José Sarney

A Verdade e a Mentira

Vivemos num mundo em transformação. A sociedade digital mudou tanta coisa que isso atingiu o nosso modo de pensar. O aspecto mais discutido é o que se chama de “a morte da verdade”. São tantas versões sobre um fato que não se sabe qual é a verdade.

 

Este problema não é novo. Sempre foi uma questão fundamental e está no centro do Evangelho. Pilatos pergunta a Cristo: “Tu és rei?” Jesus diz que veio para dar “testemunho da verdade”, e Pilatos retruca: “O que é a verdade?” O que acontecia era que falavam “línguas” diferentes: Jesus, a de Deus; Pilatos, a do poder.

 

Agora nos deparamos com o problema do testemunho, ou melhor, das testemunhas. Querem que elas digam a verdade, mas a verdade é que, para elas, já não existe a verdade. Ora a verdade é uma abstração, algo que lhes querem impor com nomes que lhes são alheios, como fatos, ciência, até mesmo mostrando-lhes gravações com uma imagem em que não se reconhecem. Ora é uma coisa que não foi dita para valer, foi dita para dizer o que querem ouvir.

 

Além da mentira, há o caso do mentiroso: mente quem diz a mentira ou quem construiu a mentira? Pelo menos é o que está lá no Montaigne: “Eu sei que os gramáticos distinguem dizer mentira de mentir; e dizem que dizer mentira é dizer coisa falsa, mas que se pensa que é verdadeira.” Como a definição da palavra em latim quer dizer ir contra sua consciência “isso só toca àqueles que dizem o contrário do que sabem”.

 

Mas acrescenta que mentir é “um vício maldito, pois somos homens e só temos uns aos outros pela palavra”; e que depois que se começa a mentir é difícil parar. “Se, como a verdade, a mentira só tivesse uma face, estaríamos em melhores termos. Porque tomaríamos por certo o contrário do que diria o mentiroso. Mas o contrário da verdade tem cem mil rostos e um campo indefinido.”

 

Assim vai andando a verdade, quer dizer, a mentira. Pois o mentiroso diz o que sabe que é falso, mas quando acha que o que é verdadeiro é falso, não sabe o que dizer, se a falsa verdade ou a verdadeira mentira. E eu podia terminar com o Padre Vieira: “Finalmente, reduzindo todo o discurso, ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque mentem os ouvidos; mentem as línguas, porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos mentem.”

 

Mas, hoje, quando a sociedade se pauta pela rede social e admite várias versões da verdade, pode parecer que não se sabe mais onde está a verdade; no entanto a verdade, aquela que não é versão, mas fato, existe.

 

Eu mesmo sei uma verdade incontestável: o Brasil precisa vacinar toda a sua população, seguir as recomendações dos cientistas e salvar vidas. Pois há vidas a serem salvas, e com elas o País tem obrigações.

 

Não é especulação filosófica ou um jogo de palavras. É a realidade que estamos vivendo.

Eu e o Zé Gotinha

Outro dia o grande médico brasileiro Dr. Dráuzio Varella disse, no Fantástico, que quem inventou o SUS era um gênio. E um constituinte de 88 declarou com estardalhaço que a maior obra da Assembleia Constituinte foi a universalização da saúde.

Estou acostumado a me roubarem meus projetos e realizações. Por 20 anos apresentei vários projetos sobre incentivos à cultura. Só passou o último, e porque eu era Presidente da República, e assim pude sancioná-lo. Os artistas colocaram o nome de Lei Sarney. Ninguém tinha abordado o problema da cultura como eu o fizera. Pois bem, quando saí do governo, a primeira coisa que fizeram foi tirar o meu nome, e para isso revogaram a lei e apresentaram um projeto quase igual. Eu não reclamei, apenas disse que, para voltar a Lei da Cultura, eu votava qualquer lei.

O mesmo aconteceu com o vale-transporte, o vale-alimentação, o 13º salário para os funcionários civis e militares, a Lei da AIDS, a aposentadoria para o homem do campo e tantas outras iniciativas sociais. Agora é a vez do Zé Gotinha, meu velho amigo, companheiro de muitas campanhas de saúde. Botaram nele cabelo, uma máscara azul horrível e tacaram no peito SUS.

