José Sarney

Leis em demasia

Estamos em época de eleição — e que eleição! Resolvi dar uma olhada na legislação eleitoral e fiquei com tanto medo que desejei ficar sabendo só o que já sabia. É que são tantas leis, tantas resoluções, tantas modificações contraditórias. E tem um complicador adicional: a má redação, que dá margem a equívocos ao definir e confunde e dá trabalho a juízes, tribunais e advogados.

 

Quando era Presidente do Senado tentei muitas vezes chamar a atenção para isso. Lembrei as preocupações de Rui Barbosa, falando do contraste entre a clareza necessária e as dúvidas que levantam as leis mal redigidas. Isso sem falar, é claro, na erudição gramatical que colocou na polêmica com Carneiro Ribeiro sobre o projeto de Código Civil de Clóvis Beviláqua, que ensejou as famosas réplicas e tréplicas.

 

Há dois graves problemas que o bom legislador deve ter sempre em mente: o excesso de leis e a lei mal redigida. Para tentar corrigí-las há tempos se fez uma lei complementar, a LC 95/1998. Pouco adiantou. Podemos dizer que há uma hierarquia de responsáveis pelo estado de nosso Direito, que afeta profundamente o nosso Estado de Direito.

 

Há um problema ético a exigir uma transformação da própria sociedade: as leis devem ter como único objetivo o bem comum. Mas sabemos que não é assim. Vivemos uma época em que o corporativismo é o maior autor de leis. Prevalece o interesse do mais forte, o que nos conduz em direção a uma plutocracia.

 

Há gestos mais pontuais. Contrariando a regra de que “cada lei tratará de um único objeto”, sempre aparece alguém pondo uma agulha no palheiro, para passar sem ser vista, mas que na verdade é jabuti em árvore. O melhor caminho para isso é se aproveitar de que o nosso principal legislador, o Poder Executivo, lança Medidas Provisórias a torto e a direito, como se houvesse urgência para tudo que acontece no País. Saem em perseguição à MP as emendas como as tartaruguinhas correm para o mar ao nascer. Quando os filhotes já não estão no texto enviado à Câmara. Pode ser por isso que se queira mesmo é confundir.

 

A lei deve ser precisa como um verbete escrito pelo Aurélio Buarque de Holanda: sem uma palavra a mais ou a menos. Com palavras a mais ou a menos tudo se transforma em batalha jurídica. O primeiro passo para se ter boas leis eleitorais — volto ao meu assunto — é uma profunda revisão que desbaste o excesso de folhas, deixando ser visto o tronco e frutificar em legisladores e administradores que saibam o que podem e devem fazer. Poucas páginas, poucas palavras — e que fiquem, sem mudar toda hora, de maneira que o eleitor e o candidato se conheçam, um tenha motivo e gosto de votar e o outro possa pedir para ser votado sem ficar devendo nada a ninguém, a não ser ao eleitor.

 

Os tempos mudam. Há 150 anos, uma das campanhas de Nabuco revolucionou o Recife, pondo a boca para falar pelos escravos e nela colocando seu coração. Pois bem; quando lhe disseram que tinha que pedir que votassem nele, ficou horrorizado: o eleitor tinha que votar em quem achasse melhor, não atender a pedidos.

 

Hoje o melhor que podemos fazer é procurar conhecer os candidatos por sua história. E fugir das fake news.

Uma eleição fora da curva

A Covid-19 é realmente uma doença que veio mexer com nossa vida e com a organização da sociedade. Perante ela, nada resistiu. O desconhecimento do vírus, num redemoinho, modificou a nossa forma de convivência e disseminou o medo, impactando dos sistemas de prestação da saúde e indo até ao culto a Deus. Basta vermos as regras básicas: manter o isolamento, afastar-se das pessoas, decretar a solidão pelo receio de estar junto.

Restringimos nossa fala, as máscaras dificultaram nossas conversas, e assim atingimos tantas coisas, dos negócios ao amor.

