José Sarney

A causa negra também é minha

As causas da raça negra e da cultura foram as duas maiores preocupações minhas em 12 anos de Câmara dos Deputados e 40 de Senado. Sou o Senador que mais tempo exerceu mandatos naquela Casa. E o político mais longevo da República, com mais de 60 anos de atividade e ainda presente — sem militância partidária, mas Presidente de Honra do MDB, partido a que sou filiado há 36 anos. Exerci por oito anos a Presidência do Senado Federal.

 

Sempre discordei da maneira como o problema da raça negra era tratado. Só existia o discurso político de retirá-la da situação de miséria e de segregação social. Minha visão, que nunca havia sido colocada na República — mas tinha origem em José Bonifácio e Joaquim Nabuco —, era de que somente com ascensão social, educação, participação em postos de direção ela sairia desse longo caminho de discriminação. Essa foi a solução adotada pelos Estados Unidos, que em parte deu certo, permanecendo, entretanto, o violento racismo. É que o problema deles era muito mais grave do que o nosso, com as sequelas da guerra de secessão. Mas lá já chegou um negro à Presidência da República e agora uma mulher negra, Kamala Harris, à Vice-Presidência, como muitos chegaram a outros altos cargos da República e do poder econômico.

 

Quando era Presidente da República ocorreu o Centenário da Abolição. Em vez de comemorações políticas, criei a Fundação Palmares, com a finalidade de promover a ascensão social, a educação e as oportunidades de trabalho para os descendentes dos escravos. No Parlamento, como Senador, apresentei o projeto de lei de cotas raciais, que nunca tinham sido tratadas no Brasil e estabeleci que eram o caminho.

 

O Senador negro Paulo Paim pediu-me para absorver meu projeto no Estatuto da Igualdade Racial. Concordei, porque meu objetivo não era político, mas o de criar o debate sobre o problema e lançar a política de cotas para ajudar a resolver a questão. Meu projeto, no entanto, era bem mais amplo, incluindo os cursos de graduação, os cargos públicos e o financiamento dos estudos.

 

Orgulho-me de ter tido uma participação na defesa dessa maioria-minoria que continua a sofrer depois de quase quinhentos anos de presença no Brasil. Nosso débito com a raça negra é a maior dívida que temos em nossa História.

 

O Dia da Consciência Negra mostra que se mantém o caminho fracassado do passado. Pensa-se como sempre em dividendos políticos e nada de objetivo para fazer com que os negros tenham na sociedade o mesmo lugar dos brancos.

 

Outro débito que temos — e digo com a autoridade de quem é um lutador desta causa e detentor do Prêmio Zumbi, que me foi entregue pelo grande negro José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares — é com o Negro Cosme, da Balaiada, enforcado no Maranhão, que ficou no esquecimento e devia estar sendo reverenciado junto com Zumbi.

 

Ele deu o maior exemplo do que precisava a raça negra: criou uma escola no quilombo. Ele já sabia que só a educação liberta.

Outra guerra da vacina

Faz parte da História do Brasil a famosa guerra da vacina, do princípio do século XX, em que os cadetes das escolas militares se levantaram contra a vacina que Osvaldo Cruz começava a aplicar e contra o plano para saneamento do Rio de Janeiro. A capital tinha uma situação sanitária precária e péssima reputação. Para completar tivemos a grande figura de Rui Barbosa aderindo à causa contra a vacina de maneira virulenta, colocando sua eloquência para condenar a vacinação obrigatória. Hoje, quando a gente lê os discursos que fez fica estarrecido: como um homem de uma inteligência tão brilhante podia defender tais absurdos? No fundo as correntes que se digladiavam tinham uma motivação política, governo x oposição. Mas esse é passado a esquecer.

Agora vivemos outra guerra da vacina. Não como a outra, que era a negação da ciência. Com o Coronavírus a humanidade está enfrentando uma doença que já fez milhões de mortos e de infectados, mostrando o sistema de saúde mundial carente de equipamentos e recursos humanos.
Por outro lado, devido a seu alto poder de transmissibilidade, disseminou um medo que mudou a vida social e a rotina das cidades. Mas é difícil controlar os bilhões de seres humanos e seus hábitos de vida. Todo mundo devia recolher-se em casa, usar máscara e evitar contato pessoal, ainda mais os velhos, com agravantes que diminuem a capacidade de defesa do organismo.

