condutor da moléstia, ou da morte.” E apoia o governo, elogia o desbaratamento do golpe!!!

 

No Maranhão a história é outra. Cláudio Amaral Júnior, grande nome da vacinação no País, conduziu a campanha que em oito meses erradicou a varíola. Fiz o possível para ajudá-lo: acionei a estrutura das escolas comunitárias “João de Barro”, fazíamos os “Comícios da Saúde”, 15 dias de campanha preparatória e promovi a “vacinação num só dia”. Na Praça João Lisboa vacinamos 40 mil pessoas de uma levada, trabalhando até meia-noite. Essa experiência foi levada por ele e pela OMS para outros países.

 

Contra a Covid o caminho é claro: precisamos da vacinação em massa, alcançando indiscriminadamente dos mais ricos aos mais pobres. O Brasil tem instituições que são capazes de produzir rapidamente as vacinas que tenham sucesso. Aqui no Maranhão temos que nos preparar para aplicar as vacinas. Levantar voluntariado, treinar e organizar equipes, fazer um trabalho coordenado com os municípios, chegar aos povoados mais remotos.

Arroz amargo

Há uma gritaria danada sobre o aumento do preço do arroz, que figura na cesta básica e em nossa cultura alimentar, indispensável em nossas mesas e nas do mundo todo. Como tudo mudou, até a linguagem, o aumento do custo de vida, que hoje chama-se “alta no preço de alimentos”, antigamente era “carestia”. Getúlio Vargas tinha verdadeira obsessão em usar essa palavra. Um dos principais objetivos de seu marketing era “combater a carestia”.

Sobre isso há um episódio pitoresco que marcou a vida de um excelente jornalista, depois radialista e dono de uma emissora de Brasília que só tocava música clássica. Chamava-se Mário Garófalo e na época era repórter da Rádio Tupi. Durante um embarque de Getúlio Vargas no Santos Dumont, ele, com absoluta cara de pau, o abordou e perguntou: “Presidente, o que o Senhor acha da campanha das Casas Gebara contra a carestia?” Getúlio, tomado de surpresa, respondeu: “É uma grande contribuição em benefício do povo.” E transformou Getúlio em garoto-propaganda da rede de armarinhos Gebara. Foi um bom tema para humoristas e jornais.

Voltando ao arroz. O Maranhão foi um grande produtor de arroz, o segundo do Brasil. O primeiro era Goiás. O nosso arroz era de sequeiro, esse que não precisa de irrigação. Depois da modernização da lavoura, com a entrada da mecanização, nós perdemos essa posição.

O aumento do arroz foi de cerca de 25% em 2020. O Ministério da Justiça resolveu cobrar informações dos supermercados, e o Ministério da Economia, que teoricamente é contra qualquer intervenção no mercado, resolveu tomar satisfações com o Ministério da Justiça. Adam Smith não toleraria isso, nem o Olavo de Carvalho. Nem a Escola de Chicago. Assim, a imprensa me chamou à colação dizendo que queriam reeditar o Plano Cruzado. Eu, aqui comigo, penso que, se perguntassem ao povo se ele tem saudades do Plano Cruzado, ele diria que sim. Mas esse é um tempo que já passou.

O aumento dos preços já foi debitado à ajuda dada ao povo mais pobre no período da Covid pelo Congresso, certíssima e humana. Se fosse isso, significaria que os mais pobres não tinham nem como comprar arroz, passavam fome brava. E, como não comem aço, não podem ser culpados pelo aumento, que também houve, do preço do aço. O que se sabe é que, no caso do arroz, uma série de fatores contribuiu: a queda na produção, que foi de 12,3 milhões de toneladas em 2015 e caiu para 10,4 o ano passado, sendo estimada em 11,2 neste ano; o aumento do custo dos insumos, devido à desvalorização da moeda, boa para a exportação; e a própria exportação, com a produção brasileira mais competitiva também pelo câmbio.

Como hoje em dia os supermercados não têm campanha contra a carestia, o Presidente Bolsonaro não corre o perigo de ser o Posto Ipiranga e servir de menino-propaganda.

Eleições lá e cá

Estamos na boca de uma nova eleição, a eleição municipal, que, embora seja a mais importante, não desperta a mesma paixão da de Governador.