Mas quero deter-me na parte que atingiu as eleições. Esta eleição que vamos ter agora, em novembro, é inteiramente diferente de qualquer outra que tivemos. Não temos mais como fazer campanha da maneira como sempre fizemos, com o corpo a corpo, os comícios, as reuniões de apoiadores, as passeatas, as bagunças dos mais agitados, os trios elétricos.

Para consolidar essa nova maneira de campanha, trabalha-se com a ausência de dinheiro, pois criamos, com essa lei do financiamento eleitoral, uma hipocrisia oficial, sancionada pela Justiça Eleitoral. Como pensar que mais de 19 mil candidatos a prefeito, mais de 515 mil candidatos a vereador em 5.568 municípios brasileiros poderão fazer ao menos o que ficou permitido — cartazes, milhões de mensagens de vídeos, comunicados e gravações de apoio — com o pouco dinheiro que estará disponível? Já ouvi de candidato a vereador que o partido lhe daria mil reais, ou nada! Os 30% destinados para as mulheres, que se julgavam privilegiadas, também não vão dar para nada.

O que se deduz de tudo isso? É a avassaladora corrupção de gastos irregulares: quem mais tem para gastar são os candidatos ricos, que podem tirar dinheiro do próprio bolso, e a máquina pública (estadual, municipal e federal). Pensar que a Justiça Eleitoral vai ter fiscalização capaz de evitar os gastos ilegais é de uma ingenuidade ou um farisaísmo intencional.

O Brasil tem o melhor sistema de tomada de voto do mundo. Eu, ainda deputado, apresentei projeto criando o serviço de alistamento eleitoral, que antes era feito pelos candidatos e partidos; como presidente da República, propiciei os recursos e apoiei o Ministro Nery da Silveira, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a iniciar o processo de digitalização do voto. Recebi dele o primeiro título digital, no Maranhão.

Então temos o melhor sistema de votação e o pior de financiamento, pois este induz o enfraquecimento da democracia e estimula a corrupção.
O mundo caminhou um longo tempo para chegarmos à democracia que temos hoje no mundo. No passado, em Esparta havia “a maioria dos gritos”, segundo João Lisboa, em que os apuradores ficavam trancados numa sala, e o povo reunido na praça pública. Quem tinha mais palmas ou gritava mais era o vencedor. Ou então o velho e moderno sistema de compra de voto, que atingia a própria Igreja, às vezes perdidas em longas disputas, que resultaram nos conclaves — com chave — mas não resolveram o problema. O Pe. Vieira escrevia sobre a eleição do Papa Clemente X, cujo conclave durou 130 dias: “virão a acomodar algum decrépito, a que aqui chamam Papa em depósito, para que, no entretanto de sua pouca duração, com os acidentes do tempo, cada um possa melhorar de partido”.

Mas o que esperamos é o fim da Covid-19 e a reforma do financiamento atual, em que o povo paga e o resultado é a fraude financiada.

Francisco chama Francisco

O Papa Francisco publicou a encíclica Fratelli Tutti, em que invoca as lições de São Francisco de Assis para fazer uma profunda reflexão sobre o amor fraterno como único caminho para ultrapassarmos este momento crítico da Humanidade.

Esta terceira encíclica de Francisco é na verdade a segunda, pois a primeira, Lumen Fidei, foi na maior parte escrita por Bento XVI. A outra, Laudato Si’, dedicada ao meio ambiente, teve imensa repercussão, que se estendeu além do universo da Igreja, por sua atualidade, mas, sobretudo, pela clareza com que expôs os desafios como o aquecimento global e o consumo desenfreado, ensinando que o caminho é a solidariedade. Segue, nas duas últimas, o caminho da Mater et Magistra e da Pacem in terris, de São João XXIII, e da Populorum Progressio, de São Paulo VI.

Fratelli Tutti junta palavra a ação quando o Papa diz nela exprimir seu pensamento — centenas de vezes são retomadas frases que ele já escrevera —, mas também o do Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, lembrando a visita de São Francisco ao Sultão Malik-al-Kamil, no tempo das cruzadas.

