José Sarney

O Cansaço da Solidão

O mundo começa a se recuperar, com alívio, de um dos maiores problemas da pandemia: o cansaço da solidão, o desgaste psicológico do isolamento. Infelizmente, aqui no Brasil, ainda vamos continuar nessa provação de ficar longe da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho, de toda a sociedade.

 

Há um ano, ainda no espanto com as dimensões da doença, eu lamentava o meio milhão de mortos no mundo. Hoje esse é o número no Brasil. Há mais de um milhão de pessoas em tratamento, as UTIs estão cheias, e os dezesseis milhões que já tiveram a doença ainda sofrem com ela.

 

Logo no começo da pandemia se pensava na dificuldade de conseguir a vacina, imaginando que logo estaríamos livres da quarentena. A vacina veio mais rápido do que o previsto, mas, como não seguimos os cientistas, ainda temos que repetir: “A única solução é evitar o contágio, com o isolamento, e, fora dele, com o uso de máscaras por todas as pessoas.”

 

Ao longo desse isolamento tenho escrito sobre solidão. Falei de como esse sentimento vinha misturado com medo, crescendo dentro de nós a falta dos amigos e de como não fomos feitos para isso.

 

Quando surgimos como espécie distinta entre os hominídeos, já éramos há muitos milhões de anos animais sociais. Cada vez mais fomos contando uns com os outros, enriquecidos pelo sentimento de solidariedade e colaboração. Juntos ficamos fortes para caçar e competentes para cultivar. Assim pudemos começar a construir habitações e com elas fazer cidades. Mais ainda, foi por e para podermos colaborar que desenvolvemos linguagens, seja numa mutação, como crê Chomsky, seja aos poucos, como na hipótese do altruísmo recíproco, que aliás se baseia na necessidade de honestidade — isto é, nada de mentira ou fake news.

 

Na sociedade em que nos juntamos para sobreviver, há os que se isolam, em um espiritualismo intenso. O cristianismo está povoado de eremitas e anacoretas, de São Jerônimo a Charles de Foucauld, mas Lao Zi, fundador do taoísmo, o fizera muito antes.

 

Mas o comum dos mortais, como nós, não sabe viver em isolamento. Por mais que professemos, como faço e pratico, o nosso amor pelo livro — ou pela música, pelos jogos solitários ou o que seja —, há o momento em que precisamos de ter o contato direto com outras pessoas, com outras almas.

 

Já lamentava o poeta: “Alma minha gentil, que te partiste … E viva eu cá na terra sempre triste.” Vivemos tristes o tempo todo, pois são tantos os amigos que partiram e mais ainda os amigos que não vemos, com quem não estamos, que corremos o risco de nos amofinar no desencanto do viver.

 

Mas temos que sacudir esse sentimento. Vencer a doença tem que ser nossa prioridade, nem pensar em sermos por ela derrotados. Sem esquecer as que ficaram pelo caminho, em nome de cada uma e de todas as quinhentas mil vítimas, temos que lutar para sobreviver, e sobreviver formando uma sociedade mais justa, em que a língua sirva para dizer a verdade e para construir a justiça social.

 

Estamos cansados, cansados de solidão, mas ainda temos fé. E fazendo o que sempre aconselho — vacina, máscara, isolamento —, vamos acabar com a solidão e o com o cansaço.

A Grande Heroína

Todos elogiam e tiram o chapéu à liberdade de imprensa. Muitas vezes é um gesto repetitivo para agradar àquela que faz ou desfaz a opinião pública, outras vezes é medo de desafiá-la, mesmo que seja desafiar a verdade.

Mas qualquer que seja a motivação, tudo será pouco no elogio ao trabalho desenvolvido pela mídia nos tempos trágicos que estamos vivendo da atual Pandemia. A Primeira Emenda da Constituição Americana, que faz parte das dez emendas do Bill of Rights, garante as liberdades individuais: de religião, opinião, imprensa, reunião, petição. Jefferson, que estava na França durante a elaboração da Constituição, desejava que a declaração de direitos fosse incluída na Carta, mas seu grande amigo Madison não quis colocá-la no texto definido pela Convenção de Filadélfia. Na ratificação, Madison viu que era necessário que fizesse parte formal da Carta e conduziu a aprovação das emendas que completaram a genial construção jurídica da Constituição.

