Pe. Claudio Pighin

Meu Deus, liberta-me dos inimigos!

Às vezes, nossa vida parece ficar mergulhada em uma profunda noite. Não se enxerga mais nada. Uma vida de trevas. Por exemplo, é o caso da escola ‘Papa Francisco’, em Belém. Ela é destinada para jovens pobres e, por isso, é totalmente gratuita. Nós acreditamos que essa escola é uma resposta à violência que aumenta cada vez mais na nossa sociedade. Digo sempre que a escola é uma obra de Deus. Mas, infelizmente, as nossas instituições públicas, além de não ajudarem, tornam-se obstáculos para a sua viabilização. Cobram impostos ou taxas como se nós tivéssemos especulações lucrativas e se esquecem de que a escola se sustenta por meio de doações. Temos sorte que existem pessoas que ainda acreditam na caridade. Mas, se fosse pelos órgãos públicos, a escola já teria acabado há muito tempo. Por isso, tem vezes que me sinto, realmente, como se estivesse numa noite profunda, sem saber mais o que fazer. Nesse sentido, me mergulho na Palavra de Deus para tentar entrever um raio de luz. Rezando o salmo 58, das Sagradas Escrituras, eu pude me identificar e ter um ‘sopro de vida’:

“Livrai-me, ó meu Deus, dos meus inimigos, defendei-me dos meus adversários. Livrai-me dos que praticam o mal, salvai-me dos homens sanguinários. Vede: armam ciladas para me tirar a vida, homens poderosos conspiram contra mim. Senhor, não há em mim crime nem pecado. Sem que eu tenha culpa, eles acorrem e atacam. Despertai-vos, vinde para mim e vede, porque vós, Senhor dos exércitos, sois o Deus de Israel. Erguei-vos para castigar esses pagãos, não tenhais misericórdia desses pérfidos. Eles voltam todas as noites, latindo como cães, e percorrem a cidade toda. Eis que se jactam à boca cheia, tendo nos lábios só injúrias, e dizem: Pois quem é que nos ouve? Mas vós, Senhor, vos rides deles, zombais de todos os pagãos. Ó vós que sois a minha força, é para vós que eu me volto. Porque vós, ó Deus, sois a minha defesa. Ó meu Deus, vós sois todo bondade para mim. Venha Deus em meu auxílio, faça-me deleitar pela perda de meus inimigos. Destruí-os, ó meu Deus, para que não percam o meu povo; conturbai-os, abatei-os com vosso poder, ó Deus, nosso escudo. Cada palavra de seus lábios é um pecado. Que eles, surpreendidos em sua arrogância, sejam as vítimas de suas próprias calúnias e maldições. Destruí-os em vossa cólera, destruí-os para que não subsistam, para que se saiba que Deus reina em Jacó e até os confins da terra. Todas as noites eles voltam, latindo como cães, rondando pela cidade toda. Vagueiam em busca de alimento; não se fartando, eles se põem a uivar. Eu, porém, cantarei vosso poder, e desde o amanhecer celebrarei vossa bondade. Porque vós sois o meu amparo, um refúgio no dia da tribulação. Ó vós, que sois a minha força, a vós, meu Deus, cantarei salmos porque sois minha defesa. Ó meu Deus, vós sois todo bondade para mim.”

A atmosfera desse salmo é obscura, noturna. Aqui o autor desse hino compara os seus adversários a uns cães brabos que no silêncio da noite latem e correm pelas ruas desertas em busca de alimento. Esses são os inimigos, os malfeitores, pessoas sanguinárias, poderosos, soberbos, perversos e blasfemadores. A cidade está à mercê destas pessoas perigosas. A vida de hoje parece que não mudou. O fiel identifica a ‘noite’ como o destino de Jerusalém cujos chefes são arrogantes e impuros como ‘cães’, filhos das trevas e da injustiça.

Assim, as pessoas corretas são obrigadas a fugir e se esconder para não serem destruídas. Porém, junto aos ‘cães’ aparece outro protagonista que toma conta da cena: Deus. O autor aqui apresenta Deus que age em relação a essas pessoas perigosas e ameaçadoras, eliminando-as de maneira gradativas e progressivas dando um exemplo de purificação que fica na história. Assim sendo, o povo não esquece e reconhece a presença de quem é o verdadeiro dono da história da humanidade. E perante essa justiça de Deus os justos verão a luz do dia e não serão oprimidos pelas trevas, a noite da humanidade.

Efetivamente, nunca os justos são abandonados, embora parecessem que estavam sós, porque os cães da vida os perseguiam. Na hora que menos pensa entra em ação o verdadeiro defensor que tudo sabe: Deus. Ele é o escudo dos ‘justos’. E o salmo ressalta assim que o sol está para surgir e a noite termina com as suas ciladas e os perseguidores são caçados de vez. Esta verdade leva o salmista a cantar e louvar a fidelidade de Deus com os seus justos filhos. Com esta certeza de fidelidade e de paz termina a noite obscura da vida. O sol venceu a noite. A perseguição e a maldade do poderoso são derrotadas. O fiel pode ficar tranquilo que o mal não pode vencer Deus.

