José Sarney

As Flores do Coração

Na minha adolescência trombei com um livro que muito marcou a minha vida e me fez entrar numa fase de dúvidas — muitas dúvidas — filosóficas e religiosas. Sobrevivi a todas e mantive definitivamente os meus ideais cristãos. Esse livro ocupou meu pensamento e permanece até hoje como uma fonte de indagações não respondidas, provocação permanente a incitar o meu raciocínio. Já o título do livro era uma formulação desafiadora: O Sentimento Trágico da Vida. Mais tarde a Igreja o colocou no Index librorum prohibitorum. Seu autor é o grande filósofo espanhol Dom Miguel de Unamuno, que foi Reitor da Universidade de Salamanca — pertenço, com orgulho, a um dos seus Conselhos. Ali fiz uma conferência quando do Centenário de Jorge Amado, analisando sua obra e importância na literatura brasileira, e lembrei, para admiração geral, o verso de Júlio Dantas, em A Ceia dos Cardeais, quando colocou na palavra do Cardeal Rufo a expressão do temperamento de fanfarronice ibérico: “Não matei em duelo o Sol, pelas alturas / Só para não deixar Salamanca às escuras!”

 

Lembrei-me desse livro ao viver uma comoção que não passa com a situação trágica do País, com essa pandemia que ameaça o futuro da humanidade por um vírus, uma partícula submicroscópica, que não chega a ser um organismo, que não é um ser vivo, mas é a porta da morte, que como um dragão apocalíptico se transforma a cada instante em variantes mais transmissíveis e mais letais. Vivemos, assim, com medo desse monstro nos possuir e com uma infindável percepção de perda. Não há quem não compartilhe das lágrimas das famílias dos mais de 270 mil mortos, dos 2349 homens e mulheres cujas mortes, na quarta-feira, colocaram o Brasil na vergonhosa e podre posição de ser o primeiro país do mundo nesse ranking do terror. Não há flores em nossos corações suficientes para ocupar o pedaço de chão onde essas pessoas repousam por toda a eternidade. Esses números destroem todos nós, presos de uma tristeza que não passa.

 

Viver é ter um privilégio, uma vitória desde o nada. Cada vez que a relação sexual entre um homem e uma mulher gera um ser humano, somente um entre cerca de vinte milhões de espermatozoides consegue alcançar e fertilizar o óvulo. Já nascemos vencendo uma competição entre vinte milhões de concorrentes. A vida é uma graça de Deus. Temos o dever de zelar por ela, por nós e pelos outros, pelo amor e pela esperança — e contra aquele lema da Falange na Guerra Civil Espanhola: “Viva a morte!” Estamos a vislumbrar uma ameaça ao futuro da humanidade, com o raio de uma doença desconhecida.

 

Cruel ver tratar-se agora de outras coisas, todas menores diante do desafio que estamos vivendo. Nada existe para discutir neste momento senão a Covid — a vida e a morte, a vida que precisa vencer a morte — e a desgraça de ver nosso País tendo como marca mundial uma coroa de defuntos.

Solidão na solidão

Uma das indagações mais nebulosas que estão sendo feitas sobre as consequências posteriores da pandemia são os problemas mentais. Do corpo já se sabe quase tudo ou quase nada, mas quanto à cabeça só há especulação sem nenhuma comprovação. É certo que não se pode separar o corpo do espírito, nem este dele, a não ser numa meditação filosófica, como concebeu Descartes, que a alma e o corpo são duas substâncias separadas. Na visão fisiológica ele, corpo, é que determina o estado mental.

Uma constatação pessoal é da diferente vivência que se tem do isolamento — de que não se pode abrir mão —, não só a segregação residencial como o afastamento entre as pessoas, uma vez que a ciência quantificou em dois metros a distância entre interlocutores, mesmo com a obrigatória máscara, para evitar o risco de contágio.
Estou há um ano recolhido em casa e com uma rígida conduta para receber visitas de amigos — até mesmo de chatos é gostoso.