Graças à mídia, consolidada como instituição livre, foi possível ter êxito no tratamento da Pandemia, que envolveu a divulgação de aspectos científicos, políticos, econômicos e a disseminação dos comportamentos efetivos para combatê-la.

Quando surgiu a Pandemia nada existia que pudesse contê-la. Os instrumentos de que nos socorremos foram os clássicos, que eram a única defesa contra essa tragédia que estamos vivendo, e com os quais durante muito tempo ainda temos que conviver: lavar as mãos, usar máscaras e evitar aglomerações, onde é mais fácil disseminar o vírus assassino que chegava. Nada se sabia sobre a doença. Nenhum remédio por descobrir ou descoberto para outras doenças que pudesse nos salvar.
Dois setores da sociedade nos socorreram: primeiro, nunca tínhamos testemunhado a união de todos os cientistas do mundo, que, num trabalho gigantesco, desenvolveram em prazo curtíssimo as vacinas que começaram a surgir em muitos países, saindo à frente os países ricos, onde existiam maiores e melhores recursos humanos.

O outro setor foi o da imprensa, com seus instrumentos atuais e sua globalização, a informar, difundir orientações e bombardear, nas 24 horas do dia, a melhor maneira de conduzir-se para fugir da morte. Para isso, durante todo o tempo, muitos profissionais se expuseram heroicamente e até perderam a vida no necessário combate às fakes news, às mentiras e às descrenças que ameaçam a humanidade. Destruir charlatões, falsos profetas e impor a ciência como única maneira de se salvar.

Sem informação, sem consciência da gravidade da situação, do perigo, dos males seria impossível enfrentar a Covid.

O Brasil teve dilemas e falsidades que tiveram de ser desfeitos e, mesmo assim, sem o trabalho heroico, a dedicação, a honestidade e o idealismo dos seus profissionais não teríamos nem os resultados débeis que apresentamos com nossos quinhentos mil mortos e a saudade, a dor e a destruição das muitas famílias, que perderam pais, mães, filhos e amigos.

Aos nossos profissionais da mídia — todas elas — somos devedores desse heroísmo com que cumprem com glória o dever profissional.

Um Sonho que Nasceu em Iguaçu

Assumi a Presidência da República em março de 1985. Meu espaço para deflagrar minhas próprias ideias era muito estreito. Não tinha partido político. Minha filiação ao PMDB era uma exigência legal. Minha base política era a dissidência que me acompanhara vinda do PDS, tendo à frente o grande homem público, exemplo de austeridade e patriotismo, Aureliano Chaves, junto de Jorge Bornhausen, Marcos Maciel, Guilherme Palmeira e outras lideranças. Eu vinha de um Estado sem peso político, o Maranhão, sem ligação com a grande mídia, sem apoio de corporações econômicas e fortemente combatido pelo PT, PCB, aglutinando uma militância política raivosa que me via como um conservador de direita. Nada mais errado. Era um homem de centro, defensor das causas sociais.

Situação difícil e quase impossível de governar. Tancredo morrera com o segredo de seu programa de governo e deixou o compromisso com o Ministério já nomeado; eu fiquei como herdeiro desse momento de transição democrática.

Mas havia um espaço que era do meu conhecimento, do meu gosto e da minha vivência: a política externa.

Aproveitei o tema com todas as garras. Tinha a convicção de que nossa política no Cone Sul estava errada: inexplicável a nossa rivalidade com a Argentina, dois grandes países que representavam quase a metade da América do Sul.