O SUS nasceu SUDS, durante o meu governo, bem antes da Constituinte. Tendo como sogro um grande e famoso médico do Maranhão, Dr. Carlos Macieira, e cunhado e tios por afinidade também médicos, desde cedo aprendi a conhecer os problemas de saúde. Em 1986, antes de completar um ano de presidência, realizava-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde, presidida por Sergio Arouca, que era diretor da Fiocruz e muito ajudou no meu governo. Como ele era comunista — naquele tempo isso era marca do diabo —, a conferência era maldita. Aconselharam-me a não comparecer. Lá estive, a prestigiei e ouvi vários pronunciamentos que pediam a universalização da saúde. Um pobre não tinha onde tomar uma injeção senão nas instituições de caridade. Ora, eu não achava justo que a saúde fosse direito só de quem tinha dinheiro e podia pagar tratamento. Bolamos então a criação de um programa que estendia tratamento a todos. Acrescentei no meu discurso criar assistência médica para todo o povo brasileiro. Criamos o SUDS: Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde. A Constituinte substituiu o nome para SUS e tomou conta dele. Esqueceram-se de que já existia.

Quando das campanhas de saúde, a começar pela de erradicação da paralisia infantil com a vacina Sabin, como havia resistência em tomar a vacina, resolvemos fazer um concurso em todas as escolas do País para um símbolo da campanha, promovido pelo Ministério da Saúde. Foi criado então o Zé Gotinha. Popularizamos e foi um sucesso. Pois agora me tomaram. Muito antes, quando Governador do Maranhão, em 1966, na campanha de erradicação da varíola, criei — com a direção médica do grande sanitarista, hoje esquecido, Dr. Cláudio Amaral — os comícios da saúde. Eram grandes eventos, em praça pública, com dezenas de vacinadores.

Eu me lembro da Conferência de 66, quando eu disse: “Aqui se define hoje um novo sistema de saúde para o Brasil.” Saúde para todos. Hoje se chama-se SUS.
Agora me tomam o Zé Gotinha. Que tomem, desde que ele continue com sucesso a ajudar a vida, chamando o povo para se vacinar contra a Covid. Que todos se vacinem, como pede a Ciência.

Vale-Transporte

Há mais de 30 anos, quando presidente da República, sancionei a lei que instituiu o Vale-Transporte. Quando assumi, o acesso ao trabalho, principalmente nos grandes centros urbanos, era um dos mais sérios das cidades. Primeiro, gerava uma ameaça constante de greves, sendo os transportes deficitários e, com as frotas sucateadas, lutando com um problema insolúvel. O salário do trabalhador, no fim do mês e muitas vezes no meio, não era mais suficiente para o pagamento de seu deslocamento para o trabalho. E, num tempo de inflação alta, ele não tinha como guardar parte de seu dinheiro para atender ao custo das passagens. Consequências: os trabalhadores faltavam muito ao trabalho e ficavam sem dinheiro para suas despesas — a mais fundamental delas a com alimentação.

 

Esta semana encontrei-me com um grande empresário desse ramo e ele começou a relatar as agruras que está vivendo o setor, pois a epidemia reduziu em 50% o número de passageiros e, com o aumento do preço dos combustíveis e dos veículos, eles precisam de ajuda do governo. A trágica epidemia que vivemos afetou todos os setores. Se o setor de transportes está assim, o que não falar dos pequenos empresários, dos vendedores ambulantes? E o desemprego — a mais terrível de todas as consequências, porque é responsável pela fome, que pode empurrar para a criminalidade. As corporações de venda de droga, crime organizado e milícias, ocuparam a periferia das cidades, atingindo toda a população e sobretudo as crianças, recrutadas pelos bandidos para o destino trágico de vítimas — ou dos traficantes, ou das milícias ou, como esta semana, da polícia.

 

A fome é o maior problema da humanidade. Nas Nações Unidas, quando era Presidente da República, tive oportunidade de levantar o problema. Eu afirmei que a paz, internacional ou nacional, estava envolvida no desafio social maior, sem a superação do qual não se podia almejar a democracia: ela só asseguraria a liberdade, seu fundamento maior, só se realizaria se superasse a fome. Democracia e liberdade. Liberdade contra a fome. Naquele discurso eu profetizava que o Século 21 seria da socialização dos alimentos. Isto não aconteceu. Era sonho e continuamos com bocas famintas, em todos os lugares do mundo, principalmente na Ásia e na África.

 

O que mais nos ameaça depois que superarmos essa pandemia — com as medidas recomendadas pelos cientistas e a vacinação de todas as populações — é sermos vencidos pelo desemprego, que aqui no Brasil já era tão profundo, e pela fome.

