Nota 10

Tia Iracema: um dos símbolos da raiz cultural da história do Amapá

Ela faz parte da história viva da raiz cultural amapaense que tem como sua maior contribuição a luta e as tradições do povo negro.


Aos 75 anos de idade, Iracema Martins Malvão, nascida e criada no estado do Amapá é uma das mais antigas moradoras do bairro Central de Macapá, onde reside até hoje. Conhecida carinhosamente como Tia Iracema, ela faz parte da história viva da raiz cultural amapaense que tem como sua maior contribuição a luta e as tradições do povo negro.

Espírita, ela conta que seu pai, Osvaldo Piracicaba Malvão, foi um dos primeiros médiuns espiritistas amapaense, inclusive, teve grande contribuição e importância para a fundação da Federação Espírita do Amapá, fundada pelo seu amigo da época, o senhor Luiz Gonzaga Pereira de Souza.

“O meu pai foi trazido para o Amapá pelo Coronel Janary Gentil Nunes, em 1944, quando ele foi enviado pelo presidente Getúlio Vargas para governar à época o então Território Federal do Amapá. Precisava de pessoas para trabalhar de pedreiro, carpinteiro e outras profissões para desenvolver o Território, meu pai tinha uma oficina”, explica Tia Iracema.

Na época, Osvaldo Piracicaba, fazia parte de um pequeno grupo de espíritas pioneiros que já divulgavam e praticavam em solo tucuju o Espiritismo, como o libanês Miguel Gantuss e seu genro Silvio Camilo, o casal dona Palmira e o português Isac, Messias do Espírito Santo, Raimundo Duarte Monteiro (Seu Batoré) e seu Amorim.

Mais tarde, após a chegada no movimento espírita de outros confrades, o pequeno grupo juntamente com Luiz Gonzaga fundaram a União Espírita Amapaense em 24/02/1960, que foi encerrada no dia da criação da atual Federação Espírita do Amapá (FEAP) em 16/07/1977.
Tia Iracema, lembra com riqueza de detalhes como era a vida daquela época e como após a morte de seu pai, em sua homenagem, fundou no seu quintal o Centro Espírita com o nome, Osvaldo Piracicaba Malvão.

“Meu pai era uma pessoa humilde, ajudava as pessoas necessitadas, tratava dos doentes, aplicava o passe desde idosos e crianças. Fazia caridade para ajudar quem precisasse, vinham muitas pessoas atrás dele. Me educou nos estudos para exercer a minha mediunidade segundo o evangelho espírita. E um ensinamento do evangelho que ele não cansava de dizer: – ‘Dai de graça o que de graça recebeste. Fazei o exemplo de Cristo.’ E esse ensinamento é a prática da minha vida, essa é a verdadeira caridade que Jesus nos deixou. E eu repasso para as pessoas para que levem para suas vidas”, conta emocionada.

Na época, devido ao difícil acesso à medicina, Tia Iracema conta que, as pessoas só se tratavam com plantas medicinais ou com “puxação”, massagem curativa para colocar osso no lugar e aliviar dores musculares.

Lembra que quando estava em obras o Centro Espírita que funciona no quintal da sua casa, ela caiu de uma escada e teve a costela fraturada que ficou uma por cima da outra e quem tratou dela na época foi a dona Castorina, a saudosa Maria Castorina Ardasse da Silva, famosa “benzedeira” por seu grande conhecimento da medicina popular natural, (falecida em 2015).

Ela explica que daí por diante começou a tratar das pessoas, adultos, crianças e idosos, mulheres fazendo remédio caseiro, benzendo, aplicando passe.