Em Iguaçu nos encontramos pela primeira vez, Alfonsín e eu, e propus-lhe mudar a história do Continente com uma união capaz de comandar uma poderosa integração buscando a criação de um Mercado Comum, no modelo europeu, que promovesse uma integração econômica, física, cultural, energética, turística, que nos possibilitasse formar um bloco, que depois incluísse os demais países da América do Sul, dando margem a que nossa capacidade de competição em nível mundial fosse mais efetiva e nos possibilitasse crescer juntos, numa economia de escala.

Como primeiro passo tínhamos de vencer a rivalidade nuclear que existia em nossas Forças Armadas — grupos que já desenvolviam arma nuclear, numa corrida de quem chegaria na frente. Seria difícil se não tivéssemos a compreensão de grande estadista do Raul Alfonsín: aceita a nossa proposta, iniciamos o que resultou na Ata de Iguaçu e na montagem dessa nova política, cujo documento básico foi o Tratado de Buenos Aires.

Foi uma época de ouro, havia entusiasmo em nossas equipes diplomáticas e nos três presidentes: da Argentina, Alfonsín; do Brasil, eu; e, do Uruguai, Sanguinetti, homem de grande visão e inteligência. Surgia o Mercosul. O Prefeito de Jaguarão, na fronteira Brasil-Uruguai, resumiu esse clima numa frase: “Foi o fato mais importante que aconteceu nas Américas, depois de nossas Independências”.

Esta semana comemorou-se a Data Nacional da Pátria Argentina, e soube que o grande Embaixador Daniel Scioli, dono de notável biografia, tem feito um ótimo trabalho diplomático, encarregado da missão histórica de dar continuidade às excelentes relações entre nossos dois países num tempo de pessimismo, em que se chega a falar, com meu indignado protesto, em extinguir-se o sonho do Mercosul.

O Mercosul não morrerá nunca. Brasil e Argentina, responsáveis pela grande missão de integrar a América, cumprirão esse destino. Um dia ele será realizado totalmente, e nós gritaremos o grande lema: “Crescer Juntos”.

A Verdade e a Mentira

Vivemos num mundo em transformação. A sociedade digital mudou tanta coisa que isso atingiu o nosso modo de pensar. O aspecto mais discutido é o que se chama de “a morte da verdade”. São tantas versões sobre um fato que não se sabe qual é a verdade.

 

Este problema não é novo. Sempre foi uma questão fundamental e está no centro do Evangelho. Pilatos pergunta a Cristo: “Tu és rei?” Jesus diz que veio para dar “testemunho da verdade”, e Pilatos retruca: “O que é a verdade?” O que acontecia era que falavam “línguas” diferentes: Jesus, a de Deus; Pilatos, a do poder.

 

Agora nos deparamos com o problema do testemunho, ou melhor, das testemunhas. Querem que elas digam a verdade, mas a verdade é que, para elas, já não existe a verdade. Ora a verdade é uma abstração, algo que lhes querem impor com nomes que lhes são alheios, como fatos, ciência, até mesmo mostrando-lhes gravações com uma imagem em que não se reconhecem. Ora é uma coisa que não foi dita para valer, foi dita para dizer o que querem ouvir.

 

Além da mentira, há o caso do mentiroso: mente quem diz a mentira ou quem construiu a mentira? Pelo menos é o que está lá no Montaigne: “Eu sei que os gramáticos distinguem dizer mentira de mentir; e dizem que dizer mentira é dizer coisa falsa, mas que se pensa que é verdadeira.” Como a definição da palavra em latim quer dizer ir contra sua consciência “isso só toca àqueles que dizem o contrário do que sabem”.

 

Mas acrescenta que mentir é “um vício maldito, pois somos homens e só temos uns aos outros pela palavra”; e que depois que se começa a mentir é difícil parar. “Se, como a verdade, a mentira só tivesse uma face, estaríamos em melhores termos. Porque tomaríamos por certo o contrário do que diria o mentiroso. Mas o contrário da verdade tem cem mil rostos e um campo indefinido.”

