José Sarney

O menino é um de nós

O ser humano sempre teve, na longa história de sua presença no mundo — que, diante da história da vida, é curtíssima, e um nada diante da do universo — uma imensa vontade de compreender a si mesmo. Mas o momento decisivo de todo o seu percurso é algo que ele não pode compreender, um mistério. Essa palavra significava justamente algo fechado à percepção. Mistério altíssimo e, no entanto — ou por isso mesmo, por ser divino —, tão simples em sua narrativa, tão banal na sua forma exterior, aparente, repetida tantos bilhões de vezes: o nascimento de uma criança. Só que essa criança é Deus. É Deus quando o anjo Gabriel diz à jovem Maria: “O Senhor está contigo!” — e explica: — “O Espírito Santo virá sobre ti.” É Deus quando ela aceita: “Eu sou a serva do Senhor!” É Deus quando “se cumpriram os dias … e depois de envolver seu filho em panos deitou-o numa manjedoura”. É Deus quando o anjo fala aos pastores: “anuncio uma grande alegria”.

Esse mistério se prolonga, e o menino cresce na casa humilde de José e Maria, e nos ensina que há um mandamento, o do amor, e, por isso, por esse mandamento, morre “morte de cruz”, não sem antes ter tido medo, pois é Deus e é homem. E por isso ressuscita.

É da alegria do nascimento de Jesus que alimentamos nossa vida. O que podemos saber desse mistério de Deus se tornar homem e “habitar entre nós”? Nada, e tudo, pois os últimos anos de sua vida foram passados para nos revelar essa lição tão curta, tão clara e que às vezes parece tão difícil de cumprir: Deus, Jesus, o Menino Jesus é um de nós, e, portanto, esse “nós” é imenso, é tão grande que inclui toda a humanidade, a que vive e a que viveu. Amar ao próximo “como a si mesmo” ou “como Ele nos amou” é amar a si mesmo, pois somos todos uma coisa de nada, mas imensa, incomensurável, porque “temos parte” — assim disse Jesus, diante de João, que nos contou, a Pedro — com Ele.

Este ano terrível da pandemia nos afastou, mas não afastou o nosso amor pelo próximo, por nossa família, por nossos amigos. Não apenas porque, pela internet, pudemos falar e estar com os outros, mas porque ela, a pandemia, nos aproximou, ela fortificou os nossos laços de união, ela nos fez sentir que somos parte da humanidade, que nossa vulnerabilidade é a fragilidade de todos e cada um de nós, que não podemos escapar ao destino comum — que, se podemos escapar, é pelo caminho que se abre para todos.

Muitos anos antes desse dia eterno, Isaías disse: “Ele próprio virá e nos salvará… / e [aos] que foram reunidos por causa do Senhor / … uma alegria os tomará. / Para longe foram dor, tristeza e suspiro.”

Diante do Presépio, diante desse Menino que nasce na humildade absoluta, se vestindo assim da glória nas alturas que cantam os anjos, a fraternidade é a porta que nos é aberta para a salvação. ■

Cessar fogo na Guerra da Vacina

A vacina já fez parte de muitas guerras. Ninguém sabe qual foi a primeira, mas, na América, a ocorrência pioneira foi registrada em 1492, segundo Charles C. Mann em seu livro 1493. Nesta região até então não existia hepatite, varíola ou gripe. Quando estas doenças desembarcaram no bojo das caravelas, o cálculo feito pelos historiadores é que elas dizimaram dois terços da população indígena. Esse terrível genocídio acabou provocando resistência de seu organismo a alguns vírus e bactérias.

 

Na China, sempre pioneira, a inoculação do vírus da varíola, hoje chamada variolação, já era praticada no século X. “A vacinação é precursora da medicina moderna e não produto dela”, diz Eula Biss em seu livro Imunidade. O que veio a tomar o nome de vacina era praticado desde o século XVIII na Inglaterra, onde se começou a praticar a variolação. De lá, em 1733, Voltaire — que tivera varíola dez anos antes — escreveu que “as mulheres do Caucáso desde tempos imemoriais dão a varíola aos filhos já aos seis meses, fazendo-lhes uma incisão no braço e inserindo uma pústula que retiravam de uma outra criança.” É ainda Biss quem lembra que Voltaire censurava o fato de os embaixadores franceses não terem levado esse hábito de Constantinopla para Paris.

