José Sarney

A teoria da greve geral

O Brasil está num saudosismo danado e deseja ressuscitar, na prática política, meios há muito mortos. É a famosa volta dos dinossauros. No princípio do século passado, há mais de um século, o comunismo — ou melhor, os teóricos do comunismo — pregava que a maneira de derrubar governos e implantar o marxismo era os operários fazerem uma paralisação geral, imobilizando todo um país, que, assim, sem funcionar, seria uma presa fácil da ditadura do proletariado.

E a moda circulou por todo o mundo, sobretudo pela Europa, berço do pensamento político humano.

A greve foi uma conquista dos trabalhadores, usada desde o princípio da Revolução Industrial (os exemplos da antiguidade tratam de universos muito distintos), num tempo em que a exploração do trabalhador o tornava escravo do trabalho e do patrão. Os menores e as mulheres, com salários mais baixos, eram vítimas das mais cruéis explorações. Com estes excessos foi natural nascer a reação, inclusive contra o lockout — a empresa fechar para obrigar o trabalhador a aceitar trabalhar com salários miseráveis. Se o patrão podia impor suas condições ao empregado, fechando as fábricas, arrancando-lhe o meio de ganhar o seu pão, porque esse não podia também fechar a fábrica, obrigando o patrão a ficar sem ganhar dinheiro, paralisando seu negócio por tempo indeterminado. Eis o nascimento da greve, justa reivindicação por salários e contra a exploração. Depois, com o andar da carruagem, surgiram os sindicatos, que — mais adiante com a força da contribuição sindical — deram aos operários condições de politicamente enfrentar os chamados partidos de massa contra os partidos de quadros. Duverger trata desse tema longamente.

E então a greve passou a ser um instrumento também político. Os partidos ideológicos incorporaram aos seus programas o direito de greve, que deu seus resultados e serviu bastante para o avanço do bem-estar da classe operária. Isso foi no passado. O trabalhador, hoje, com os sindicatos e suas confederações, tem uma força muito grande e não precisa recorrer às greves para obter conquistas.

As convenções coletivas, os direitos constitucionais, a empresa moderna com seu sentido social, tornaram a greve geral anacrônica, que apenas resiste em países subdesenvolvidos e sem instituições fortes. Por outro lado, a diversidade de trabalho fez com que o trabalhador também não tenha interesse em paralisar a empresa.

Daí o fracasso das greves gerais. No meu governo tentaram duas, e ambas fracassaram redondamente. Essa de sexta-feira seguiu o mesmo caminho e resumiu-se a tentar impedir que circulem os meios de transporte, o que revolta o próprio trabalhador, além de criar o medo da violência com os confrontos entre baderneiros e a polícia — também desaparelhada para enfrenta-los por meios democráticos, sem apelar para uma repressão com uso excessivo da força e com brutalidade. O que antigamente eram os piquetes, hoje são os arruaceiros, sem nada que seja trabalhador.

Daí porque, hoje, greve geral fracassa, irrita o trabalhador e atrasa as conquistas trabalhistas.

A Pascoela

As Oitavas de Páscoa, semana seguinte ao Domingo da Ressurreição, foram chamadas, durante muito tempo, de Pascoela. Assim ela é tratada na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel I, o Venturoso, narrando a descoberta do Brasil.

Diz Pero Vaz de Caminha: “Ao domingo de Pascoela pela manhã, … mandou naquele ilhéu armar um esperável, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa…”

Entre nós quase se esqueceu a denominação Pascoela, que ainda persiste em Portugal. Mas meu amigo Padre Wagner Portugal fala, em seu “Apostolado da Oração”, da semana da Pascoela.

Essa semana é uma semana muito importante na Liturgia. Das 16 antigas festas de “oitavas” — a semana seguinte a uma festa —, a Igreja reteve duas: a do Natal e a da Páscoa.

A Pascoela era chamada semana branca, ebdomada alba. É a continuação da grande festa da Ressurreição do Senhor.