 

O empresário do transporte que tratou do problema comigo disse que a mais efetiva medida que já foi feita pelos transportes urbanos foi o Vale-Transporte. Eu acrescento o Vale-Alimentação. Ambos criados por mim, com a visão humanista de ajudar o trabalhador a ir ao trabalho e as bocas famintas a terem sua alimentação. Sem falar no Programa do Leite, em que distribuímos oito milhões de litros por dia às crianças, considerado naqueles anos pela Unesco como o melhor programa de combate à fome e especialmente para a alimentação das crianças.

 

O tempo passa e todos esquecem, mas o Vale-Transporte e o Vale-Alimentação aí estão, com as mães e os beneficiados ainda lembrando que foi o programa do leite que lhes possibilitaram viver.

 

Que essa pandemia vá embora, que volte a esperança e desapareçam o desemprego e a fome.

A ciência na mão de Deus

Os franceses gostam de dizer que tempos como estes que estamos vivendo são de “excesso de crises”. É um somatório de crises. Esta palavra grega, krisis, descreve um problema que se torna paroxístico, um momento de evolução decisivo, que o Aurélio define como “período de desordem acompanhado de busca penosa de uma solução, situação aflitiva”. É o nosso caso, com a singular diferença de que estas crises com que estamos convivendo todo dia, que fazem parte do nosso cotidiano, não são comuns, mas duas grandes crises; e, embora seja a crise um ponto final, elas se arrastam, continuando a crescer.

 

Estão superpostas a crise sanitária mundial da Covid e a nossa crise, as nossas crises: do sistema de saúde e da política, da economia, da educação, do emprego, da grande, da imensa desigualdade social e … — são tantas, completem suas listas. Nesta visão geral o resultado é que detemos o primeiro lugar no pódio mundial de mortos pela Covid, resultado da omissão que levou à falta de oxigênio, de remédios, de leitos, de médicos e da negação às campanhas pela adoção do uso de máscara, pelo distanciamento social e pelas regras básicas de higiene, como o simples costume de lavar as mãos.

 

Daí estar se disseminando cada vez mais na população o medo. Ele é comum aos animais; mas para os homens tem uma diferença: enquanto para aqueles surge no momento do perigo, para nós, com nossa capacidade de raciocinar, há a certeza de que a morte virá, uma antecipação dos riscos. A razão nos traz o medo, mas permite que adotemos medidas de defesa e proteção, a começar por regras sociais coerentes, baseadas na convivência política (o medo da morte forma o Estado, diz Hobbes) e no conhecimento científico.

 

Em uma entrevista de 1993, Jean Delumeau, um grande especialista na história do medo, diz que ele não desaparecerá, pois o medo fundamental é o da morte. Há várias maneiras de morrer, diz Delumeau, conformados ou em desespero. E para aplicar um exemplo presente, tomo o trecho: “Se uma epidemia está nas portas de uma cidade, como era o caso das pestes de antigamente, a proximidade da morte pode provocar pânico.”

 

Agora, diante de tantas ameaças, que a imprensa diariamente repete, uma das que nos pesam e nos preocupam neste instante é de que, com o agravamento da crise, o medo, que já começa a dominar nossa população, nos leve ao mais perigoso pânico.

 

É este aspecto da Covid que está se transmitindo aos sintomas da ansiedade, do estresse final associado à morte e levando a perturbações mentais, o que fecharia o círculo de nossas desgraças.

 

Só nos resta a esperança de que Deus estará sempre conosco e não chegará este momento. A fé não pode fugir de nossos corações. Até Nossa Senhora teve medo quando o anjo lhe saudou:

 

— ‘Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco.’ Ela se perturbou com aquelas palavras e o anjo lhe disse: ‘Não temas…’

 

Não tenhamos medo. A hora é da razão humana, do espírito humano, no que tem de mais alto, a ciência, trazida pelas mãos de Deus. E a ciência nos salvará.

A Pandemia

A grande epidemia, logo tornando-se pandemia, da civilização digital que está em curso é a primeira, e queira Deus que seja última, totalmente documentada, inclusive no seu processo de desenvolvimento, podendo os cientistas acompanhar as variantes que se multiplicam em todos os países, já existindo quatro mil, sendo que as mais preocupantes são a inglesa, a sul-africana e a brasileira, por serem mais contagiosas, podendo aumentar a possibilidade de reinfecção.