O mal é derrotado pelo bem

Onde se enraíza o mal na nossa sociedade? Podem perceber como cada cidadão, para ser vencedor na vida, deve disputar com outros e, naturalmente, nem todo mundo pode ser vencedor. Consequência disso: quem não consegue, fica para trás. Mas também têm outros que nem conseguiram entrar na disputa, e esses aí estão aguardando outras oportunidades, se ainda tiverem tempo. Assim sendo, essa vida é parecida a uma corrida que vai afunilando a participação das pessoas em uma vida de dignidade. Essa corrida gera poder e exclusão. Certamente, não favorece fraternidade, mas, sim, privilegiados e desfavorecidos. Gera poderosos e humildes. E essa relação se revela bem distante daquilo que nos prega a Palavra de Deus. Aliás, é tão conflitante que pode se chegar até a conflitos de perseguição e morte. A violência prevalece sobre a paz. A leitura do salmo 57, das Sagradas Escrituras, mostra como enfrentar esses antagonismos de opressão e injustiça.

“Será que realmente fazeis justiça, ó poderosos do mundo? Será que julgais pelo direito, ó filhos dos homens? Não, pois em vossos corações cometeis iniquidades, e vossas mãos distribuem injustiças sobre a terra. Desde o seio materno se extraviaram os ímpios, desde o seu nascimento se desgarraram os mentirosos. Semelhante ao das serpentes é o seu veneno, ao veneno da víbora surda que fecha os ouvidos para não ouvir a voz dos fascinadores, do mágico que enfeitiça habilmente. Ó Deus, quebrai-lhes os dentes na própria boca; parti as presas dos leões, ó Senhor. Que eles se dissipem como as águas que correm, e fiquem suas flechas despontadas. Passem como o caracol que deslizando se consome, sejam como o feto abortivo que não verá o sol. Antes que os espinhos cheguem a aquecer vossas panelas, que o turbilhão os arrebate enquanto estão ainda verdes. O justo terá a alegria de ver o castigo dos ímpios, e lavará os pés no sangue deles. E os homens dirão: Sim, há recompensa para o justo; sim, há um Deus para julgar a terra.”

Este salmo precisa ser bem compreendido. Não podemos nos deixar levar por uma leitura superficial. Efetivamente, essa oração tem palavras muito fortes e violentas, mas precisamos compreender a cultura semítica daquele tempo. Essa cultura tinha a característica de personificar o mal em um inimigo bem concreto e também de exacerbar os sentimentos e as expressões verbais. São essas expressões violentas que querem imitar a fala das pessoas do cotidiano. E esse compositor se deixa conduzir pelas manifestações de símbolos e emoções em rezar aquilo que está sentindo e passando. Esse jeito de comunicar violento, encontramos também nos salmos 108 e 136. Eles revelam uma repulsa profética contra o mal que toma conta da história da humanidade.
Uma ansiedade dos profetas para que seja feita a justiça e enfrente a opressão. Naturalmente, tudo isso evidenciando e cadenciando quanto a linguagem humana é exasperadora. Podemos, nesse sentido, entender como oração dos pobres, dos oprimidos e dos abandonados que se dirigem a Deus para que os socorra. E o salmo foca uma questão importante que o ser humano não pode se vingar, mas isto pertence somente a Deus. Dito isto, vejamos os sentidos dos símbolos. A imagem da ‘serpente’ mostra como não se deixa induzir pelo “mágico que enfeitiça habilmente”. Assim, a venenosidade viperina dos ímpios, dos maus, resiste a cada pedido de conversão. Perante este perigo dos malvados, os justos confiam o escândalo da injustiça à ação esperada e implacável de Deus, Senhor da história, que fará a verdadeira justiça.

A respeito das ‘presas dos leões’, significa que os ‘maus’ moem tudo com os próprios dentes ferozes. E Deus irá quebrar-lhes os seus dentes, tirando-lhes as vítimas das suas bocas. Não só, intervém através uma ação de total purificação do mal que deve ser ‘dissipado como as águas que correm’. O autor dessa oração imagina ainda que os injustos, os poderosos, opressores, serão pisados e parecidos ao ‘caracol que deslizando se consome, e o feto abortivo’, isto é, impotentes e nojentos com um destino macabro. Insistindo, o salmista, com uma poderosa declaração judiciária, visto que acabaram com muita gente, teria sido melhor que não tivessem nunca nascido.