Habituado a ler e escrever, mergulhei quase todo meu tempo nessa melhor forma de vida que existe. Tive a felicidade de ao nascer ser privilegiado com a dádiva de um grande, maior e íntimo amigo, a quem eu quero bem e por quem tenho grande amor — até táctil, ao folheá-lo —, sua excelência, o livro. Daí me arrepia quando ouço que ele vai desaparecer e a geração do futuro só conhecerá sua forma digital. Eu considero o livro a maior descoberta científica da humanidade. Foi ele que transformou o mundo, a partir do tipo móvel, acabando com as limitações dos copistas. Cai e não quebra, pode ser lido em qualquer lugar — no banheiro, no carro, tomando o cafezinho —, não precisa de energia. E tem todos os programas de computador: por isso segundo Bill Gates foi o livro que fez o computador.

Ele combate a solidão e com ele nunca nos sentíamos sós. Era até uma terapia contra doenças e problemas. Mas sugiro aos psiquiatras examinar uma nova síndrome que está me apavorando: um cansaço da solidão que eu sabia espantar, um espaço para uma solidão na solidão da segregação e do medo, que a cada dia aumenta. Não é a que conhecíamos, que às vezes tinha até seus encantos, mas um tipo de tristeza e transfiguração que ameaça se intrometer na solidão, destruindo-a; mas mantendo-a mais profunda de uma maneira diferente que não sei definir.

Medo da morte? Não, da eternidade, como dizia Unamuno. Quando apareceu a Aids escrevi que essa doença desconhecida era a primeira que associava o amor à morte, ameaçando a fonte da vida. O Corona propõe uma incompatibilidade entre o amado e a amada, o estar junto, o sentir o corpo, o desfrutar da vida, colocando o receio da morte para nos separar do próximo. Foi o Cristo quem nos mostrou o próximo, no episódio do bom samaritano. Qual é a essência desta parábola? É o amor. Será que o Corona, ao trazer a morte, quer afastar o amor?

Isso é o pior, porque o amor é a essência do mundo, do homem e da mulher.

Deus nos retire deste sofrimento em que estamos mergulhados, que passou a ser a oração de cada dia — e estamos no extremo de não suportar.

O Brasil teve esta semana o recorde mundial de 1840 mortes num dia. Valha-nos, Deus!.

Em Casa ou na Escola?

Ninguém sabe o mundo que nos espera depois desta pandemia. Teremos que nos adaptar à convivência com um vírus que fará parte das campanhas periódicas de vacinação e criar novos hábitos e costumes.

Um dos problemas essenciais tem sido tratado com um grau de insegurança em todo o mundo: como manter vivo o ensino. No Brasil, o problema se agrava pela anomia absoluta do Ministério da Educação, pela trágica e crônica carência de recursos para o ensino público — custa-me acreditar que querem desvincular os parcos valores atuais, tão distantes dos sonhados 10% do PNE. A abertura ou o fechamento das escolas depende, no momento, de decisões estaduais ou municipais, feitas improvisadamente, variando ao vento do agravamento ou da ilusória sensação de amenização da pandemia.

A aula presencial é de vital importância na formação dos jovens (felizmente o STF já sepultou a ideia absurda do ensino domiciliar). No entanto as condições de tamanho das classes, do distanciamento entre cadeiras, do controle de contaminação são incompatíveis com a realidade de grande parte das escolas municipais e mesmo estaduais. O ensino a distância, que vem sendo praticado por muitas escolas particulares como paliativo razoável, inclusive como meio de diminuir o número de alunos por sala, não pode ser cogitado quando a criança não tem acesso aos equipamentos mínimos necessários.

A necessidade de prioridade de professoras e professores na vacinação é evidente. Estão, no entanto, em 17º lugar para o ensino básico e 18º para o ensino superior.

Além do aspecto pedagógico que se escancara a nossos olhos existe o drama que se desenrola em casa diante de (in)decisão do governo sobre a volta à aula presencial: a dúvida entre pais e alunos. O medo dos pais de autorizar os filhos a comparecer à escola, com a ameaça de contrair a doença e trazê-la para dentro de casa, e de negar a autorização, com o risco de prejudicar sua educação. O medo dos filhos de comparecer, quando os pais autorizam, e o desejo de comparecer, quando os pais negam permissão. Surge assim uma tensão em casa que se soma a todos os medos e dramas já provocados pelo confinamento. Confinamento que, sabemos todos muito bem, é a melhor arma contra a pandemia.

É essencial que os responsáveis promovam um debate sério e estabeleçam uma orientação segura para todo o ensino no Brasil, definindo regras básicas para cada segmento e garantindo os recursos necessários — os já votados no pacote emergencial e outros adicionais, se for o caso — para não prolongar o terrível prejuízo à educação de nossas crianças e nossos jovens.

