Nilson Montoril

Migração hebraica para a Amazônia

A Inquisição Ibérica que tanto hostilizou os judeus contribuiu para que eles migrassem para o Brasil, ainda no período colonial. Para não serem condenados a morte, como hereges, grande leva de judeus fez de conta que aceitava o catolicismo. Em Portugal, eles ficaram conhecidos como cristãos novos, rótulo que também os identificou em nosso país. A carência de mão de obra contribuiu para que eles pudessem participar dos esforços lusitanos no povoamento do solo brasileiro e no desenvolvimento das atividades econômicas. Os judeus marcaram presença no ciclo de pau brasil, da indústria extrativa no século XVI, no ciclo do café e da cana de açúcar, no século XVII, no ciclo da mineração, no século XVIII e no ciclo da borracha no século XIX. Judeus de outras partes do mundo começaram a migrar para o Brasil após a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, em 1808. A migração aumentou depois da independência do Brasil e da extinção do tribunal da Inquisição. Em 1808, o governo português se instalou no Brasil, elevando-o à condição de reino unido de Portugal e Algarves. Uma série de medidas governamentais foi tomada no sentido de favorecer a migração, atraindo capital estrangeiro. Em 1824, quando D. João VI já havia retornado a Lisboa e o Príncipe Regente Pedro tinha proclamado a independência da antiga colônia, foi adotada a primeira Constituição brasileira. Na forma do artigo 5º, a Carta Magna estabelecia que o catolicismo apostólico e romano fosse a religião oficial do Império, embora todas as outras fossem permitidas, restringindo a realização de seu culto doméstico ou particular em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo. Nos termos do artigo 179 dessa mesma Constituição “ninguém mais poderia ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeitasse a do Estado e não ofendesse a moral pública”. Essa liberdade religiosa favoreceu a prática livre do comércio e a vinda de profissionais qualificados de todas as crenças e dos mais variados ramos de atividade. Assim, artistas, negociantes, capitalistas, artesãos e profissionais liberais entraram na Amazônia em busca de fortuna.

Os judeus de origem marroquina foram os que migraram em maior quantidade. Só não puderam migrar os judeus que não atendiam os dispositivos do decreto nº 12, de 12 de maio de 1838, aprovado pela Assembléia Legislativa da Província do Pará, que dizia que os estrangeiros cujas nações de origem não tivessem tratado com o Brasil não poderiam ter casas ou lojas de negócios, nem poderiam mascatear sem licença da Câmara Municipal. A licença em questão, segundo o decreto, deveria ser abonada por fiança idônea de quem a requeresse. Em julho de 1838, o Presidente da Província do Pará recebeu dezenas de pedidos de licença para comerciar, que os judeus requereram entre eles os que estavam assinadas pelos marroquinos Leão Serfat, Simão Benjó, Fortunato Cardoso, Judah Arrobas, Anna Fortunato, Duarte Aflalo, Fortunato Abocaxis, Marcos Dias Cohen, Fortunato Benchetrit & Cia, Salomão Levy & Irmãos, Fortunado Bendelack, Moyséis Benzimram, Fortunato Assenmonth e Isaac Benchetrit & Cia. Também apareceram companhias de navegação ligando Belém a Manaus, com escalas em Santarém e Óbidos. Os navios das empresas autorizadas a operar nos rios da Amazônia retornavam a Europa aportando nos Açores, em Lisboa, Barcelona, Marselha, Genova e Tanger. O maior fluxo de imigrantes de procedência marroquina de deve a passagem dos navios por Tanger. Nessa época foi desencadeada uma propaganda destinada aos judeus marroquinos, cujo teor era: “os homens de bons costumes que desejassem melhorar de vida no presente, e assegurar um futuro, deviam emigrar com suas famílias, parentes e amigos para o Brasil e dentro do Brasil ao Pará, cujos patrícios os acolheriam e ofereceriam trabalho e toda a sorte de facilidades para enriquecer. A vida no Brasil representava a vida do homem livre, o presente fácil e o futuro cômodo.” Os judeus que decidiram atender os reclamos da propaganda eram naturais de Tanger, Tetuan, Fez, Rabat, Casablanca, Marrocos francês, Espanha, Argélia, Gilbratar, Lisboa. Radicaram-se em Belém, Manaus, Macapá, Mazagão, Afuá, Almeirim Alenquer, Aveiros, Baião, Cametá, Gurupá, Itaituba, Mocajuba, Monte Alegre, Óbidos, Santarém, Parintins, Itacoatiara, Maués, Manacapuru, Tefé, Manicoré, Humaitá e outras localidades do interior amazônico. Não foram poucos os judeus que requereram licença para desenvolverem o trabalho de regatão, isto é, um mascate fluvial compreendendo um barco ou canoa, que percorria os rios, parando de lugar em lugar, comprando a grosso e vendendo a miúdo. Entre os anos de 1845 a 1858 houve 75 pedidos de licenciamento de regatões. Em 1861, quando ainda não tinha sido iniciado o ciclo da borracha, 96 regatões percorriam os rios amazônicos e 54 deles pertenciam a estrangeiros.

Os judeus que se devotaram ao comércio se valendo de regatões criaram o processo chamado “aviação”, desencadeado pelas casas aviadoras estabelecidas em Belém, Manaus e outras cidades da região. Essas casas aviadoras agiam como verdadeiros bancos e se transformaram em firmas de importação e exportação, arcando com todos os ônus das atividades de extração, comércio e exportação da borracha e de outros produtos florestais. Entenda-se como “aviação”, o ato de expedir, despachar e concluir praticado por grandes comerciantes através de seus caixeiros viajantes embarcados nos regatões. A transação comercial dificilmente utilizava dinheiro e sim troca de mercadoria ou entrega de produtos que o seringueiro precisava para extrair o látex e produzir a borracha. Concluído o ciclo do financiamento, o regatão voltava ao porto do seringueiro para embarcar as bolas de borracha e apurar o saldo ou o déficit do financiado. (continua no próximo domingo).