A encíclica, que estava sendo redigida quando começou a pandemia, lembra que, com toda a comunicação em tempo real, o egoísmo mostrou nossa incapacidade de agir em conjunto, de pensar no bem comum: “Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.”

O documento é muito longo até para pensar em resumi-lo aqui, mas me dá grande conforto ao sustentar pontos que eu já defendi, inclusive em minhas intervenções na ONU há trinta anos. Assim, ele condena a guerra — diz que não há guerra justa — e especialmente a guerra nuclear. Fala muito da fome, intolerável, e de dívida externa, forma de opressão dos países pobres. Lembra a necessidade de haver uma ética nas relações internacionais. Clama por uma política que busque o bem comum. Enfatiza a necessidade de reformar a ONU, de maneira que seja realmente o grande mediador dos conflitos. Cita, como caminhos, a Europa e a integração latino-americana.

Consegui, com Alfonsín, acabar com a corrida nuclear Argentina–Brasil e afastar o continente do perigo atômico, além de tornar o Atlântico Sul zona de paz por resolução que apresentei e foi aprovada na ONU.Ali avisei em 1985: “o Brasil não pagará a dívida externa nem com a recessão, nem com o desemprego, nem com a fome”. Toda minha vida disse que o verdadeiro político visa, em primeiro lugar, ao bem comum. Preconizei a reforma da ONU. Comecei a união de nosso continente.

Francisco fala do grave problema que é, em nosso tempo, a falsa convivência de pessoas com os mesmos interesses nas redes sociais, criando o afastamento real das pessoas e facilitando a manipulação pelos populistas, que usam as pessoas para seus próprios fins. É preciso, diz, derrubar os muros — a palavra aparece 14 vezes — erguidos para afastar as pessoas.

Mas todo o tempo a Fratelli Tutti reflete o ensinamento cristão. O ponto central da carta é, assim, a parábola do Bom Samaritano. O Papa Francisco nos coloca o desafio: vamos passar ao lado dos que sofrem ou ajudá-los a se levantar no caminho?.

Trump quer destruir a democracia

Costumo dizer que não estamos vivendo em um mundo em transformação, mas num mundo transformado. Com o Covid-19 especula-se que vamos viver um novo normal. Ninguém pode dizer o que isto será. Mas antes que ele venha estou estupefato diante de algo que jamais pensei que pudesse ver.

A minha admiração pelos Estados Unidos vem do orgulho de que tenha saído do Continente Americano o país que transformou o mundo, tornando-se a maior nação da terra, líder e exemplo para todos os povos. Deles surgiu o sistema político que Fukuyama afirmou ter levado ao fim da História, com o domínio da democracia liberal e da economia de mercado.

Formou-se um sistema de governo capaz de garantir a ideia de que todos são iguais perante a lei e ninguém pode ser discriminado em razão de cor, raça ou religião. Cristalizaram-se as ideias de liberdade, direitos humanos, dignidade humana, governo do povo e para o povo. E esses direitos foram consagrados de tal maneira que passaram a ser um ideal universal.

Alexis de Tocqueville escreveu em 1835 um livro clássico, no qual ele profetizou que os Estados Unidos iriam “por algum desígnio secreto um dia controlar em suas mãos os destinos de metade do mundo”. E sempre afirmei que foi a grande sorte do mundo. Calcule se saísse da velha Europa ou de qualquer parte outro país que tivesse como bandeira ideal usar a força, a supremacia de raça — como aconteceu na Alemanha de Hitler — ou pregasse a religião como base das nações. Estamos presenciando um conflito de civilização no Oriente Médio. Mas foram os Estados Unidos que pregaram a liberdade, como forma de vida que venceu.