O Caminho do Futuro

O futuro da Humanidade não será de países grandes ou pequenos, mas daqueles que dominem tecnologia e ciência. Os outros estão condenados à colonização cultural e econômica para ter acesso aos benefícios das descobertas.

 

Já faz longos anos, denunciei a fuga de cérebros do Brasil, por falta de suporte mínimo para a pesquisa, e preconizei que fizéssemos um esforço para criar condições para que nossos cientistas aqui tivessem espaço para desenvolver seus trabalhos.

 

Presidente da República, criei o Ministério da Ciência e Tecnologia, dando aos nossos cientistas recurso e prestígio. Para se ter uma ideia, o CNPq concedeu mais bolsas em meu governo do que em todos os seus 34 anos anteriores. Com isso tivemos grandes marcos científicos, como o primeiro reator de pesquisas o domínio do enriquecimento do urânio, o primeiro acelerador linear de elétrons, o centro de construção e o primeiro laboratório de testes de satélites, o Laboratório Nacional de Luz Sincronton, o sistema de monitoramento ambiental por satélites, o desenvolvimento de novos materiais, como fibras óticas e cerâmicas de alta resistência, avanços em radar, lasers e tantas outras coisas.

 

A SBPC e outras instituições me homenagearam pelo que fiz. É por isso, com autoridade e responsabilidade, que me preocupo com a atual situação das pesquisas no Brasil, nesse momento decisivo em que a Humanidade, mais do que nunca, necessita delas.

 

Assim, tive grande satisfação com a aprovação da Lei Complementar 177/21, que definiu que o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT é um fundo especial de natureza financeira, não podendo, portanto, ser objeto de contingenciamento ou sofrer limitações de qualquer espécie, a não ser a de frustração da arrecadação correspondente, e que os recursos não aplicados não estão sujeitos a anualidades, continuando disponíveis permanentemente para uso. O FNDCT é o principal alimentador da Finep, instituição essencial para o desenvolvimento da pesquisa em nosso País.

 

A assessoria presidencial incorreu em equívoco ao sugerir que fosse vetado justamente o dispositivo que impedia o contingenciamento de recursos. O Congresso Nacional, que aprovou a lei com votação expressiva — de 71 Senadores e 385 Deputados —, certamente vai superar esse impasse e reafirmar essa lei em sua integridade.

 

Nunca é demais repetir que a ciência trouxe para a Humanidade contribuições que lhe permitiram sobreviver e levantar sua qualidade de vida de uma forma que não se compara ao que os sistemas políticos jamais fizeram ou farão.

 

Foram e são, no entanto, os políticos os responsáveis por dar à ciência e à tecnologia as condições de responder aos grandes desafios do conhecimento, de maneira a que avanços fundamentais para a Humanidade possam continuar acontecendo. É o compromisso que o Congresso Nacional tem, neste momento.

 

É um apelo ao Presidente: dar prioridade aos cientistas e recursos para suas pesquisas.

A Crise da Democracia Representativa

Uma crise que já vinha se arrastando há bastante tempo era a perda de prestígio dos parlamentos do mundo inteiro, sujeitos a críticas permanente sobre a eficiência das instituições e a conduta dos representantes.

 

No Brasil, essa crise estava superposta à outra muito mais grave, a desorganização administrativa duas Casas, Câmara dos Deputados e Senado Federal. Recordo-me que, quando assumi a Presidência do Senado pela primeira vez, em 1995, o registro da presença dos senadores era feito pela portaria, à proporção que iam entrando na Casa. Isso fazia que o plenário ficasse quase sempre vazio, embora houvesse o pagamento integral, sem desconto, das diárias que regimentalmente eram calculadas pelo comparecimento às sessões plenárias, gerando crítica permanente da imprensa. O Diário do Congresso era publicado com grande atraso, e eu naquele tempo encontrei o Senado com as atas atrasadas seis meses. Não se sabia que matérias seriam discutidas, porque não existia pauta antecipada: ela era feita na véspera das sessões. Corrigimos então esses problemas fazendo o registro em plenário, durante as sessões e programando, juntamente com as lideranças e com muita antecedência, a pauta.

