José Sarney

A cada um seu Carnaval


O Carnaval é um ser vivo, tem sua dinâmica, sua transformação e é influenciado pela geografia, pelo clima, pela natureza, pela gente que o faz e desfaz. Não vem da Roma das orgias saturnais nem da Grécia das bacanais e dionisíacas. É do Brasil mesmo.

Há vários e incontáveis Carnavais. Um é da vila mais longe no meio da água da Amazônia, onde se pinta o corpo, faz baile no rio e sexo na mata. Outro é o de Pernambuco, onde as crianças já nascem com as articulações próprias para enrolar as pernas no ritmo do frevo que não se sabe de onde vem ou como começou e que o Capiba aproveitou para compor excitantes tocados.

O Carnaval da Bahia é o da Bahia, não há como descrever. É ainda Moraes Moreira, Ivete Sangalo, Chiclete com Banana, Carlinhos Brown e os Filhos de Gandhi.

O do Maranhão, com os nomes dos blocos picantes, cada um querendo ser mais criativo e escatológico, como o Siri-na-Vara, o Máquina-de-descascar-alho. E o Carnaval da roça, com galinhas mortas e peladas lanceadas em varas em honra a São Belibeu, o Bicho-Terra e a riqueza de nossa imaginação.

No Amapá o Carnaval também é uma festa da imaginação em cada lugar e em cada um. É muito criativo, que o digam o Futebol à Fantasia, no Trem e, claro, a Banda na terça-feira gorda…

O do Rio é um teatro a céu aberto, enredo que não se entende, o Marquês de Sapucaí caindo no samba na Marquês de Sapucaí, e na homenagem a Cervantes esse verso: “Vencer mais um gigante nessa história surreal”, que mistura “meu bom cangaceiro” com honra do negro, Graciliano, Rosa e Machado, e canhões. E também os blocos, que retornaram com toda a força no fim do século passado e hoje juntou aos antigos, como o Cordão da Bola Preta e a Banda de Ipanema, os novos “tradicionais”, como o Suvaco do Cristo, o Monobloco, o Simpatia é Quase Amor.

Morreu um irmão de minha avó num sábado de Carnaval. Um tio meu, farrista e carnavalesco, já tinha mandado fazer a fantasia e pediu à família: “Só me comuniquem quarta-feira, para começar meu luto.”

É assim o Carnaval. Nem os cemitérios escapam da fuzarca. Desde sempre, blocos de bêbados os invadem, para despertar os mortos com as velhas marchinhas do “Eu quero mamar” ou “Chiquita bacana lá da Martinica”.

Hoje o Carnaval é uma coisa. Ano que vem é outra. Sinto ainda falta do Joãozinho Trinta, não dele mesmo, mas das mulatas com seus corpos belos, esculturas de Deus, substituídas por esculturas de bisturi e com mais lantejoulas que gingado.

É difícil entender o Brasil sem o Carnaval. É a cultura da convivência, do amor ao corpo, da explosão de alegria. Isso é viver.

Enquanto todos brincam, eu vou passar o carnaval aqui em minha cama de hospital, onde me recupero de uma das piores coisas que podem acontecer com os velhos: queda. Ao menos espero estar protegido do Aedes aegypti e da dengue, da chicungunha e da febre zika.

É. A cada um o seu pecado.