Pois não é que agora, com grande espanto, em pleno século XXI, ouvimos sair da boca de um Presidente dos Estados Unidos que ele pode não aceitar o resultado de uma eleição e não entregar o poder, como se seu país fosse qualquer republiqueta dos séculos passados, quando a alternância do poder pudesse ainda ir contra a decisão soberana do povo.

Isso eu considero a maior e mais impensável coisa a que pudéssemos assistir. A solidez do maior e mais forte país democrático do mundo comportar uma afirmação dessa natureza. Jefferson, Madison, Washington devem ter tremido em seus túmulos e abominar pela eternidade um Trump, negar-lhe a companhia dos homens que fizeram a Constituição de Filadélfia, o maior documento produzido pelo homem para regular suas relações e o viver pacífico em sociedade.

Trump, com seu comportamento e sua frase, acaba por fazer uma síntese do que buscou ao longo de seu governo. Foi caminhando para o isolamento americano, para a divisão da sociedade, para uma nova guerra fria — e até quente. Seu objetivo é inaceitável: destruir a democracia!

Todo poder à vacina

A vacina é o único socorro de esperança contra a ameaça da Covid. Já falei mais de uma vez do cálculo de Malthus sobre a expansão da Humanidade e da narrativa que Jared Diamond faz da ascensão e queda das civilizações: nos cenários, guerras e germes. A história das pragas é uma desgraça: desde as sete pragas do Egito, que são dez, o que se vê são as populações dizimadas. Dizimadas não: o decimatio castigava um em cada dez soldados, mas as pestes sempre foram mais radicais. A praga de Justiniano matou mais da metade da Humanidade; a peste negra, um quarto.

 

Para uma doença virar epidemia ou pandemia, ela precisa ser contagiosa e viajar. Assim nossas cidades marítimas não escaparam da reviravolta da natureza — pois é isso o que acontece quando mexemos com o meio ambiente, mesmo na “inocente” domesticação de rebanhos. Varíola, gripe, malária, dengue, febre amarela, SARS passaram por aqui. Houve a gripe suína, que era em parte aviária, mas tinha até fragmentos dos vírus da gripe espanhola; esta, com bagagem de 100 milhões de mortos, matou Rodrigues Alves, que acabara com a febre amarela; doença que o africano Aedes aegypti trouxe em 1685/6 para Recife e Salvador; mosquito que nós erradicamos duas vezes, mas continua matando com a dengue. A colheita das pragas é grande, e temos algumas vitórias e muitas derrotas. A maior, o impaludismo, nos bate há 10 mil anos.

 

O Brasil tinha uma história de vacinação. A primeira foi em 1804. Em 1811 tivemos mesmo uma Junta Vacínica. Com o uso direto do vírus ativo, acontecia de ser pior que o soneto. Um século depois, Rodrigues Alves chamou Osvaldo Cruz, jovem médico a quem não conhecia, para acabar com a febre amarela e a varíola. A imprensa, um grupo de médicos negacionistas e alguns conspiradores militares ficaram contra ele. Consideravam absurdo que os mata-mosquitos pudessem entrar nas casas para acabar com o Aedes.

 

A Lei 1261/1904 tornou obrigatória a vacina contra a varíola. A conspiração positivista, que faria chefe da ditadura a Lauro Sodré, partiu para a ação. Revoltou-se o Rio de Janeiro. O dia 14 de novembro foi de conflito armado. O governo dominou, com dificuldade, a situação. Na discussão do pedido de estado de sítio, Rui Barbosa, nosso maior intelectual, numa posição incompreensível, ataca: “Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura… a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus… condutor da moléstia, ou da morte.” E apoia o governo, elogia o desbaratamento do golpe!!!

 

No Maranhão a história é outra. Cláudio Amaral Júnior, grande nome da vacinação no País, conduziu a campanha que em oito meses erradicou a varíola. Fiz o possível para ajudá-lo: acionei a estrutura das escolas comunitárias “João de Barro”, fazíamos os “Comícios da Saúde”, 15 dias de campanha preparatória e promovi a “vacinação num só dia”. Na Praça João Lisboa vacinamos 40 mil pessoas de uma levada, trabalhando até meia-noite. Essa experiência foi levada por ele e pela OMS para outros países.