Por fim, termina o autor com o resgate do oprimido, através de uma cena bem cruel, onde a justiça feita derrotando o opressor: “O justo terá a alegria de ver o castigo dos ímpios, e lavará os pés no sangue deles.” É Deus que liberta, porque Ele está acima de tudo e de todos e, portanto, pode cumprir a justiça. Assim sendo, o justo pode esperar confiante que um dia vai ser libertado pelo seu Senhor. Para compreender melhor isso, basta ler essas palavras de Paulo que escreveu aos Romanos: “Não pagueis a ninguém o mal com o mal, mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: A mim a vingança; a mim exercer a justiça, diz o Senhor. Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber. Não te deixes vencer pelo mal, mas triunfa do mal com o bem.”(12,17a.19b-20a.21).

Tende piedade de mim, ó meu Deus!

Parece que o mal toma conta da nossa vida. Há dias insuportáveis pela tamanha dor que os perseguidores infligem aos seus perseguidos. Certa vez, vi uma pobre senhora tentando ser atendida em um órgão público, mas infelizmente não conseguia obter o que pretendia. Era uma senhora curvada, de uma idade bem avançada e com uma roupa modesta, bem pobre. Estava ao seu lado, segurando-lhe a mão, um garoto. Depois soube que, sem saúde, queria ver se tinha chance de poder ter uma ajuda beneficio para a sua vida. Depois de tanto insistir e nada conseguiu, de maneira bem desanimada, foi-se embora dizendo: “Por que esse tal de ‘pode e não pode’? Mas eu estou doente e por que não entendem?” E o garoto do seu lado: “Vovó, vamos para casa, estou com fome e cansado”. E a avó, arrastando as pernas, clamou em voz alta: “Ó meu Deus!” Como essa senhora, quantas pessoas enfrentam a vida de maneira bem sofrida e incompreendida. E essas pessoas ficam esquecidas nos seus direitos. Como, portanto, reverter uma vida esquecida, não reconhecida? O salmo 56, das Sagradas Escrituras, nos ilumina a respeito:

“Tende piedade de mim, ó Deus, tende piedade de mim, porque a minha alma em vós procura o seu refúgio. Abrigo-me à sombra de vossas asas, até que a tormenta passe. Clamo ao Deus Altíssimo, ao Deus que me cumula de benefícios. Mande ele, do céu, auxílio que me salve, cubra de confusão meus perseguidores; envie-me, Deus, a sua graça e fidelidade. Estou no meio de leões, que devoram os homens com avidez. Seus dentes são como lanças e flechas, suas línguas como espadas afiadas. Elevai-vos, ó Deus, no mais alto dos céus, e sobre toda a terra brilhe a vossa glória. Ante meus pés armaram rede; fizeram-me perder a coragem. Cavaram uma fossa diante de mim; caiam nela eles mesmos. Meu coração está firme, ó Deus, meu coração está firme; vou cantar e salmodiar. Desperta-te, ó minha alma; despertai, harpa e cítara! Quero acordar a aurora. Entre os povos, Senhor, vos louvarei; salmodiarei a vós entre as nações, porque aos céus se eleva a vossa misericórdia, e até as nuvens a vossa fidelidade. Elevai-vos, ó Deus, nas alturas dos céus, e brilhe a vossa glória sobre a terra inteira.”

O salmo inicia invocando a presença do Senhor que se manifesta com a proteção simbólica das asas do Altíssimo. Em contrapartida, o mal é representado pelos “leões, que devoram os homens com avidez”. Essa simbologia do animal feroz, que representa a ruindade dos perseguidores, é uma ameaça constante na vida das pessoas. Perante essa ameaça, o fiel contrapõe a confiança total em Deus e por isso consegue dormir tranquilo. Esses malfeitores, perseguidores dos ‘justos’, são tão fortes que se parecem como um bando de caçadores no mato que encurralam a própria caça.
Não tem como escapar da cilada dessas pessoas opressoras que pensam somente para si. Tudo parece que o mal é o vencedor. No entanto, aqui está a grande novidade: o mal é derrotado. Isto é, os perseguidores dos justos que “cavaram uma fossa diante de mim; caiam nela eles mesmos”. E o autor deste salmo manifesta esta confiança através da alegria do seu coração em viver o início do dia cheio de vida. Sente-se tão forte e animado que invoca com toda a força o despertar do dia, expressão de vitalidade e de alegria. O fiel experimenta essa profunda alegria na sua libertação das ameaças do seu perseguidor.

Assim, ainda hoje, a pessoa que se sente livre de toda ameaça manifesta a sua tranquilidade e serenidade, que vem do profundo do seu ‘coração’. E o salmo conclui com um hino de louvor às duas virtudes fundamentais da aliança, o amor e a fidelidade, que Deus consagrou com o seu povo. E o papa Francisco nos ilumina mais ainda com essas palavras pronunciadas na audiência geral de 29 de março de 2017: “A profunda esperança radica-se na fé e, precisamente por isso, é capaz de ir além de toda a esperança. Sim, porque não se fundamenta na nossa palavra, mas na Palavra de Deus. Então, inclusive neste sentido somos chamados a seguir o exemplo de Abraão que, não obstante a evidência de uma realidade que parece destinada à morte, confia em Deus e «estava plenamente convencido de que Deus era poderoso e podia cumprir o que prometera» (Rm 4, 21). Gostaria de vos fazer uma pergunta: nós, todos nós, estamos persuadidos disto? Estamos convictos de que Deus nos ama e que está disposto a cumprir tudo aquilo que nos prometeu? Mas, padre, quanto temos que pagar por isto? Só há um preço: «abrir o coração». Abri os vossos corações e esta força de Deus levar-vos-á em frente, fará milagres e ensinar-vos-á o que é a esperança. Eis o único preço: abri o coração à fé e Ele fará o resto.”