 

Essas práticas provocaram grandes controvérsias e muitas revoltas. Não só no passado: sempre a vacinação esteve ligada à violência. Na caçada a Bin Laden os americanos simularam uma vacinação de hepatite tipo 2 no Paquistão e no Afeganistão para ter o pretexto de visitar casa a casa — vacinavam as pessoas, mas verdadeiramente queriam descobrir o esconderijo do terrorista que mandara explodir as torres gêmeas.

 

Aqui no Brasil a guerra da vacina de 1904, que envolveu grandes nomes da História brasileira, teve várias motivações: os cadetes da Escola da Praia Vermelha valeram-se dela para tentar um levante contra Rodrigues Alves; contra Osvaldo Cruz havia o ciúme pela ascendência profissional; e o nosso grande Rui Barbosa invocava o Direito, sustentando que a obrigação de submeter alguém a receber o vírus da doença em seu próprio corpo era uma violência do Estado.

 

Por trás, ontem e hoje, o egoísmo do homem, que tem algo, ou material ou intelectual, a defender em proveito pessoal. A guerra atual é entre laboratórios ingleses, americanos, chineses, alemães e de todo lado, cada qual querendo chegar na frente e tirar proveitos comerciais.  Já os governos e políticos desejam obter dividendos eleitorais.

 

Mas, para felicidade nossa, a disputa que demorou esses longos meses — tempo em que se perderam tantas vidas — parece pacificada. O inimigo é o vírus e as outras discussões são secundárias. Tem lugar para todo mundo e, em âmbito mundial, todos serão vacinados, afastando o medo e a ameaça à vida.

 

As sequelas, contudo, são subjacentes, e aqui a luta continua, agora sob o manto de entendimento entre União, Estados, Municípios. Meios científicos e políticos continuam em fogo brando.

 

Mas, como acontece em todas as guerras, na nossa se acaba de fazer um pacto de cessar fogo. Já é uma grande coisa e a volta ao bom senso e a substituição da esperança pela certeza.

A ciência perderá

Este título é apenas provocativo e me foi inspirado pela atitude do famoso Laboratório Pfizer de colocar no frontispício das suas instalações, na sua sede em Nova York, a frase Science Will Win (A ciência vencerá), numa resposta àqueles que estão envolvidos no mundo inteiro numa discussão sobre a eficácia dos medicamentos, a obrigatoriedade da vacina, sua eficiência e a confiança nelas, temas que servem de debate político, como também ameaçam seu negócio, que vive de descobrir remédios e vendê-los.

Evidentemente que vacinas e medicamentos, sendo problemas sérios de saúde pública, têm que estar sob constante vigilância, para evitar falsidades, charlatanismo e falsificações. Essas agências têm essas altas responsabilidades. Como exemplo basta citar a FDA dos Estados Unidos, tão temida e selo de qualidade.

Essa hipótese de confrontação entre política e ciência dá margem a uma meditação mais profunda, que é se existe antagonismo entre elas, e a uma indagação mais instigante: a política é uma ciência? Esta felizmente já é uma questão superada.

Mas sempre me levou a refletir sobre os benefícios da política e da ciência para a Humanidade. A base da ciência é a experimentação e a observação; a da política, a busca de meios, métodos e caminhos de se fazer a felicidade do povo, resolver seus problemas e, sobretudo, assegurar a paz mundial. Harmonizar conflitos e encontrar soluções que sejam regras e formar objetivos de convivência humana e entre os povos. O abandono da força e a busca de decisões em que o povo tenha participação cada vez maior.

Daí o papel de base da política é o de ser a guardiã da liberdade. Através dela assegurar os direitos humanos. A síntese desse conceito está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, feita sob o choque da 2ª Guerra pela ONU, redação admirável, cujos fundamentos vêm da Revolução Gloriosa inglesa, da Revolução Francesa e da Revolução Americana: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.”