 

Assim vai andando a verdade, quer dizer, a mentira. Pois o mentiroso diz o que sabe que é falso, mas quando acha que o que é verdadeiro é falso, não sabe o que dizer, se a falsa verdade ou a verdadeira mentira. E eu podia terminar com o Padre Vieira: “Finalmente, reduzindo todo o discurso, ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque mentem os ouvidos; mentem as línguas, porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos mentem.”

 

Mas, hoje, quando a sociedade se pauta pela rede social e admite várias versões da verdade, pode parecer que não se sabe mais onde está a verdade; no entanto a verdade, aquela que não é versão, mas fato, existe.

 

Eu mesmo sei uma verdade incontestável: o Brasil precisa vacinar toda a sua população, seguir as recomendações dos cientistas e salvar vidas. Pois há vidas a serem salvas, e com elas o País tem obrigações.

 

Não é especulação filosófica ou um jogo de palavras. É a realidade que estamos vivendo.

Eu e o Zé Gotinha

Outro dia o grande médico brasileiro Dr. Dráuzio Varella disse, no Fantástico, que quem inventou o SUS era um gênio. E um constituinte de 88 declarou com estardalhaço que a maior obra da Assembleia Constituinte foi a universalização da saúde.

Estou acostumado a me roubarem meus projetos e realizações. Por 20 anos apresentei vários projetos sobre incentivos à cultura. Só passou o último, e porque eu era Presidente da República, e assim pude sancioná-lo. Os artistas colocaram o nome de Lei Sarney. Ninguém tinha abordado o problema da cultura como eu o fizera. Pois bem, quando saí do governo, a primeira coisa que fizeram foi tirar o meu nome, e para isso revogaram a lei e apresentaram um projeto quase igual. Eu não reclamei, apenas disse que, para voltar a Lei da Cultura, eu votava qualquer lei.

O mesmo aconteceu com o vale-transporte, o vale-alimentação, o 13º salário para os funcionários civis e militares, a Lei da AIDS, a aposentadoria para o homem do campo e tantas outras iniciativas sociais. Agora é a vez do Zé Gotinha, meu velho amigo, companheiro de muitas campanhas de saúde. Botaram nele cabelo, uma máscara azul horrível e tacaram no peito SUS.

O SUS nasceu SUDS, durante o meu governo, bem antes da Constituinte. Tendo como sogro um grande e famoso médico do Maranhão, Dr. Carlos Macieira, e cunhado e tios por afinidade também médicos, desde cedo aprendi a conhecer os problemas de saúde. Em 1986, antes de completar um ano de presidência, realizava-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde, presidida por Sergio Arouca, que era diretor da Fiocruz e muito ajudou no meu governo. Como ele era comunista — naquele tempo isso era marca do diabo —, a conferência era maldita. Aconselharam-me a não comparecer. Lá estive, a prestigiei e ouvi vários pronunciamentos que pediam a universalização da saúde. Um pobre não tinha onde tomar uma injeção senão nas instituições de caridade. Ora, eu não achava justo que a saúde fosse direito só de quem tinha dinheiro e podia pagar tratamento. Bolamos então a criação de um programa que estendia tratamento a todos. Acrescentei no meu discurso criar assistência médica para todo o povo brasileiro. Criamos o SUDS: Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde. A Constituinte substituiu o nome para SUS e tomou conta dele. Esqueceram-se de que já existia.

Quando das campanhas de saúde, a começar pela de erradicação da paralisia infantil com a vacina Sabin, como havia resistência em tomar a vacina, resolvemos fazer um concurso em todas as escolas do País para um símbolo da campanha, promovido pelo Ministério da Saúde. Foi criado então o Zé Gotinha. Popularizamos e foi um sucesso. Pois agora me tomaram. Muito antes, quando Governador do Maranhão, em 1966, na campanha de erradicação da varíola, criei — com a direção médica do grande sanitarista, hoje esquecido, Dr. Cláudio Amaral — os comícios da saúde. Eram grandes eventos, em praça pública, com dezenas de vacinadores.