Igreja Matriz de São José – Parte II

Cont. . . Observa-se que, nos termos da narrativa do Padre Júlio Maria Lombaerd, na fachada da igreja, agora, existiam três portas, três janelas com vidros e pinhões no frontispício. São detalhes arquitetônicos que passaram a existir após as reformas feitas por iniciativa do Padre Rellier.

A iluminação das ruas e travessas de Macapá era a querosene, havendo um servidor municipal que acendia e apagava as luminárias. Voltemos às narrações do Padre Júlio Maria Lombaerd: “Entrado no Santuário, onde não pude conter uma exclamação – Que igreja bonita! E de fato, é uma das mais belas que encontrei, até agora, nesta terra brasileira. É simples e muito e muito simples mesmo e, por conseguinte, sem pormenores arquitetônicos; mas esta simplicidade lhe comunica algo de majestoso, quase misterioso. Tendo apenas uma nave central, sem as laterais, permite-nos vê-la, no conjunto, com o primeiro relance de olhos e avaliar suas dimensões. A nave, da porta de entrada até a mesa de comunhão, mede 22 metros de comprimento por 11 de largura. A estrutura é regular e sem saliências. As paredes são brancas; o piso é de ladrilhos de cimento, com desenhos variados e três divisões com imitação mosaica, marcando a linha média da nave.

 

O altar-mor está bem acima do piso, com seis grandes degraus. De cada lado do altar estão dois outros altares, do mesmo modelo, porém menores. Um tem, na última banqueta, a imagem do Sagrado Coração de Jesus; o outro a de Santo Antônio, mas, na banqueta principal está a imagem de São José, o padroeiro da igreja. O coro é separado do corpo da igreja por uma magnífica mesa de comunhão de ferro fundido. Nesta parte, o corpo da igreja se estreita de maneira a deixar bastante espaço, a cada lado da mesa de comunhão, para dois altares; um consagrado a São Benedito, e outro, a Nossa Senhora, ou antes, a um grupo de Santas Virgens. Há umas três ou quatro imagens destas Virgens, todas bem estragadas; umas mais do que as outras – carcomidas, quebradas. A uma falta mão; á outra braços. São todas pintadas de cores berrantes, quase ridículas.

Do lado do Evangelho está um lindo púlpito esculpido em cedro. No meio da igreja há dois altares laterais, um em frente ao outro. Um consagrado não sei a qual santo, porque há as imagens de São Miguel, São Vicente de Paulo, São Raimundo Nonato, São José e São Tomé, etc. Uma coleção de antiguidades. O do outro lado é consagrado à Sagrada Família. Ao entrar na igreja, o fiel podia ver dois altares separados por uma linda grade de ferro fundido. Um é o altar – túmulo (à direita), com a imagem do Salvador no sepulcro. É encimado pela imagem de Jesus carregando a cruz. Do outro lado está o batistério”.

A partir do segundo semestre de 1948, outras modificações aconteceriam. Presentes nas terras do Amapá desde 1911, os Padres da Congregação da Sagrada Família a deixaram em junho de 1948, repassando ao Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras a missão evangelizadora que haviam recebido em 1911. Os sacramentinos foram substituídos pelos sacerdotes italianos. Os dois primeiros, Aristides Piróvano e Arcângelo Cerqua, chegaram dia 29/5/1948.

No dia 25 de junho de 1948, chegavam a Macapá, por via fluvial, os padres Luiz Viganó, Mário Limonta, Lino Simonelli, Carlos Bassanini e Vitório Galliani. Mestre em restaurações, o Padre Mário Limonta ficou encarregado de reformar a igreja e a casa paroquial. No fundo do templo, foi modificado o altar central, permanecendo nele a imagem de São José. Nos altares ao lado, as imagens do Sagrado Coração de Jesus e a de Santo Antônio de Lisboa cederam espaço para dois belos painéis pintado pelo Pe. Lino Simonelli. À esquerda, cena da Sagrada Família fugindo para o Egito. À direita, a Sagrada Família foi retratada trabalhando na oficina de carpintaria de São José.

A Imagem do Sagrado Coração passou a ocupar o altar onde ficava a imagem de São Benedito, à esquerda da mesa de Comunhão. À direita, saíram as Santas Virgens, colocando-se na banqueta a Imagem de Nossa Senhora do Rosário. Os altares laterais da nave principal foram eliminados. O púlpito permaneceu recebendo melhoramentos. A mesa de comunhão de ferro fundido foi retirada e substituída por outra de alvenaria. A igreja foi pintada por dentro e por fora. Nas laterais foram abertas três portas de cada lado e fechadas as janelas. Posteriormente, em decorrência das decisões do Concílio Vaticano II, a mesa de comunhão deixou de existir, retirou-se o púlpito, o batistério e os bancos próximos ao altar principal. Os padres passaram a celebrar a missa em português e de frente para os fieis. Com o advento da nova catedral, surgiu a idéia de transformar a velha igreja em Santuário, com a reinstalação dos pormenores de outras épocas. . . )

Igreja Matriz de São José – Parte I

Figuro entre as pessoas que preferem usar a palavra templo, para designar a construção onde ocorrem os ofícios religiosos. A palavra igreja, ao tempo de Jesus Cristo, foi utilizada para identificar o conjunto de fieis ligados à mesma fé e sujeitos aos mesmos chefes espirituais. Os gregos chamavam de “ekklesia” as assembléias.

Os romanos também adotaram o termo, substituindo as letras k por duas letras c: ecclesia. Quando poucos indivíduos se reuniam para tratar de assuntos sigilosos, dizia-se que eles estavam fazendo uma igrejinha. Ainda hoje é assim. Foi o próprio Jesus Cristo quem usou a palavra ao se referir a sua comunidade: “lembra-te Pedro que tu és pedra e sobre esta pedra construirei a minha igreja”. Até mesmo algumas seitas protestantes usam a palavra, caso da “Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”.

Nossa pequena cidade de Macapá tem, na igreja de São José, o mais antigo monumento patrimonial da sua história. Mas, a igreja da qual falaremos não foi a primeira a ser erguida na “Província dos Tucujú”.

