Cidades

Novo Amapá: o rio que sepultou sonhos

Jornal norte-americano New York Times do dia 10 de janeiro de 1981 publicou matéria na primeira página sob o título “Tragédia na Amazônia: 282 mortos”


Elden Carlos / Editor de Cidades

 

Nesta sexta-feira, 6, centenas de famílias foram ao cemitério do município de Santana, distante 17 quilômetros de Macapá, render homenagens aos mortos da maior tragédia fluvial do país, o naufrágio do barco Novo Amapá. As dúvidas sobre o que realmente aconteceu naquela noite trágica ainda estão no fundo do rio Cajari, onde dezenas de pessoas permanecem sepultadas.
Trinta e seis anos depois, tocar nesse assunto é o mesmo que enfiar o dedo em uma ferida que jamais sarou. Um dos personagens dessa história é o radialista e jornalista Humberto Moreira. Os textos a seguir são narrativas de momentos vividos por ele durante a cobertura daquela que ficou conhecida como ‘A tragédia do Rio Cajari.


Relatos

Era noite de 6 de Janeiro de 1981, quando o barco ribeirinho Novo Amapá naufragou na foz do rio Cajarí, próximo ao município de Monte Dourado (PA), levando às águas mais de seiscentas pessoas. Trezentas destas perderam a vida e dezenas passaram horas de pânico e desespero, imersas na água e na escuridão.
A embarcação, com suporte para transportar no máximo 150 pessoas e meia tonelada de mercadoria, partiu do Porto de Santana com mais de 600 passageiros e quase uma tonelada de carga comercial. Seu destino era o município interiorano de Monte Dourado, com escala em Laranjal do Jari. Como as viagens anteriores duravam em torno de um dia e meio, seu proprietário havia reformado-lhe, instalando um motor hidráulico a mais, o que facilitaria na velocidade da embarcação.
A lista de despacho, segundo a Capitania dos Portos há época, tinha registrado cerca de 150 pessoas licenciadas pelo despachante Osvaldo Nazaré Colares. Mas, na embarcação havia mais de seiscentas vidas. O despachante (falecido em abril de 2001, vítima de Dengue Hemorrágica) afirmou que só foi informado da tal lista após já ter partido há certas horas e que a lista foi deixada sob sua mesa, quando ele estava ausente.
O comandante responsável pela viagem, Manoel Alvanir da Conceição Pinto, seguiu todas as instruções necessárias do proprietário, sobre a viagem. O proprietário era Alexandre Góes da Silva, que teve seu corpo encontrado no camarote da embarcação. Manoel Alvanir continuou seus serviços como marinheiro. Atualmente trabalha em algumas embarcações no porto do Ver-o-Peso, em Belém. Poucas lembranças lhe vêm à memória quando o assunto é a tragédia do Novo Amapá.
Seu único comentário volta-se para o comando do barco. Segundo versões de sobreviventes na época, a responsabilidade pela cabine de comando estava nas mãos inexperientes de um garoto. “Isso é mentira. Havia sim um garoto ao meu lado na cabine de comando, mas não deixei por nenhum momento ele pegar na direção do barco, como andaram dizendo”, afirmou o ex-comandante que fez da que seria uma simples viagem fluvial, o maior naufrágio da navegação brasileira.

 

“Eram corpos, pedaços de corpos. Cachorros tinham que ser enxotados para não sair com pedaços das vítimas nas bocas”. (Sobrevivente do naufrágio)

 

Na manhã do dia 8 de janeiro as primeiras equipes de resgate chegaram ao local da tragédia do Novo Amapá. Parte do barco estava fora d’água, numa demonstração de que o pânico acabou matando muita gente naquela fatídica noite.

 

O quadro era Dantesco. Dezenas e dezenas de cadáveres boiando nas águas barrentas do Cajarí, no lugar chamado de Ponta dos Aruans. Um guindaste (pau de carga) manuseado pelos soldados, embarcou 192 cadáveres, empilhando-os na balsa uns sobre os outros.

 