Eu me lembro da Conferência de 66, quando eu disse: “Aqui se define hoje um novo sistema de saúde para o Brasil.” Saúde para todos. Hoje se chama-se SUS.
Agora me tomam o Zé Gotinha. Que tomem, desde que ele continue com sucesso a ajudar a vida, chamando o povo para se vacinar contra a Covid. Que todos se vacinem, como pede a Ciência.

Vale-Transporte

Há mais de 30 anos, quando presidente da República, sancionei a lei que instituiu o Vale-Transporte. Quando assumi, o acesso ao trabalho, principalmente nos grandes centros urbanos, era um dos mais sérios das cidades. Primeiro, gerava uma ameaça constante de greves, sendo os transportes deficitários e, com as frotas sucateadas, lutando com um problema insolúvel. O salário do trabalhador, no fim do mês e muitas vezes no meio, não era mais suficiente para o pagamento de seu deslocamento para o trabalho. E, num tempo de inflação alta, ele não tinha como guardar parte de seu dinheiro para atender ao custo das passagens. Consequências: os trabalhadores faltavam muito ao trabalho e ficavam sem dinheiro para suas despesas — a mais fundamental delas a com alimentação.

 

Esta semana encontrei-me com um grande empresário desse ramo e ele começou a relatar as agruras que está vivendo o setor, pois a epidemia reduziu em 50% o número de passageiros e, com o aumento do preço dos combustíveis e dos veículos, eles precisam de ajuda do governo. A trágica epidemia que vivemos afetou todos os setores. Se o setor de transportes está assim, o que não falar dos pequenos empresários, dos vendedores ambulantes? E o desemprego — a mais terrível de todas as consequências, porque é responsável pela fome, que pode empurrar para a criminalidade. As corporações de venda de droga, crime organizado e milícias, ocuparam a periferia das cidades, atingindo toda a população e sobretudo as crianças, recrutadas pelos bandidos para o destino trágico de vítimas — ou dos traficantes, ou das milícias ou, como esta semana, da polícia.

 

A fome é o maior problema da humanidade. Nas Nações Unidas, quando era Presidente da República, tive oportunidade de levantar o problema. Eu afirmei que a paz, internacional ou nacional, estava envolvida no desafio social maior, sem a superação do qual não se podia almejar a democracia: ela só asseguraria a liberdade, seu fundamento maior, só se realizaria se superasse a fome. Democracia e liberdade. Liberdade contra a fome. Naquele discurso eu profetizava que o Século 21 seria da socialização dos alimentos. Isto não aconteceu. Era sonho e continuamos com bocas famintas, em todos os lugares do mundo, principalmente na Ásia e na África.

 

O que mais nos ameaça depois que superarmos essa pandemia — com as medidas recomendadas pelos cientistas e a vacinação de todas as populações — é sermos vencidos pelo desemprego, que aqui no Brasil já era tão profundo, e pela fome.

 

O empresário do transporte que tratou do problema comigo disse que a mais efetiva medida que já foi feita pelos transportes urbanos foi o Vale-Transporte. Eu acrescento o Vale-Alimentação. Ambos criados por mim, com a visão humanista de ajudar o trabalhador a ir ao trabalho e as bocas famintas a terem sua alimentação. Sem falar no Programa do Leite, em que distribuímos oito milhões de litros por dia às crianças, considerado naqueles anos pela Unesco como o melhor programa de combate à fome e especialmente para a alimentação das crianças.

 

O tempo passa e todos esquecem, mas o Vale-Transporte e o Vale-Alimentação aí estão, com as mães e os beneficiados ainda lembrando que foi o programa do leite que lhes possibilitaram viver.

 

Que essa pandemia vá embora, que volte a esperança e desapareçam o desemprego e a fome.

A ciência na mão de Deus

Os franceses gostam de dizer que tempos como estes que estamos vivendo são de “excesso de crises”. É um somatório de crises. Esta palavra grega, krisis, descreve um problema que se torna paroxístico, um momento de evolução decisivo, que o Aurélio define como “período de desordem acompanhado de busca penosa de uma solução, situação aflitiva”. É o nosso caso, com a singular diferença de que estas crises com que estamos convivendo todo dia, que fazem parte do nosso cotidiano, não são comuns, mas duas grandes crises; e, embora seja a crise um ponto final, elas se arrastam, continuando a crescer.