 

Contra a Covid o caminho é claro: precisamos da vacinação em massa, alcançando indiscriminadamente dos mais ricos aos mais pobres. O Brasil tem instituições que são capazes de produzir rapidamente as vacinas que tenham sucesso. Aqui no Maranhão temos que nos preparar para aplicar as vacinas. Levantar voluntariado, treinar e organizar equipes, fazer um trabalho coordenado com os municípios, chegar aos povoados mais remotos.

Arroz amargo

Há uma gritaria danada sobre o aumento do preço do arroz, que figura na cesta básica e em nossa cultura alimentar, indispensável em nossas mesas e nas do mundo todo. Como tudo mudou, até a linguagem, o aumento do custo de vida, que hoje chama-se “alta no preço de alimentos”, antigamente era “carestia”. Getúlio Vargas tinha verdadeira obsessão em usar essa palavra. Um dos principais objetivos de seu marketing era “combater a carestia”.

Sobre isso há um episódio pitoresco que marcou a vida de um excelente jornalista, depois radialista e dono de uma emissora de Brasília que só tocava música clássica. Chamava-se Mário Garófalo e na época era repórter da Rádio Tupi. Durante um embarque de Getúlio Vargas no Santos Dumont, ele, com absoluta cara de pau, o abordou e perguntou: “Presidente, o que o Senhor acha da campanha das Casas Gebara contra a carestia?” Getúlio, tomado de surpresa, respondeu: “É uma grande contribuição em benefício do povo.” E transformou Getúlio em garoto-propaganda da rede de armarinhos Gebara. Foi um bom tema para humoristas e jornais.

Voltando ao arroz. O Maranhão foi um grande produtor de arroz, o segundo do Brasil. O primeiro era Goiás. O nosso arroz era de sequeiro, esse que não precisa de irrigação. Depois da modernização da lavoura, com a entrada da mecanização, nós perdemos essa posição.

O aumento do arroz foi de cerca de 25% em 2020. O Ministério da Justiça resolveu cobrar informações dos supermercados, e o Ministério da Economia, que teoricamente é contra qualquer intervenção no mercado, resolveu tomar satisfações com o Ministério da Justiça. Adam Smith não toleraria isso, nem o Olavo de Carvalho. Nem a Escola de Chicago. Assim, a imprensa me chamou à colação dizendo que queriam reeditar o Plano Cruzado. Eu, aqui comigo, penso que, se perguntassem ao povo se ele tem saudades do Plano Cruzado, ele diria que sim. Mas esse é um tempo que já passou.

O aumento dos preços já foi debitado à ajuda dada ao povo mais pobre no período da Covid pelo Congresso, certíssima e humana. Se fosse isso, significaria que os mais pobres não tinham nem como comprar arroz, passavam fome brava. E, como não comem aço, não podem ser culpados pelo aumento, que também houve, do preço do aço. O que se sabe é que, no caso do arroz, uma série de fatores contribuiu: a queda na produção, que foi de 12,3 milhões de toneladas em 2015 e caiu para 10,4 o ano passado, sendo estimada em 11,2 neste ano; o aumento do custo dos insumos, devido à desvalorização da moeda, boa para a exportação; e a própria exportação, com a produção brasileira mais competitiva também pelo câmbio.

Como hoje em dia os supermercados não têm campanha contra a carestia, o Presidente Bolsonaro não corre o perigo de ser o Posto Ipiranga e servir de menino-propaganda.

Eleições lá e cá

Estamos na boca de uma nova eleição, a eleição municipal, que, embora seja a mais importante, não desperta a mesma paixão da de Governador.