Ela fixa liberdade de pensamento, direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e de autodeterminação, inclusão digital.

Os políticos ao longo dos milênios civilizaram a humanidade e deram condições a que a ciência se desenvolvesse. Mas é com a maior franqueza que temos que reconhecer que a ciência prestou muito mais serviço à qualidade de vida e à sobrevivência da Humanidade do que todos os sistemas políticos inventados e desenvolvidos pelos políticos.

Hajam vista as vacinas, que evitaram que as doenças desconhecidas acabassem com a vida na face da Terra.

Qual político ou sistema político fez para a Humanidade tanto quanto fizeram Fleming descobrindo a penicilina; Sabin, a vacina contra a paralisia infantil; Pasteur, descobrindo bactérias e microrganismos.

Assim, se o lema da Pfizer não fosse verdadeiro e ali fosse escrito “A ciência perderá”, o mundo não poderia ler aquela afirmação. Todos estaríamos mortos.

A causa negra também é minha

As causas da raça negra e da cultura foram as duas maiores preocupações minhas em 12 anos de Câmara dos Deputados e 40 de Senado. Sou o Senador que mais tempo exerceu mandatos naquela Casa. E o político mais longevo da República, com mais de 60 anos de atividade e ainda presente — sem militância partidária, mas Presidente de Honra do MDB, partido a que sou filiado há 36 anos. Exerci por oito anos a Presidência do Senado Federal.

 

Sempre discordei da maneira como o problema da raça negra era tratado. Só existia o discurso político de retirá-la da situação de miséria e de segregação social. Minha visão, que nunca havia sido colocada na República — mas tinha origem em José Bonifácio e Joaquim Nabuco —, era de que somente com ascensão social, educação, participação em postos de direção ela sairia desse longo caminho de discriminação. Essa foi a solução adotada pelos Estados Unidos, que em parte deu certo, permanecendo, entretanto, o violento racismo. É que o problema deles era muito mais grave do que o nosso, com as sequelas da guerra de secessão. Mas lá já chegou um negro à Presidência da República e agora uma mulher negra, Kamala Harris, à Vice-Presidência, como muitos chegaram a outros altos cargos da República e do poder econômico.

 

Quando era Presidente da República ocorreu o Centenário da Abolição. Em vez de comemorações políticas, criei a Fundação Palmares, com a finalidade de promover a ascensão social, a educação e as oportunidades de trabalho para os descendentes dos escravos. No Parlamento, como Senador, apresentei o projeto de lei de cotas raciais, que nunca tinham sido tratadas no Brasil e estabeleci que eram o caminho.

 

O Senador negro Paulo Paim pediu-me para absorver meu projeto no Estatuto da Igualdade Racial. Concordei, porque meu objetivo não era político, mas o de criar o debate sobre o problema e lançar a política de cotas para ajudar a resolver a questão. Meu projeto, no entanto, era bem mais amplo, incluindo os cursos de graduação, os cargos públicos e o financiamento dos estudos.

 

Orgulho-me de ter tido uma participação na defesa dessa maioria-minoria que continua a sofrer depois de quase quinhentos anos de presença no Brasil. Nosso débito com a raça negra é a maior dívida que temos em nossa História.

 

O Dia da Consciência Negra mostra que se mantém o caminho fracassado do passado. Pensa-se como sempre em dividendos políticos e nada de objetivo para fazer com que os negros tenham na sociedade o mesmo lugar dos brancos.

 

Outro débito que temos — e digo com a autoridade de quem é um lutador desta causa e detentor do Prêmio Zumbi, que me foi entregue pelo grande negro José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares — é com o Negro Cosme, da Balaiada, enforcado no Maranhão, que ficou no esquecimento e devia estar sendo reverenciado junto com Zumbi.

 

Ele deu o maior exemplo do que precisava a raça negra: criou uma escola no quilombo. Ele já sabia que só a educação liberta.