A primeira leitura, nesses dias, é sempre dos Atos dos Apóstolos: na segunda, os testemunhos da ressurreição (At 2, 14-32); na terça, a exortação de S. Pedro ao batismo (At 2, 36-41); a cura do coxo por S. Pedro (At 3, 1-10); Pedro lembra a morte de Cristo para enfatizar a ressurreição (At 3, 11-26); Pedro e João, presos, anunciam que só em Jesus há salvação (At 4, 1-12); no sábado, mandados calar pelo Sinédrio, os dois apóstolos dizem que “não podemos nos calar sobre o que vimos e ouvimos” (At 4, 13-21). No domingo da Pascoela os Atos proclamam a eucaristia: “partiam o pão, tomando alimento com alegria e simplicidade de coração” (At 2, 42-47).

Nesse domingo branco o Evangelho segundo S. João conta a presença de Jesus entre os discípulos.

Ao entrar, Jesus diz e repete: “A paz esteja convosco.” Essa saudação simples, Shalom alechem, em hebraico, o mesmo Salaam Aleikum em árabe, assume um novo significado quando o Senhor sopra sobre eles e complementa: “Recebam o Espírito Santo.” Ele traz, portanto, a Si mesmo, e é a paz.

Por causa deste trecho do Evangelho, em que o apostolo só acredita na ressurreição depois de tocar nas chagas de Jesus, o domingo de Pascoela também é chamado de domingo de São Tomé. É ainda o domingo de Quasimodo, ou o Quasimodogeniti, da antífona “Quasi modo geniti infantes…” (1 Pe 2, 2), cantada nessa data.

Daí o nome dado por Victor Hugo ao personagem de Notre Dame de Paris: “fosse para marcar a data em que o corcunda foi encontrado, fosse para assinalar sua aparência incompleta”.

O Chag HaMatzot, festa dos pães ázimos, é um antecedente da Pascoela. Foi instituído por Moisés (Ex 12, 3-6). E os judeus ainda o festejam durante uma semana, em continuidade com a Pessach, belas festas com seu ritual muito antigo, tão importante para eles quanto significativo para os cristãos.

Assim, quando vou cumprimentar meus amigos, a quem não cumprimentei na Páscoa, digo Feliz Pascoela, sem esquecer que nela foi descoberto ou completou-se o achamento de nosso país.

Assim, com este artigo espero ter completado o meu tema da Páscoa. E a todos desejo que tenham tido uma feliz Pascoela.

Passado do Futuro

O tema do tempo sempre fascina a mente humana. Primeiro que o tempo não existe: é uma criação do homem. O tempo é um pedacinho da eternidade. Mas lembro-me de duas sínteses literárias de que eu gosto muito, quando se trata do tempo. Uma é do T. S. Eliot, o grande poeta inglês, que abre um poema sobre o tempo com estes lapidares versos: “O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. (“And time future contained in time past.”)

Tenho, ao longo da vida, escrito muito sobre o tempo em crônicas, meditações e vivências. E vejo, com alegria, que um artigo meu renova essa discussão e traz o Padre Vieira para o centro dela.

Que bom que o Maranhão não esqueça Vieira. Mas acusar-me de passadista é uma deslavada ofensa, uma vez que ninguém mais do que eu procura estar com os olhos voltados para a frente, tentando desnudar o futuro.

Assim, o período que exerci a presidência foi o último tempo em que o Brasil preocupou-se com os avanços da modernidade: fizemos o laboratório de construção e teste de satélites; nossa comunidade científica dominou o desenvolvimento da fibra ótica; construímos o síncroton para estudar a estrutura da matéria, aquilo que tanto preocupa o homem, até hoje em busca da Partícula de Deus; fizemos um avanço extraordinário em algo com que o mundo até hoje tem preocupações, como o caso do Iran — a descoberta do enriquecimento do urânio na fábrica de Aramar, abrindo as portas para o aproveitamento da energia nuclear para fins pacíficos; e os materiais dos semicondutores. Até hoje a comunidade científica me homenageia por esse feito e tem saudades do passado, ainda sem motivos para ter, como Vieira, saudades do futuro.