Agora uma eleição diferente, feita sem campanha, sem comício, sem reunião com grande número de pessoas e todas e todos com medo do coronavírus. As novas tecnologias deslocaram a comunicação para as redes sociais, através da parafernália de whatsapp, facebook, instagram e hackers, que estão a postos para invadir os computadores. E as fantasmagóricas e destruidoras fake news, que sem fronteiras ocupam as campanhas espalhando mentiras, infâmias e difamações, sem tempo para que sejam desmentidas e criando um estrago danado.

Mais perto do que as nossas está outra muito maior e que atinge o mundo inteiro, pois envolve a escolha do Presidente do mais poderoso país da Terra. Juracy Magalhães, um grande político baiano, dizia que, “quando os Estados Unidos espirravam, nós já estávamos com pneumonia”. Ele era tão americanista que dizia que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

Agora então a situação é mais delicada. Nunca estivemos tão alinhados com eles como hoje, pendurados numa amizade pessoal do Presidente Trump com o Presidente Bolsonaro e na confluência de ideias entre o governo de cá e de lá. Dessa eleição dependem muito os próximos anos do Brasil, bem como do mundo. O enfrentamento com a China, as relações tensas com a Europa e as ideias do Trump sobre meio ambiente fizeram os EUA romperem com o Acordo de Paris sobre o clima.

A eleição municipal nossa não mexe em nada disso. Os resultados de Rio Preto, Bom Jesus da Selva ou Duque Bacelar não vão influenciar na corrida nuclear nem na produção de vacinas russas, chinesas ou americanas.

Mas dizem do destino das populações mais pobres e mais vulneráveis, e para a Humanidade o que pesa é o bem-estar das pessoas, sua qualidade de vida e sua perspectiva de futuro.

O nosso sistema político republicano, conceitualmente formulado por Rui Barbosa, foi delineado na Constituição de 1891, redigida por ele, baseada na americana, que lá é sagrada, enquanto a daqui já foi substituída várias vezes.

Só que aqui tivemos que superar as eleições a bico de pena, a fraude generalizada, e lá eles pensaram que tinham resolvido isso com os checks and balances. Pois agora o Trump anuncia que não vai aceitar o resultado se for contra ele, porque onde o Biden pode ganhar vai ser fraudada. É que com a pandemia do corona, para evitar aglomerações, os democratas estão incentivando o voto pelos correios, que para Trump não é confiável e cujo atraso já deu a vitória — fraudada — ao Bush. A fraude, que no Brasil ameaçou a democracia, agora, cem anos depois, ameaça a maior democracia do mundo.

E assim Nova Iorque do Maranhão pode ser comparada à Nova York dos Estados Unidos. Mas a nossa não tem ameaça de fraude. Só traduzindo, como dizia o Padre Newton, a expressão de Cícero “o tempora, o mores!”, como “o tempo das amoras”.

Menina e moça

Tomei emprestado para este artigo o título do livro de Bernardim Ribeiro, que na minha adolescência fazia parte da formação clássica. É velho como a Sé de Braga, como se diz em Portugal, de 1554. Começa — cito de memória e me sujeito a erros — assim: “Menina e moça me levaram da casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.”

Lembro isso pelo caso que nos revoltou pela violência e pela maldade: a gravidez da menina de dez anos, violentada desde os seis, no Espírito Santo. Não entra em nosso entendimento, neste conjunto de valores que Deus nos deu, que se possa aceitar isso. É o mundo louco que a cada dia se revela. Certamente minha avó diria “é o fim do mundo”.

Essa atrocidade revoltou o Brasil, nosso povo, independentemente da formação religiosa, independente da controvertida posição sobre o aborto. É uma brutal atrocidade que nos choca a começar pela monstruosidade corporal. Uma criança pura de sentimentos, sem saber o que é sexo e cujo corpo não está fisiologicamente apto para o ato sexual.

O nosso sistema jurídico só permite o casamento a partir dos 16 anos, assim mesmo com o consentimento dos pais, pois a idade legal de casar é 18 anos. Com menos de 16 só em caso de gravidez. É verdade que a realidade é bem outra. Estamos em 4º lugar em casamentos de crianças de até 15 anos, precedidos pela Índia, Bangladesh e Nigéria. E pasmem: no Brasil o Estado onde é primeiro é o Maranhão.