 

Cada vez mais constatamos que as doenças contagiosas constituem o grande perigo, bastando constatar que só a malária mata 400 mil pessoas por ano e a gripe, de 300 a 600 mil.

 

Nunca a humanidade teve a sua disposição tantos recursos científicos quanto temos hoje, o que possibilitou usarmos um conjunto enorme, mas insuficiente, de vacinas, medicamentos, equipamentos e recursos humanos. A Covid atingiu desde — como é óbvio — o gigantesco aparato de saúde, do mais primário ao mais sofisticado, todos igualados pela limitação dos instrumentos de combate, até a educação, a economia, os transportes, a mobilidade mundial, enfim, todos os setores da sociedade. Nada escapa ao buraco negro de sua impensável potencialidade. Ela surgiu, como todas as doenças epidêmicas, com a velocidade de um raio, não se sabendo o que era, como era, como seria e como combatê-la. Não se sabia nada e quanto mais se sabe mais interrogações surgem — e mais falta sabermos.

 

As epidemias castigam a humanidade desde sua existência, e quando Malthus inventou a demografia as colocou como o controle demográfico que ao longo dos séculos evitaria a catástrofe de a espécie humana crescer tanto que chegaria ao fim da capacidade de produzir alimentos, matando pela fome — o que acontecia em invernos dos países do Hemisfério Norte, até a batata chegar à Europa levada das Américas, na globalização da agricultura. Em 1988, quando estive em São Petersburgo, fiquei admirado quando — ainda ontem, no século XX — fui apresentado ao Ministro da Batata, encarregado de fazer estoques de verão para ter assegurada a alimentação do inverno. A troca de produtos, que permitiu a salvação de milhões na Europa, foi acompanhada da morte de 90% da população nativa da América — talvez 55 milhões de mortos.

 

Imaginemos o passado profundo, fixado apenas nos relatos que nos ficaram na tradição oral, nas bibliotecas de pedra, nas tablitas de barro, nos pergaminhos, nos papiros, no papel e em tantas formas de guardar para a história os fatos maiores e vejamos o sofrimento, a desgraça, os martírios que atingiram a espécie humana.

 

Quantos heróis, por amor a Deus e ao próximo, estão nos altares, no martírio de salvar seus irmãos nestes momentos. Hoje, com os recursos visuais massificados, a dor passa para todos nós, como uma família só, todos nós com o coração da caridade e a alma do amor ao próximo.

O amor e um mundo de paz

Entre perplexo, revoltado, preso de um medo que cada vez se prolonga mais, o Brasil assiste entre preces e lágrimas ao anúncio dos recordes mundiais que alcançamos em mortes provocadas pela Covid.

O que podemos fazer? Acho que ninguém deixa de estar disposto a ajudar. O problema tornou-se uma tragédia global pelas circunstâncias que cercaram a pandemia. Primeiro o caráter de surpresa com que a quase totalidade do mundo foi tomada — apenas alguns milhares de cientistas e estudiosos sabiam que ela viria a qualquer momento. Aliás o inesperado caracteriza as catástrofes. Nos seus bilhões de anos a nossa Terra, como o universo, é marcada por acasos, nas contorções que lhe dão desde a forma geográfica — com a criação de oceanos, montanhas, vulcões, destruição de cidades — até à criação da vida e ao aparecimento e à extinção das espécies. A própria prevalência da espécie homo sapiens foi fruto do desaparecimento dos seus parentes mais próximos, como os neandertais, que chegaram a misturar-se ao próprio sapiens.

Não deixemos de considerar que somos uma espécie extremamente recente, de cerca de trezentos mil anos, que teve em sua adaptação e predominância a vantagem decisiva da linguagem, esta talvez há apenas setenta mil anos.

Criamos várias civilizações, convivemos com vários tipos de sociedade e chegamos à modernidade e à pós-modernidade. Conseguimos desvendar o mundo dos genes e das proteínas, o mundo das partículas de alta energia, como o bóson de Higgs — a que chamaram de “partícula de Deus”, por concluir o “Modelo Padrão” que explica a estrutura do universo.

E assim o bicho homem desfruta de um mundo extraordinário — o dos sentimentos —, que nos dá a sublimação da alegria, do prazer, do sentimento do amor e também da tristeza, da dor. Aquilo que Bergson chamava de “sentimento da alma”.