Agora uma eleição diferente, feita sem campanha, sem comício, sem reunião com grande número de pessoas e todas e todos com medo do coronavírus. As novas tecnologias deslocaram a comunicação para as redes sociais, através da parafernália de whatsapp, facebook, instagram e hackers, que estão a postos para invadir os computadores. E as fantasmagóricas e destruidoras fake news, que sem fronteiras ocupam as campanhas espalhando mentiras, infâmias e difamações, sem tempo para que sejam desmentidas e criando um estrago danado.

Mais perto do que as nossas está outra muito maior e que atinge o mundo inteiro, pois envolve a escolha do Presidente do mais poderoso país da Terra. Juracy Magalhães, um grande político baiano, dizia que, “quando os Estados Unidos espirravam, nós já estávamos com pneumonia”. Ele era tão americanista que dizia que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

Agora então a situação é mais delicada. Nunca estivemos tão alinhados com eles como hoje, pendurados numa amizade pessoal do Presidente Trump com o Presidente Bolsonaro e na confluência de ideias entre o governo de cá e de lá. Dessa eleição dependem muito os próximos anos do Brasil, bem como do mundo. O enfrentamento com a China, as relações tensas com a Europa e as ideias do Trump sobre meio ambiente fizeram os EUA romperem com o Acordo de Paris sobre o clima.

A eleição municipal nossa não mexe em nada disso. Os resultados de Rio Preto, Bom Jesus da Selva ou Duque Bacelar não vão influenciar na corrida nuclear nem na produção de vacinas russas, chinesas ou americanas.

Mas dizem do destino das populações mais pobres e mais vulneráveis, e para a Humanidade o que pesa é o bem-estar das pessoas, sua qualidade de vida e sua perspectiva de futuro.

O nosso sistema político republicano, conceitualmente formulado por Rui Barbosa, foi delineado na Constituição de 1891, redigida por ele, baseada na americana, que lá é sagrada, enquanto a daqui já foi substituída várias vezes.

Só que aqui tivemos que superar as eleições a bico de pena, a fraude generalizada, e lá eles pensaram que tinham resolvido isso com os checks and balances. Pois agora o Trump anuncia que não vai aceitar o resultado se for contra ele, porque onde o Biden pode ganhar vai ser fraudada. É que com a pandemia do corona, para evitar aglomerações, os democratas estão incentivando o voto pelos correios, que para Trump não é confiável e cujo atraso já deu a vitória — fraudada — ao Bush. A fraude, que no Brasil ameaçou a democracia, agora, cem anos depois, ameaça a maior democracia do mundo.

E assim Nova Iorque do Maranhão pode ser comparada à Nova York dos Estados Unidos. Mas a nossa não tem ameaça de fraude. Só traduzindo, como dizia o Padre Newton, a expressão de Cícero “o tempora, o mores!”, como “o tempo das amoras”.

Menina e moça

Tomei emprestado para este artigo o título do livro de Bernardim Ribeiro, que na minha adolescência fazia parte da formação clássica. É velho como a Sé de Braga, como se diz em Portugal, de 1554. Começa — cito de memória e me sujeito a erros — assim: “Menina e moça me levaram da casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.”

Lembro isso pelo caso que nos revoltou pela violência e pela maldade: a gravidez da menina de dez anos, violentada desde os seis, no Espírito Santo. Não entra em nosso entendimento, neste conjunto de valores que Deus nos deu, que se possa aceitar isso. É o mundo louco que a cada dia se revela. Certamente minha avó diria “é o fim do mundo”.

Essa atrocidade revoltou o Brasil, nosso povo, independentemente da formação religiosa, independente da controvertida posição sobre o aborto. É uma brutal atrocidade que nos choca a começar pela monstruosidade corporal. Uma criança pura de sentimentos, sem saber o que é sexo e cujo corpo não está fisiologicamente apto para o ato sexual.

O nosso sistema jurídico só permite o casamento a partir dos 16 anos, assim mesmo com o consentimento dos pais, pois a idade legal de casar é 18 anos. Com menos de 16 só em caso de gravidez. É verdade que a realidade é bem outra. Estamos em 4º lugar em casamentos de crianças de até 15 anos, precedidos pela Índia, Bangladesh e Nigéria. E pasmem: no Brasil o Estado onde é primeiro é o Maranhão.

