José Sarney

Um escorregão eleitoral


Estive envolvido, por todos os motivos, com as questões do Mercosul. Este começou como fruto de uma determinação histórica, cuja perspectiva não posso perder. Na sua criação, o Brasil teve uma posição generosa, abdicando de seduções hegemônicas com o objetivo maior de mudar a história de divergências e separações do continente sul-americano. A Argentina, tendo à frente do seu governo o grande estadista Raúl Alfonsín, da estirpe de Sarmiento, Sans Peña e San Martin, teve a mesma visão da grande mudança. Acabou-se a tão sofrida questão do Prata que produziu tantos equívocos, até perspectiva de corrida nuclear.

Com o Mercosul, todos lucramos. A Argentina saiu da crise herdada dos governos militares e da Guerra das Malvinas. Quem governa tem que saber que há tempo de semear e de colher. O semeador foi Alfonsín. O mercado argentino, depois do Tratado de Integração, cresceu, estendeu-se aos 160 milhões [na época] de consumidores brasileiros com a tarifa zero. A siderurgia argentina, sucateada, renasceu, possibilitando a volta das grandes indústrias de base, à frente a automobilística, com suas fábricas reabertas. O petróleo argentino, o gás, o trigo encontraram grande expansão, mesmo com prejuízo e reações de setores brasileiros prejudicados. A causa maior justificava. Nosso comércio, relações políticas, culturais e de intercâmbio tiveram um desenvolvimento extraordinário que não pára de crescer.

Menem nunca foi entusiasta do Mercosul. A ele aderiu forçado pelos fatos. Sua doutrina, que ficará célebre na história diplomática do continente, foi a de “relações carnais com os Estados Unidos”. Com o Brasil – e outros países da área -, relações econômicas; com os americanos, relações mais íntimas, como essa história de ser membro da Otan, o que é uma ameaça à segurança e estabilidade do continente. Ele nunca entendeu o grande projeto que está no bojo do Mercosul.

Uma união do porte do Mercosul sempre tem problemas. O perigo era o governo brasileiro fazer o jogo eleitoral de Menem, esticando a corda. Caminhamos muito no projeto de integração com a Argentina. Repito que nossa aliança foi o fato mais importante depois de nossas independências. Aqui também tivemos resistências. Quero lembrar que o presidente Geisel, por quem tenho uma grande admiração, lembra no seu livro de memórias que me disse ser contrário ao Mercosul. Alegava que o Brasil caminhara muito na sua inserção mundial para desperdiçar esforços num projeto regional. A tudo superamos e o Brasil é unânime na aprovação ao projeto de amizade, cooperação e integração com a Argentina.

As declarações do ministro Clóvis Carvalho, que entrara com o pé direito no Ministério do Desenvolvimento, foram competentes e equilibradas, com a visão e a perspectiva dos interesses nacionais e importância do Mercosul.

Nada de retaliações, nada de represálias. Menem passaria, como passou. O povo argentino é eterno e está a favor da integração com o Cone Sul.

No mundo globalizado ninguém pode viver sem responsabilidades compartilhadas. Dificuldades teremos sempre. Os estadistas estão aí para solucioná-las.
A geografia nos uniu e a história nos reservou um destino comum, de crescermos juntos.