O primeiro templo era bem humilde, tendo um altar de madeira, sobre o qual ficava a imagem de São José, pai putativo de Jesus Cristo. Deve ter sido construída ainda no final do ano de 1751, na área onde está erguida a Fortaleza. Pouco tempo depois, ainda no mesmo local, foi erigido um novo tempo, em taipa, e coberto de palha.

A Paróquia de São José de Macapá foi criada em 1752, sendo nomeado como Vigário o Pe. Miguel Ângelo de Moraes, presente no povoado desde novembro de 1751. No dia 4 de fevereiro de 1758, ocasião em que o povoado de Macapá foi elevado à categoria de vila, se deu o lançamento da pedra fundamental de uma nova igreja, no Largo de São Sebastião. A 6 de março de 1751, o templo foi inaugurado. As plantas foram elaboradas pelo Sargento Mor da vila e aprovadas pelo arquiteto italiano Antônio Lande, especialista em cartografia e construções.

O aspecto do templo era bem singular. Nas laterais havia uma porta e uma janela alta. A frente do prédio tinha uma porta central de uma só folha. Ao alto, figuravam duas janelas gradeadas com ferro. Ao lado esquerdo do templo se levanta um campanário com uns 15 metros de altura. Em cada face do campanário há um sino.
O acesso ao campanário era feito por uma porta posterior à fachada, através da Passagem passagens do Espírito Santo, à esquerda e de Santo Antônio, à direita. A escada que leva ao piso onde são luxadas as cordas dos sinos é de madeira. Conforme a planta da Vila de São de São José de Macapá, traçada em 1761, pelo Capitão Engenheiro João Geraldo Gronsfeld, a igreja tem a frente para a Rua São José, a seu lado esquerdo, separando-a da casa paroquial havia a Passagem do Espírito Santo. Entre o templo e o Senado da Câmara existia a Passagem de Santo Antônio.

Os fundos demandavam para o Largo dos Inocentes. A coberta era de telha de barro, com um considerável beiral que protegia as paredes. Há informes de que suas características do estilo arquitetônico inaciano foram sendo modificadas com as reformas introduzidas. A reforma mais expressiva, feita antes da chegada dos padres italianos, é mérito do sacerdote francês François Rellier, no início do século dezenove.

O registro descritivo mais rico em detalhes é obra do Padre Júlio Maria Lombaerd, que desembarcou em Macapá a 27 de fevereiro de 1913, egresso de Belém. Além de descrever aspectos da cidade, Padre Júlio fala da igreja: “Da cidade baixa, fomos para a cidade alta, construída na planície. Primeiramente chegamos a uma grande praça, de mais de dois hectares de superfície. É a Praça da Matriz. E, realmente, na nossa frente, do lado oposto da praça, ergue-se solene, quase majestosa, uma grande igreja de pedra. Destaca-se no meio de tudo que a cerca. De construção regular, coberta de telhas francesas, com uma torre ao lado, como todas as igrejas brasileiras, tem um tríplice pórtico, encimado de três belas janelas com vidro. Uma escultura simples, mas de bom gosto. Termina com o pinhão que serve de base para uma cruz branca, dando ao conjunto um toque de esperança e de futuro. Um pavimento ladrilhado, à maneira européia, forma diante do pórtico, uma bela plataforma que termina de cada lado, com uma coluna de madeira com lâmpadas para iluminação”.  (Cont . . . )

Carnaval, coisa de doido e cabra assanhado

As origens do carnaval são bem antigas e a ruidosa festividade provavelmente ganhou notoriedade em Roma, nas saturnais de cunho religioso. O carnaval rigidamente falando, começa na epifania, no dia dos Santos Reis e se estende até a 4ª feira de cinzas, véspera da quaresma. É comemorado no mundo todo, variando as características, mas sempre festa profana de caráter popular. As festas de carnaval têm inicio no domingo da quinquagésisima, estendendo-se na 2ª e 3ª feiras seguintes, período em que se promovem festas e bailes de fantasia. Em Portugal, o carnaval é o período sem restrição para comer carne, em contraposição à quaresma, tempo de jejum obrigatório. São famosos os carnavais de Nice e Paris, na França; Veneza, Roma e Florença, na Itália; Munique, na Alemanha; Montevidéu, no Uruguai; Buenos Aires, na Argentina. Entretanto, é no Brasil que o carnaval adquire grande expressão, principalmente no Rio de Janeiro, Salvador e Recife. O primeiro baile carnavalesco realizado no Rio de Janeiro, aconteceu nos salões do Hotel da Itália e data de 22 de janeiro de 1840. Os proprietários do famoso hotel, influenciados pelas notícias do sucesso dos grandes bailes de máscara da Europa, procuraram imitá-los. O êxito foi tão grande, que o baile foi repetido no dia 20 de fevereiro. Realizado em local fechado e livre da violência do entrudo desenvolvido nas ruas, o baile ganhou fama e passou a ser levado a efeito anualmente. O entrudo português prevaleceu no Brasil colonial e monárquico, sendo a forma mais generalizada de brincar o carnaval. Era um folguedo violento e consistia em atirar contra as pessoas água, através de bisnagas ou limões de cera. Os maledicentes se encarregaram de incluir provisões de pós ou cal, este provocando queimaduras. Os mais bandalhos misturavam incrementos com água, levando o produto em baldes ou cacimbas para as vias públicas a fim de sujarem os transeuntes. Sujos e em blocos, os baderneiros não tinham respeito por ninguém. Os componentes da brincadeira eram rotulados como “bloco de sujos” ou “arruaceiros” A prática só mudou depois que a polícia foi obrigada a intervir para civilizar o jogo selvagem. Os brincantes passaram a usar água perfumada, vinagre, groselha e vinho, sempre com o propósito de molhar e sujar que passava desprevenido perto da baderna. O uso de bisnagas e limões de cheiro cessou quando ocorreu a introdução da serpentina, em 1892 e do Lança-perfume, em 1911.