Pois há uma guerra política de quem vacina primeiro, qual a vacina melhor etc. Mas sem dúvida a maior de todas, sem aparecer, é a guerra dos laboratórios pelos bilhões a ganhar com um mercado gigantesco de fregueses prontos para gastar o que tem e o que não tem para livrar-se do mal.
Sobre este ponto gosto de lembrar uma história contada por meu querido amigo Severo Gomes: um laboratório pedia desculpas aos acionistas pelo pequeno rendimento das suas ações: “Tivemos um inverno fraco, baixo nível de doenças respiratórias, pneumonias, gripes. Mas fiquem tranquilos os acionistas que as previsões do próximo ano são de um inverno brutal, em que vai morrer muita gente e vamos recuperar os baixos lucros deste ano.” “O lucro é a lógica do mercado” — e por trás dessa guerra das vacinas lá está ele.

Já disseram que a vacina russa não prestava, que a chinesa não era segura e agora que a de Oxford, com algum fundamento, tem erros de metodologia que podem atrasá-la.

Meu ponto de vista é que o mundo está longe de pensar na vida. A vacina deve ser obrigatória e todos os governos mundiais deviam estar juntos, sem que estes medicamentos fossem objeto de comércio, todos unidos para salvar a Humanidade. E precisamos nos adaptar às limitações da Terra, deixando de agredi-la e poupando seus recursos. Do contrário um vírus desses, o Sars-Cov-2 ou outro que sem dúvida alguma vai aparecer, vai acabar com o gênero humano, e a Terra vai vagar sozinha no espaço infinito com suas belezas até o sol esfriar.

Helmut Schmidt dizia: a maior ameaça ao futuro da Humanidade são “as doenças desconhecidas”.

Lave as mãos, use máscara, não saia de casa, mas que a vacina venha, urgente, é nossa grande esperança.

Deus a traga logo e nos evite sofrer mais espera. sim carvalho.”

A crise elétrica no Amapá

T enho procurado resistir a falar sobre a crise de energia do Amapá. Agora não aguento mais. É que a minha indignação sobre o que está acontecendo é insuportável. Não queria falar nada com receio de que fosse interpretado como uma tentativa de participar da luta política que está se realizando, que até hoje se arrasta.

Não é o caso de solidarizar-me: este sofrimento também é meu. Não há quem desconheça no Amapá a minha obsessão com o problema energético, que deixei resolvido. E vejo agora que a falta de manutenção de um transformador, por descuido, descaso ou irresponsabilidade, levou esse sofrido povo do Amapá a passar por um doloroso momento de perdas pessoais com a falta de energia, que incluem da assistência à saúde aos problemas econômicos.

Quando cheguei ao Amapá em 1990, as cidades viviam no escuro, sem qualquer negócio que precisasse de refrigeração, como o gelo para o pescado — a pesca era a maior oportunidade de trabalho da população mais pobre. A única fonte de abastecimento de energia eram uns velhos motores russos, antigas turbinas de avião que algum malandro tinha empurrado ao governo do então Território do Amapá. Tive que comprar um motor a diesel para fornecer energia à casa em que morava. Era uma calamidade pública, sem solução à vista.

Assumindo o mandato minha primeira ação foi a de resolver esse problema. Consegui que fosse nomeado Presidente da Eletronorte técnico com a tarefa de resolver o problema de energia. A primeira providência foi fazer com que Antônio Carlos Magalhães liberasse os motores de Camaçari, que eram reserva daquele Polo Petroquímico, e levá-los para o Amapá. Isso resolveu o problema imediato. Em seguida, estabelecemos o levantamento do potencial energético dos rios do Amapá e descobrimos que o rio Araguari podia comportar três hidroelétricas e o rio Jari outra, em Laranjal do Jari. Uma luta com o Pará para que a casa de força ficasse do lado do Amapá atrasou o projeto. Isso me custou uma briga com o Amazonas, pela qual paguei caro: um senador daquele Estado passou a fazer uma campanha contra mim, que muito me atingiu e prejudicou.