 

Com o advento da internet, estes problemas se agravaram, pois era um novo instrumento de fiscalização e crítica das duas Casas. Discutia-se muito, não só no Brasil como no exterior, que com o seu crescimento, passando a ser fortemente digital, a mídia entrou como novo interlocutor da opinião pública. E se perguntava: quem representava a opinião pública era o Parlamento, cujos representantes eram eleitos de quatro em quatro anos, ou a mídia, que exercia vigilância diária e daria legitimidade às votações das matérias controvertidas? Era a famosa “voz das ruas”, que existia desde séculos e que agora tinha ganhado nova formatação.

 

Somava-se a esta outra crise, a dos partidos políticos. No Brasil, sobretudo porque o regime militar tinha tomado o que considero sua pior decisão: a extinção dos partidos políticos tradicionais, criando por decreto dois partidos, o MDB e a Arena.

 

Ora, a escola de líderes políticos bem ou mal era feita pelos partidos; eles construíram, no Império e na República, grandes nomes. Desaparecendo essa escola ficamos à mercê dos outsiders e assistimos à destruição do único instrumento que assegura a estabilidade dos governos, os partidos políticos.

 

O Clinton assim resumiu a crise dos partidos: os partidos políticos não eram necessários para as campanhas eleitorais, que podiam ser feitas pela mídia, mas os governos não podiam governar sem partidos — e, quanto mais sólidos fossem estes, mais estáveis seriam os governos e mais forte a democracia.

 

Essa dupla crise, dos partidos políticos e do parlamento, criou esse grande problema que até hoje a democracia não conseguiu resolver. Nos países subdesenvolvidos politicamente, o desastre é grande, e a instabilidade, maior. Assim, buscam-se modelos que nada mais são do que arranjos episódicos. Vejam o Brasil. O tal presidencialismo de coalizão nos tem dado permanente instabilidade política e liquidado as lideranças, dando margem a acusações de corrupção dentro das Casas legislativas na votação de diversas matérias.

 

Acabamos de assistir a uma dessas crises, em que, não existindo partidos estruturados e fortes, criaram-se novas denominações, como “centrão” e outras, que até hoje ninguém sabe o que são. Mas não posso ser pessimista: acredito que vamos encontrar soluções que fortifiquem o regime democrático e aprofundem o prestígio do Parlamento.

Eleições na Câmara

A primeira vez que entrei na Câmara dos Deputados, no Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, em 1955, ainda como suplente — e sem conhecer a cidade, que tinha visitado poucas vezes —, fiquei deslumbrado, nos meus 25 anos. A Câmara para mim brilhava com seus balcões, com mulheres de chapéu, todo mundo nas tribunas cheias, desejosos de conhecer os grandes homens que tanto enriqueciam não só a política como a inteligência brasileira. Os jornais publicavam os debates e os discursos mais destacados na íntegra.

 

Ali vi de perto Milton Campos, Afonso Arinos, Bilac Pinto, Gustavo Capanema, Vieira de Melo, Juarez Távora, Tristão da Cunha, Plínio Salgado, Flores da Cunha, Fernando Ferrari, Lúcio Bittencourt, Mário Palmério, Carlos Lacerda, Aliomar Baleeiro, Adauto Lúcio Cardoso, Josué de Castro, Magalhães Pinto, Mário Martins, Odilon Braga, Luís Viana Filho, José Maria Alkmin, Ranieri Mazzili, Daniel Krieger, Leonel Brizola e tantas celebridades que desapareceram — como nós desapareceremos, porque a glória política vive de instantes e do seu tempo.

 

Eram os Anos Dourados, o Teatro Municipal com as óperas de companhias europeias; o teatro de revista com as dançarinas de saiotes; a Confeitaria Colombo; a boate Night and Day, no Hotel Serrador; paletó e gravata nos restaurantes chiques; Copacabana, o primeiro sonho de qualquer nordestino — calcule se vissem os biquínis de hoje!

 

O Rio era fulgurante e feérico. Era a capital cultural do País. Todos os dias celebridades faziam conferências, visitas e mesmo pesquisas. Havia presença constante de intelectuais do mundo inteiro. No Hotel Glória ainda era guardada a memória da passagem de Einstein, que, em papel timbrado da casa, escreveu sobre a Teoria da Luz. Políticos célebres e ídolos nacionais ali moravam — era com emoção que eu visitava Otávio Mangabeira, se não me equivoco, na Suíte 800.