Outra guerra da vacina

Faz parte da História do Brasil a famosa guerra da vacina, do princípio do século XX, em que os cadetes das escolas militares se levantaram contra a vacina que Osvaldo Cruz começava a aplicar e contra o plano para saneamento do Rio de Janeiro. A capital tinha uma situação sanitária precária e péssima reputação. Para completar tivemos a grande figura de Rui Barbosa aderindo à causa contra a vacina de maneira virulenta, colocando sua eloquência para condenar a vacinação obrigatória. Hoje, quando a gente lê os discursos que fez fica estarrecido: como um homem de uma inteligência tão brilhante podia defender tais absurdos? No fundo as correntes que se digladiavam tinham uma motivação política, governo x oposição. Mas esse é passado a esquecer.

Agora vivemos outra guerra da vacina. Não como a outra, que era a negação da ciência. Com o Coronavírus a humanidade está enfrentando uma doença que já fez milhões de mortos e de infectados, mostrando o sistema de saúde mundial carente de equipamentos e recursos humanos.
Por outro lado, devido a seu alto poder de transmissibilidade, disseminou um medo que mudou a vida social e a rotina das cidades. Mas é difícil controlar os bilhões de seres humanos e seus hábitos de vida. Todo mundo devia recolher-se em casa, usar máscara e evitar contato pessoal, ainda mais os velhos, com agravantes que diminuem a capacidade de defesa do organismo.

Pois há uma guerra política de quem vacina primeiro, qual a vacina melhor etc. Mas sem dúvida a maior de todas, sem aparecer, é a guerra dos laboratórios pelos bilhões a ganhar com um mercado gigantesco de fregueses prontos para gastar o que tem e o que não tem para livrar-se do mal.
Sobre este ponto gosto de lembrar uma história contada por meu querido amigo Severo Gomes: um laboratório pedia desculpas aos acionistas pelo pequeno rendimento das suas ações: “Tivemos um inverno fraco, baixo nível de doenças respiratórias, pneumonias, gripes. Mas fiquem tranquilos os acionistas que as previsões do próximo ano são de um inverno brutal, em que vai morrer muita gente e vamos recuperar os baixos lucros deste ano.” “O lucro é a lógica do mercado” — e por trás dessa guerra das vacinas lá está ele.

Já disseram que a vacina russa não prestava, que a chinesa não era segura e agora que a de Oxford, com algum fundamento, tem erros de metodologia que podem atrasá-la.

Meu ponto de vista é que o mundo está longe de pensar na vida. A vacina deve ser obrigatória e todos os governos mundiais deviam estar juntos, sem que estes medicamentos fossem objeto de comércio, todos unidos para salvar a Humanidade. E precisamos nos adaptar às limitações da Terra, deixando de agredi-la e poupando seus recursos. Do contrário um vírus desses, o Sars-Cov-2 ou outro que sem dúvida alguma vai aparecer, vai acabar com o gênero humano, e a Terra vai vagar sozinha no espaço infinito com suas belezas até o sol esfriar.

Helmut Schmidt dizia: a maior ameaça ao futuro da Humanidade são “as doenças desconhecidas”.

Lave as mãos, use máscara, não saia de casa, mas que a vacina venha, urgente, é nossa grande esperança.

Deus a traga logo e nos evite sofrer mais espera. sim carvalho.”

A crise elétrica no Amapá

T enho procurado resistir a falar sobre a crise de energia do Amapá. Agora não aguento mais. É que a minha indignação sobre o que está acontecendo é insuportável. Não queria falar nada com receio de que fosse interpretado como uma tentativa de participar da luta política que está se realizando, que até hoje se arrasta.

Não é o caso de solidarizar-me: este sofrimento também é meu. Não há quem desconheça no Amapá a minha obsessão com o problema energético, que deixei resolvido. E vejo agora que a falta de manutenção de um transformador, por descuido, descaso ou irresponsabilidade, levou esse sofrido povo do Amapá a passar por um doloroso momento de perdas pessoais com a falta de energia, que incluem da assistência à saúde aos problemas econômicos.