Em 1846, o Teatro São Januário passou a concorrer com o Hotel da Itália, embora seus freqüentadores não tivessem os mesmos requintes do promotor pioneiro. Em 1846, o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes, que residia no Rio de Janeiro, saiu pelas ruas do bairro onde morava batendo um bumbo na horizontal. Nas bandas de música da época o bumbo sempre era tocado na vertical, com os couros voltados para os lados. A novidade não passou despercebida, dando origem ao surdo de hoje. Por onde o José Pereira passava os foliões o seguiam formando blocos compostos apenas por homens. A ação desenvolvida pelo Zé Pereira era um velho costume praticado em Portugal. No carnaval do ano de 1847, surgiram outros animadores da folia. Ao contrário do que muitos pensam, a famosa quadra carnavalesca que enaltece o Zé Pereira não foi cantada por ele e sim pelo comediante Francisco Correia Vasquez integrante de uma companhia teatral que levou à cena, em 1896, a paródia de “Lês Pompiers de Nanterre” (Os Bombeiros de Nanterre), na qual apregoava os méritos de grande animador do José Nogueira. Embora o sobrenome do animado lusitano fosse Paredes, o povo entendia que ele pronunciava Pereira, daí ter passado à história como Zé Pereira. A quadra original cantada por Francisco Correia era:

“E viva o zé-pereira
Pois que a ninguém faz mal
Viva a bebedeira
Nos dias de carnaval”

Em 1886, os jornais classificavam como cordões os grupos de foliões mascarados e provocadores. Seus integrantes saiam fantasiados satirizando personalidades e autoridades. Estes cordões lembravam os antigos cortejos de negros que participavam das procissões de Nossa Senhora do Rosário. Os instrumentos usados eram os chocalhos, tambores, reco-reco e cuíca. Um sujeito tocando apito comandava a folia. Em 1870, os bailes carnavalescos realizados em casas de espetáculos se generalizaram. No ano seguinte, até mesmo o Imperial Teatro Pedro II aderiu à moda, seguido depois pelo Teatro Santana, cujos bailes tornaram-se popularíssimos. Em 1879, um rinque de patinação denominado Shating Rink promoveu um baile que se estendeu até o romper do dia. No final do século XVIII existiam vários clubes dançantes promovendo festas carnavalescas. Até mesmo a Société Française de Gymnastique, cujo público era rigorosamente selecionado. Nos bailes de antigamente, quando ainda não existiam as músicas carnavalescas, o ritmo que prevalecia era a polca, seguida da quadrilha, da valsa, do tango, do Charleston e do maxixe. A primeira música realmente carnavalesca é a polca “Ô Abre Alas”, composta por Chiquinha Gonzaga, em 1899, para o Cordão Rosa de Ouro, que ensaiava próximo à casa da compositora. Ainda hoje, nos locais aonde são realizadas festas de salão, ela é bastante executada.

O porco-carneiro de Macapá

O cidadão João Barca de Araújo Coutinho, membro de uma família tradicional de Macapá, exercia a profissão de marceneiro quando ocorreu a criação do Território Federal do Amapá, a 13/9/1943. A exemplo de seus conterrâneos gostou da novidade, mas ficou meio escabreado com as noticias de que tudo mudaria na cidade onde residia. Na época, Macapá era uma pequena e carente cidade do Estado do Pará, onde o tempo passava de modo pachorrento. Muitos moradores possuíam “roçados” nas áreas periféricas da cidade e criavam seus animais soltos pelas ruas, passagens e largos. João Barca possuía um belo boi-cavalo, que em outras regiões do Brasil é denominado boi-de-montaria Era, então, figura de destaque do Marabaixo, tendo composto vários “ladrões” de sucesso. Também é de sua autoria uma canção dolente denominada “A Morte do Pedreira”.

O Pedreira foi um cavalo que pertenceu a Jeribá Álvares da Costa, criador de gado nos campos que margeiam o rio Macacoary e morreu de inanição devido ao descuido do vaqueiro encarregado de sua alimentação e segurança. O falecimento do Pedreiro ocorreu no local onde está erguido o Teatro das Bacabeiras. Após a instalação do governo territorial, a 25/1/1944, os hábitos dos moradores foram mudando gradativamente. O boi-cavalo do João Barca deixou de pastar livremente no centro de Macapá. Capim para alimentá-lo não faltava, razão pela qual o animal era mantido no cercado da residência de seu proprietário, situada à Rua General Gorjão, entre as Ruas São José e Coronel José Serafim Gomes Coelho, a atual Tiradentes. João Barca era vizinho de meu pai, Francisco Torquato de Araújo e seu compadre de “águas bentas”.

No dia da festa de São José, seu João Barca preparava o boi-cavalo com muito capricho, colocava uma bela sela em seu dorso e o levava para o largo da Matriz. Quem quisesse dar uma voltinha ou apenas tirar fotografia montado no boi-cavalo, pagaria Cr$ 1,00 (um cruzeiro). Habilíssimo com suas ferramentas de marceneiro, seu João Barca fabricava móveis, esquadrias, utensílios domésticos e brinquedos. Na oficina dele havia uma serra igualzinha a que aparece na pintura feita pelo Padre Lino Simonelli, ao lado esquerdo do altar mor da igreja de São José. Em 1953, por ocasião da realização da 6ª Feira de Animais e Produtos Econômicos, levada a efeito na Fazendinha, a Divisão de Pesquisa e Produção apresentou como novidade uma raça de porco totalmente desconhecida na região e pouco difundida no Brasil, a chamada porco-ovelha. A raça é originária da Áustria e da Hungria e o animal tem pelos densos e cacheados, parecendo lã. Provém do cruzamento da raça britânica Lincolnshire Curly Coat com a raça Mangalitza, na Áustria. Em 1900, os porcos da Inglaterra foram vendidos para a Áustria e Hungria, países onde surgiu a raça Mangalitza Gilt. Em 2007, os ingleses decidiram reintroduzir o porco-ovelha na Grã-Bretanha, extinta na comunidade desde 1972. O animal comprado por João Barca era um macho, ainda pequeno e tinha poucos pelos brancos. A proporção em ele que foi crescendo, os pelos cacheados foram aparecendo. A novidade foi considerada uma aberração da natureza, decorrente do cruzamento de um porco com uma ovelha, coisa impossível de acontecer, porque são animais de espécies diferentes.