Como meu projeto para o Amapá era de longo prazo, continuamos a trabalhar com os sucessivos presidentes da Eletronorte, entre os quais tivemos como colaborador um grande técnico, autor de um projeto global que foi finalmente executado: José Antônio Muniz, depois Diretor e Presidente da Eletrobrás.

Surgiu o grande projeto de levar a energia de Tucuruí para Manaus. A linha de transmissão correria do lado esquerdo do rio Amazonas. Com o Ministro Silas Rondeau e a ajuda da então Ministra Dilma, o projeto foi modificado, passando para o lado direito, com a finalidade de estabelecer uma linha para Macapá. E assim foi feito. O Amapá ficou ligado ao Sistema Nacional de Energia e hoje é exportador de energia. A energia possibilitou iluminarmos todo o interior do Estado, que vivia na escuridão.

Para dar trabalho (hoje é a maior fonte de emprego), criamos a Zona de Livre comércio de Macapá e Santana, que melhorou a vida de todos, pois os produtos passaram a ficar mais baratos.

Agora, depois dessa luta toda, de anos e anos, vem a irresponsabilidade na manutenção de uma Estação de Rebaixamento, sem compromisso técnico, sem um transformador de reserva e provoca essa tragédia.

O Amapá sabe o quanto o problema de Energia me toca.

A todos a minha revolta e o meu desejo de pronto restabelecimento do sistema.

Como eu disse na inauguração de Santo Antônio, citando Rui Barbosa: “Eu não vim aqui plantar couves e sim carvalho.”

A causa negra também é minha

As causas da raça negra e da cultura foram as duas maiores preocupações minhas em 12 anos de Câmara dos Deputados e 40 de Senado. Sou o Senador que mais tempo exerceu mandatos naquela Casa. E o político mais longevo da República, com mais de 60 anos de atividade e ainda presente — sem militância partidária, mas Presidente de Honra do MDB, partido a que sou filiado há 36 anos. Exerci por oito anos a Presidência do Senado Federal.

 

Sempre discordei da maneira como o problema da raça negra era tratado. Só existia o discurso político de retirá-la da situação de miséria e de segregação social. Minha visão, que nunca havia sido colocada na República — mas tinha origem em José Bonifácio e Joaquim Nabuco —, era de que somente com ascensão social, educação, participação em postos de direção ela sairia desse longo caminho de discriminação. Essa foi a solução adotada pelos Estados Unidos, que em parte deu certo, permanecendo, entretanto, o violento racismo. É que o problema deles era muito mais grave do que o nosso, com as sequelas da guerra de secessão. Mas lá já chegou um negro à Presidência da República e agora uma mulher negra, Kamala Harris, à Vice-Presidência, como muitos chegaram a outros altos cargos da República e do poder econômico.

 

Quando era Presidente da República ocorreu o Centenário da Abolição. Em vez de comemorações políticas, criei a Fundação Palmares, com a finalidade de promover a ascensão social, a educação e as oportunidades de trabalho para os descendentes dos escravos. No Parlamento, como Senador, apresentei o projeto de lei de cotas raciais, que nunca tinham sido tratadas no Brasil e estabeleci que eram o caminho.

 

O Senador negro Paulo Paim pediu-me para absorver meu projeto no Estatuto da Igualdade Racial. Concordei, porque meu objetivo não era político, mas o de criar o debate sobre o problema e lançar a política de cotas para ajudar a resolver a questão. Meu projeto, no entanto, era bem mais amplo, incluindo os cursos de graduação, os cargos públicos e o financiamento dos estudos.

 

Orgulho-me de ter tido uma participação na defesa dessa maioria-minoria que continua a sofrer depois de quase quinhentos anos de presença no Brasil. Nosso débito com a raça negra é a maior dívida que temos em nossa História.

 

O Dia da Consciência Negra mostra que se mantém o caminho fracassado do passado. Pensa-se como sempre em dividendos políticos e nada de objetivo para fazer com que os negros tenham na sociedade o mesmo lugar dos brancos.