Pois bem, isso que nos traz a alegria de viver dá ao homem também a desgraça da maldade, do ódio, da inveja, da destruição. As nações se organizam e, em vez de construir um mundo de paz, de convivência pacífica, de uma Humanidade sem armas, sem ódio, sem competição, marcha em busca de armas cada vez mais potentes, capazes de destruir países e até a vida na Terra.

Mas se esquece que a natureza é mais forte que todos esses atos. E ela reage de maneira aleatória, como o passado mostrou tantas vezes, trazendo as pestes, a destruição de espécies, e nos ameaça com aquilo que Helmut Schmidt dizia — repito ainda uma vez — ser a maior ameaça ao futuro da Humanidade: as doenças desconhecidas. A nossa geração já conhece duas: a Aids e a Covid.

A presença do acaso em absolutamente todos os fatos da natureza levava Einstein a dizer que sua ideia de Deus era formada por sua “profunda convicção na presença de um poder superior, que aparece no universo incompreensível”.

A desgraça da Covid que nos ameaça, que não sabemos como começou e como vai terminar, nos leva a pensar no início da filosofia, o de onde viemos e para onde vamos, de Platão.

Eu, que sou cristão, penso no amor, na solidariedade e na construção, depois dessa tragédia, de um mundo melhor, mais humano e de paz.. ■

Duas rosas: a bela e a fera

Numa pergunta que passou ao nosso cotidiano é o que vai acontecer com o mundo depois da Covid, que eu considero que não vai passar. Vamos descobrir remédios para o seu tratamento, mas isto vai demorar muitos anos. Temos os exemplos da AIDS. A Covid vai passar e não passará. Permanecerá endêmica. E ela chega num momento em que vivemos entre um mundo em transformação e um mundo transformado.

Estamos em plena revolução digital, com um impacto radical sobre as comunicações, que passaram a nos influenciar e transformaram-se em formadoras de opinião. Tudo mudou. Agora, com estes dois impactantes vetores na sociedade, a revolução digital e a Covid — como ameaça à vida —, temos de lidar com outra maneira de pensar. A sociedade está se contorcendo dentro de nós e não sentimos, somos parte do processo.

Vivemos nossas circunstâncias, que são as da realidade. Porém nossa realidade não é realmente a realidade. Nossos sentimentos e reações estão sendo reciclados e já não são os que nos faziam ser quem somos. “O que em mim sente está pensando”, diz o verso de Fernando Pessoa, no desejo de ter a “alegre inconsciência” da ceifeira. Só que hoje, sentir e pensar não são mais faculdades do ser individual e sim do ser coletivo de que somos parte.

Nossas antigas almas estão morrendo e não sentimos. O amor deixou de ser amor, como o concebíamos no passado. O mesmo acontece com a amizade, com a noção de convivência, com o ódio e a cólera. Estamos perdendo até a indignação, todos submetidos ao uso de uma droga tecnológica. As próprias drogas fazem parte deste contexto. A diferença é que estas são substâncias químicas. A droga da modernidade, das diversas mídias, nos impõe uma situação mais perigosa que a de não ter a liberdade de não as ingerir, porém a obrigação de consumi-las.

O culto da velocidade dos deslocamentos. Não temos mais a liberdade de andar. As distâncias, o estilo de vida que foi criado nos fizeram dependentes da velocidade, do patinete, da bicicleta, da moto, do carro, do ônibus, do trem, do avião. Tudo isso é incompatível com a Covid e será com o pós-Covid.

Vão incorporar-se ao novo estilo da sociedade essas mudanças. A internet, entre outras coisas, matou a verdade e são tantas as verdades que não sabemos qual é a verdade verdadeira, na consumação literal da frase de Swift: “A mentira voa e a verdade vai capengando atrás dela”. Quem a escolhe são os que comandam a comunicação.
Bauman identificou uma sociedade, a da incerteza, a líquida, com cultura líquida, arte líquida, amor líquido e há dez anos o filósofo coreano Byung-Chul Han definiu outra: a do cansaço. Eu me arrisco a vislumbrar uma terceira, que é a do momento que estamos vivendo: a do medo e do confronto dos costumes.

A juventude ainda não as sente, resiste e convive com a sublimação dos seus prazeres. A pós-modernidade, que trouxe tantas formas de pensar e viver, vai também perplexa sentir o que nós sentimos: a nossa sociedade acabou.

 

Era boa e sublime. Que a do futuro também o seja. Vamos rezar para que não seja a bela e a fera.