A curiosidade humana transformou o porco-carneiro numa celebridade. Gente à beça aparecia na casa do João Barca querendo ver a extraordinária criatura. O assédio só diminui quando o dono do porco pintou uma tabuleta, pendurando-a na cerca de sua casa: “Porco-carneiro, entrada Cr$ 1,00” . Além do salário de servidor público lotado na Garagem Territorial, João Barca contava com os ganhos advindos do boi-cavalo, do porco-carneiro e de seus biscates como marceneiro. A existência do porco rendeu ao Batista, filho do João Barca, a alcunha de porco-carneiro, haja vista que lhe cabia receber os curiosos, cobrar a taxa de visita e cuidar do animal. Porém, com o passar do tempo, o apelido foi esquecido e o Batista apenas ri quando essa história é lembrada.

Submarinos alemães afundados na costa do Amapá

A Kaiserliche Marine da Alemanha utilizou 1.168 submarinos na II Guerra Mundial.  Cerca de 150 atuaram no litoral brasileiro e afundaram 33 navios mercantes que transportavam matérias primas para os Estados Unidos da América. Os alemães identificavam estas poderosas armas como “Unterseeboat”, que literalmente quer dizer “pequeno barco de baixo-de-água”. De forma simplifica, usavam a letra U e um número para identificá-los. Singrando as águas atlânticas, entre os Estados Unidos e o Golfo do México, os U-boats tinham o propósito de afundar navios de carga que transportavam suprimentos e material bélico dos Estados Unidos e Canadá para a Europa.  Ao entrarem na guerra, os Estados Unidos fizeram uso de radar, sonar, carga de profundidade, decodificação de códices, escolta aérea e formação de comboios, diminuindo a eficácia alemã. Em meados de 1941, começou a ser instalada a “Cintura do Atlântico”, que correspondia ao trecho de 1.700 milhas entre Natal e Dacar. O Brasil autorizou os USA a instalar bases aéreas nas cidades de Amapá, Belém, Natal e Recife e liberou-lhes os portos de Recife e Salvador. Ainda em meados de 1941, chegava a Natal a “Task-Force 3” dos Estados Unidos. Em represália, os alemães atacaram navios brasileiros na costa americana e no Caribe. Foram a pique os navios Cabedelo, Buarque, Olinda, Arabutan, Cairu e Parnaíba. Em águas brasileiras, o submarino italiano “Bergarigo” torpedeou sem sucesso o navio Comandante Lira.Barcos corsários camuflados de navios mercantes supriam as necessidades dos submarinos alemães. Havia U boats que só faziam o abastecimento dos outros e eram chamados de “milchkuh” ou vaca leiteira. A Força do Atlântico Sul, criada pelos americanos estava sediada em Recife. A ação contra os U-boats destruiu nove unidades alemãs, duas delas na costa do Amapá: U-590 e U-662.

 

O U-Boat-590, comandado pelo capitão OBLT Werner Kruer vinha sendo caçado porque afundara o navio Pelotas Lóyde. Navegava na superfície ao largo da costa do Amapá, em alto mar, dia 9/7/1943, quando o avião Catalina PBY-3, do Esquadrão PV-94 sediado em Belém, que patrulhava a região norte o avistou a 200 milhas do litoral amapaense. Ao perceber a aproximação do avião o submarino emergiu e desapareceu por cerca de uma hora. Logo depois retornou á superfície, ocasião em que o catalina mergulhou sobre ele e lançou suas bombas, atingindo-o em cheio. O U-590 foi ao fundo no ponto demarcado por 3º e 22’ de Latitude Sul e 48º, 38’ de Longitude Oeste. Restaramna superfície do oceano 5 homens e vários destroços. A tripulação do Catalina jogou ao mar várias balsas, mas apenas 2 alemães conseguiram alcançá-las. Horas mais tarde eles foram recolhidos por um navio e levados para os Estados Unidos e submetidos a interrogatórios.

 

O U-Boat-662 navegava ao largo da costa do Amapá, no dia 21/7/1943, comandado pelo capitão OBLT Heinz-Eberhard Muller, a espreita do comboio T3-2, que seguia com destino aos Estados Unidos. Ele já havia afundado três navios. O Catalina 94-P-4, que dava cobertura aos navios brasileiros avistaram o submarino a 4 milhas de distância e se posicionou para o ataque. O submarino imediatamente acionou a artilharia antiaérea, conseguindo ferir o radiotelegrafista do avião. O aparelho iniciou um pique raso, já atingido pelo fogo inimigo. Mesmo com problemas no estabilizador vertical e na cantoneira exterior do casco da estação radiotelegráfica, o Catalina conseguiu despejar suas bombas sobre o submarino, atingindo em cheio o casco a bombordo, da torre de comando à frente da proa. Esta se elevou sob espessa cortina de fumaça e o submarino afundou sob mancha de óleo. Pouco tempo depois, quatro tripulantes, entre eles o capitão foram vistos na superfície do oceano. O Catalina lançou balsas, para onde nadaram os sobreviventes que foram resgatados pelo navio USS – S Siren e levados para os Estados Unidos. Bastante danificado o catalina 94-P-4 retornou a Belém com problemas hidráulicos e de comunicação pelo rádio. O submarino foi a pique na posição Latitude 3º 56’ Sul e Longitude 48º 46’ Oeste.

Macapá deixa de ser povoação

Aproveitando o ensejo da viagem que realizou a Capitania de São José do Rio Negro, onde foi tratar das questões fronteiriças de Portugal com a Espanha, o Capitão General Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador do Estado do Grão Pará, colocou em prática o plano de elevar as povoações mais expressivas à condição de vila e as aldeias indígenas ao nível de povoado…

Antes de aportar em Macapá, Mendonça Furtado parou na aldeia dos índios Urucará, onde o Padre Antônio Vieira havia introduzido índios nheengaíbas, perseguidos por escravagistas. No dia 24 de janeiro de 1758, a aldeia Urucará foi elevada à categoria de vila e testemunhou a instalação do Senado da Câmara. A denominação mudou para Portel. A comitiva do governador chegou a Macapá dia 1º de fevereiro e as delineações do espaço que iria abrigar a vila ocorreram imediatamente. Este espaço corresponde as Praças Veiga Cabral (Largo de São Sebastião) e Barão do Rio Branco (Largo de São José/São João).