Uma vez ouvi em Bacabal de um chefe político a história de um fazendeiro que tinha a fama de comprar virgindade, quase sempre de mocinhas pobres. Fiquei chocado, mas atribuí a informação em parte a essas infâmias que, no interior, colam nos adversários políticos para desqualificá-los e destruí-los.

Verdade é que essa menina ficará como um caso ultrajante na história dos nossos costumes. Pensar numa menina grávida aos dez anos, violentada pelo tio, e no martírio da violação desde os seis anos de idade, cria indignação e revolta.

É que o ato sexual não envolve só o contato corporal, mas uma gama de sentimentos contraditórios que vão desde o amor até à vivência das relações pessoais, do afeto até a devassidão e o ultraje, para os quais as pessoas têm de ter a faculdade de reação. Envolve a pureza e o carinho de estar junto. Foi o Criador, segundo o Gênesis, que melhor o definiu dizendo que “serão dois em um”.

A inocência, esse aspecto de fragilidade e ternura que envolve a meninice, nos leva a ter a infância como uma fonte sublime e pura da existência humana. Ela se revela na alegria da graça da vida, num tempo que forma nossas referências e fica como memória. Mas esse período ficará para essa menina como apenas o horror desse bárbaro episódio.

A menina não perdeu somente a virgindade e inocência. Perdeu o nome, perdeu a identidade, tem que ser outra para ser a mesma.

Como viverá daqui para frente? Como apagará essa indelével mancha?

O livro e os ricos

Sempre tive a cultura como minha causa parlamentar. As leis de incentivo à cultura, estímulo à pesquisa científica, proteção do patrimônio histórico foram iniciativas minhas, que têm quase cinquenta anos. E, Presidente da República, criei o Ministério da Cultura. A cultura vale por si mesma, mas lembro que não há potência econômica que não seja antes potência cultural.

Uma vez escrevi uma frase que pressupunha um absurdo: “Se, por uma desgraça, essa história de mercado um dia tornar o livro dispensável, ainda restará o livro de poesia, pois a poesia não precisa de mercado e salvará o livro.” Pois não é que agora, em nome do mercado, o governo quer acabar com o livro? Parece deixar de saber das imensas dificuldades por que estão passando editoras e livrarias e, apesar disso, pretende tornar o livro mais caro, isto é, inviável. Segundo seus porta-vozes, livro é coisa de rico, e para os pobres dará livros de graça (!).

A Constituição veda a cobrança de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. Para driblar as restrições constitucionais à cobrança de impostos, usam sinônimos e chamam de contribuição ou taxa. E tome taxa absurda. Em 2003, consegui aprovar uma lei instituindo a Política Nacional do Livro e nela estender a imunidade tributária do livro às taxas. Lula vetou o artigo, mas assumiu o compromisso de contornar o problema e cumpriu o prometido. No ano seguinte, anunciou a desoneração de todas as contribuições e taxas para o livro nacional e o estrangeiro.

Agora, na reforma tributária, o governo está atrás de receitas. A carga tributária, que deixei em 24% do PIB, já passou dos 35%, e o Ministro da Economia quer mais. Acha bom tirar do livro para salvar o País! Pretexto: “Livro não é importante para o povo.” Eles nunca devem ter ido a uma feira de livros, cheia de povo jovem e povo povo e povo de todo jeito.

O livro é um bem de consumo essencial. É um dado histórico. Com a invenção de Gutemberg, explodiu a produção de livros. Foram eles os responsáveis pela expansão das universidades e da educação, pela fixação de línguas, pelos Descobrimentos, pelo Renascimento, pela pesquisa científica, pelas revoluções políticas — entre elas a criação do Estado e da democracia representativa.

O livro nunca acabará, porque ele é a maior das descobertas tecnológicas: cai e não quebra, não precisa de energia, de ligar e desligar. Pode ser levado para qualquer lugar, banheiro ou cama. O livro é o melhor amigo.

O livro tem tudo, da poesia à informática, passando pelos livros de economia, inclusive os que o Ministro disse que leu em inglês, no original. O Bill Gates, criador da Microsoft, disse sobre o livro que a internet só existe porque os que a criaram passaram pelo livro.

Recordo um refrão que, se não me falha a memória, está no Dom Quixote: “Os livros fazem muitos sábios, mas poucos ricos.” Com a reforma haverá ricos sábios ou sábios ricos?

