Dom Pedro Conti

Santa obediência!


Certo dia, o Menino Jesus apareceu à Santa Teresinha. A santa, porém, não hesitou um instante em abandoná-lo, quando tocou o sino do Mosteiro que chamava à oração. A regra falava claro! Durante o noviciado, contaram à Santa Bernadete esse edificante exemplo de obediência e lhe perguntaram o que ela achava disso. A humilde vidente de Lourdes respondeu que ela teria agido diferentemente. As colegas ficaram surpresas e indignadas, mas a santa acrescentou: “Sem dúvida alguma, eu também teria ido logo para a oração, mas…teria levado comigo o Menino Jesus. Afinal, não devia ser muito pesado para carre gar”. Santa obediência das Santas!

Para o Ano Litúrgico, já estamos no tempo chamado Comum. Voltamos a ler de forma continuada o evangelho de Marcos. Ao menos para os próximos três domingos. Ainda estamos no segundo capítulo e encontramos logo uma das maiores disputas entre Jesus e os seus adversários. O que está em jogo é a obediência à Lei do Sábado. A questão é tão grave que, imediatamente, os fariseus e os partidários de Herodes começam a tramar como matar Jesus. Vamos dar uma primeira explicação. No tempo de Jesus, pouco tinha sobrado da estrutura judaica. Somente o Templo ainda ficava de pé e algun s dos ritos sagrados que os romanos permitiam. Herodes administrava bem pouco e sempre sob o controle das autoridades do Império. A Lei do Sábado representava, portanto, algo mais que uma norma, a qual ensinavam os mestres da Lei, o próprio Deus criador tinha obedecido descansando naquele dia. O Sábado representava uma brecha de liberdade e até de orgulho nacional contra os pagãos romanos. Isso explica o furor tão grande dos seus ferrenhos seguidores.

Na realidade, quando uma Lei e a sua rigorosa obediência passa por cima das necessidades básicas e da dignidade das pessoas, perde o seu maior sentido e acaba se tornando desumana. Com efeito, o descanso do sábado, lembra Jesus, devia ser em favor do ser humano e não contra ele. Deus nunca podia querer os seus filhos e filhas humilhados pela fome ou pela exclusão social. A vida digna e respeitada das pessoas vale mais do que todas as leis. Por isso, nesta página do evangelho de Marcos, Jesus escolhe uma situação de fome do rei Davi e dos seus companheiros e de desprezo de um homem aleijado de uma das mãos. O questionamento de Jesus &eacu te; também sem saídas. Pode ser justa uma lei que impeça de fazer “o bem”? Se, depois, a obediência tivesse como consequência “o mal”, que é também “o bem” não feito, ou seja a omissão do bem, com certeza seria uma lei perversa. Pior ainda se esta Lei é respaldada pela autoridade divina. Pode Deus ter dado uma lei contra as suas próprias criaturas? Não era só questão de interpretação dos textos sagrados. Estava em jogo a autoridade dos que se consideravam guardiões da vontade de Deus, os fariseus, os observantes, e a autoridade de Herodes, do político de fachada respaldado pelo Império.

Nada espanta mais “as autoridades”, em qualquer momento, incluindo as religiosas, do que o povo livre, capaz de buscar algo mais sério e maior que um preceito a ser observado. Mais, ainda, quando essa lei acaba sendo um jugo opressor e é distorcida ao ponto de passar por cima da fome do povo e da dignidade de cada ser humano. Nesse caso, a liberdade a ser defendida, não é só de uma nação ou da autoridade que, temporariamente, está no comando. Está em perigo o próprio ser humano, machucado, desprezado, escravizado. Para Jesus e nós, seus discípulos, existe uma lei bem maior de todas, a lei do amor, a única que não pode ser imposta e sempre deve ser lembrada e escolhida antes das outras. Quando acontece o contrário, as leis acabam sendo parciais, injustas ou defensoras de privilégios de alguns. Esse será sempre um grande desafio para qualquer legislador. Pensando bem, acredito que nem Santa Teresinha desobedeceu e nem Santa Bernadete teria desobedecido às leis do mosteiro. Bastava levar o Menino Jesus no coração. E isso, com certeza, elas fizeram sempre. E foi bem leve e agradável!