Uma vez ouvi em Bacabal de um chefe político a história de um fazendeiro que tinha a fama de comprar virgindade, quase sempre de mocinhas pobres. Fiquei chocado, mas atribuí a informação em parte a essas infâmias que, no interior, colam nos adversários políticos para desqualificá-los e destruí-los.

Verdade é que essa menina ficará como um caso ultrajante na história dos nossos costumes. Pensar numa menina grávida aos dez anos, violentada pelo tio, e no martírio da violação desde os seis anos de idade, cria indignação e revolta.

É que o ato sexual não envolve só o contato corporal, mas uma gama de sentimentos contraditórios que vão desde o amor até à vivência das relações pessoais, do afeto até a devassidão e o ultraje, para os quais as pessoas têm de ter a faculdade de reação. Envolve a pureza e o carinho de estar junto. Foi o Criador, segundo o Gênesis, que melhor o definiu dizendo que “serão dois em um”.

A inocência, esse aspecto de fragilidade e ternura que envolve a meninice, nos leva a ter a infância como uma fonte sublime e pura da existência humana. Ela se revela na alegria da graça da vida, num tempo que forma nossas referências e fica como memória. Mas esse período ficará para essa menina como apenas o horror desse bárbaro episódio.

A menina não perdeu somente a virgindade e inocência. Perdeu o nome, perdeu a identidade, tem que ser outra para ser a mesma.

Como viverá daqui para frente? Como apagará essa indelével mancha?

O livro e os ricos

Sempre tive a cultura como minha causa parlamentar. As leis de incentivo à cultura, estímulo à pesquisa científica, proteção do patrimônio histórico foram iniciativas minhas, que têm quase cinquenta anos. E, Presidente da República, criei o Ministério da Cultura. A cultura vale por si mesma, mas lembro que não há potência econômica que não seja antes potência cultural.

Uma vez escrevi uma frase que pressupunha um absurdo: “Se, por uma desgraça, essa história de mercado um dia tornar o livro dispensável, ainda restará o livro de poesia, pois a poesia não precisa de mercado e salvará o livro.” Pois não é que agora, em nome do mercado, o governo quer acabar com o livro? Parece deixar de saber das imensas dificuldades por que estão passando editoras e livrarias e, apesar disso, pretende tornar o livro mais caro, isto é, inviável. Segundo seus porta-vozes, livro é coisa de rico, e para os pobres dará livros de graça (!).

A Constituição veda a cobrança de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. Para driblar as restrições constitucionais à cobrança de impostos, usam sinônimos e chamam de contribuição ou taxa. E tome taxa absurda. Em 2003, consegui aprovar uma lei instituindo a Política Nacional do Livro e nela estender a imunidade tributária do livro às taxas. Lula vetou o artigo, mas assumiu o compromisso de contornar o problema e cumpriu o prometido. No ano seguinte, anunciou a desoneração de todas as contribuições e taxas para o livro nacional e o estrangeiro.

Agora, na reforma tributária, o governo está atrás de receitas. A carga tributária, que deixei em 24% do PIB, já passou dos 35%, e o Ministro da Economia quer mais. Acha bom tirar do livro para salvar o País! Pretexto: “Livro não é importante para o povo.” Eles nunca devem ter ido a uma feira de livros, cheia de povo jovem e povo povo e povo de todo jeito.

O livro é um bem de consumo essencial. É um dado histórico. Com a invenção de Gutemberg, explodiu a produção de livros. Foram eles os responsáveis pela expansão das universidades e da educação, pela fixação de línguas, pelos Descobrimentos, pelo Renascimento, pela pesquisa científica, pelas revoluções políticas — entre elas a criação do Estado e da democracia representativa.