No Maranhão, trouxe o primeiro computador que entrou no Nordeste, um Burroughs de pesquisa, para substituir as máquinas; instalamos a primeira tevê didática, hoje educacional, do Brasil; e mandei os Professores Lobato e Anselmo ao Japão para serem capacitados para as novas tecnologias do ensino.

No Senado, modernizei toda a máquina administrativa, informatizando-a, e fiz parte da comissão que criou o Prodasen, o grande banco de dados que temos no País.

Fui o primeiro — e único — Presidente a visitar o acelerador de partículas do Fermilab. Tenho verdadeira fascinação pela física pura e pelas descobertas de partículas.

Mas a acusação que me fizeram de passadista nada mais era do que protesto contra a crítica que fiz ao stalindino, que, num estado agrícola como o Maranhão, desconhece a função social da propriedade e coloca-se contra ela, perseguindo comerciantes, industriais, fazendeiros e produtores rurais, determinando que esses não tenham a proteção do direito de imissão em suas terras, proibindo a Polícia de garanti-los — segundo me dizem, há mais de dez mil mandados que foram proibidos de serem cumpridos.

Tudo isso, no final, implica na destruição de empregos, quando o Estado apresenta uma alta estatística de perdas de postos de trabalho.

Nada tão decadente quanto o stalindinismo, que completa, neste ano, 100 anos, tendo sido responsável por um grande atraso da humanidade e por vinte milhões de mortos, além de ser pregador da volta ao terror da Revolução Francesa, a guilhotina da Praça da Concórdia, em Paris.

Para terminar, numa homenagem ao tempo, cito Platão. Para mim, na melhor definição (em Timeo) sobre ele: “O tempo é a imagem em movimento da eternidade.”

Ai se eu te pego!

O inverno, como aqui chamamos o tempo das chuvas, sempre fez parte da cultura do Amapá como uma época em que muda o ânimo das pessoas, dos bichos e da terra. As primeiras chuvas trazem nos pingos d´água um gosto da alegria. Reclama-se dos transtornos que elas causam, mas são recebidas com satisfação.

Mais do que na capital, elas representam uma cultura do interior ligada à fertilidade, à dimensão da safra, à chegada das primeiras espigas, às festas do milho verde, das canjicas, das pamonhas e dos bolos de milho.

Lembro-me como ficaram indeléveis na memória da minha infância em São Bento as expressões de todos “os campos estão enchendo”, perigo das cobras fugindo das águas e invadindo as casas; os pássaros de arribação que chegavam, como os jaçanãs, as marrecas, os mergulhões, os socós e os peixes: jejus, acarás, bagrinhos.

Lembro-me bem quando aqueles véus opacos de rajadas de chuva começavam a cair no campo aberto e ficando verde, com os brotos que nasciam da canarana, do arroz brabo, do andrequicé. O coro dos sapos, na sua linguagem das contas, os pequenos gritando “dois mais dois”, os maiores respondendo “quatro” e os outros “quatro mais quatro”, “oito” e então a saparia geral a gritar ” oito mais oito “, e todos em zoada geral: “dezoito, dezoito, dezoito……”. Então, entrava o sapo velho com todas as forças de sua garganta de sapo, proclamava: “Tá errado, tá errado…” E nós meninos, brincando de sapo na cantoria que eles entoavam. As muriçocas chegando, os besouros, o ritual da queima de estrume de boi para afastá-los. Tudo isso eu falo não com um sentimento de saudade, mas de nostalgia. Nada mais definitivo em todos nós, do que o tempo de menino e menino da Baixada tem o inverno, o campo, os bichos e os capins como lembranças indeléveis. Quando o inverno era dessas chuvas de pingo grosso que doía na costa quando tomávamos os eternos “banhos de chuva”, dizíamos que era “inverno tradicional”, forte e de todos os dias e aqueles de tempo cinzento, de chuvinha rala, essas que duravam o dia todo, era a voz do meu avô que dizia: “Este é o inverno criador, bom para o gado, pois não alaga tudo de uma vez só”.