 

Outro débito que temos — e digo com a autoridade de quem é um lutador desta causa e detentor do Prêmio Zumbi, que me foi entregue pelo grande negro José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares — é com o Negro Cosme, da Balaiada, enforcado no Maranhão, que ficou no esquecimento e devia estar sendo reverenciado junto com Zumbi.

 

Ele deu o maior exemplo do que precisava a raça negra: criou uma escola no quilombo. Ele já sabia que só a educação liberta.

A crise elétrica no Amapá

Tenho procurado resistir a falar sobre a crise de energia do Amapá. Agora não aguento mais. É que a minha indignação sobre o que está acontecendo é insuportável. Não queria falar nada com receio de que fosse interpretado como uma tentativa de participar da luta política que está se realizando, que até hoje se arrasta.

Não é o caso de solidarizar-me: este sofrimento também é meu. Não há quem desconheça no Amapá a minha obsessão com o problema energético, que deixei resolvido. E vejo agora que a falta de manutenção de um transformador, por descuido, descaso ou irresponsabilidade, levou esse sofrido povo do Amapá a passar por um doloroso momento de perdas pessoais com a falta de energia, que incluem da assistência à saúde aos problemas econômicos.

Quando cheguei ao Amapá em 1990, as cidades viviam no escuro, sem qualquer negócio que precisasse de refrigeração, como o gelo para o pescado — a pesca era a maior oportunidade de trabalho da população mais pobre. A única fonte de abastecimento de energia eram uns velhos motores russos, antigas turbinas de avião que algum malandro tinha empurrado ao governo do então Território do Amapá. Tive que comprar um motor a diesel para fornecer energia à casa em que morava. Era uma calamidade pública, sem solução à vista.

Assumindo o mandato minha primeira ação foi a de resolver esse problema. Consegui que fosse nomeado Presidente da Eletronorte técnico com a tarefa de resolver o problema de energia. A primeira providência foi fazer com que Antônio Carlos Magalhães liberasse os motores de Camaçari, que eram reserva daquele Polo Petroquímico, e levá-los para o Amapá. Isso resolveu o problema imediato. Em seguida, estabelecemos o levantamento do potencial energético dos rios do Amapá e descobrimos que o rio Araguari podia comportar três hidroelétricas e o rio Jari outra, em Laranjal do Jari. Uma luta com o Pará para que a casa de força ficasse do lado do Amapá atrasou o projeto. Isso me custou uma briga com o Amazonas, pela qual paguei caro: um senador daquele Estado passou a fazer uma campanha contra mim, que muito me atingiu e prejudicou.

Como meu projeto para o Amapá era de longo prazo, continuamos a trabalhar com os sucessivos presidentes da Eletronorte, entre os quais tivemos como colaborador um grande técnico, autor de um projeto global que foi finalmente executado: José Antônio Muniz, depois Diretor e Presidente da Eletrobrás.

Surgiu o grande projeto de levar a energia de Tucuruí para Manaus. A linha de transmissão correria do lado esquerdo do rio Amazonas. Com o Ministro Silas Rondeau e a ajuda da então Ministra Dilma, o projeto foi modificado, passando para o lado direito, com a finalidade de estabelecer uma linha para Macapá. E assim foi feito. O Amapá ficou ligado ao Sistema Nacional de Energia e hoje é exportador de energia. A energia possibilitou iluminarmos todo o interior do Estado, que vivia na escuridão.

Para dar trabalho (hoje é a maior fonte de emprego), criamos a Zona de Livre comércio de Macapá e Santana, que melhorou a vida de todos, pois os produtos passaram a ficar mais baratos.

Agora, depois dessa luta toda, de anos e anos, vem a irresponsabilidade na manutenção de uma Estação de Rebaixamento, sem compromisso técnico, sem um transformador de reserva e provoca essa tragédia.

O Amapá sabe o quanto o problema de Energia me toca.

A todos a minha revolta e o meu desejo de pronto restabelecimento do sistema.

Como eu disse na inauguração de Santo Antônio, citando Rui Barbosa: “Eu não vim aqui plantar couves e sim carvalho.”