Com deus, nada temo!

Toda vez que leio o jornal, fico triste em ver quantas mortes violentas acontecem todos os dias. É verdade, todos os dias! Descobri também que as reportagens não relatam quantos, de fato, morrem todos os dias. Descobri, jornalisticamente, que aquilo que é noticiado é somente, se posso dizer de maneira bem aproximativa, quase uma amostra de tantas mortes entre nós. Por exemplo, pelos meus conhecimentos através dos contatos com o povo da grande periferia de Belém, descubro quantos jovens foram executados publicamente e os jornais nem chegam a mencionar.

O interessante em tudo isso é ver o povo, diante de cenas macabras, impotente e com medo. Cala-se perante essa crueldade. Por que isso? Porque, talvez, ele desconfia de tudo, não se sente protegido, e a única maneira de sobreviver é ficar calado. Uma resposta a tudo isso pode ser encontrada no salmo 55 das Sagradas Escrituras, em que mostra que esse povo tem alguém de verdade que pode defendê-lo. E quem é? Leia atentamente:

“Tende piedade de mim, ó Deus, porque aos pés me pisam os homens; sem cessar eles me oprimem combatendo. Meus inimigos continuamente me espezinham, são numerosos os que me fazem guerra. Ó Altíssimo, quando o terror me assalta, é em vós que eu ponho a minha confiança. É em Deus, cuja promessa eu proclamo, sim, é em Deus que eu ponho minha esperança; nada temo: que mal me pode fazer um ser de carne? O dia inteiro eles me difamam, seus pensamentos todos são para o meu mal; Reúnem-se, armam ciladas, observam meus passos, e odeiam a minha vida. Tratai-os segundo a sua iniquidade. Ó meu Deus, em vossa cólera, prostrai esses povos. Vós conheceis os caminhos do meu exílio, vós recolhestes minhas lágrimas em vosso odre; não está tudo escrito em vosso livro? Sempre que vos invocar, meus inimigos recuarão: bem sei que Deus está por mim. É em Deus, cuja promessa eu proclamo, é em Deus que eu ponho minha esperança; nada temo: que mal me pode fazer um ser de carne? Os votos que fiz, ó Deus, devo cumpri-los; oferecer-vos-ei um sacrifício de louvor, porque da morte livrastes a minha vida, e da queda preservastes os meus pés, para que eu ande na presença de Deus, na luz dos vivos.”

O salmo inicia, dramaticamente, com a descrição de uma ação militar de perseguição. Os protagonistas dessa agressão são inimigos sem nomes que atacam sem piedade o autor da oração. E faz uma comparação com os caçadores que estudam todas as possibilidades de como acertar e pegar a sua caça: “Armam ciladas, observam meus passos”. Perante uma situação horrível como essa, cheia de medo, erguem-se preces a Deus para que liberte dessa desumana perseguição. Não tem alternativa em confiar no socorro de Deus, porque não tem mais ninguém para apelar.

Esses perseguidores são apresentados como ‘povos’ talvez para exaltar a potência e a multidão. Ou talvez pela tentativa de transferir sobre um plano nacional e comunitário um acontecimento pessoal e individual. O autor desse salmo passa depois da dramaticidade das ameaças e perseguição à tranquilidade de entrega a Deus, seu verdadeiro refúgio. Por isso reza: “Vós recolhestes minhas lágrimas em vosso odre; não está tudo escrito em vosso livro?” Justamente, porque no grande livro da história junta todas as palavras, as ações, as alegrias de toda a humanidade e, sobretudo, escreve as lagrimas que os perseguidores fazem aos pobres.

Deus junta com carinho todas as lágrimas das vítimas e assim não caem no vazio. Assim sendo, demonstra que as lágrimas são aos ‘olhos’ de Deus realidades preciosas como a água, o vinho, o leite, substâncias vitais que o peregrino no deserto guarda no seu odre. Deus grava e conserva como tesouros todos os sofrimentos da humanidade. É a história do ser humano pobre e sofrido resgatado pelo seu Deus. Assim sendo, revela-se o primado da soberania de Deus na história do mundo: é Ele o autor e defensor da vida. Ninguém pode ameaçar a vida, não obstante a aparente força dos poderosos deste mundo que dominam o cotidiano. A Palavra do Senhor liberta e no caminho da luz conduz os seus servos.