O livro nunca acabará, porque ele é a maior das descobertas tecnológicas: cai e não quebra, não precisa de energia, de ligar e desligar. Pode ser levado para qualquer lugar, banheiro ou cama. O livro é o melhor amigo.

O livro tem tudo, da poesia à informática, passando pelos livros de economia, inclusive os que o Ministro disse que leu em inglês, no original. O Bill Gates, criador da Microsoft, disse sobre o livro que a internet só existe porque os que a criaram passaram pelo livro.

Recordo um refrão que, se não me falha a memória, está no Dom Quixote: “Os livros fazem muitos sábios, mas poucos ricos.” Com a reforma haverá ricos sábios ou sábios ricos?

O sofrido Líbano

O Amapá e o Maranhão têm uma certa ligação com o Líbano. É difícil encontrar uma família maranhense que com ele, de maneira direta ou indireta, não possua uma ligação de sangue, sentimental ou de amizade. Sírios e libaneses de vários credos religiosos buscaram para seus caminhos de imigração o Norte do Brasil. Aqui no Maranhão essa presença se tornou tão forte que muitos sírio-libaneses assumiram posições de liderança na política, no comércio, nas entidades de classe, com grande expressão.

Essa influência e miscigenação se tornou tão arraigada que chegou até a incorporar-se aos costumes e à culinária. Eu sempre digo que o Maranhão tem várias culinárias: a culinária da Costa, dos peixes e frutos do mar; a culinária portuguesa tradicional, que não abandonamos, de cozidões, tortas, caldeiradas; a do sertão, de carne de sol, maria isabel, pirão de leite etc; a libanesa de quibes, esfirras, quibe labanie; e a maranhense mesma, mistura da africana e da indígena com um toque libanês, de onde saiu o divino arroz de cuxá.

Antônio Dino, grande médico e alma boa, que foi meu Vice-Governador, me contou uma parte dessa saga da imigração libanesa dizendo que no início do século XX alguns refugiados políticos, seus ancestrais e muitos outros, vieram para o Maranhão, principalmente para o interior. Não guardei todo o relato, o que lamento, e faço uma sugestão para alguma tese acadêmica levantando essa história, que faz parte da nossa.
Eu mesmo tenho dentro de casa muitos Murad e Duailibe, netos, genros e netos.

Quando o meu romance O Dono do Mar foi traduzido para o árabe, fui a Beirute para seu lançamento. A cidade tinha saído da guerra civil e estava toda destruída. O Rafik Hariri — que seis anos depois foi morto pela explosão de um carro bomba na hora em que passava seu comboio — era um grande político, fizera o Acordo de Faët acabando com 15 anos de guerra-civil, estava reconstruindo Beirute. Com ele e sua irmã construí mesmo uma relação de amizade. Tenho um serviço de jantar que foi ofertado por ele.

O Líbano tem uma história sofrida. Sua localização, espremido com fronteira do Israel, Síria e Chipre (pelo mar), o torna alvo de permanente agressão e envolvimento no caldeirão do Oriente Médio, tendo como centro a milenar luta de judeus e palestinos.

A tragédia que vive o Líbano com a gigantesca explosão e a destruição do seu porto e da cidade soma-se à crise econômica e política. Naquela época se assinalava a presença de 500 mil palestinos nos campos de refugiados, comandados pelo Hezbollah, que desequilibrava a divisão de poderes formada no pacto de independência, dividindo o poder dos xiitas com a milícia Amal. Com a guerra da Síria mais 1,5 milhões de refugiados entraram no país, que tinha 4,5 milhões. A insatisfação vem de toda parte. O filho de Hariri tentou recentemente substituir o pai e foi expulso pelos protestos de rua que exigem “fora todos os políticos”. A tragédia maior é um país essencialmente multicultural tornar-se inviável pela violência de seus vizinhos e pela incapacidade em exercer seu talento para a convivência.

Sofremos com o Líbano e somos solidários com o seu povo e nos juntamos àqueles que no mundo inteiro tem o dever de ajudá-los a ressurgir das cinzas.