“Era inevitável”, relatam sobreviventes da tragédia

Segundo a lista da Capitania dos Portos do extinto Território Federal do Amapá, cerca de 650 pessoas embarcaram no Novo Amapá e menos de 180 puderam sobreviver. “Muita gente diz que foram duzentos e poucas pessoas que sobreviveram. Isto não é verdade”, contradiz dona Creuza Marques dos Reis, sobrevivente hoje com 66 anos. Dona Creuza embarcou com sua filha e a neta. Somente ela e a neta de um ano e meio sobreviveram. Atualmente morando em Santana, tem como sustento um estabelecimento comercial diversificado.
Sobrevivente, Armando da Silva Batista trabalha na Champion Amapá, no cargo de guarda patrimonial. Conta que uma das causas das inúmeras mortes terem ocorrido foi o auxílio dos salva-vidas. “Essas pessoas que pegaram os salva-vidas morreram quase todas porque dormiram e aquilo atrapalhou; não sabiam o que estava acontecendo”, disse.
Funcionário de empresa que vendia utensílios de cozinha para toda a região do Amapá, Armando viajava frequentemente em época de pagamentos, para fazer cobranças, acompanhado do colega Edson. Momentos antes da tragédia ambos haviam se separado. “Como a área das redes estava muito quente, disse pro meu colega que ia para o andar de cima e quem sabe só retornar de manhã”, relatou.
Ao ser perguntado sobre o momento em que o barco tombou, Armando contou com detalhes: “Levei uns 15 minutos pra chegar à cabine. Quando cheguei lá, ele (comandante) mandou servir um café pra mim, pro Roberto (amigo) e duas meninas do Jari. Nos 15 minutos que cheguei lá, o barco deu um tombo para um lado e um tombo para o outro. Eu ainda perguntei pro Alvanir: ‘Alvanir, isso é maresia?’. Ele disse: ‘Rapaz, por incrível que pareça, nessa região não dá maresia’. Quando ele terminou de falar, o barco tombou de uma vez. Foi como uma virada de carro. Inevitável.”
Buscando até mesmo com precisão a hora em que o barco tombou, foi o que aconteceu com o sobrevivente Enoque Magave da Silva, policial militar que, minutos antes do trágico tombo, conseguiu ver as horas em seu relógio de pulso: eram 20h45min. “Eu estava com relógio no braço e vi as horas normalmente. Quando de repente senti o barco virar lentamente. Como estava deitado numa rede de frente para uma senhora, fui um dos primeiros a parar logo dentro d’água na hora do tombo”, contou Magave, que no mesmo ano do desastre casou-se com sua atual esposa e ingressou na Polícia Militar.
A recém-formada magistrada Kátia Isabel Andrade, era amiga pessoal da tripulação, principalmente do comandante Manoel Alvanir e do proprietário Alexandre Góes da Silva. “Tinha feito outras viagens no barco e já conhecia o pessoal”, disse Kátia, que ironizou a tragédia momentos antes de acontecer, na hora da jantar. “Eu terminei de jantar e disse para pessoal na mesa que ia me banhar e minhas colegas disseram: ‘Tu vai morrer’, daí eu falei: ‘Não vou não. Se não morrer agora, não morro mais’. Daí fui pro banheiro, tomei banho e voltei pro camarote (…)”. Segundo Kátia, foi tão rápida a virada do barco que ela só percebeu o que estava se passando quando as luzes do camarote se apagaram e que água circulava ao seu redor.

 

Notícia do desastre só chegou no dia seguinte ao naufrágio

Após partir do Porto de Santana por volta das 14hs do dia 6 de Janeiro de 1981, a embarcação tombou aproximadamente às 21hs. A notícia da tragédia chegou à capital no dia seguinte, através de dois sobreviventes.
A verdadeira dimensão do desastre iniciou quando a imprensa local divulgou a lista de despacho na qual constava que somente 146 pessoas haviam sido liberadas para viajar, enquanto que na embarcação estiveram presentes mais de seiscentas pessoas.
Em menos de 48 horas toda a imprensa nacional voltou-se para o então Território Federal do Amapá, acompanhando todas as informações sobre a tragédia do Cajarí. O jornal norte-americano New York Times do dia 10 de Janeiro publicou matéria na primeira página sob o título “Tragédia na Amazônia: 282 mortos”.

 

De quem foi a culpa pela maior tragédia marítima do país?

Segundo alguns sobreviventes, a inexperiência de um garoto na cabine de comando pode ter sido a causa do desastre. O garoto que muitos se referem pode ser José Roberto da Silva Pinto, que há pouco tempo trabalhava no cemitério onde foram enterradas as vítimas do naufrágio. “Isso é mentira dizerem que foi um garoto a causa principal da tragédia”, disse José Roberto, criticando certas afirmações ditas há época pela imprensa.
Roberto era amigo da tripulação há tempos e, vez por outra, viajava no Novo Amapá a pedido do proprietário Alexandre Góes, que comandava a embarcação e também era dono de um estabelecimento comercial no município de Santana, onde Roberto já trabalhara. “Antes mesmo de começar a viajar no Novo Amapá, eu trabalhava num bar de que ele era dono”, disse Roberto.
Alguns sobreviventes insinuaram que um banco de areia pode ter sido uma das principais causas do trágico tombo na foz do Cajarí. Mas segundo certas informações que se encontram em livros geográficos e hidrográficos da época, o nível do rio Cajarí era bastante alto para levá-lo a inclinar-se lentamente para as águas.
Outra grande causa – e a mais conhecida até hoje – vem a ser a superlotação da embarcação. Mas, pergunta-se: se a superlotação possa ter sido a causa do naufrágio do barco Novo Amapá, por que não tombou momentos após deixar


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