O papa Francisco, na audiência geral de 11 de janeiro de 2017, falou o seguinte: “Fé significa confiar em Deus — quem tem fé, confia em Deus — mas chega o momento em que, confrontando-se com as dificuldades da vida, o homem experimenta a fragilidade daquela confiança e sente a necessidade de certezas diversas, de seguranças tangíveis, concretas. Confio em Deus, mas a situação é um pouco crítica e eu preciso de uma certeza um pouco mais concreta. E está ali o perigo! Então somos tentados a procurar consolações até efêmeras, que parecem preencher o vazio da solidão e aliviar a fadiga do crer.”

Ó Deus, escuta a minha oração!

Já ouvi queixas de várias pessoas dizendo que foram traídas por seus ‘melhores amigos’: “Padre Claudio, estou acabado, não tenho mais forças para reagir, porque aquela pessoa que tanto estimava há anos, que confiava totalmente, ajudava em tudo, considerava-o como irmão, essa tal pessoa me traiu, aliás, anda falando mal de mim por aí. Inclusive, padre, éramos frequentadores assíduos da igreja, pessoas que compartilhávamos a santa eucaristia… Me sinto totalmente frustrado por essa traição. Não tenho mais palavras…”. Essa história, como tantas outras, é comum em nosso convívio. Então, a gente se pergunta como enfrentar uma dura realidade como essa: a traição dos amigos. As Sagradas Escrituras, pelo salmo 54, nos ajuda nesse sentido:

“Prestai ouvidos, ó Deus, à minha oração, não vos furteis à minha súplica; Escutai-me e atendei-me. Na minha angústia, agito-me num vaivém, perturbo-me à voz do inimigo, sob os gritos do pecador. Eles lançam o mal contra mim, e me perseguem com furor.

Palpita-me no peito o coração, invade-me um pavor de morte.

Apoderam-se de mim o terror e o medo, e o pavor me assalta.

Digo-me, então: tivesse eu asas como a pomba, voaria para um lugar de repouso; ir-me-ia bem longe morar no deserto.

Apressar-me-ia em buscar um abrigo contra o vendaval e a tempestade.

Destruí-os, Senhor, confundi-lhes as línguas, porque só vejo violência e discórdia na cidade.

Dia e noite percorrem suas muralhas, no seu interior só há injustiça e opressão.

Grassa a astúcia no seu meio, a iniqüidade e a fraude não deixam suas praças.

Se o ultraje viesse de um inimigo, eu o teria suportado; se a agressão partisse de quem me odeia, dele me esconderia.

Mas eras tu, meu companheiro, meu íntimo amigo, com quem me entretinha em doces colóquios; com quem, por entre a multidão, íamos à casa de Deus.

Que a morte os colha de improviso, que eles desçam vivos à mansão dos mortos. Porque entre eles, em suas moradas, só há perversidade.

Eu, porém, bradarei a Deus, e o Senhor me livrará.

Pela tarde, de manhã e ao meio-dia lamentarei e gemerei; e ele ouvirá minha voz.

Dar-me-á a paz, livrando minha alma dos que me acossam, pois numerosos são meus inimigos.

O Senhor me ouvirá e os humilhará, ele que reina eternamente, porque não se emendem nem temem a Deus.Cada um deles levanta a mão contra seus amigos. Todos violam suas alianças.
De semblante mais brando do que o creme, trazem, contudo, no coração a hostilidade; suas palavras são mais untuosas do que o óleo, porém, na verdade, espadas afiadas.
Depõe no Senhor os teus cuidados, porque ele será teu sustentáculo; não permitirá jamais que vacile o justo.E vós, ó meu Deus, vós os precipitareis no fundo do abismo da morte. Os homens sanguinários e ardilosos não alcançarão a metade de seus dias! Quanto a mim, é em vós, Senhor, que ponho minha esperança.”

Este salmo, esta oração, é justamente é uma clamação de um senhor que foi traído pelo seu melhor amigo. De fato, encontramos nessa leitura a imagem triste da traição. Por isso, o autor clama por Deus, reza incessantemente para ser ouvido, com a intenção de denunciar a sua cruel situação que está passando. O autor dessa oração lamenta profundamente essa traição do amigo, não consegue suportar. Teria sido mais fácil se tivesse sido um inimigo, mas um amigo? Ficou destruído. Veja bem o que diz o salmo: “Íamos à casa de Deus.” Estavam juntos nessa profissão de fé. Eles iam para o Templo nas festas litúrgicas solenes, cantando com muita fé e na tranquilidade.

Perante esta cena de harmonia e de amor e agora rompida pela traição e desilusão, ele queria que tudo se transformasse em nada. Praticamente esse fiel quis dizer: “Já pensou, estávamos no templo sagrado, na sua pureza divina, e, não obstante isso, esse amigo teve a coragem de me trair, de ser um grande mentiroso”. Diríamos hoje, não respeitou nem a igreja! E para encarar mais ainda essa traição, o autor descreve que “suas palavras são mais untuosas do que o óleo, porém, na verdade, espadas afiadas”. A ‘boca’ aqui é um símbolo das relações humanas que se torna calúnia.