Uma eleição fora da Curva

É com uma mistura de ansiedade e esperança que chegamos à eleição mais diferente que já vi. A política, que sempre se agita, é claro, no momento em que os eleitores escolhem seus representantes e governantes, nesse caso vereadores e prefeitos, apareceu pouco na vida diária, com a restrição de aglomerações e toda a atenção da imprensa voltada para o sul e para o exterior.

A eleição que parecia existir realmente era nos EUA, entre Biden e Trump, que até hoje bate o pé que ganhou o que perdeu. Na campanha norte-americana, que coincidiu com o começo da nova onda da Covid-19, o comportamento dos dois candidatos a presidente foi muito diferente, com o Biden usando máscaras e optando pelos contatos virtuais, o Trump desprezando as recomendações médicas e indo ao encontro de seus seguidores fanáticos. Pela esperança de uns de que o radicalismo de direita continuasse, a certeza de outros de que precisavam deixar para trás aquele acusado de ser o pior presidente da História americana, em plena pandemia fizeram grandes filas de eleitores — e uma parte importante votou pelo correio ou antecipadamente. Dificilmente se saberá as consequências da proximidade exagerada das pessoas, mas o certo é que a comunidade da Casa Branca está aos farrapos com as contaminações, que teriam comprometido, pelo número de atingidos, a segurança presidencial.

Aqui no Maranhão, felizmente, a doença segundo as estatísticas oficiais está estável, e espero que isso não seja comprometido pelo dever cívico de votar. O nosso sistema de alistamento e voto com controle estatal e centralizado é certamente, nesse ponto, muito superior ao norte-americano, que é um caos que funciona. Isso não quer dizer que não tenhamos nossas falhas no processo eleitoral, e a maior delas é a da inexistência de democracia partidária, por sua vez uma das causas do exageradíssimo número de partidos. Não temos o essencial num partido, que é o programa que define suas ideias, formando uma organização em torno de princípios comuns de como devem ser governo e Estado.

Mas as atenções estavam voltadas, eu dizia, para o sul, onde está se concluindo nossa participação no desenvolvimento da guerra das vacinas. É algo em que não pode haver qualquer intervenção que não seja de total apoio à pesquisa e à medicina. Lembro que o mundo tem 53 milhões de casos confirmados. A Humanidade somos 7,8 bilhões de pessoas. O tal “efeito manada” deve se dar quando 70% tiverem sido contaminados: 5,4 bilhões — nem pensar! Nossa esperança, portanto, está na vacina. Que venha logo!

Enquanto isso não descuidemos, inclusive na hora de votar, das recomendações básicas: máscara, distanciamento social, higiene das mãos etc. A nova onda da Covid-19, que parece estar relacionada com a aproximação do inverno, está atingindo em cheio a Europa e a América do Norte. Os dados são alarmantes, muito superiores aos dos picos da primeira onda. Países que tinham tido comportamento modelar, como Áustria, Suíça, Eslováquia, estão na ponta dos valores relativos.

Mas assustam mesmo os números crus: os Estados Unidos pularam em dois dias de 100 para 150 mil novos casos diários.

Eleições americanas

É difícil para nós entendermos o sistema eleitoral americano. Estamos a cinco dias das suas eleições. A grande diferença para o sistema brasileiro é que aqui as regras eleitorais são federais, lá são federais e estaduais. Cada Estado tem independência para fazer seu sistema de votação como quiser. Apenas devem respeitar o que a Constituição regulou: primeiro, o presidente é eleito por um colégio eleitoral, numa tentativa de equilibrar os grandes e pequenos estados; segundo, cada estado elegerá dois senadores e tantos deputados quanto 1/435 da população total do país. Quando foi feita a Constituição, em 1787, não existia a eleição de vice-presidente. A eleição era só de presidente, e o segundo mais votado seria o vice-presidente — essas regras foram mudadas em 1804, com a introdução do Colégio Eleitoral pela XXII Emenda Constitucional.

Assim, a diferença para os sistemas das outras democracias liberais é a heterogeneidade. Como as regras são estaduais, não há um padrão. Tem estado que elege prefeito, tem o que faz referendo ou plebiscito, tem o que elege o presidente do conselho municipal etc. No estado em que morreu um senador, o seu sucessor é indicado de uma maneira própria, seja pela assembleia estadual, seja pelo governador, e o escolhido exerce o mandato até a próxima eleição, o que faz com que em alguns estados sejam eleitos agora dois senadores. Tem estado que elege a administração do county(município) e outros cargos, como chefe do ministério público ou chefe de polícia etc.