As denominações dadas aos dois largos traduzem bem a intenção de Mendonça Furtado em homenagear não apenas os santos, mas também seu irmão Sebastião José de Carvalho e Melo e o Rei D. José I. é claro que o delineamento em questão não passou de uma simples escolha, sem compreender a limpeza total da área, que por ser de cerrado facilitou a empreitada. No dia dois de fevereiro, a cerimônia de posse dos membros do Senado da Câmara certamente aconteceu no núcleo pioneiro de Macapá. Nela havia instalações diversas e a população ali residia. Devido ao porte que Mendonça Furtado quis dar a Macapá, o Senado da Câmara foi formado por quatro membros: Francisco Espíndola Bittencourt, que exerceria a presidência e seria o Juiz Ordinário; Carlos de Melo, acumulando as funções de Procurador do Executivo e Tesoureiro; Thomé Francisco Vieira e Manoel José Paes como vogais. Todos eram açorianos, brancos e letrados. Finda a cerimônia de posse, a comitiva do governador, acrescida por militares do reduto fortificado e por populares deu vivas ao Rei de Portugal e desejou-lhe longa vida. A ligação entre o platô da fortificação e a área do atual centro histórico era feita através de uma ponte de madeira construída sobre o igarapé do Igapó e por uma estrada aterrada. A abertura de vias públicas data de 1761, correspondendo a nove ruas, nove travessas e passagens, dois largos maiores e um largo menor.

No dia 4 de fevereiro houve missa campal celebrada pelo bispo Miguel de Bulhões e concelebrada pelo Padre Miguel Ângelo de Morais. Encerrado o ato litúrgico o bispo do Grão-Pará assentou a pedra fundamental da Igreja de São José. A seguir, o Governador Mendonça Furtado convidou o Ouvidor Geral Pascoal Abranches Madeira Fernandes a conduzir o cerimonial que redundaria na declaração de elevação do povoado à categoria de vila, que o fez de maneira formal e marcante, a começar pela ereção do pelourinho, símbolo das franquias municipais. Em Portugal “o pelourinho era um pilar de pedra, de estilo burlesco, mas às vezes formoso. Servia de poste para o condenado receber açoites, como lugar de execução, do qual penduravam o criminoso, ou contra o qual se estrangulava e decapitava.” Na Amazônia bastava um grosseiro tronco de madeira com duas travas cruzadas no topo ou argolas. Aos romanos o denominavam pilori e o tinham como símbolo da autoridade e da justiça.

O termo pilori evoluiu para pelouro, que era cada um dos ramos da administração de uma vila ou de uma cidade afeta aos vereadores da Câmara Municipal, onde se reuniam os vogais representantes do povo e entre eles o Juiz Ordinário e o Procurador. A franquia de que desfrutavam as vilas consistia na liberdade e direito de cobras impostos e ministrar a justiça em primeira instância. O vogal era o representante paritário da classe popular e tinha direito a voto. A direção da segunda vila a ser instalada por Mendonça Furtado foi exercida pelo Senado da Câmara, cujo prédio foi construído ao lado direito da Igreja, no espaço que hoje abriga a Biblioteca Estadual Elcy Rodrigues Lacerda.

Pouco a pouco, a contar de 1761, as casas destinadas aos moradores da vila e os prédios públicos foram sendo construído em taipa-de-mão. A área inicialmente habitada era delimitada pelas ruas Formosa (Cândido Mendes) e da Campina (Tiradentes) e pelas Travessas do Lago (General Gurjão) e da Estrela (Presidente Vargas). Por trás da Igreja de São José, que sempre ficou de frente para a rua São José, passava a rua dos Inocentes, interligando as travessas do Lago e da Estrela. O largo que demorava após a igreja também ficou rotulado pelo povo como Largo dos Inocentes. Com o passar do tempo, o quadrado compreendido entre a Rua São José, a rua da Campina e as Travessas do Lago e da Estrela tornou-se o ponto mais habitado de Macapá. O povo dizia que ali tinha tanta gente que mais parecia um formigueiro. A expansão no sentido do rio Amazonas ocorreu muito tempo depois. Neste dia 4 de fevereiro de 2012, comemoramos os 254 anos da elevação do povoado de Macapá à categoria de vila. Se contarmos o tempo desde o ano de 1751, período em que Macapá passou na condição de povoado, a existência de colonizadores nesta área sobe para aproximadamente 261 anos.

O burro do pitaica

Ocomerciante Manuel Eudóxio Pereira, conhecido na cidade de Macapá pela alcunha de Pitaica, foi um dos mais ilustres filhos de Macapá. Amigo de todos procurava ajudar os mais necessitados, notadamente os que apreciavam a “marvada pinga”, Católico fervoroso, podia ser encontrado com facilidade na Igreja de São José durante os cultos católicos.

Era forte, decidido, daí o apelido de Pitaica, nome de uma árvore encontrada no campo, na terra-firme e na várzea. Possuía um burro deverasmente enfezado, que puxava uma carroça destinada aos serviços da “Casa Popular”(Armazém do Povo), de sua propriedade.

Mesmo atrelado à carroça, o burro dava trabalho. Em razão de ser endemoniado, o burro passava a maior parte do tempo preso a uma corda, num terreno vago que existiu na esquina da Travessa Floriano Peixoto com a Rua São José, local onde funcionou o Banco da Lavoura de Minas Gerais e hoje abriga uma loja.

O cenário das peripécias do burro do Pitaica é a Macapá do final da década de 1930 e início da década de 1950. Naquele tempo, era coisa comum os quadrúpedes viverem soltos nas ruas, principalmente depois das 18 horas. Na periferia da pequena cidade muitos moradores mantinham atividades agrícolas e pecuárias. Cavalos, éguas, burro e mulas trabalhavam durante o dia, puxando carroças e transportando cargas e até gente. Valiam-se da noite para pastar, beber água e praticar “o aquele”.