Assim sendo, quanto mal pode fazer a nossa fala quando se torna falsa e enganadora? Ela tem uma força cortadora. Com as palavras se pode até matar. Perante essa realidade, como reagir? Segundo o autor deste salmo, ele confessa a vontade de fugir desse mundo falso e cruel. Não aguenta esta amargura. Porém, ao mesmo tempo, alimenta uma esperança viva, através da oração, que a ação de Deus não tarda a chegar para socorrê-lo. A confiança no Senhor é maior que a tristeza que os inimigos lhes dão. Por isso continua firme no seu caminho.

Deus é a minha verdadeira ajuda

As pessoas não vivem somente momentos de alegria e felicidade, mas também de tristeza e sofrimento. Os desafios da vida são grandes no percurso da história da humanidade. Há pessoas que chegam a um desespero tão grande que não sabem mais o que fazer. Conheço realidades tão comoventes de desespero que me deixam muito triste e preocupado. Tem gente que chega a invocar até a morte como solução da própria vida. Perante tudo isso, eu sempre me refugio na Palavra de Deus. O que Ela me diz, me ilumina. Para mim, é um sol que resplandece no meio das trevas da história das pessoas. Por isso, quero propor esse salmo 53 das Sagradas Escrituras para oferecer luz à humanidade, àqueles que estão no desespero, que não encontram mais uma luz no final do túnel da vida. Leia atentamente o que diz:

“Quando os zifeus vieram dizer a Saul: Davi encontra-se escondido entre nós. Pela honra de vosso nome, salvai-me, meu Deus! Por vosso poder, fazei-me justiça.

Ó meu Deus, escutai minha oração, atendei as minhas palavras, pois homens soberbos insurgiram-se contra mim; homens violentos odeiam a minha vida: não têm Deus em sua presença.

Mas eis que Deus vem em meu auxílio, o Senhor sustenta a minha vida.

Fazei recair o mal em meus adversários e, segundo vossa fidelidade, destruí-os.

De bom grado oferecer-vos-ei um sacrifício, cantarei a glória de vosso nome, Senhor, porque é bom, pois me livrou de todas as tribulações, e pude ver meus inimigos derrotados.”

Esse breve salmo nos mostra como se faz uma intercessão a Deus. Como invoca-Lo. E para isso destaca-se esse modelo em que aparece um “eu” que intercede, reza; um “eles”, que são os inimigos; e o terceiro, o “Deus” que atende a súplica. E assim mostra-nos também como uma oração evoca os momentos da vida: com um passado feliz, um presente bem triste e um futuro esperançoso, bem melhor do presente. Uma oração bem cadenciada pelo nome de Deus. Dito isso, podemos ver nesse salmo como os inimigos ameaçam a vida do justo fiel.

Nesse sentido, o intercessor diz: “Salvai-me, meu Deus! Por vosso poder, fazei-me justiça…” Ele sente o real perigo da perseguição do poderoso e arrogante que ameaça a sua vida. Nessa oração se mescla dor e esperança. Nesse sentido, o justo fiel focaliza a pressão e ameaça do poderoso mau e arrogante. Por isso, o suplicante acredita cegamente que Deus, Senhor da história, vai intervir para defender o pequeno humilde pobre. Assim sendo, esse humilde pobre confia na ação de Deus e, portanto, o medo desaparece. O baluarte Deus é garantia de vida, é segurança: “De quem eu terei medo!”.

Com essa confiança, mostra-nos que o verdadeiro protagonista da história da vida é Deus e não os poderosos desse mundo. Deus é quem socorre as vítimas da injustiça. A Ele se abandona o justo sofredor e perseguido. O sofrimento é tão grande que o Senhor não consegue “fechar os olhos e seus ouvidos”, garantindo-lhe o seu amparo. E esse justo é tão convencido dessa presença de Deus que: “Fazei recair o mal sobre os meus inimigos”. Por que chega a tanta certeza? Porque essa intervenção divina deve ser reconduzida à Sagrada Aliança que Deus fez com o seu povo escolhido. Portanto, Deus não pode abandonar esse vínculo com as suas criaturas que Ele mesmo escolheu e que é muito precioso. E, enfim, o fiel que faz a sua oração antecipa o seu futuro fundado na sua fé em Deus: “Cantarei a glória de vosso nome, Senhor, porque é bom.”