Para nós é incompreensível que, tendo tido mais votos, Al Gore tenha perdido para Bush e Hillary Clinton, para Trump. Mas outra diferença decisiva e fundamental é a possibilidade do voto antecipado, por correspondência ou em urnas especiais. Isso tem permitido abusos, como o dos republicanos que conseguiram parar na Suprema Corte a contagem de votos na Flórida quando o Al Gore ia ultrapassando o Bush. Ele perdeu a eleição com dignidade, não discutiu a decisão judicial, reconheceu a falsa derrota como verdadeira.

Agora, com a pandemia e o delírio do Trump, está acontecendo uma coisa inusitada: pela primeira vez o voto antecipadojá é em alguns lugares maior que a votação total da última eleição. Como a imensa maioria deve ser de democratas, será o feitiço virando contra o feiticeiro — a não ser que o Trump, como promete, recuse o resultado e ganhe na Suprema Corte

No Brasil desde a Colônia as Ordenações Manuelina e Filipina determinavam o voto secreto. No Império era assim, com as restrições do voto censitário. Vem a República para estabelecer a liberdade e os direitos civis e adota como modelo a Constituição americana. Rui Barbosa quis fazer uma democracia exemplar, mas logo se derrubou o seu princípio básico: o voto secreto.

Já em 1896 ele foi abolido, estabelecendo-se o voto “a descoberto”, com duas cédulas, uma para colocar na urna e outra para entregar… a quem de direito. Justificativa: já que o povo tinha assistido “bestificado” a proclamação da República, era monarquista e, se houvesse eleição livre, ela, a República, perdia.

A solução veio de Campos Salles, Ministro da Justiça de Deodoro. “Então vamos fazer leis para fraudar a eleição.” E assim foi feito até 1932, quando voltamos ao voto secreto — mas proporcional e uninominal, como Assis Brasil tinha pensado mais de 40 anos antes, desgraça que prevalece até nossos dias e que continua a impedir eleições verdadeiramente democráticas.

Mas o diabo é que com todo o caos o sistema eleitoral americano, lá funciona e aqui, “organizado”, é mais caótico do que lá e funciona muito mal.

Leis em demasia

Estamos em época de eleição — e que eleição! Resolvi dar uma olhada na legislação eleitoral e fiquei com tanto medo que desejei ficar sabendo só o que já sabia. É que são tantas leis, tantas resoluções, tantas modificações contraditórias. E tem um complicador adicional: a má redação, que dá margem a equívocos ao definir e confunde e dá trabalho a juízes, tribunais e advogados.

 

Quando era Presidente do Senado tentei muitas vezes chamar a atenção para isso. Lembrei as preocupações de Rui Barbosa, falando do contraste entre a clareza necessária e as dúvidas que levantam as leis mal redigidas. Isso sem falar, é claro, na erudição gramatical que colocou na polêmica com Carneiro Ribeiro sobre o projeto de Código Civil de Clóvis Beviláqua, que ensejou as famosas réplicas e tréplicas.

 

Há dois graves problemas que o bom legislador deve ter sempre em mente: o excesso de leis e a lei mal redigida. Para tentar corrigí-las há tempos se fez uma lei complementar, a LC 95/1998. Pouco adiantou. Podemos dizer que há uma hierarquia de responsáveis pelo estado de nosso Direito, que afeta profundamente o nosso Estado de Direito.

 

Há um problema ético a exigir uma transformação da própria sociedade: as leis devem ter como único objetivo o bem comum. Mas sabemos que não é assim. Vivemos uma época em que o corporativismo é o maior autor de leis. Prevalece o interesse do mais forte, o que nos conduz em direção a uma plutocracia.