 

A eleição da Mesa na Câmara e no Senado não tinha as disputas de hoje. Os partidos com as suas lideranças fortes escolhiam os candidatos na base do mérito e do desempenho.

 

Em 1958 a Ala Moça do PSD, com Pacheco Chaves, Vieira de Melo, Renato Archer, tendo como líder Ulysses Guimarães — brilhante deputado de São Paulo, onde ganhara nome como poeta, na famosa Faculdade do Largo São Francisco — se impôs.

 

Agora, quando vejo o que ocorre na atual conjuntura nas duas Casas do Parlamento, percebo como os tempos mudam.

 

Como eu disse, a glória parlamentar vive de discurso. Churchill é mais citado pelos seus grandes discursos e pelos rápidos e irônicos apartes. Como ao concitar a resistência: “Não tenho nada a oferecer senão sangue, suor e lágrimas.” E Kennedy, pelo seu chamamento: “Não perguntem o que seu país pode fazer por você, perguntem-se o que vocês podem fazer pelo seu país.” Ou a resposta de Churchill a Lady Braddock, que disse: “O senhor está bêbado.” E ele: “E a senhora é muito feia. A diferença é que amanhã eu estarei sóbrio.”

 

Carlos Lacerda também era um raio e destruía num aparte. Uma deputada do meu tempo no Rio aparteou-o: “O senhor é um purgante.” Ele respondeu: “E a senhora, o efeito!…”

 

O plenário do Tiradentes quase vai abaixo de tanto riso…

 

Hoje nem humor existe mais.

Judicialização da Política

Todos sabem que sempre fui um crítico da Constituição de 1988, mas reconhecendo que o capítulo dos direitos individuais e os dispositivos que tratam dos direitos sociais são muito bons e expressam uma constituição moderna e atualizada.

 

Quando convoquei a Constituinte, disse que devíamos aproveitar a oportunidade para fazer um Carta moderna que servisse de exemplo ao mundo, introduzindo os direitos sociais — já que o peleguismo getuliano tinha prejudicado a visão entre o capital e o trabalho —, buscando um capitalismo moderno. Mas apenas a partir das greves de São Bernardo surgiu no País um sindicalismo livre — implantado durante meu governo com a libertação dos sindicatos da tutela do Ministério do Trabalho.

 

O represamento dessa modernização é um dos responsáveis pelo populismo anárquico e ideológico com que passamos a viver. A Constituinte de 88 foi uma oportunidade perdida de termos uma constituição moderna, sem o hibridismo que a atual tem de ser ao mesmo tempo parlamentarista e presidencialista.

 

A Constituição possibilitou, inclusive, a existência de algumas anomalias, como medidas provisórias e outros dispositivos que hoje tumultuam a política brasileira.

 

É o caso das ADIs, Ação Direta de Inconstitucionalidade, cuja amplitude de iniciativa levou o que é a mais grave responsabilidade do Supremo Tribunal Federal a transformá-lo em árbitro da política. Por esse e outros caminhos, os partidos passaram a levar à Justiça questões que podiam e deviam ser resolvidas interna corporis. A facilidade de alterar a Constituição viciou o governo a tudo fazer por emendas constitucionais, dando ao Congresso o poder de engessar o Executivo, fazendo a corrupção entrar nas decisões congressuais.

 

O Ministro Nelson Jobim foi quem primeiro detectou o problema e profeticamente avisou: “Judicializaram a política e o passo seguinte vai ser politizar a Justiça”. E o resultado foi o surgimento de decisões judiciais criando insegurança jurídica e a enxurrada de pedidos de impeachment, acuando presidentes e ministros do Supremo Tribunal Federal, o que colocou o País no meio de um redemoinho administrativo.

 

E a visão de Otávio Mangabeira, que dizia ser a Democracia uma plantinha frágil, agora foi repetida pelo Presidente Biden em seu discurso de posse.

 

Se não cuidarmos dela, vem um Trump e manda invadir o Capitólio.

Quando Trump for para Miami

A paisagem mundial ainda está dominada pelas travessuras do Trump, que culminaram num episódio a que ninguém no mundo pensava assistir depois que os ingleses começaram a estruturar o governo democrático, há oitocentos anos, passando pela Carta do Rei João, a Revolução Gloriosa, a consolidação da Independência das Colônias Americanas — com as ideias então estruturadas a partir do rascunho da Declaração de Independência de Thomas Jefferson — e a Convenção de Filadélfia, que dominaram o pensamento político do mundo ocidental a partir das liberdades individuais e econômicas.