O sofrido Líbano

O Amapá e o Maranhão têm uma certa ligação com o Líbano. É difícil encontrar uma família maranhense que com ele, de maneira direta ou indireta, não possua uma ligação de sangue, sentimental ou de amizade. Sírios e libaneses de vários credos religiosos buscaram para seus caminhos de imigração o Norte do Brasil. Aqui no Maranhão essa presença se tornou tão forte que muitos sírio-libaneses assumiram posições de liderança na política, no comércio, nas entidades de classe, com grande expressão.

Essa influência e miscigenação se tornou tão arraigada que chegou até a incorporar-se aos costumes e à culinária. Eu sempre digo que o Maranhão tem várias culinárias: a culinária da Costa, dos peixes e frutos do mar; a culinária portuguesa tradicional, que não abandonamos, de cozidões, tortas, caldeiradas; a do sertão, de carne de sol, maria isabel, pirão de leite etc; a libanesa de quibes, esfirras, quibe labanie; e a maranhense mesma, mistura da africana e da indígena com um toque libanês, de onde saiu o divino arroz de cuxá.

Antônio Dino, grande médico e alma boa, que foi meu Vice-Governador, me contou uma parte dessa saga da imigração libanesa dizendo que no início do século XX alguns refugiados políticos, seus ancestrais e muitos outros, vieram para o Maranhão, principalmente para o interior. Não guardei todo o relato, o que lamento, e faço uma sugestão para alguma tese acadêmica levantando essa história, que faz parte da nossa.
Eu mesmo tenho dentro de casa muitos Murad e Duailibe, netos, genros e netos.

Quando o meu romance O Dono do Mar foi traduzido para o árabe, fui a Beirute para seu lançamento. A cidade tinha saído da guerra civil e estava toda destruída. O Rafik Hariri — que seis anos depois foi morto pela explosão de um carro bomba na hora em que passava seu comboio — era um grande político, fizera o Acordo de Faët acabando com 15 anos de guerra-civil, estava reconstruindo Beirute. Com ele e sua irmã construí mesmo uma relação de amizade. Tenho um serviço de jantar que foi ofertado por ele.

O Líbano tem uma história sofrida. Sua localização, espremido com fronteira do Israel, Síria e Chipre (pelo mar), o torna alvo de permanente agressão e envolvimento no caldeirão do Oriente Médio, tendo como centro a milenar luta de judeus e palestinos.

A tragédia que vive o Líbano com a gigantesca explosão e a destruição do seu porto e da cidade soma-se à crise econômica e política. Naquela época se assinalava a presença de 500 mil palestinos nos campos de refugiados, comandados pelo Hezbollah, que desequilibrava a divisão de poderes formada no pacto de independência, dividindo o poder dos xiitas com a milícia Amal. Com a guerra da Síria mais 1,5 milhões de refugiados entraram no país, que tinha 4,5 milhões. A insatisfação vem de toda parte. O filho de Hariri tentou recentemente substituir o pai e foi expulso pelos protestos de rua que exigem “fora todos os políticos”. A tragédia maior é um país essencialmente multicultural tornar-se inviável pela violência de seus vizinhos e pela incapacidade em exercer seu talento para a convivência.

Sofremos com o Líbano e somos solidários com o seu povo e nos juntamos àqueles que no mundo inteiro tem o dever de ajudá-los a ressurgir das cinzas.

A aprendizagem do Congresso

Passei 51 anos no Congresso, exercendo mandatos, cinco de senador e três de deputado federal, dois deles eleito como o mais votado da oposição do Estado e um como suplente que assumiu o exercício do cargo várias vezes. Como político militante chego dos 14 anos até hoje, quando comecei como militante da juventude brigadeirista, portanto 76 anos. Assim, toda a minha vida foi dedicada à política, o que me faz o mais longevo político da história da República.

E na política foi o Parlamento a minha Casa de formação, onde aprendi a exercitar minha vocação de conciliador, meu respeito pela opinião dos outros e minha vivência do exercício e da prática da democracia. Cheguei a conceituar “de experiência feita”, no ensinamento de Camões, o Parlamento como “o coração da democracia”.