Quando cheguei ao Amapá em 1990, as cidades viviam no escuro, sem qualquer negócio que precisasse de refrigeração, como o gelo para o pescado — a pesca era a maior oportunidade de trabalho da população mais pobre. A única fonte de abastecimento de energia eram uns velhos motores russos, antigas turbinas de avião que algum malandro tinha empurrado ao governo do então Território do Amapá. Tive que comprar um motor a diesel para fornecer energia à casa em que morava. Era uma calamidade pública, sem solução à vista.

Assumindo o mandato minha primeira ação foi a de resolver esse problema. Consegui que fosse nomeado Presidente da Eletronorte técnico com a tarefa de resolver o problema de energia. A primeira providência foi fazer com que Antônio Carlos Magalhães liberasse os motores de Camaçari, que eram reserva daquele Polo Petroquímico, e levá-los para o Amapá. Isso resolveu o problema imediato. Em seguida, estabelecemos o levantamento do potencial energético dos rios do Amapá e descobrimos que o rio Araguari podia comportar três hidroelétricas e o rio Jari outra, em Laranjal do Jari. Uma luta com o Pará para que a casa de força ficasse do lado do Amapá atrasou o projeto. Isso me custou uma briga com o Amazonas, pela qual paguei caro: um senador daquele Estado passou a fazer uma campanha contra mim, que muito me atingiu e prejudicou.

Como meu projeto para o Amapá era de longo prazo, continuamos a trabalhar com os sucessivos presidentes da Eletronorte, entre os quais tivemos como colaborador um grande técnico, autor de um projeto global que foi finalmente executado: José Antônio Muniz, depois Diretor e Presidente da Eletrobrás.

Surgiu o grande projeto de levar a energia de Tucuruí para Manaus. A linha de transmissão correria do lado esquerdo do rio Amazonas. Com o Ministro Silas Rondeau e a ajuda da então Ministra Dilma, o projeto foi modificado, passando para o lado direito, com a finalidade de estabelecer uma linha para Macapá. E assim foi feito. O Amapá ficou ligado ao Sistema Nacional de Energia e hoje é exportador de energia. A energia possibilitou iluminarmos todo o interior do Estado, que vivia na escuridão.

Para dar trabalho (hoje é a maior fonte de emprego), criamos a Zona de Livre comércio de Macapá e Santana, que melhorou a vida de todos, pois os produtos passaram a ficar mais baratos.

Agora, depois dessa luta toda, de anos e anos, vem a irresponsabilidade na manutenção de uma Estação de Rebaixamento, sem compromisso técnico, sem um transformador de reserva e provoca essa tragédia.

O Amapá sabe o quanto o problema de Energia me toca.

A todos a minha revolta e o meu desejo de pronto restabelecimento do sistema.

Como eu disse na inauguração de Santo Antônio, citando Rui Barbosa: “Eu não vim aqui plantar couves e sim carvalho.”

A causa negra também é minha

As causas da raça negra e da cultura foram as duas maiores preocupações minhas em 12 anos de Câmara dos Deputados e 40 de Senado. Sou o Senador que mais tempo exerceu mandatos naquela Casa. E o político mais longevo da República, com mais de 60 anos de atividade e ainda presente — sem militância partidária, mas Presidente de Honra do MDB, partido a que sou filiado há 36 anos. Exerci por oito anos a Presidência do Senado Federal.

 

Sempre discordei da maneira como o problema da raça negra era tratado. Só existia o discurso político de retirá-la da situação de miséria e de segregação social. Minha visão, que nunca havia sido colocada na República — mas tinha origem em José Bonifácio e Joaquim Nabuco —, era de que somente com ascensão social, educação, participação em postos de direção ela sairia desse longo caminho de discriminação. Essa foi a solução adotada pelos Estados Unidos, que em parte deu certo, permanecendo, entretanto, o violento racismo. É que o problema deles era muito mais grave do que o nosso, com as sequelas da guerra de secessão. Mas lá já chegou um negro à Presidência da República e agora uma mulher negra, Kamala Harris, à Vice-Presidência, como muitos chegaram a outros altos cargos da República e do poder econômico.