O homem mexeu com tudo e fez cidades nas beiras do rio e nas grandes, com asfalto e calçamento, não deu mais condições da água infiltrar-se para formar o lençol freático, e então vêm as enchentes que param tudo, invadem as pobres residências e se vê repetir a cena diária das televisões, das ruas serem rios e dos desastres das barreiras com dramas e tragédias familiares.

Há o velho provérbio nosso de “abril chuvas mil, maio trova e raio”.
Todos os dias quando falo com Macapá é minha primeira pergunta: já chovendo muito? E a resposta “às vezes sim, às vezes não”, com as justificativas de que tudo está mudando.

E o tráfego da cidade cada vez mais caótico. Já sem água é difícil, “alvará com as ruas alagadas e os buracos abertos”, me diz o caboclo Juvenal.

Pergunto por um e outro amigo e me dizem que um deles está no interior do estado, de carro. Respondo: “Com essa chuva toda”. Mas aí me respondem: “Ele não é feito de tapioca!”.

Ah! Inverno da minha infância: “Ai se eu te pego!”.

Uma tarde de tédio

Em 1957, a “Tribuna da Imprensa”, depois da sessão da Câmara dos Deputados, era o lugar em que nos reuníamos para saber as maldades que o jornal soltaria no dia seguinte contra Juscelino. Odylo Costa, filho, o grande renovador da imprensa brasileira, era o secretário. Carlos Castelo Branco, articulista, já incorporara o título de mestre. Carlos Lacerda era dono e ícone, o santo guerreiro para uns, o demônio, a fera do Lavradio, o Corvo, e tudo o mais para aqueles que eram alvo de sua pena de fogo.

Carlos Lacerda chegava à redação e, nos seus dias “inspirados”, quase não cumprimentava ninguém. Com espalhafatosa força batia o teclado da máquina de escrever, que, resistente, sobrevivia ao seu talento.

Era o velho panfletário que sabia descobrir nos fatos conspirações difíceis de desvendar e que ele, na sua genialidade, transformava em denúncias. Ninguém tão sedutor quando, de bom humor, queria agradar, e ninguém mais perigoso, violento, agressivo, intolerante quando possuído da ira santa da agressão. A UDN tinha com ele uma cumplicidade medrosa. Era o ídolo e o verdugo. A história passava pelos homens, tinha contorções e remexia as entranhas do Brasil.

Foi num dia desses que, para nossa perplexidade, Carlos Lacerda anunciou: “Vou escrever, hoje, sobre a Sociedade Protetora dos Animais”. Entreolhamo-nos intrigados. Ele completou: “A situação está tão confusa e eu tão desolado que não tenho outro assunto senão os animais”. E, no dia seguinte, os udenistas atônitos leram a “Tribuna da Imprensa”. No lugar do artigo furioso do Carlos Lacerda encontraram uma dissertação amena sobre a nossa obrigação de defender os bichos. As interpretações foram as mais disparatadas. Uns viam uma sátira e buscavam carapuças; outros, uma mensagem cifrada aos golpistas que pululavam na cena política. Nada além do que uma tarde de tédio do grande jornalista. Um interlúdio para fazer pensar.

Recordo o fato e descubro, no redemoinho de tantos assuntos, como deixamos escapar, em certos instantes, o gosto de falar de coisas tão simbólicas como, agora, a chuva de estrelas, esses restos da Criação que estão fazendo brilhar o céu de nossas noites, legados do cometa Tempel-Tuttle, que, sonolento, cumpre sua órbita de 33 em 33 anos, raspando nossa atmosfera. E pensar que os antigos não sabiam disso e eram mais felizes do que nós, porque viam nas estrelas bons augúrios dos deuses e maravilhas dos mistérios.

Nós, envolvidos na tragédia do desemprego, na miséria das desigualdades sociais, não pensamos na bobagem de Robinson Crusoé, querendo sair daquela ilha do Pacífico, com Sexta-Feira e tudo, esperando navios que não chegavam. Ele não sabia que ali estava o tesouro que Francis Drake enterrou. Como todos os piratas ingleses, Drake tornou-se sir, um dia saqueou Cartagena de Índias e derrubou com um tiro de canhão a torre da igreja, para ser lembrado.