Já no final dos meus mandatos cheguei mesmo a descobrir que lá é um lugar que tem mais uma grande lição, ser melhor para ouvir do que falar, embora 70% da ação política seja a palavra. Saber ouvir, nos ensinava o Padre Vieira; e afirmava que o Espírito Santo tinha espinhos nos ouvidos para que as coisas não entrassem direto, ficassem espetadas para esperar meditação. Isto só o longo tempo faz descobrir.

Mas esta conversa fiada toda começou para dizer que nunca, durante este tempo de Parlamento, passou qualquer instante em que se falasse em reforma tributária — assunto permanente e cativo no Congresso — e que fosse de maneira consensual. Sempre o assunto despertou debates e divergências radicais e apaixonantes, sobretudo por envolver interesses irreconciliáveis: dividir dinheiro entre União, Estados e Municípios, além de corporativismos e oportunidades atrativas de pegar melhor pedaço.

Lembro isso porque vivi – uma parte como presidente do Senado e outra como simples senador – a guerra para criar a CPMF, chamado na origem imposto sobre cheque. A motivação era mais que nobre, dinheiro para saúde sempre à míngua. A primeira resistência veio dos bancos, reação violenta que, se não estou traído pela memória, a que já tenho direito, foi até ao STF. Tinha como aval e idealizador o Professor Adib Jatene, cientista consagrado, austero, respeitado e ouvido, que se tornou arauto da causa e peregrino desses recursos que iriam salvar a saúde. Sob seu prestígio e sua proteção ninguém recusava apoio. Passou. Dinheiro exclusivamente para saúde.

Seu amigo e devoto, dele ouvi quando resolveu abandonar o Ministério da Saúde que estava decepcionado. O dinheiro da CPMF da saúde tinha sido desviado pra pagar juros da dívida!… A decepção não era só dele. Era de todos nós que o tínhamos acompanhado. A Saúde ficou chupando pirulito.

Portanto são justos o pé atrás e a desconfiança de que se pretenda, sob qualquer motivação e qualquer nome, passar a perna de novo no Parlamento e até no Presidente, que proclamou ser contra.

O deputado e excelente Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que com tanto brilho tem desempenhado suas funções, tem formulado muito bem, e prudentemente, a sensata posição de não aceitar que o País seja passado para trás.

O SUDS e o SUS

Está sendo lançado Saúde no Brasil — Provocações e Reflexões, livro da maior importância para o País. Embora reunindo textos escritos ao longo de vários anos, e José Aristodemo Pinotti, seu autor, tenha falecido há dez anos, a reação do Brasil à pandemia enfatiza a necessidade de que todos os responsáveis pela Saúde o leiam e reflitam sobre sua mensagem.

Um aspecto essencial é sermos um país com sistema de atendimento universal à saúde — o único com mais de cem milhões de habitantes. Sem ele nem podemos imaginar a escala — já desmesurada — que teria entre nós a catástrofe da Covid-19. Os pobres sabem que sua única esperança, nessa hora, é o SUS.

O SUS não nasceu com esse nome. Chamava-se SUDS. Fora uma sugestão cristalizada na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Fui aconselhado a não comparecer, pois seria “de esquerda” — era presidida pelo Sérgio Arouca, da Fiocruz, filiado ao PCB —, mas não só compareci, acompanhado dos ministros Rafael de Almeida Magalhães e Roberto Santos, como determinei que suas conclusões fossem observadas. Daí surgiram as normas que criaram os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde, implementados por meio de convênios com o governo federal.

Pinotti era Secretário da Saúde de São Paulo e criou Sistemas Locais de Saúde em todo o Estado. Com o conhecimento do grande médico que foi um dos heróis da saúde pública no País — além de constituinte e reitor da Unicamp — Pinotti mostra como o SUDS virou SUS na Constituição e depois de meu governo o ter implantado passou por um período de desmonte, de que nunca se recuperou. Seu livro revela alguns dos aspectos mais críticos da política brasileira de saúde pública — aliás, da ausência de uma Política de Estado de Saúde Pública.