O burro do Pitaica adorava pastar no campo de futebol que existia na Praça Capitão Augusto Assis de Vasconcelos, onde reinava absoluto entre as éguas e mulas mais velhas que já não interessavam aos mais novos. O diabo é que o burro do Pitaica era demasiadamente avexado, partidário do “vamos que vamos”. Ele só vivia de orelha em pé e voltadas para trás, sinal evidente de que estava a fim de transar. Nem sequer cortejava as pretendidas.

Como o burro era muito violento, as fêmeas o rejeitavam com coices e mordidas, coisa que ele retribuía com maestria. Parece que o burro era fã da máxima “ou dá, ou desce”. O pior é que não eram só as orelhas que o burro levantava.

A genitália do bicho era de tal forma desconforme, que dava a impressão dele ter nascido com cinco pernas. Com relativa frequência, os donos dos animais maltratados iam ter com o Pitaica pedindo que ele mandasse o burro para a região rio Pedreira, caso contrário a vida do bicho iria correr grande risco. Reclamar na Polícia era perda de tempo, haja vista que o senhor Manuel Eudóxio Pereira tinha muita influência na cidade, sendo vizinho da Delegacia Central.

A solução do Pitaica consistia em prender o burro. Em contrapartida, os donos das vítimas do burro deveriam encontrar outro local para que elas pastassem em paz. Quando o burro encontrava uma fêmea assanhada como ele, o “love you” era da moléstia. Houve um caso muito interessante protagonizado pelo burro ao montar, na marra, em uma éguinha prestes a debutar no exercício da luxúria.

O dono da éguinha exigiu indenização, alegando que o burro havia emprenhado sua cria. O queixoso alegou que a maneira violenta como o estupro foi praticado causou o remonte de cinco costelas da infeliz criatura. Pitaica lhe passou uma descompostura, dizendo que o burro é um animal estéril e não tem como gerar filhos. Na prática, a éguinha gostou tanto do desempenho do burro, que ia direto ao local de seu cativeiro todas as vezes que fugia da casa do dono.

Outro fato diz respeito a uma exigência que algumas beatas fizeram ao Pitaica através do Padre Felipe Blanck, vigário da Matriz de São José. Elas costumavam assistir a missa das 6 horas da manhã, diariamente, e não suportavam ver o burro todo excitado, olhando as fêmeas que pastavam no campo de futebol. Consta que elas colocavam as mãos sobre os olhos, mas o povo comentava que os dedos sempre ficavam afastados.

A injúria foi de tal monta que uma das beatas sugeriu que o Pitaica mandasse fazer um calção de mescla reforçado para esconder as vergonhas do animal. O prianismo do burro ficou tão famoso, que passou a ser referência sempre que alguém cheio de frescura queria dar uma de gostosão: “o que falta pra ti é o burro do Pitaica”.

Cuidado com o navio dos cabeludos

Durante toda a minha infância, passada em Macapá, ouvi os macapaenses de mais idade dizerem aos meninos que temiam ir ao barbeiro: “cuidado com o navio dos cabeludos”. Os que migraram para cá após a implantação do Território Federal do Amapá, que não eram interioranos do marajó e regiões adjacentes nos diziam: “o barbeiro tem família”. Eu e os outros garotos escutávamos estas coisas e indagávamos o porquê deveríamos ter cuidado com o tal navio. Um dia perguntei ao meu saudoso pai, Francisco Torquato de Araújo, qual a função da embarcação que a molecada temia e que nunca aparecia. Ele me contou que não houve propriamente um navio com o propósito de pegar os meninos que não gostavam de cortar o cabelo e sim a execução de campanhas de atendimento médico e social ás pessoas carentes que residiam na Ilha do Marajó, Macapá, Mazagão e baixo-amazonas.

 

A campanha fazia parte do governo itinerante instituído pelo Interventor Federal no Pará, Magalhães Barata, que visitava frequentemente as vilas e cidades interioranos levando médicos, enfermeiras, odontólogos, barbeiros, servidores públicos dos serviços de expedição de carteiras de identidade, carteira de trabalho, certidões de nascimento, casamento, óbito e muitos medicamentos. Este tipo de campanha de saúde pública foi organizado nos moldes das campanhas militares, haja vista que o povo tinha o costume de não prestigiá-las. Assim, todos eram obrigados, pela força, a se submeterem as práticas sanitaristas. Os portadores de doenças contagiosas eram afastados dos sadios e ficavam praticamente encarcerados, caso contrário fugiam. Esta maneira de agir da população interiorana não acontecia por acaso. Até 1923, a política de saúde pública não fazia parte da agenda do governo.

 

No ano em referência surgiu o sistema previdenciário e foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensões-CAPs. Porém, apenas os beneficiários das CAPs recebiam atendimento médico. Não havia política Nacional de Saúde. Até 1930, a assistência médica individual das classes dominantes era feita pelos profissionais legais da medicina, os chamados médicos de família. O restante da população era atendida por entidades filantrópicas através de hospitais mantidos pela Igreja Católica e recorria à medicina caseira. Nas duas primeiras décadas do Século XX, as ações de saúde pública foram vinculadas ao Ministério da Justiça, cabendo aos estados controlar as endemias, epidemias, fiscalização de alimentos, portos e fronteiras. Em 1930, a Saúde Pública foi anexada ao Ministério da Educação tornando-se encargo do Departamento Nacional de Saúde Pública, com foco principal nas atividades sanitárias. Criados neste ano, os sanatórios para tratamento da tuberculose e hanseníase. Em decorrência de um acordo firmado com os Estados Unidos da América, em 1942, o governo do Brasil criou o Serviço Especial de Saúde Pública-SESP, dando apoio aos trabalhadores envolvidos na produção da borracha que não eram assistidos pelos serviços tradicionais.