 

Estão superpostas a crise sanitária mundial da Covid e a nossa crise, as nossas crises: do sistema de saúde e da política, da economia, da educação, do emprego, da grande, da imensa desigualdade social e … — são tantas, completem suas listas. Nesta visão geral o resultado é que detemos o primeiro lugar no pódio mundial de mortos pela Covid, resultado da omissão que levou à falta de oxigênio, de remédios, de leitos, de médicos e da negação às campanhas pela adoção do uso de máscara, pelo distanciamento social e pelas regras básicas de higiene, como o simples costume de lavar as mãos.

 

Daí estar se disseminando cada vez mais na população o medo. Ele é comum aos animais; mas para os homens tem uma diferença: enquanto para aqueles surge no momento do perigo, para nós, com nossa capacidade de raciocinar, há a certeza de que a morte virá, uma antecipação dos riscos. A razão nos traz o medo, mas permite que adotemos medidas de defesa e proteção, a começar por regras sociais coerentes, baseadas na convivência política (o medo da morte forma o Estado, diz Hobbes) e no conhecimento científico.

 

Em uma entrevista de 1993, Jean Delumeau, um grande especialista na história do medo, diz que ele não desaparecerá, pois o medo fundamental é o da morte. Há várias maneiras de morrer, diz Delumeau, conformados ou em desespero. E para aplicar um exemplo presente, tomo o trecho: “Se uma epidemia está nas portas de uma cidade, como era o caso das pestes de antigamente, a proximidade da morte pode provocar pânico.”

 

Agora, diante de tantas ameaças, que a imprensa diariamente repete, uma das que nos pesam e nos preocupam neste instante é de que, com o agravamento da crise, o medo, que já começa a dominar nossa população, nos leve ao mais perigoso pânico.

 

É este aspecto da Covid que está se transmitindo aos sintomas da ansiedade, do estresse final associado à morte e levando a perturbações mentais, o que fecharia o círculo de nossas desgraças.

 

Só nos resta a esperança de que Deus estará sempre conosco e não chegará este momento. A fé não pode fugir de nossos corações. Até Nossa Senhora teve medo quando o anjo lhe saudou:

 

— ‘Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco.’ Ela se perturbou com aquelas palavras e o anjo lhe disse: ‘Não temas…’

 

Não tenhamos medo. A hora é da razão humana, do espírito humano, no que tem de mais alto, a ciência, trazida pelas mãos de Deus. E a ciência nos salvará.

A Pandemia

A grande epidemia, logo tornando-se pandemia, da civilização digital que está em curso é a primeira, e queira Deus que seja última, totalmente documentada, inclusive no seu processo de desenvolvimento, podendo os cientistas acompanhar as variantes que se multiplicam em todos os países, já existindo quatro mil, sendo que as mais preocupantes são a inglesa, a sul-africana e a brasileira, por serem mais contagiosas, podendo aumentar a possibilidade de reinfecção.

 

Cada vez mais constatamos que as doenças contagiosas constituem o grande perigo, bastando constatar que só a malária mata 400 mil pessoas por ano e a gripe, de 300 a 600 mil.

 

Nunca a humanidade teve a sua disposição tantos recursos científicos quanto temos hoje, o que possibilitou usarmos um conjunto enorme, mas insuficiente, de vacinas, medicamentos, equipamentos e recursos humanos. A Covid atingiu desde — como é óbvio — o gigantesco aparato de saúde, do mais primário ao mais sofisticado, todos igualados pela limitação dos instrumentos de combate, até a educação, a economia, os transportes, a mobilidade mundial, enfim, todos os setores da sociedade. Nada escapa ao buraco negro de sua impensável potencialidade. Ela surgiu, como todas as doenças epidêmicas, com a velocidade de um raio, não se sabendo o que era, como era, como seria e como combatê-la. Não se sabia nada e quanto mais se sabe mais interrogações surgem — e mais falta sabermos.