Felizmente há, hoje, boas notícias. Na mesma Inglaterra da Terceira Via, proibiram-se experiências científicas de uso de colírio nos olhos dos ratos e de cremes de beleza no focinho dos porcos.

A França e malagueta

A abertura da ponte binacional sobre o Rio Oiapoque – uma conquista histórica – será um marco para os políticos de nossa contemporaneidade. Pertenço a uma geração que cultua a França como berço de cultura. Líamos os clássicos franceses com a mesma frequência com que líamos os de língua portuguesa.

São Luís do Maranhão, por exemplo, foi fundada por franceses comandados por Daniel de la Touche, em 1612, que pretendiam fundar ali a França Equinocial, orgulha-se de sua origem. “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, foi traduzido em São Luís no mesmo ano de seu lançamento na França.

O romantismo como corrente literária chegou ao Brasil por meio daquele país, das obras de Madame de Staël, de Lamartine, de Alfred de Vigny e outros.

A primeira obra romântica da literatura brasileira, “Suspiros Poéticos e Saudades”, de Gonçalves de Magalhães, antes de ser editada no Brasil foi publicada em Paris, em 1836.

O positivismo de Auguste Comte encontrou no maranhense Teixeira Mendes um de seus principais adeptos em todo o mundo. O Exército brasileiro, aliás, desde sua origem, teve o positivismo como doutrina norteadora.

Temos vínculos históricos profundos com a pátria de Victor Hugo. O Iluminismo, o legado dos enciclopedistas, os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade da Revolução Francesa constituem patrimônio comum.

A importância da França para nós não decorria de sua influência econômica ou política no mundo, mas do brilho e do prestígio de sua cultura.

A língua francesa sobretudo, pois como dizia Fernando Pessoa, para afirmar a importância do idioma, “minha pátria é a língua portuguesa”.

O que se constata hoje é que o francês vem perdendo terreno para a língua inglesa, que ameaça, dentro de duas ou três gerações, ser língua mundial.

Quando presidente da República implementamos o Projeto França-Brasil, a fim de intensificarmos as trocas culturais, o intercâmbio e aumentarmos os laços de solidariedade. Assinei o projeto com o presidente François Mitterrand.

A primeira visita do presidente Jacques Chirac ao Brasil significava a retomada dessa tradição, a França tornando-se exatamente em nosso Amapá como a ponte entre o Mercosul e a Comunidade Europeia, e colocando-se como um interlocutor válido no novo cenário mundial, onde a bipolarização não mais existe.

Não deve haver mais lugar para potência hegemônica; os países devem organizar-se em comunidades regionais.

Foi o presidente Jacques Chirac quem afirmou em seu discurso no Parlamento brasileiro: “A França considera que essa evolução do mundo é a melhor resposta ao desmantelamento da ordem bipolar. Somente ela é capaz de instaurar um novo equilíbrio mundial duradouro que seja justo, pacífico e aceitável por todos”.

E mais adiante: “Dentre esses polos do futuro, quem poderia ignorar a ascensão igualmente da América do Sul? Hoje é a América do Sul que se lança por sua vez nesse vasto movimento de integração regional em resposta às necessidades e às aspirações dos povos desta região”.

Que a França volte a ocupar o seu lugar no Brasil, onde já esteve, com a fundação da Universidade de São Paulo, a vinda da missão militar francesa e a formação cultural de novas gerações.

O diabo foi a nova geração aceitar, com os enlatados, os best sellers e o fast food. E agora, com a ligação rodoviária com o Amapá, de colocar uma garrafinha com a pimenta tucuju na mesa de seus restaurantes.