As Flores do Coração

Na minha adolescência trombei com um livro que muito marcou a minha vida e me fez entrar numa fase de dúvidas — muitas dúvidas — filosóficas e religiosas. Sobrevivi a todas e mantive definitivamente os meus ideais cristãos. Esse livro ocupou meu pensamento e permanece até hoje como uma fonte de indagações não respondidas, provocação permanente a incitar o meu raciocínio. Já o título do livro era uma formulação desafiadora: O Sentimento Trágico da Vida. Mais tarde a Igreja o colocou no Index librorum prohibitorum. Seu autor é o grande filósofo espanhol Dom Miguel de Unamuno, que foi Reitor da Universidade de Salamanca — pertenço, com orgulho, a um dos seus Conselhos. Ali fiz uma conferência quando do Centenário de Jorge Amado, analisando sua obra e importância na literatura brasileira, e lembrei, para admiração geral, o verso de Júlio Dantas, em A Ceia dos Cardeais, quando colocou na palavra do Cardeal Rufo a expressão do temperamento de fanfarronice ibérico: “Não matei em duelo o Sol, pelas alturas / Só para não deixar Salamanca às escuras!”

 

Lembrei-me desse livro ao viver uma comoção que não passa com a situação trágica do País, com essa pandemia que ameaça o futuro da humanidade por um vírus, uma partícula submicroscópica, que não chega a ser um organismo, que não é um ser vivo, mas é a porta da morte, que como um dragão apocalíptico se transforma a cada instante em variantes mais transmissíveis e mais letais. Vivemos, assim, com medo desse monstro nos possuir e com uma infindável percepção de perda. Não há quem não compartilhe das lágrimas das famílias dos mais de 270 mil mortos, dos 2349 homens e mulheres cujas mortes, na quarta-feira, colocaram o Brasil na vergonhosa e podre posição de ser o primeiro país do mundo nesse ranking do terror. Não há flores em nossos corações suficientes para ocupar o pedaço de chão onde essas pessoas repousam por toda a eternidade. Esses números destroem todos nós, presos de uma tristeza que não passa.

 

Viver é ter um privilégio, uma vitória desde o nada. Cada vez que a relação sexual entre um homem e uma mulher gera um ser humano, somente um entre cerca de vinte milhões de espermatozoides consegue alcançar e fertilizar o óvulo. Já nascemos vencendo uma competição entre vinte milhões de concorrentes. A vida é uma graça de Deus. Temos o dever de zelar por ela, por nós e pelos outros, pelo amor e pela esperança — e contra aquele lema da Falange na Guerra Civil Espanhola: “Viva a morte!” Estamos a vislumbrar uma ameaça ao futuro da humanidade, com o raio de uma doença desconhecida.

 

Cruel ver tratar-se agora de outras coisas, todas menores diante do desafio que estamos vivendo. Nada existe para discutir neste momento senão a Covid — a vida e a morte, a vida que precisa vencer a morte — e a desgraça de ver nosso País tendo como marca mundial uma coroa de defuntos.

Solidão na solidão

Uma das indagações mais nebulosas que estão sendo feitas sobre as consequências posteriores da pandemia são os problemas mentais. Do corpo já se sabe quase tudo ou quase nada, mas quanto à cabeça só há especulação sem nenhuma comprovação. É certo que não se pode separar o corpo do espírito, nem este dele, a não ser numa meditação filosófica, como concebeu Descartes, que a alma e o corpo são duas substâncias separadas. Na visão fisiológica ele, corpo, é que determina o estado mental.

Uma constatação pessoal é da diferente vivência que se tem do isolamento — de que não se pode abrir mão —, não só a segregação residencial como o afastamento entre as pessoas, uma vez que a ciência quantificou em dois metros a distância entre interlocutores, mesmo com a obrigatória máscara, para evitar o risco de contágio.
Estou há um ano recolhido em casa e com uma rígida conduta para receber visitas de amigos — até mesmo de chatos é gostoso.