 

Quando era Presidente da República ocorreu o Centenário da Abolição. Em vez de comemorações políticas, criei a Fundação Palmares, com a finalidade de promover a ascensão social, a educação e as oportunidades de trabalho para os descendentes dos escravos. No Parlamento, como Senador, apresentei o projeto de lei de cotas raciais, que nunca tinham sido tratadas no Brasil e estabeleci que eram o caminho.

 

O Senador negro Paulo Paim pediu-me para absorver meu projeto no Estatuto da Igualdade Racial. Concordei, porque meu objetivo não era político, mas o de criar o debate sobre o problema e lançar a política de cotas para ajudar a resolver a questão. Meu projeto, no entanto, era bem mais amplo, incluindo os cursos de graduação, os cargos públicos e o financiamento dos estudos.

 

Orgulho-me de ter tido uma participação na defesa dessa maioria-minoria que continua a sofrer depois de quase quinhentos anos de presença no Brasil. Nosso débito com a raça negra é a maior dívida que temos em nossa História.

 

O Dia da Consciência Negra mostra que se mantém o caminho fracassado do passado. Pensa-se como sempre em dividendos políticos e nada de objetivo para fazer com que os negros tenham na sociedade o mesmo lugar dos brancos.

 

Outro débito que temos — e digo com a autoridade de quem é um lutador desta causa e detentor do Prêmio Zumbi, que me foi entregue pelo grande negro José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares — é com o Negro Cosme, da Balaiada, enforcado no Maranhão, que ficou no esquecimento e devia estar sendo reverenciado junto com Zumbi.

 

Ele deu o maior exemplo do que precisava a raça negra: criou uma escola no quilombo. Ele já sabia que só a educação liberta.

A crise elétrica no Amapá

Tenho procurado resistir a falar sobre a crise de energia do Amapá. Agora não aguento mais. É que a minha indignação sobre o que está acontecendo é insuportável. Não queria falar nada com receio de que fosse interpretado como uma tentativa de participar da luta política que está se realizando, que até hoje se arrasta.

Não é o caso de solidarizar-me: este sofrimento também é meu. Não há quem desconheça no Amapá a minha obsessão com o problema energético, que deixei resolvido. E vejo agora que a falta de manutenção de um transformador, por descuido, descaso ou irresponsabilidade, levou esse sofrido povo do Amapá a passar por um doloroso momento de perdas pessoais com a falta de energia, que incluem da assistência à saúde aos problemas econômicos.

Quando cheguei ao Amapá em 1990, as cidades viviam no escuro, sem qualquer negócio que precisasse de refrigeração, como o gelo para o pescado — a pesca era a maior oportunidade de trabalho da população mais pobre. A única fonte de abastecimento de energia eram uns velhos motores russos, antigas turbinas de avião que algum malandro tinha empurrado ao governo do então Território do Amapá. Tive que comprar um motor a diesel para fornecer energia à casa em que morava. Era uma calamidade pública, sem solução à vista.

Assumindo o mandato minha primeira ação foi a de resolver esse problema. Consegui que fosse nomeado Presidente da Eletronorte técnico com a tarefa de resolver o problema de energia. A primeira providência foi fazer com que Antônio Carlos Magalhães liberasse os motores de Camaçari, que eram reserva daquele Polo Petroquímico, e levá-los para o Amapá. Isso resolveu o problema imediato. Em seguida, estabelecemos o levantamento do potencial energético dos rios do Amapá e descobrimos que o rio Araguari podia comportar três hidroelétricas e o rio Jari outra, em Laranjal do Jari. Uma luta com o Pará para que a casa de força ficasse do lado do Amapá atrasou o projeto. Isso me custou uma briga com o Amazonas, pela qual paguei caro: um senador daquele Estado passou a fazer uma campanha contra mim, que muito me atingiu e prejudicou.