A campanha realizada pelo governo de Magalhães Barata foi rotulada em anos recentes como Operação Cívico-Social, ou simplesmente ACISO. Deu excelentes resultados, mas despertou a ira dos figurões da política adversária. Eles diziam que o Interventor Federal havia abandonado Belém. O jornal Folha do Norte desenvolveu intensa campanha antibaratista e acabou contagiando grande parte da população belenense. Enquanto isso acontecia, os interioranos recebiam atendimentos diversos. Até pequenas cirurgias foram feitas em pessoas que poderiam ter morrido por falta de assistência médica. Curativos, aplicação de vacinas e antibióticos, extração de dentes, cortes de cabelo, combate a piolhos, a bichos do pé e outros serviços foram prestados. A ordem era pegar na marra os resistentes e submetê-los a ação médico-social. Os moleques eram os campeões do medo. Tiveram que ser agarrados por policiais para que os barbeiros, dentistas e enfermeiros fizessem seus trabalhos. No meio dos fartos cabelos que eles apresentavam viviam centenas de piolhos. Por isso, o corte tinha que ser feito com máquina zero, deixando apenas uma singela pastinha. O estrago que os piolhos faziam nos homens e mulheres deixava os médicos abismados. Feridas em profusão havia na cabeça e na nuca da maioria das pessoas. Curioso é que as mulheres passavam óleo de andiroba e de pracaxi nos cabelos para combater os piolhos. Outras faziam uso do vinagre. Após os cortes de cabelo das mulheres, os barbeiros jogavam “neocid” na cabeça das mais atacadas pelos piolhos e a enrolavam com pano branco. Sobre as feridas os enfermeiros colocavam sulfa ou pomada São Lucas. Não foram poucos os registros de óbito de interioranos em decorrência da “febre de trincheira”. Esta denominação surgiu durante a I e a II Guerras Mundiais devido à morte de soldados atacados por piolhos dentro das trincheiras.

Improvização tenebrosa

A improvisação fez parte da vida de muitos trabalhadores, que vieram trabalhar em Macapá a partir de janeiro de 1944, marco o inicial da implantação e implementação do Território Federal do Amapá. Pequena e sem imóveis disponíveis para aluguel, a capital da nova unidade federada simplesmente inchou em termo populacional. As velhas casas do centro eram de taipa de mão, unidas uma as outras, compridas, mas possuíam poucos cômodos. Mesmo assim, diversas famílias aceitaram hóspedes e também viraram pensão fornecendo marmitas aos que não tinham onde preparar a própria comida. Alguns moradores aproveitaram espaços excedentes em seus quintais e construíram quartos, alocando-os a terceiros. Progressivamente, os que pagavam aluguel saíram desse sistema. Arranjaram namoradas, noivaram e casaram com relativa brevidade.

A condição de “amigado” e “amancebado” atingia a uma considerável parcela dos operários. Quando o relacionamento dava certo eles evoluíam para o matrimônio. Quando um solteirão convicto sumia do convívio com seus amigos de boemia, estes diziam que o desaparecido havia arranjado um “cobertor de orelhas”. Se o relacionamento capengasse e ficasse marcado por aconchegos e desprezos, a mulher não passava de um “quebra galho”. Para a turma da birita, que não admitia perder sua liberdade de vagabundo, valia passar aperreios em relação à alimentação, fosse de dia ou á noite. Conheci alguns solteirões pertinazes, que residiram em quartos alugados na área onde hoje fica a Praça Isaac Zagury. Eles enfrentavam o batente com denodo, mas passavam rasteiro nas noites de domingo, porque as mais simples biroscas fechavam suas portas e nem ovo frito vendiam. Essa turma não tinha fogão. Alguns alimentos de rápido preparo eram feitos em fogo de lenha colocada entre dois tijolos e instalado fora do quarto.

Nestas ocasiões prevalecia o consumo de carne enlatada e sardinhas. Se estivesse chovendo, a gororoba descia sebosa com a ajuda de água ou cachaça. Certa vez, uns quatro ferrenhos solteirões passaram a manhã e as primeiras horas da tarde de um domingo no “Bananeira”, um local relativamente aprazível onde a plantação de bananas era marcante. Ali, saía peixe cozido, frito, grelhado, camarão no bafo, galinha cabidela, feijoada e outros quitutes que porre não rejeita depois do terceiro trago. Por volta das 15h30min, acrescido por outros frequentadores do dançará, o grupo rumou para o então Estádio Municipal de Macapá. Macapá estava sob os efeitos de fortes chuvas e a “aviação canela” era o meio de transporte maciçamente usado.

Os personagens que me contaram o fato lembravam que o jogo tinha sido entre o Trem Esporte Clube Beneficente e o Amapá Clube, mas nenhum dos desportistas lembrava o placar da partida. Também não tiveram a curiosidade de perguntar a alguém. Saindo do estádio grudaram no Bar do Pina e no “Canta Galo” dois renomados estabelecimentos freqüentados pelo amantes da “marvada pinga”. Em torno das 21 horas, com o sono e a fome martirizando o grupo, o retorno para o “doce lar” tornara-se imperioso, notadamente porque havia chovido bastante. A jornada foi penosa e despertou nos caminhantes uma fome danada. No interior do quarto sentiram que seria difícil dormir com fome. Um deles decidiu ir à casa de um comerciante, dono de uma geladeira a querosene, buscar a carne do grupo que ali ficava conservada.

O encarregado da façanha levou uma esculhambação sem precedentes, mas pegou a carne. Farinha tinha. De tempero, só o sal. E o fogo, como seria aceso? O fogão improvisado ficava no quintal e a lenha estava molhada. Alguém lembrou ter visto um saco de serapilheira cheio de papel na frente do Fórum e foi buscá-lo. Despejaram o papel no chão e jogaram a lenha molhada sobre ele. O calor faria os restos de caixas de madeira pegar fogo. Quando a lenha ardeu os espetos de carne foram estendidos. O mau cheiro era muito forte, gerando a suspeita de que a carne estava estragada. O mais faminto gritou: “vai assim mesmo, depois a gente toma magnésia”. Na 2ª feira, bem cedo, os farristas viram que o papel recolhido no Fórum era de sanitário, impregnado de fezes. Nenhum deles “baldeou” o que havia comido. Apenas afirmaram, que tempero de comida é a fome.