José Sarney

A graça da vida


Um dos mais belos livros da Bíblia é o Livro de Jó. É uma profunda reflexão sobre a graça da vida. Nele há passagens que nos abrem os olhos e a alma: “O homem…. nascido da mulher… sai como a flor e seca; foge também como a sombra e não permanece”. Jó não maldiz o sofrimento e de seus lábios, “enquanto em mim houver alento não sairão iniquidades”. Ele sabe que o maior amor de Deus pelos homens é a graça de viver.

A comovente confissão de Mário Covas sobre a sua doença adquiriu, à época, dignidade transubstancial, porque não foi grito de pieguice nem concessão à fraqueza, mas um reconhecimento dos dias que Deus lhe deu, e não dos que ainda lhe podia dar. A essência de ser cristão é aquela de ter a paz interior, justamente a de agradecer o que lhe foi concedido, e não a de achar que viver é um caminho sem espinhos. Guimarães Rosa resumiu essa visão na famosa assertiva de que “viver é muito perigoso”. O padre Vieira diz que os nossos olhos foram feitos para “ver e para chorar” e argumenta que “os cegos não vêem, mas choram”. Covas mostrou as duas bondades dos olhos, a de ver e a de chorar. Lágrimas que conseguiu que fossem comungadas por milhões de brasileiros.

A glória política é feita de instantes. De momentos de brilho. Vivem das luzes da ribalta, das pequenas vaidades, dos aplausos, até os grandes momentos de excepcionais vitórias. Os políticos estão sempre expostos. Não têm o direito de falar baixo. Tudo que falam se exige que seja alto, que chegue aos ouvidos de todos, que eles não tenham privacidade, que não tenham fraquezas e defeitos. Ninguém os vê com grandeza nem compreensão. Devem ser sempre homens frios, quase de pedra, e muitas vezes de lama, por isso nunca os perdoam e os vêem com olhos de impiedade. É preciso que sofram, que sangrem, para que se compreenda que também são feitos de carne e osso. Joaquim Nabuco dizia que no Brasil era preciso que os políticos morressem para que suas qualidades fossem reconhecidas e tivessem justiça. Falo dos políticos, não dos que falsificam o ideal político.

Mário Covas mostrou que os políticos são feitos de carne e osso. São frágeis como todos os corpos e têm almas. A bravura com que enfrentou e o destino tornou-o objeto de respeito.

Tenho a isenção de quem não está entre seus legionários, mas do ser humano capaz de comover-se. Recordo-me de quando, em 1962, Covas chegava à Câmara dos Deputado,s em Brasília, nenhum de nós sabendo aonde o destino nos levaria. Éramos jovens e Saulo Ramos me dizia do seu talento político, que vinha das lutas de sua base eleitoral, Santos.

Com o mesmo ímpeto daqueles anos, vi-o, depois, desafiando o infortúnio e buscando forças no espírito, pelejando contra o destino, mas não esquecendo que o mais importante é “a graça da vida”.

Comecei a escrever citando o Livro de Jó. Este não sucumbiu à tentação de amaldiçoar o sofrimento, blasfemar contra Deus, odiar seus inimigos. O destino o feriu de todas as maneiras, mas ele resistiu porque era “sincero, reto e temente a Deus”.

Mário Covas nos deu exemplo de uma grande lição. E mais vale ensinar pelo exemplo do que pelas palavras.