Habituado a ler e escrever, mergulhei quase todo meu tempo nessa melhor forma de vida que existe. Tive a felicidade de ao nascer ser privilegiado com a dádiva de um grande, maior e íntimo amigo, a quem eu quero bem e por quem tenho grande amor — até táctil, ao folheá-lo —, sua excelência, o livro. Daí me arrepia quando ouço que ele vai desaparecer e a geração do futuro só conhecerá sua forma digital. Eu considero o livro a maior descoberta científica da humanidade. Foi ele que transformou o mundo, a partir do tipo móvel, acabando com as limitações dos copistas. Cai e não quebra, pode ser lido em qualquer lugar — no banheiro, no carro, tomando o cafezinho —, não precisa de energia. E tem todos os programas de computador: por isso segundo Bill Gates foi o livro que fez o computador.

Ele combate a solidão e com ele nunca nos sentíamos sós. Era até uma terapia contra doenças e problemas. Mas sugiro aos psiquiatras examinar uma nova síndrome que está me apavorando: um cansaço da solidão que eu sabia espantar, um espaço para uma solidão na solidão da segregação e do medo, que a cada dia aumenta. Não é a que conhecíamos, que às vezes tinha até seus encantos, mas um tipo de tristeza e transfiguração que ameaça se intrometer na solidão, destruindo-a; mas mantendo-a mais profunda de uma maneira diferente que não sei definir.

Medo da morte? Não, da eternidade, como dizia Unamuno. Quando apareceu a Aids escrevi que essa doença desconhecida era a primeira que associava o amor à morte, ameaçando a fonte da vida. O Corona propõe uma incompatibilidade entre o amado e a amada, o estar junto, o sentir o corpo, o desfrutar da vida, colocando o receio da morte para nos separar do próximo. Foi o Cristo quem nos mostrou o próximo, no episódio do bom samaritano. Qual é a essência desta parábola? É o amor. Será que o Corona, ao trazer a morte, quer afastar o amor?

Isso é o pior, porque o amor é a essência do mundo, do homem e da mulher.

Deus nos retire deste sofrimento em que estamos mergulhados, que passou a ser a oração de cada dia — e estamos no extremo de não suportar.

O Brasil teve esta semana o recorde mundial de 1840 mortes num dia. Valha-nos, Deus!.

Em Casa ou na Escola?

Ninguém sabe o mundo que nos espera depois desta pandemia. Teremos que nos adaptar à convivência com um vírus que fará parte das campanhas periódicas de vacinação e criar novos hábitos e costumes.

Um dos problemas essenciais tem sido tratado com um grau de insegurança em todo o mundo: como manter vivo o ensino. No Brasil, o problema se agrava pela anomia absoluta do Ministério da Educação, pela trágica e crônica carência de recursos para o ensino público — custa-me acreditar que querem desvincular os parcos valores atuais, tão distantes dos sonhados 10% do PNE. A abertura ou o fechamento das escolas depende, no momento, de decisões estaduais ou municipais, feitas improvisadamente, variando ao vento do agravamento ou da ilusória sensação de amenização da pandemia.

A aula presencial é de vital importância na formação dos jovens (felizmente o STF já sepultou a ideia absurda do ensino domiciliar). No entanto as condições de tamanho das classes, do distanciamento entre cadeiras, do controle de contaminação são incompatíveis com a realidade de grande parte das escolas municipais e mesmo estaduais. O ensino a distância, que vem sendo praticado por muitas escolas particulares como paliativo razoável, inclusive como meio de diminuir o número de alunos por sala, não pode ser cogitado quando a criança não tem acesso aos equipamentos mínimos necessários.

A necessidade de prioridade de professoras e professores na vacinação é evidente. Estão, no entanto, em 17º lugar para o ensino básico e 18º para o ensino superior.

Além do aspecto pedagógico que se escancara a nossos olhos existe o drama que se desenrola em casa diante de (in)decisão do governo sobre a volta à aula presencial: a dúvida entre pais e alunos. O medo dos pais de autorizar os filhos a comparecer à escola, com a ameaça de contrair a doença e trazê-la para dentro de casa, e de negar a autorização, com o risco de prejudicar sua educação. O medo dos filhos de comparecer, quando os pais autorizam, e o desejo de comparecer, quando os pais negam permissão. Surge assim uma tensão em casa que se soma a todos os medos e dramas já provocados pelo confinamento. Confinamento que, sabemos todos muito bem, é a melhor arma contra a pandemia.

É essencial que os responsáveis promovam um debate sério e estabeleçam uma orientação segura para todo o ensino no Brasil, definindo regras básicas para cada segmento e garantindo os recursos necessários — os já votados no pacote emergencial e outros adicionais, se for o caso — para não prolongar o terrível prejuízo à educação de nossas crianças e nossos jovens.