O passado tão triste e cruel se reverterá em um futuro de glória e triunfo, porque é sustentado pelo Deus, Senhor da história. A oração conclui repleta de esperança e de coragem. Nas trevas da humilhação e opressão resplandece a luz da fé em um Deus que liberta o fiel oprimido e sofredor. Essa oração se torna a oração de todos os que sofrem e são oprimidos. Para finalizar tudo isso, quero reportar aqui as palavras do Papa Francisco pela ocasião do ‘Angelus’ do dia 26.02.2017: “Existe um Pai amoroso que não se esquece nunca de seus filhos. Entregar-se a Ele não resolve magicamente os problemas, mas permite enfrentá-los com o espírito correto, corajosamente.” E continua o santo Padre: “Deus não é um ser distante e anônimo: é o nosso refúgio, a fonte de nossa serenidade e de nossa paz. É a rocha da nossa salvação, a quem podemos agarrar-nos na certeza de não cair. Quem se agarra a Deus não cai, quem se agarra a Deus, não cai nunca! É a nossa defesa do mal, sempre à espreita. Deus é para nós o grande amigo, o aliado, o pai, mas nem sempre nos damos conta disto”. E o Bergoglio termina na ótica cristã:

“A esperança cristã é voltada ao cumprimento futuro da promessa de Deus e não se rende diante de alguma dificuldade, porque é fundada na fidelidade de Deus, que nunca falta. É fiel, é um pai fiel, é um amigo fiel, é um aliado fiel”.

O perigo é pensar que Deus não existe

Diariamente, eu penso que, se não tivesse a experiência de Deus, minha vida seria vazia e limitada demais. Imagino minha incapacidade de enfrentar a vida com o sentido que vai além do perceptível, do sentimento e da limitação humana. O que teria sido de mim sem essa experiência de Deus, em relação a mim mesmo, aos outros, a mãe natureza? Veja o salmo 52 das Sagradas Escrituras o que nos fala:

“Diz o insensato em seu coração: Não há Deus. Corromperam-se os homens, seu proceder é abominável, não há um só que pratique o bem. O Senhor, do alto do céu, observa os filhos dos homens para ver se, acaso, existe alguém sensato que busque a Deus. Todos eles, porém, se extraviaram e se perverteram; não há mais ninguém que faça o bem, nem um, nem mesmo um só. Não se emendarão esses obreiros do mal? Eles que devoram meu povo como quem come pão, não invocarão o Senhor? Foram tomados de terror, não havendo nada para temer. Porque Deus dispersou os ossos dos que te assediam; foram confundidos porque Deus os rejeitou.

Ah, que venha de Sião a salvação de Israel! Quando Deus tiver mudado a sorte de seu povo, Jacó exultará e Israel se alegrará.”

É um salmo, segundo a linguagem bíblica, do ‘tolo’, do ‘inconsciente’. O ateísmo no antigo oriente é para se entender mais no sentido prático e existencial. Não é como a nossa cultura moderna que focaliza mais no sentido teórico-especulativo. Esse ateu, descrito neste salmo, é convencido de que Deus não está nem aí por aquilo que acontece na história da humanidade, mas fica sossegado no seu mundo do céu, no seu trono celestial. É indiferente para a vida das pessoas. É por isso que a história é marcada e designada pelos mais poderosos, arrogantes que se tornam os dominadores dela.

Nesse sentido, o autor desse hino quer contestar essa concepção de vida e mostrar como Deus intervêm, na verdade, para fazer justiça. Porém, não como nós queremos mas como Ele quer. Os desígnios Dele, presentes na nossa história, não são os nossos: “Deus dispersou os ossos dos que te assediam”. Isto é, Ele derrota sempre os ímpios que assediam o justo. Esse hino, podemos compreendê-lo, com uma primeira parte onde se lamenta a injustiça ateia e uma segunda parte onde se invoca o julgamento divino acompanhado de uma oração de esperança.

Por quanto à lamentação sobre esse ateísmo, de fato, existe uma forte ligação entre injustiça e ateísmo. Não interessa que exteriormente o injusto seja um ‘praticante’, porque com o seu comportamento mal na vida social se torna parecido a um ateu. Hoje em dia é o que nós diríamos: todos esses escândalos de corrupção, de extorsão, de máfia etc. talvez essas pessoas envolvidas se dizem que são praticantes assíduas de igrejas, mas na verdade são ateias. E assim o salmista diz embora que Deus parece ausente, mas na verdade se revela vindo do céu em socorro do justo e combatendo o ímpio.

Por que Deus intervém? Porque vê que a humanidade está repleta de opressores, de corruptos e falsos. O sábio que busca a Deus não encontra a sua vez nessa podridão da sociedade. Ele é marginalizado. Continua o salmista: “Não se emendarão esses obreiros do mal? Eles que devoram meu povo como quem come pão, não invocarão o Senhor?” Explorar e desfrutar os pobres é um ato de sacrilégio, porque significa desafiar o mesmo Deus, que é o advogado que defende eles. E o Deus não reconhecido intervém na história perante essa blasfema provocação.