Ajoelhou tem de rezar

O Tempo da Quaresma começou. São os quarenta dias que antecedem a Páscoa, a Ressureição, que, como diz São Paulo, é a essência do catolicismo, chegando mesmo a afirmar que “sem ressureição não há cristianismo”. Este número de quarenta, cheio de significado no Antigo Testamento, também está ligado a várias passagens da vida de Cristo. Seus pais José e Maria levaram quarenta dias para levá-lo ao templo, quarenta dias, como dizem S. Lucas e S. Mateus, levou Jesus no deserto meditando antes de entrar em sua vida pública, e quarenta dias levou o Cristo para subir ao Céu depois da Ressureição.

A Quaresma também é tempo de conversão dos ateus, dos agnósticos, dos ímpios e dos que seguem toda forma de não acreditar em Deus.

Marx dizia que a religião era o ópio do povo, porque o levava a esquecer os problemas materiais e a se dedicar a uma esperança vã de um ser superior, que lhe havia dado a graça de criar o mundo e criar a nossa vida.

No Maranhão estamos vendo o milagre da conversão dos comunistas, renegando o materialismo para acreditar em Deus, e ajoelhar-se para receber a benção quaresmal. São raros os milagres que acontecem em terras nossas, como esse a que nós estamos assistindo. Quando o Maranhão se formou, Nossa Senhora transformou a areia da praia em pólvora. Agora nós estamos vendo o círculo de pastores evangélicos impondo as mãos sobre as autoridades para que elas cumpram o ditado popular: “Ajoelhou tem de rezar”. E eles, contritos, rezaram, e na quarta-feira, foram receber as cinzas, quando o sacerdote proclama as palavras eternas que conscientiza os homens no ritual cristão: “Memento, homo, quia pulvis es et tu in pulverem reverterem.” — “Lembre, homem, que sois pó e em pó vos haveis de tornar.”

Isto nos deu uma visão de homens contritos, de tal modo que o Prefeito baixou tanto a cabeça que parecia mais um daqueles presos da Lava Jato, escondendo o rosto para não ser reconhecido, com o japonês ao lado.

E a conversão aconteceu, saíram de casa, brincaram o Carnaval, não deram dinheiro para os outros brincarem e se recolheram à meditação, deixando o comunismo, Marx e quejandos chupando o dedo, enquanto eles entravam na área das bem-aventuranças, passando pela ala dos santos e das virgens.

O glorioso poder dos fariseus que fingiam e a quem Jesus Cristo apostrofou: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos. Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia!” (Evangelho segundo São Mateus 23, 27-28 — Palavras de Jesus Cristo!)

Depois do dilúvio, cessada a chuva, foram necessários quarenta dias para que as águas baixassem e os homens — e os outros animais — pudessem pisar em terra firme. É o tempo dos milagres.

Oh! Maranhão de Nossa Senhora da Vitória, bravos agradecemos a conversão dos infiéis e que abandonem o ódio e as penas de pavão.

Ajoelhou, tem de rezar em grego: “Kyrie eleison! Christe eleison!”

Carnaval neles

O Brasil é o país do Carnaval! É a maneira de simplificar um julgamento maldoso sobre o país. Não sei se no conceito de festa ou no de bagunça.

O mundo globalizado passou a ser uma máquina de nivelamento de valores, em geral, de valores materiais. A cultura, que Houaiss chamava de canônica, erudita, dos países não incluídos no rol dos ricos é invadida e tende a desaparecer na concorrência com os enlatados, os best sellers, as misturas de sexo, violência, temperos de exóticas passagens históricas, sucesso, ritmos alucinantes, teatro, dança e todas as manifestações culturais mundializadas. São obras produzidas, e não criadas. O talento individual cede às empresas impessoalizadas que vendem arte e literatura acopladas às engrenagens do oligopólio da propaganda e daqueles que comandam a opinião na imprensa, na televisão, na Internet. Nesse terreno, não é difícil identificar uma relação estreita entre negócio e cultura.

Como fugir? Como sair desse universo sugador de identidades? Não é fácil. As elites são logo absorvidas e cooptadas. A única área que resiste à globalização é a da cultura popular. Esta, como não tem acesso maciço aos instrumentos que fazem usufruir o gosto dos enlatados, defende-se como pode com o escudo dos seus valores.