Quem poderia imaginar que, depois das lutas pela democracia, iríamos assistir a um Presidente dos Estados Unidos pregando a invasão do Congresso e, para ficarmos mais chocados ainda, veríamos a imagem de forças militares deitadas nos corredores do Capitólio como se ali fosse um acampamento militar?

Em menos de dez dias esperamos que essa pressão que varre o mundo desapareça com a posse de Biden e que se possa criar um clima com menos medo e mais tranquilidade, passando aquele arrepio de vermos a bolsa preta atrás do Trump com o código do arsenal atômico americano. Que agora esteja em mãos mais sensatas, de um homem experiente, que já foi Vice-Presidente, conviveu e aprendeu com um dos maiores estadistas de nosso tempo: Barack Obama, que exerceu o governo com uma visão de mundo baseada na paz, no diálogo: a resolução dos problemas nunca pela força e sempre com negociação, buscando um terreno comum onde os homens vivam o entendimento e a concórdia.

Trump acabou com a utopia da paz e nos barrou a visão de um Oriente Médio sem as mortes e as vinditas diárias onde morrem palestinos e judeus. De um povo com esperança de viver sem as atrocidades que, diariamente, presenciamos, estarrecidos. De um mundo sem dentes cerrados pedindo a ressurreição da babilônica Lei de Talião (ou de retaliação), do “dente por dente e olho por olho”. Da noção de organismos multinacionais como um local de encontro para acabar com divergências, com a crença na força de práticas humanitárias e de combate ao terrorismo, que invade a tranquilidade das relações internacionais.

Que Biden não frustre o otimismo daqueles que torceram por sua vitória, por direitos humanos, com a certeza de que os Estados Unidos possam ser ainda âncora da paz, da igualdade e da fraternidade. Com a esperança de os Estados Unidos voltarem a ser o farol da democracia e de defesa da liberdade.

Quando Trump voltar a jogar golfe nos seus excelentes campos de Miami, estaremos todos aliviados.

Hiroshima e o Capitólio

Hiroshima é uma mancha indelével na História americana. Agora surgiu outra: Trump comandando uma horda de apátridas, acabando com o que os Estados Unidos tinham como sua mais sagrada instituição, o American Dream, o sonho que fascinou a humanidade e os fez conquistar o mundo. O sonho de construir um mundo de liberdade, cujos fundamentos constam da Declaração de Independência, quando os pais fundadores fizeram a sua Tábua da Lei, como a maneira de construir a Democracia: “Consideramos estas verdades como evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes são Vida, Liberdade e busca da Felicidade.”

 

Louvamos que tenha saído da América o país que encontrou a fórmula das ideias e não da força para constituir governos baseados na liberdade e hoje é o maior país do mundo, político, militar, cultural, econômico, científico e tecnológico. Sou daqueles que acreditam que não foi o poder econômico que o fez líder, mas as ideias de liberdade, dignidade e direitos humanos.

 

Todos estes direitos criaram o sonho americano, que se expandiu pelo mundo inteiro e, com outras nações, ficou responsável pela paz mundial.

 

Agora, que vergonha, é seu próprio Presidente quem comanda a destruição da grande bandeira dos Estados Unidos perante o mundo.

 

A partir de agora que autoridade têm os EUA para pedir respeito aos direitos e à igualdade dos homens? Para ser o guardião da Declaração dos Diretos Humanos, cujas ideias fundamentais foram construídas por eles mesmos, desde o rascunho de Jefferson da Declaração de Independência, passando pelo Bill of Rights e pregando a liberdade, a Democracia, como a grande revolução salvadora mundial?

 

Que diferença podem invocar de Maduro fazer a representação parlamentar com a violência de leis fruto da chicana e unicamente destinadas à manutenção do poder? Que argumentos têm perante Erdogan e todos os líderes de extrema e radical direita, agora em ascensão, buscando ocupar a liderança de diversas nações? Que autoridade os Estados Unidos podem usar para defesa da democracia contra a força e o anarcopopulismo, diante do exemplo do Trump — pois, se a democracia é o maior e melhor regime, os Estados Unidos o maior exemplo disso, o Capitólio o coração da democracia, constituído pelas leis e pelo povo, como o Trump comanda sua invasão e sua destruição?

