José Sarney

As chuvas


As notícias cansaram-se nas festas e louvações do fim do ano. Estamos na fase em que os jornalistas chegam às redações, puxam os cabelos e gritam: “Não acontece nada!”. O inusitado fica por conta dos aguaceiros que desabaram sobre Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. O assunto é a chuva.

As águas sempre foram um mistério para os homens. No princípio, só elas existiam. O Gênesis guarda, na sua beleza poética, a dimensão que tiveram no processo da criação: “O espírito de Deus boiava sobre as águas”, com “monstros marinhos e todos os seres viventes, os quais as águas produziram com abundância”. A ciência confirma que a vida começou na água. Eram extraordinários o medo e o fascínio que elas exerceram na história do homem. E mais misteriosas eram as águas quando vindas do céu. Noé escapou da maior delas. Eram manifestações de deuses e demônios. O tempo começou a ser contado pela periodicidade das chuvas, suas ligações com a Lua, os prenúncios que davam ao mundo.

O que as chuvas não inspiraram na mitologia, na literatura, nas artes? Os vedas, no relato dos deuses hindus, falam dos poderes de Indra, deus da chuva, filho de Aditi, irmão de Agni, deus do fogo. Indra faz “a terra tremer, esmaga cidades, fortalezas; então, as águas presas são soltas e descem as torrentes à terra, e os rios transbordam rolando e espumando…”.

Foi esse deus que desabou sobre Minas e obrigou o governador do Estado a mudar a sede de seu governo para Pouso Alegre e fez o presidente esquecer as bolsas, o desemprego e as reformas para caminhar na lama, alípede, e ouvir relatos dramáticos dos estragos provocados pela fúria das águas. Foi a Itajubá. E as chuvas desencadearam uma crise política entre governo estadual e federal, com efeitos vocabulários, desarquivada a palavra “anfótero”, até então esquecida nos dicionários. O mesmo fez Benedito Valadares quando, há 40 anos, resgatou a palavra “boquirroto”, que, renascida, atualizou-se e está jovem.

Heredia, poeta hispano-americano que nasceu em Santiago de Cuba, tem um poema em que exclama: “Que rumor! É a chuva? / Desatada sai a corrente e escurece o mundo / céu, nuvens e colinas, caro bosque / onde estás?”. No Maranhão, Almeida Braga, parnasiano dos bons, diz que as chuvas são “provindas dos ares, dos astros, caídas em globos argentes de um puro brilhar”.

Mas nem só de desgraças e versos vivem as chuvas. No Nordeste, se chove o mundo muda. Muda a natureza, mudam as pessoas. Os bichos e gentes gritam de alegria e ninguém reclama das águas. Pode chover à vontade, fazer estragos e provocar desabrigos. Todos querem se molhar. E o nordestino diz feliz: “Está morrendo sapo afogado”. Os lagos e açudes enchendo, arroz brabo, andrequicé, canarana. Aves de arribação chegando, patos, marrecos, jaçanãs batendo asas para secar as penas. Tudo é festa.

Águas do Nordeste! Jamais antóferas, nem didonianas. Jamais espadongam. E nossos olhos para elas nunca serão de esoforia.