A cura do Comandante Barcelos
“Tratei até do Comandante Aníbal Barcelos, que na época era governador do Amapá. Ele estava com a perna enorme, muito inchada e com erisipela. Como eu já tinha tratado da sogra do assessor dele, o senhor Estoécio, ele lembrou de mim e veio até a minha casa, chegou aqui disse:

– ‘Minha preta, já ajudasse minha sogra a ficar curada, eu sei que pode ajudar o velhinho.’ Ele falava velhinho, mas eu não sabia quem era esse velhinho, aí ele disse:

– ‘Eu vou te falar logo quem é o velhinho é o Comandante Barcelos. Eu falei para ele que tu és filha do senhor Malvão, que teu pai era um grande espírita. Então eu vim te buscar para ir benzer ele que está passando mal, está com 38 graus de febre que não baixa.’

Ela fala com carinho do Comandante Barcelos, que recebia a todos sempre com muita atenção. Diz que ao chegar na residência oficial, Casa do Governador, localizada no centro de Macapá, estava lotada de assessores e do secretariado do governador, na ocasião estavam levando documentos para ele assinar e despachar da residência.

Tia Iracema conta que na ocasião, pediu para o senhor Estoécio, que ele retirasse da sala o aglomerado de pessoas e os oito médicos que também se encontravam lá para que ela pudesse ficar num ambiente tranquilo para benzer o Comandante.

“Comecei a benzer o Comandante, ele abria a boca e eu abria a boca também e logo começou a suar até molhar a camisa. Ele disse: -‘Dona Iracema, a senhora é poderosa.’ Eu disse: não, eu não sou poderosa, quem tem poder é Deus, quem está irradiando para o senhor é Ele, eu sou apenas o instrumento Dele. Aí ele disse: -‘Está passando a minha febre.’ E a febre dele passou, me pediu que fosse benzer ele mais cinco dias e eu fui, tratei da erisipela com plantas medicinais e ele logo ficou curado. Ele falou assim: – ‘Dona Iracema, como posso lhe agradecer?’ Disse para ele, o senhor é governador, ajude outras pessoas, faça o bem”, conta.

 

Gratidão e caridade
Ela também conta que, na época em que tratou da saúde do governador, com o recurso das vendas que fazia de comidas típicas, tacacá, vatapá e maniçoba ela conseguiu comprar um terreno no bairro Jardim II, cujo objetivo era construir o Centro com o nome de seu pai para atender as pessoas e distribuir alimento para famílias carentes. Na época, não tinha nada construído, só havia o lote de terra. Ao saber do trabalho da Tia Iracema, como forma de agradecimento, o Comandante fez questão de ajudar e doou o material para construção do Centro, que mais tarde foi finalizado com o trabalho voluntário.

Atualmente, o Centro Espírita Osvaldo Piracicaba Malvão, funciona no bairro Jardim II, na avenida Alexandre Ferreira da Silva, nº 2745. Os frequentadores participam de palestras, estudos do evangelho e atendimento fraterno. O Centro também faz distribuição de cestas básicas para famílias de baixa renda quando recebe doações, quem tiver interesse em ajudar basta procurar o endereço acima.

“A gente não escolhe quem ajudar, mas também é preciso que a pessoa queira se ajudar, quando tem o merecimento e Deus permite a pessoa fica curada. Já tratei de muitas pessoas que nem conheço, recentemente eu cuidei de um senhor que se curou de um câncer, fiz o remédio de plantas medicinais, benzi, apliquei o passe e ele ficou bom com a graça de Deus. Ele foi para Caiena e lá o médico voltou a fazer os exames e não encontrou mais nada. Com o remédio e a fé dele, Deus permitiu e ele se curou”, contou Tia Iracema.

Detentora de um legado deixado pelo seu pai, Tia Iracema diz que a missão é árdua, mas não esconde na beleza de sua simplicidade o sorriso de gratidão em ajudar quem precisa. Indagada sobre o segredo dessa alegria, ela diz.

“Não tem segredo para se sentir alegre, basta fazer o bem para as pessoas e não desejar mal a ninguém. Quem trabalha para ajudar o próximo não tem tempo para ficar triste. Só de dar um prato de comida para alguém, tratar da saúde de quem precisa e ver o sorriso dessas pessoas. Essa é a maior riqueza da vida, certo?!”, finalizou Tia Iracema.


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