 

As epidemias castigam a humanidade desde sua existência, e quando Malthus inventou a demografia as colocou como o controle demográfico que ao longo dos séculos evitaria a catástrofe de a espécie humana crescer tanto que chegaria ao fim da capacidade de produzir alimentos, matando pela fome — o que acontecia em invernos dos países do Hemisfério Norte, até a batata chegar à Europa levada das Américas, na globalização da agricultura. Em 1988, quando estive em São Petersburgo, fiquei admirado quando — ainda ontem, no século XX — fui apresentado ao Ministro da Batata, encarregado de fazer estoques de verão para ter assegurada a alimentação do inverno. A troca de produtos, que permitiu a salvação de milhões na Europa, foi acompanhada da morte de 90% da população nativa da América — talvez 55 milhões de mortos.

 

Imaginemos o passado profundo, fixado apenas nos relatos que nos ficaram na tradição oral, nas bibliotecas de pedra, nas tablitas de barro, nos pergaminhos, nos papiros, no papel e em tantas formas de guardar para a história os fatos maiores e vejamos o sofrimento, a desgraça, os martírios que atingiram a espécie humana.

 

Quantos heróis, por amor a Deus e ao próximo, estão nos altares, no martírio de salvar seus irmãos nestes momentos. Hoje, com os recursos visuais massificados, a dor passa para todos nós, como uma família só, todos nós com o coração da caridade e a alma do amor ao próximo.

O amor e um mundo de paz

Entre perplexo, revoltado, preso de um medo que cada vez se prolonga mais, o Brasil assiste entre preces e lágrimas ao anúncio dos recordes mundiais que alcançamos em mortes provocadas pela Covid.

O que podemos fazer? Acho que ninguém deixa de estar disposto a ajudar. O problema tornou-se uma tragédia global pelas circunstâncias que cercaram a pandemia. Primeiro o caráter de surpresa com que a quase totalidade do mundo foi tomada — apenas alguns milhares de cientistas e estudiosos sabiam que ela viria a qualquer momento. Aliás o inesperado caracteriza as catástrofes. Nos seus bilhões de anos a nossa Terra, como o universo, é marcada por acasos, nas contorções que lhe dão desde a forma geográfica — com a criação de oceanos, montanhas, vulcões, destruição de cidades — até à criação da vida e ao aparecimento e à extinção das espécies. A própria prevalência da espécie homo sapiens foi fruto do desaparecimento dos seus parentes mais próximos, como os neandertais, que chegaram a misturar-se ao próprio sapiens.

Não deixemos de considerar que somos uma espécie extremamente recente, de cerca de trezentos mil anos, que teve em sua adaptação e predominância a vantagem decisiva da linguagem, esta talvez há apenas setenta mil anos.

Criamos várias civilizações, convivemos com vários tipos de sociedade e chegamos à modernidade e à pós-modernidade. Conseguimos desvendar o mundo dos genes e das proteínas, o mundo das partículas de alta energia, como o bóson de Higgs — a que chamaram de “partícula de Deus”, por concluir o “Modelo Padrão” que explica a estrutura do universo.

E assim o bicho homem desfruta de um mundo extraordinário — o dos sentimentos —, que nos dá a sublimação da alegria, do prazer, do sentimento do amor e também da tristeza, da dor. Aquilo que Bergson chamava de “sentimento da alma”.

Pois bem, isso que nos traz a alegria de viver dá ao homem também a desgraça da maldade, do ódio, da inveja, da destruição. As nações se organizam e, em vez de construir um mundo de paz, de convivência pacífica, de uma Humanidade sem armas, sem ódio, sem competição, marcha em busca de armas cada vez mais potentes, capazes de destruir países e até a vida na Terra.