Uma vez lembrei aqui a apropriação de minhas iniciativas, citando o conto de Erasmo Dias, O roubo dos personagens. Começa pela lei de incentivos fiscais à cultura, a Lei Sarney, que acabaram para recriar como Lei Rouanet. Fui eu quem, no manifesto da Bossa Nova da UDN, falou pela primeira vez em “desenvolvimento com justiça social”. Fui também pioneiro em propor cotas raciais, o programa do leite, o vale-transporte e por aí iríamos longe. Rafael de Almeida Magalhães, algum tempo antes de falecer, me escreveu uma carta lembrando o caso do SUS, a equiparação dos direitos previdenciários do trabalhador rural ao urbano, o benefício de prestação continuada — renda mensal vitalícia a idosos, incapacitados e deficientes, que é dada 4,8 milhões de pessoas e no valor de 29 bilhões. E lembro ainda a lei de distribuição gratuita do coquetel contra a AIDS, levada pela ONU a vários países por todo o mundo.

O Dr. Dráuzio Varella diz que o SUS é “a maior revolução da história da medicina brasileira” e que “sem o SUS é a barbárie”. É com a autoridade de seu criador que fico chocado com a notícia de que a taxa de cura da Covid é 50% maior na rede privada. É um indicador da desigualdade social incompatível com o espírito que criou o SUS e com os próprios princípios básicos do Estado brasileiro.

Salvemos o SUS! O Dr. Pinotti dá o caminho.

O corona e a muriçoca

Quando Mário Meireles, o grande historiador maranhense, que deixou uma lacuna impreenchível, morreu, uma filha sua comentou: “Meu pai, que resistiu a tantas doenças e tantos obstáculos, foi morto por um mosquito.” Ele tinha falecido de dengue.

 

Agora, as grandes potências, que desenvolveram arsenais de armas de destruição, treinaram milhões de homens para destruir e conquistar, criaram indústrias dedicadas a fazer armas cada vez mais mortíferas, usaram por tantos anos tantos cientistas para desintegrar o átomo e construir armas que ameaçam a destruição da Humanidade, de repente se deparam com um competidor na capacidade de matar e destruir. O corona é um micro-organismo tão pequeno que o cientista precisa de um microscópio eletrônico que aumente um milhão de vezes sua imagem, e assim possa ver suas coroas e estudar seu poder destruidor, que não ainda não foi completamente revelado: só mostrou que é capaz de matar mais de meio milhão de seres humanos, infectar treze milhões, desmontar a economia mundial, criar centenas de milhões de desempregados, espalhar a fome, disseminar o desmonte dos sistemas de comércio, abalar a economia, provocar uma matança de empresas, atingindo brutalmente os mais pobres e ameaçando o sono dos ricos. Um simples — ou melhor, altamente complexo — nanométrico vírus. Um ser que talvez não seja vivo, mas nada tem de morto, pois vive de mudar e reproduzir. Entre uma célula que explora e outra, é um ácido nucleico com algumas proteínas; nas células, parasitas de seus cromossomos.

 

Toda ciência mundial está mobilizada contra o SARS-CoV-2 e contra a Covid-19, os grandes cientistas disputando para ver quem chega primeiro na corrida para produzir a vacina — ao que tudo indica, desistiram de produzir um remédio que destrua o vírus.

 

Esse exemplo da pequenez da arrogância do poder não seria a oportunidade do homem se impregnar pelo sentimento e pela consciência da solidariedade? Pensar que, se com a Terra ninguém acaba, as cidades e as maravilhas que o homem construiu de nada adiantam, porque o que está ameaçado é o gênero humano, que pode desaparecer vítima das doenças desconhecidas, mal conhecidas e bem conhecidas que estão sempre nos atacando. Paralisia infantil, varíola, malária, gripe espanhola, tifo, tuberculose, pneumonia, aids — até hoje sem uma cura definitiva —, ebola, cólera, H1N1, Covid, com as mutações e estratégias de vírus e bactérias trazendo doenças pelos milhares de séculos que ainda virão pela frente. De nada servem as bombas nucleares, as armas letais de toda natureza, contra elas.

 

Por que não procurar construir um mundo de justiça social, pacífico, em vez de acumular riqueza e construir tanques, porta-aviões, foguetes e tudo mais que representa hegemonia e poder?

 

Por que não banir a fome, criar uma sociedade menos egoísta e mais voltada para as coisas do espírito, um mundo de paz?

 

Se Deus nos deu a graça da vida e o livre arbítrio, não podemos, em vez de utilizar e completar a obra do Criador, caminhar para o suicídio coletivo da Humanidade.

 

Que esse vírus crie a consciência de um homem novo, que ame ao próximo como a si mesmo.