O Carnaval, como cultura popular, faz parte de uma identidade nacional que nos afirma. Preserva valores, costumes, folclore, dança, história, música e passa a ser fonte de inspiração para a criatividade e o talento nacionais. É uma das mais importantes vertentes da identidade do Brasil e dá sustentação a uma maneira particular de ser brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda falou do brasileiro cordial; eu acrescento o brasileiro alegre, a cultura da alegria, do sorrir, de exaltar e desfrutar a graça da vida.

Quando visitei Cabo Verde, em companhia de Jorge Amado, vi na ilha de São Vicente uma multidão cantando e dançando, em ritmos vivos, com cores alegres, gingados corporais e sensuais, explorando a liberdade do corpo. Ao ver essa demonstração popular, disse: “Jorge, olha de onde veio a alegria do povo brasileiro: da África”. O forte sangue negro mesclou-se ao do índio e ao do branco, mas dominou a todos. Criou, na mestiçagem, não uma nova raça, mas um povo com essa identidade. A força da alegria invadiu e converteu os mais sombrios e tristes europeus que aqui se misturaram. Até os que chegam na circunstância de alguns dias de Carnaval entram no clima e, desengonçados, caricaturam o que é esse jeito brasileiro.

A cultura da alegria é, assim, um grande patrimônio do país que se comunica, também, com a cultura do futebol, da praia, do botequim, do sincretismo religioso. Fala-se muito no custo Brasil como impeditivo da concorrência globalizada.

Galbraith dizia que o que deve valer para o ser humano não é a quantidade de seus bens, mas a qualidade de sua vida.

E, no Carnaval, o povo brasileiro liberta-se de todos os seus problemas e desníveis, mergulhado numa pura alegria de viver. Não há raça nem religião nem status social, todos vivem a utopia da igualdade na folia e no jeito Brasil. Até mesmo nas lágrimas de despedida ao som do zé-pereira na noite de terça-feira.
Em tempo de globalização, Carnaval neles!

O Olhar Ausente

O Brasil ficou chocado quando viu, em tempo real, o assassinato de um pobre vendedor de uma estação de metrô, pisoteado, chutado, espancado por dois jovens formados por esta sociedade de drogas e alcoolismo que está tornando o cotidiano da violência ser aceito como normal.

E o pior de tudo — que causa espanto e perplexidade — é aquilo que a própria mídia custou a constatar: o olhar ausente dos assistentes daquela brutalidade, que passavam, alheios ao que acontecia, e viam e não viam, miravam e não se comoviam, ausente neles o sentimento da solidariedade e compaixão. Mostravam que estamos perdendo a capacidade de nos indignar com a crueldade, e ninguém se comove com o sofrimento de ninguém.

Para completar o horror vem a notícia do brutal assassinato de mais de sessenta detentos na penitenciária de Manaus, numa luta de rotina entre facções antagônicas, comum nos presídios, como na Idade da Pedra, quando o homem era um bicho antropofágico. Bicho que ainda é capaz das degolas que parecem ter sido o instrumento utilizado na maioria das mortes.

Não podemos ficar insensíveis a toda sorte de atrocidade, brutalidade e desumanidade, temos de exprimir nossa revolta e condenação à barbárie.

Nós, em escala menor, vivemos este cenário na Penitenciária de Pedrinhas, que encheu o Maranhão de vergonha. Eu fui testemunha das lágrimas e da comoção da Governadora de então, Roseana, com aqueles episódios que tinham, como se constatou, uma conotação política.

Eu me sinto agredido quando vejo aquela paisagem de andrajos estendidos nas grades dos presídios, como um anúncio da desgraça e do infortúnio daqueles que ali estão.

Mas, a sequência da violência não para. Como numa reação em cadeia, Roraima amanheceu nesta sexta-feira com 33 cadáveres no pátio de sua penitenciária. Para mais chocar aqueles que ainda tem alma, para saber que viver é uma graça de Deus e que a própria humanidade esquece o valor da vida, o que é mais cruel: além dos trinta que foram vítimas de degola, vários tiveram seu coração arrancado.