Como meu projeto para o Amapá era de longo prazo, continuamos a trabalhar com os sucessivos presidentes da Eletronorte, entre os quais tivemos como colaborador um grande técnico, autor de um projeto global que foi finalmente executado: José Antônio Muniz, depois Diretor e Presidente da Eletrobrás.

Surgiu o grande projeto de levar a energia de Tucuruí para Manaus. A linha de transmissão correria do lado esquerdo do rio Amazonas. Com o Ministro Silas Rondeau e a ajuda da então Ministra Dilma, o projeto foi modificado, passando para o lado direito, com a finalidade de estabelecer uma linha para Macapá. E assim foi feito. O Amapá ficou ligado ao Sistema Nacional de Energia e hoje é exportador de energia. A energia possibilitou iluminarmos todo o interior do Estado, que vivia na escuridão.

Para dar trabalho (hoje é a maior fonte de emprego), criamos a Zona de Livre comércio de Macapá e Santana, que melhorou a vida de todos, pois os produtos passaram a ficar mais baratos.

Agora, depois dessa luta toda, de anos e anos, vem a irresponsabilidade na manutenção de uma Estação de Rebaixamento, sem compromisso técnico, sem um transformador de reserva e provoca essa tragédia.

O Amapá sabe o quanto o problema de Energia me toca.

A todos a minha revolta e o meu desejo de pronto restabelecimento do sistema.

Como eu disse na inauguração de Santo Antônio, citando Rui Barbosa: “Eu não vim aqui plantar couves e sim carvalho.”

Uma eleição fora da Curva

É com uma mistura de ansiedade e esperança que chegamos à eleição mais diferente que já vi. A política, que sempre se agita, é claro, no momento em que os eleitores escolhem seus representantes e governantes, nesse caso vereadores e prefeitos, apareceu pouco na vida diária, com a restrição de aglomerações e toda a atenção da imprensa voltada para o sul e para o exterior.

A eleição que parecia existir realmente era nos EUA, entre Biden e Trump, que até hoje bate o pé que ganhou o que perdeu. Na campanha norte-americana, que coincidiu com o começo da nova onda da Covid-19, o comportamento dos dois candidatos a presidente foi muito diferente, com o Biden usando máscaras e optando pelos contatos virtuais, o Trump desprezando as recomendações médicas e indo ao encontro de seus seguidores fanáticos. Pela esperança de uns de que o radicalismo de direita continuasse, a certeza de outros de que precisavam deixar para trás aquele acusado de ser o pior presidente da História americana, em plena pandemia fizeram grandes filas de eleitores — e uma parte importante votou pelo correio ou antecipadamente. Dificilmente se saberá as consequências da proximidade exagerada das pessoas, mas o certo é que a comunidade da Casa Branca está aos farrapos com as contaminações, que teriam comprometido, pelo número de atingidos, a segurança presidencial.

Aqui no Maranhão, felizmente, a doença segundo as estatísticas oficiais está estável, e espero que isso não seja comprometido pelo dever cívico de votar. O nosso sistema de alistamento e voto com controle estatal e centralizado é certamente, nesse ponto, muito superior ao norte-americano, que é um caos que funciona. Isso não quer dizer que não tenhamos nossas falhas no processo eleitoral, e a maior delas é a da inexistência de democracia partidária, por sua vez uma das causas do exageradíssimo número de partidos. Não temos o essencial num partido, que é o programa que define suas ideias, formando uma organização em torno de princípios comuns de como devem ser governo e Estado.

Mas as atenções estavam voltadas, eu dizia, para o sul, onde está se concluindo nossa participação no desenvolvimento da guerra das vacinas. É algo em que não pode haver qualquer intervenção que não seja de total apoio à pesquisa e à medicina. Lembro que o mundo tem 53 milhões de casos confirmados. A Humanidade somos 7,8 bilhões de pessoas. O tal “efeito manada” deve se dar quando 70% tiverem sido contaminados: 5,4 bilhões — nem pensar! Nossa esperança, portanto, está na vacina. Que venha logo!