 

Há gestos mais pontuais. Contrariando a regra de que “cada lei tratará de um único objeto”, sempre aparece alguém pondo uma agulha no palheiro, para passar sem ser vista, mas que na verdade é jabuti em árvore. O melhor caminho para isso é se aproveitar de que o nosso principal legislador, o Poder Executivo, lança Medidas Provisórias a torto e a direito, como se houvesse urgência para tudo que acontece no País. Saem em perseguição à MP as emendas como as tartaruguinhas correm para o mar ao nascer. Quando os filhotes já não estão no texto enviado à Câmara. Pode ser por isso que se queira mesmo é confundir.

 

A lei deve ser precisa como um verbete escrito pelo Aurélio Buarque de Holanda: sem uma palavra a mais ou a menos. Com palavras a mais ou a menos tudo se transforma em batalha jurídica. O primeiro passo para se ter boas leis eleitorais — volto ao meu assunto — é uma profunda revisão que desbaste o excesso de folhas, deixando ser visto o tronco e frutificar em legisladores e administradores que saibam o que podem e devem fazer. Poucas páginas, poucas palavras — e que fiquem, sem mudar toda hora, de maneira que o eleitor e o candidato se conheçam, um tenha motivo e gosto de votar e o outro possa pedir para ser votado sem ficar devendo nada a ninguém, a não ser ao eleitor.

 

Os tempos mudam. Há 150 anos, uma das campanhas de Nabuco revolucionou o Recife, pondo a boca para falar pelos escravos e nela colocando seu coração. Pois bem; quando lhe disseram que tinha que pedir que votassem nele, ficou horrorizado: o eleitor tinha que votar em quem achasse melhor, não atender a pedidos.

 

Hoje o melhor que podemos fazer é procurar conhecer os candidatos por sua história. E fugir das fake news.

Uma eleição fora da curva

A Covid-19 é realmente uma doença que veio mexer com nossa vida e com a organização da sociedade. Perante ela, nada resistiu. O desconhecimento do vírus, num redemoinho, modificou a nossa forma de convivência e disseminou o medo, impactando dos sistemas de prestação da saúde e indo até ao culto a Deus. Basta vermos as regras básicas: manter o isolamento, afastar-se das pessoas, decretar a solidão pelo receio de estar junto.

Restringimos nossa fala, as máscaras dificultaram nossas conversas, e assim atingimos tantas coisas, dos negócios ao amor.

Mas quero deter-me na parte que atingiu as eleições. Esta eleição que vamos ter agora, em novembro, é inteiramente diferente de qualquer outra que tivemos. Não temos mais como fazer campanha da maneira como sempre fizemos, com o corpo a corpo, os comícios, as reuniões de apoiadores, as passeatas, as bagunças dos mais agitados, os trios elétricos.

Para consolidar essa nova maneira de campanha, trabalha-se com a ausência de dinheiro, pois criamos, com essa lei do financiamento eleitoral, uma hipocrisia oficial, sancionada pela Justiça Eleitoral. Como pensar que mais de 19 mil candidatos a prefeito, mais de 515 mil candidatos a vereador em 5.568 municípios brasileiros poderão fazer ao menos o que ficou permitido — cartazes, milhões de mensagens de vídeos, comunicados e gravações de apoio — com o pouco dinheiro que estará disponível? Já ouvi de candidato a vereador que o partido lhe daria mil reais, ou nada! Os 30% destinados para as mulheres, que se julgavam privilegiadas, também não vão dar para nada.

O que se deduz de tudo isso? É a avassaladora corrupção de gastos irregulares: quem mais tem para gastar são os candidatos ricos, que podem tirar dinheiro do próprio bolso, e a máquina pública (estadual, municipal e federal). Pensar que a Justiça Eleitoral vai ter fiscalização capaz de evitar os gastos ilegais é de uma ingenuidade ou um farisaísmo intencional.

O Brasil tem o melhor sistema de tomada de voto do mundo. Eu, ainda deputado, apresentei projeto criando o serviço de alistamento eleitoral, que antes era feito pelos candidatos e partidos; como presidente da República, propiciei os recursos e apoiei o Ministro Nery da Silveira, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a iniciar o processo de digitalização do voto. Recebi dele o primeiro título digital, no Maranhão.