 

As consequências desse fato não se sabe como vão repercutir e influenciar o futuro da humanidade.

 

Como apagar essa mancha da História americana? Só com a punição do Presidente, pois mostrará que a democracia é tão forte que até o sumo-sacerdote do seu templo, quando viola seus dogmas, é banido da política, como indigno dela.

 

Trump passou a ser o Bin Laden do American Dream: um destruiu as Torres Gêmeas; o outro, o Capitólio, Catedral da Democracia.

2021, invenção dos homens

O tempo é uma invenção dos homens. O que existe é a eternidade, sem começo nem fim. Mas o homem resolveu marcar a vida pelos anos. Nós, cristãos, pelo nascimento de Cristo, há 2020 anos, menos que uma gota de água na imensidão dos dias e das noites. Os judeus têm o seu calendário, os chineses idem, e nós este que seguimos, chamado de gregoriano porque foi São Gregório que conseguiu esta fórmula de 28 dias em fevereiro, de quatro em quatro anos 29 e meses de 30 e de 31 dias, tudo de modo a fechar a rotação da Terra em torno do Sol nos 365 dias e ¼ de um ano.

No tempo bíblico se vivia muito. E não são poucos os personagens que viviam séculos, o maior deles, Matusalém, avô de Noé, que chegou aos 969 anos e não sabia quantos filhos, netos, bisnetos e tataranetos tinha, porque todos eram avós e bisavós e já tinham morrido. Até aos 187 anos procriou e Noé, seu neto, até aos 500 anos. Todos os patriarcas, segundo a Bíblia, viveram muito e funcionaram demais.

Hoje, na sociedade digital, da comunicação em tempo real, a gente tem a impressão de que há uma compressão do tempo, porque tudo passa rápido e a gente sabe de tudo enquanto acontece. O ano passa como um raio e quando a gente pensa que é janeiro já é setembro e logo acaba um ano e começa outro. Aqui no Brasil querido, não se conta os anos por primavera, verão, outono e inverno. É Natal, Carnaval, Quaresma, São João, julho das férias, Semana da Pátria, feriado gostoso de meio de semana que a enforca toda, Finados e dezembro com os sinos do Natal que começam a tocar em outubro. E o ano acabou e começa tudo de novo.

As mulheres não gostam muito de conhecer o fim dos anos. Eu tinha uma tia solteirona, velha, que tomava conta da casa de um tio avô. Um dia, seu aniversário, perguntei-lhe: “Manana — era seu nome —, quantos anos a senhora está fazendo?” Ela me tomou pelo braço, entrou no quarto e me disse: “72 anos, agora vai dizer lá fora, seu abelhudo.”

Eu tinha um amigo cuja família toda se preparou para comemorar os seus 70 anos. Data redonda, que marca a vida de todos nós, porque a partir daí começa a velhice mesmo. Ele se recusou a fazer 70 e proibiu a família de falar nisso. Uns dois anos depois — éramos muito amigos e vizinhos — seus filhos me procuraram: “Tio Sarney, veja se papai aceita completar 70 anos, nós estamos com a festa feita já há três.” Não houve jeito. Nunca revelou a idade e, quando se fazia o livro da biografia dos senadores, seu maior cuidado era ir à Gráfica do Senado e subtrair uns dois anos.
A verdade é que é muito bom fazer aniversário e assistir à mudança de ano. Saulo Ramos, meu querido amigo, sempre dizia: “A outra solução é pior. Melhor é confessar!”

Em São Bento tinha um senhor muito respeitado que era casado com uma viúva que tinha uma enteada balzaquiana. Dizia-se que vivia com as duas. Mexerico da cidade. Uma doida, dessas que antigamente perambulavam pelas ruas, cantando, chegou na sua porta no fim do ano e começou a cantar e dizer palavrões: “Sua velha devassa, vá embora…” Ela, Georgina, não se fez de rogada: “Seu Abílio, o senhor que dorme com a mãe e beija a filha, dorme com a filha e beija a mãe, diz que eu que sou devassa! Agradeça o ano que passou e vá à missa…”

Todos souberam na cidade que a Georgina não era tão doida como parecia. Milagre do Ano Novo.

Feliz Ano Novo a todos os de boa vontade! Deus conosco com a vacina — e felicidade!.