Enquanto isso não descuidemos, inclusive na hora de votar, das recomendações básicas: máscara, distanciamento social, higiene das mãos etc. A nova onda da Covid-19, que parece estar relacionada com a aproximação do inverno, está atingindo em cheio a Europa e a América do Norte. Os dados são alarmantes, muito superiores aos dos picos da primeira onda. Países que tinham tido comportamento modelar, como Áustria, Suíça, Eslováquia, estão na ponta dos valores relativos.

Mas assustam mesmo os números crus: os Estados Unidos pularam em dois dias de 100 para 150 mil novos casos diários.

Eleições americanas

É difícil para nós entendermos o sistema eleitoral americano. Estamos a cinco dias das suas eleições. A grande diferença para o sistema brasileiro é que aqui as regras eleitorais são federais, lá são federais e estaduais. Cada Estado tem independência para fazer seu sistema de votação como quiser. Apenas devem respeitar o que a Constituição regulou: primeiro, o presidente é eleito por um colégio eleitoral, numa tentativa de equilibrar os grandes e pequenos estados; segundo, cada estado elegerá dois senadores e tantos deputados quanto 1/435 da população total do país. Quando foi feita a Constituição, em 1787, não existia a eleição de vice-presidente. A eleição era só de presidente, e o segundo mais votado seria o vice-presidente — essas regras foram mudadas em 1804, com a introdução do Colégio Eleitoral pela XXII Emenda Constitucional.

Assim, a diferença para os sistemas das outras democracias liberais é a heterogeneidade. Como as regras são estaduais, não há um padrão. Tem estado que elege prefeito, tem o que faz referendo ou plebiscito, tem o que elege o presidente do conselho municipal etc. No estado em que morreu um senador, o seu sucessor é indicado de uma maneira própria, seja pela assembleia estadual, seja pelo governador, e o escolhido exerce o mandato até a próxima eleição, o que faz com que em alguns estados sejam eleitos agora dois senadores. Tem estado que elege a administração do county(município) e outros cargos, como chefe do ministério público ou chefe de polícia etc.

Para nós é incompreensível que, tendo tido mais votos, Al Gore tenha perdido para Bush e Hillary Clinton, para Trump. Mas outra diferença decisiva e fundamental é a possibilidade do voto antecipado, por correspondência ou em urnas especiais. Isso tem permitido abusos, como o dos republicanos que conseguiram parar na Suprema Corte a contagem de votos na Flórida quando o Al Gore ia ultrapassando o Bush. Ele perdeu a eleição com dignidade, não discutiu a decisão judicial, reconheceu a falsa derrota como verdadeira.

Agora, com a pandemia e o delírio do Trump, está acontecendo uma coisa inusitada: pela primeira vez o voto antecipadojá é em alguns lugares maior que a votação total da última eleição. Como a imensa maioria deve ser de democratas, será o feitiço virando contra o feiticeiro — a não ser que o Trump, como promete, recuse o resultado e ganhe na Suprema Corte

No Brasil desde a Colônia as Ordenações Manuelina e Filipina determinavam o voto secreto. No Império era assim, com as restrições do voto censitário. Vem a República para estabelecer a liberdade e os direitos civis e adota como modelo a Constituição americana. Rui Barbosa quis fazer uma democracia exemplar, mas logo se derrubou o seu princípio básico: o voto secreto.

Já em 1896 ele foi abolido, estabelecendo-se o voto “a descoberto”, com duas cédulas, uma para colocar na urna e outra para entregar… a quem de direito. Justificativa: já que o povo tinha assistido “bestificado” a proclamação da República, era monarquista e, se houvesse eleição livre, ela, a República, perdia.

A solução veio de Campos Salles, Ministro da Justiça de Deodoro. “Então vamos fazer leis para fraudar a eleição.” E assim foi feito até 1932, quando voltamos ao voto secreto — mas proporcional e uninominal, como Assis Brasil tinha pensado mais de 40 anos antes, desgraça que prevalece até nossos dias e que continua a impedir eleições verdadeiramente democráticas.

Mas o diabo é que com todo o caos o sistema eleitoral americano, lá funciona e aqui, “organizado”, é mais caótico do que lá e funciona muito mal.