Então temos o melhor sistema de votação e o pior de financiamento, pois este induz o enfraquecimento da democracia e estimula a corrupção.
O mundo caminhou um longo tempo para chegarmos à democracia que temos hoje no mundo. No passado, em Esparta havia “a maioria dos gritos”, segundo João Lisboa, em que os apuradores ficavam trancados numa sala, e o povo reunido na praça pública. Quem tinha mais palmas ou gritava mais era o vencedor. Ou então o velho e moderno sistema de compra de voto, que atingia a própria Igreja, às vezes perdidas em longas disputas, que resultaram nos conclaves — com chave — mas não resolveram o problema. O Pe. Vieira escrevia sobre a eleição do Papa Clemente X, cujo conclave durou 130 dias: “virão a acomodar algum decrépito, a que aqui chamam Papa em depósito, para que, no entretanto de sua pouca duração, com os acidentes do tempo, cada um possa melhorar de partido”.

Mas o que esperamos é o fim da Covid-19 e a reforma do financiamento atual, em que o povo paga e o resultado é a fraude financiada.

Francisco chama Francisco

O Papa Francisco publicou a encíclica Fratelli Tutti, em que invoca as lições de São Francisco de Assis para fazer uma profunda reflexão sobre o amor fraterno como único caminho para ultrapassarmos este momento crítico da Humanidade.

Esta terceira encíclica de Francisco é na verdade a segunda, pois a primeira, Lumen Fidei, foi na maior parte escrita por Bento XVI. A outra, Laudato Si’, dedicada ao meio ambiente, teve imensa repercussão, que se estendeu além do universo da Igreja, por sua atualidade, mas, sobretudo, pela clareza com que expôs os desafios como o aquecimento global e o consumo desenfreado, ensinando que o caminho é a solidariedade. Segue, nas duas últimas, o caminho da Mater et Magistra e da Pacem in terris, de São João XXIII, e da Populorum Progressio, de São Paulo VI.

Fratelli Tutti junta palavra a ação quando o Papa diz nela exprimir seu pensamento — centenas de vezes são retomadas frases que ele já escrevera —, mas também o do Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, lembrando a visita de São Francisco ao Sultão Malik-al-Kamil, no tempo das cruzadas.

A encíclica, que estava sendo redigida quando começou a pandemia, lembra que, com toda a comunicação em tempo real, o egoísmo mostrou nossa incapacidade de agir em conjunto, de pensar no bem comum: “Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.”

O documento é muito longo até para pensar em resumi-lo aqui, mas me dá grande conforto ao sustentar pontos que eu já defendi, inclusive em minhas intervenções na ONU há trinta anos. Assim, ele condena a guerra — diz que não há guerra justa — e especialmente a guerra nuclear. Fala muito da fome, intolerável, e de dívida externa, forma de opressão dos países pobres. Lembra a necessidade de haver uma ética nas relações internacionais. Clama por uma política que busque o bem comum. Enfatiza a necessidade de reformar a ONU, de maneira que seja realmente o grande mediador dos conflitos. Cita, como caminhos, a Europa e a integração latino-americana.

Consegui, com Alfonsín, acabar com a corrida nuclear Argentina–Brasil e afastar o continente do perigo atômico, além de tornar o Atlântico Sul zona de paz por resolução que apresentei e foi aprovada na ONU.Ali avisei em 1985: “o Brasil não pagará a dívida externa nem com a recessão, nem com o desemprego, nem com a fome”. Toda minha vida disse que o verdadeiro político visa, em primeiro lugar, ao bem comum. Preconizei a reforma da ONU. Comecei a união de nosso continente.

Francisco fala do grave problema que é, em nosso tempo, a falsa convivência de pessoas com os mesmos interesses nas redes sociais, criando o afastamento real das pessoas e facilitando a manipulação pelos populistas, que usam as pessoas para seus próprios fins. É preciso, diz, derrubar os muros — a palavra aparece 14 vezes — erguidos para afastar as pessoas.

Mas todo o tempo a Fratelli Tutti reflete o ensinamento cristão. O ponto central da carta é, assim, a parábola do Bom Samaritano. O Papa Francisco nos coloca o desafio: vamos passar ao lado dos que sofrem ou ajudá-los a se levantar no caminho?.