Mas se esquece que a natureza é mais forte que todos esses atos. E ela reage de maneira aleatória, como o passado mostrou tantas vezes, trazendo as pestes, a destruição de espécies, e nos ameaça com aquilo que Helmut Schmidt dizia — repito ainda uma vez — ser a maior ameaça ao futuro da Humanidade: as doenças desconhecidas. A nossa geração já conhece duas: a Aids e a Covid.

A presença do acaso em absolutamente todos os fatos da natureza levava Einstein a dizer que sua ideia de Deus era formada por sua “profunda convicção na presença de um poder superior, que aparece no universo incompreensível”.

A desgraça da Covid que nos ameaça, que não sabemos como começou e como vai terminar, nos leva a pensar no início da filosofia, o de onde viemos e para onde vamos, de Platão.

Eu, que sou cristão, penso no amor, na solidariedade e na construção, depois dessa tragédia, de um mundo melhor, mais humano e de paz.. ■

Duas rosas: a bela e a fera

Numa pergunta que passou ao nosso cotidiano é o que vai acontecer com o mundo depois da Covid, que eu considero que não vai passar. Vamos descobrir remédios para o seu tratamento, mas isto vai demorar muitos anos. Temos os exemplos da AIDS. A Covid vai passar e não passará. Permanecerá endêmica. E ela chega num momento em que vivemos entre um mundo em transformação e um mundo transformado.

Estamos em plena revolução digital, com um impacto radical sobre as comunicações, que passaram a nos influenciar e transformaram-se em formadoras de opinião. Tudo mudou. Agora, com estes dois impactantes vetores na sociedade, a revolução digital e a Covid — como ameaça à vida —, temos de lidar com outra maneira de pensar. A sociedade está se contorcendo dentro de nós e não sentimos, somos parte do processo.

Vivemos nossas circunstâncias, que são as da realidade. Porém nossa realidade não é realmente a realidade. Nossos sentimentos e reações estão sendo reciclados e já não são os que nos faziam ser quem somos. “O que em mim sente está pensando”, diz o verso de Fernando Pessoa, no desejo de ter a “alegre inconsciência” da ceifeira. Só que hoje, sentir e pensar não são mais faculdades do ser individual e sim do ser coletivo de que somos parte.

Nossas antigas almas estão morrendo e não sentimos. O amor deixou de ser amor, como o concebíamos no passado. O mesmo acontece com a amizade, com a noção de convivência, com o ódio e a cólera. Estamos perdendo até a indignação, todos submetidos ao uso de uma droga tecnológica. As próprias drogas fazem parte deste contexto. A diferença é que estas são substâncias químicas. A droga da modernidade, das diversas mídias, nos impõe uma situação mais perigosa que a de não ter a liberdade de não as ingerir, porém a obrigação de consumi-las.

O culto da velocidade dos deslocamentos. Não temos mais a liberdade de andar. As distâncias, o estilo de vida que foi criado nos fizeram dependentes da velocidade, do patinete, da bicicleta, da moto, do carro, do ônibus, do trem, do avião. Tudo isso é incompatível com a Covid e será com o pós-Covid.

Vão incorporar-se ao novo estilo da sociedade essas mudanças. A internet, entre outras coisas, matou a verdade e são tantas as verdades que não sabemos qual é a verdade verdadeira, na consumação literal da frase de Swift: “A mentira voa e a verdade vai capengando atrás dela”. Quem a escolhe são os que comandam a comunicação.
Bauman identificou uma sociedade, a da incerteza, a líquida, com cultura líquida, arte líquida, amor líquido e há dez anos o filósofo coreano Byung-Chul Han definiu outra: a do cansaço. Eu me arrisco a vislumbrar uma terceira, que é a do momento que estamos vivendo: a do medo e do confronto dos costumes.

A juventude ainda não as sente, resiste e convive com a sublimação dos seus prazeres. A pós-modernidade, que trouxe tantas formas de pensar e viver, vai também perplexa sentir o que nós sentimos: a nossa sociedade acabou.

 

Era boa e sublime. Que a do futuro também o seja. Vamos rezar para que não seja a bela e a fera.