E o Brasil não tem guerra, não tem terrorismo, não tem confrontação armada de religião, não tem litígio de fronteira, nem guerra de raças, mas pensamos estar em Mossul ou Alepo — e os homicídios no Brasil tem a ordem de grandeza, 50 mil por ano, desses lugares em guerra e sob terrorismo.

Só nos resta exclamar, diante dessa realidade, aquela expressão desesperada, a única a que recorrer em horas como estas:

— Valha-nos Deus!

Violência, lá e cá

Vemos, nessa época da comunicação em tempo real, o mundo mergulhado na violência e no terror. O retrato da Síria e do Iraque, com suas duas faces: o múltiplo enfrentamento do Estado Islâmico, dos grupos rebeldes, dos curdos e do ditador Assad, de um lado; e as vítimas que jazem nos escombros ou se espalham na busca de paz, encontrando a indiferença ou a hostilidade. As crueldades que cruzam a África, com rastros de fome e intolerância religiosa. O terror oficial do presidente Duterte, das Filipinas. O clássico modo de conquistar da Rússia, que Hélène Carrère d’Encausse, secretária perpétua da Academia Francesa, chamou de “malheur russe”, desgraça russa, hoje com o nome de Putin. E o prenúncio de um mundo mais difícil com as primeiras patéticas semanas de Trump e sua visão do mundo dividido!

O Brasil devia estar noutra esfera. Afinal, temos a cultura da alegria, futebol e carnaval, gol e passo do sambista. E, de repente, com a economia dando sinais de reversão, começa a renascer uma esperança de recuperação, que poderá diminuir o desemprego, com a queda já consistente da inflação.

Mas a violência não cala em nosso País. Temos há muitos anos números de vítimas que nos equiparam a conflitos regionais, e que crescem sistematicamente, já passando dos 55 mil mortos por ano. Já me repeti, mas continuo a repetir, que é um estado de coisas inaceitável, que deve mobilizar os esforços de todos. Algumas estatísticas não se explicam, mas explicam muito o descontrole do sistema de segurança, como a de que menos de 3% dos homicídios chega ao estágio da denúncia, ou a de que para cada presidiário condenado há um mandado de prisão por cumprir.

Há também essa loucura que explode no mundo-cão das rebeliões em presídios, cada um com várias vezes sua capacidade, cada um com mais dramático tratamento a seus detentos, que acabam se tornando capazes de crueldade inimaginável. A situação chegou a um ponto em que se tem que aceitar a loucura da separação dos prisioneiros por “facção” — até com uma muralha de containers levantada entre elas, como no Rio Grande do Norte — na absoluta incapacidade de aplicar a separação por tipo de crime que manda a lei. Trabalho remunerado? Como, onde?, se o espaço é insuficiente para que se deitem e precisam revezar-se para dormir?

E a situação das polícias? Os homicídios praticados por nossos policiais são destaque no mundo inteiro. É claro que há muitos que se comportam com heroísmo, mas os que esquecem os seus deveres os relegam para um segundo plano.

Agora o Espírito Santo, que tinha deixado para trás seu exemplo de má polícia e se destacado pela melhora de sua segurança, inventa uma nova maneira de fazer a greve — isto é, motim, rebelião, pois todos sabem que a greve de policiais é ilegal — sujeitando-se ao doce constrangimento de suas mulheres sentadas nas portas dos quartéis. A covardia de usá-las só é superada pela covardia contra o resto da população, deparada com o medo da violência que inunda suas ruas e atinge todo o estado. Violência que espanta em sua gratuidade.

Deus queira que por trás dela não esteja alguma mão política oculta, no eco do terrorismo que varre o mundo e de que o Brasil estava salvo até hoje. Gomes de Castro dizia que tínhamos um anjo mau que surgia das nuvens, invadia o País e fazia as coisas ferverem.

Só nos resta a oração, dizia João Paulo II; e lamentar as lágrimas e consolar os aflitos, que são muitos.