Assim o julgamento de Deus se torna presente. Aqui é resumido com três símbolos: o terror, o assédio e os ossos dispersos. O ‘terror’ é sinal da manifestação divina que vem julgar. O ‘assédio’ é uma imagem que quer dizer uma situação de perigo e de fim. E os ‘ossos dispersos’ tem conotações de enterro e exalta a grande vitória de Deus sobre os poderosos e sobre os ímpios. Portanto, essa oração é uma proclamação da efetiva presença de Deus na história da humanidade. Ele é o Senhor de tudo e de todos. E o salmo termina testemunhando a grande esperança na justiça que levará a triunfar os justos, os que sofrem, os que são explorados. E essa esperança de Israel, demonstrada aqui, é o retorno do seu povo deportado para Babilônia pelo rei Nabucodonosor. O povo que foi humilhado por essa superpotência ‘ateia’.

Assim sendo o salmo levanta um grito de esperança e de alegria não obstante o escândalo e as trevas da história. Creio que também todos nós temos esse grande desejo, não obstante todas as crueldades e tristezas da vida, que é Deus o nosso refúgio e o nosso defensor.

O fiel justo segue as opções de Deus

Estamos muito acostumados a ouvir a proclamação do nome de ‘Deus’ por todo lado, sobretudo em discursos oficiais de poder. A palavra ‘Deus’ parece ser usada para dar aquela garantia, certeza ao discurso para se tornar mais crível. É uma maneira de falar, como diz popularmente o nosso povo, da boca pra fora. Na verdade, a menção de Deus nos discursos, mensagens, até pregações, é somente um preenchimento da fala discursiva, preenchimento de vazio.

Este, podemos até dizer, é diabólico, porque quer se projetar, na verdade, os projetos de vida excluindo Deus. Essa maneira de falar, quantas vezes é mais fácil marginalizar eventos, fatos ou pessoas que contradizem uma eventual conduta nossa, que é adversa ao Reino de Deus? No final, não queremos desconfiar de nós mesmos, mas, sim, do nosso Deus. A história se repete, o ser humano acha que tudo pode pela sua fala e a sua conduta.

Como este julgamento é tão duro e, naturalmente, isto nos envolve. A fidelidade de Deus ao seu projeto de Vida é eterna. A justiça de Deus ninguém pode impedi-la. Ele vai fazer de tudo para que aconteça. Com certeza, Ele encontra sempre a sua solução. Neste sentido, temos que rever as nossas concretas teimosias egoísticas, que nos levam a ter uma concepção de vida sem Deus, sermos os donos do Reino Dele. O salmo 51 das Sagradas Escrituras nos ajuda a compreender melhor a nossa vida:

“Quando Doeg, o idumeu, veio dizer a Saul: Davi entrou na casa de Aquimelec. Por que te glorias de tua malícia, ó infame prepotente?

Continuamente maquinas a perdição; tua língua é afiada navalha, tecedora de enganos. Tu preferes o mal ao bem, a mentira à lealdade.Só gostas de palavras perniciosas, ó língua pérfida!
Por isso Deus te destruirá, há de te excluir para sempre; ele te expulsará de tua tenda, e te extirpará da terra dos vivos. Vendo isto, tomados de medo, os justos zombarão de ti, dizendo:Eis o homem que não tomou a Deus por protetor, mas esperou na multidão de suas riquezas e se prevaleceu de seus próprios crimes.

Eu sou, porém, como a virente oliveira na casa de Deus: confio na misericórdia de Deus para sempre. Louvar-vos-ei eternamente pelo que fizestes e cantarei vosso nome, na presença de vossos fiéis, porque é bom.”

A estrutura do salmo pode ser definida por três imagens: do ímpio, do ser justo e da cena de Deus que julga. Os símbolos que representam o ímpio são a língua igual a uma navalha afiada, palavras perniciosas e, no entanto, o justo como uma virente oliveira.

O ímpio é apresentado pelo autor do salmo como: ‘Por que te glorias de tua malícia, ó infame prepotente?’ O ímpio agride o justo falando mal dele, não o respeitando. De fato, quem é o justo aqui, segundo o salmista? É ele mesmo. Ele que reza dizendo: ‘eu confio na misericórdia de Deus para sempre.’ E aqui se contrapõe o malvado, igual a navalha afiada, ao fiel justo que é doce e leve como uma árvore de oliveira plantada nos jardins do templo. Portanto, esse justo, é um ser humano de paz, de tranquilidade, de firmeza, de bênção e de confiança em Deus. Assim sendo, o justo conhece, saboreia o que é eterno, representado simbolicamente pela oliveira. Porém, ao centro do salmo se destaca que o ímpio e o justo são convocados perante Deus para serem julgados. E aqui mostra como Deus age em maneira forte, quase como se fosse uma detonação do ímpio, extirpando-o da terra dos seres humanos.

Perante tudo isso, compreende-se que a verdadeira estabilidade do ser humano não está na habilidade das pessoas, mas em Deus. É Ele a nossa defesa. Esse juízo contra as pessoas ruins é louvado pelos justos. Essa ação de Deus é realmente temida pelos seres viventes, mas ao mesmo tempo gera alegria porque a justiça foi feita. Assim, os arrogantes, os soberbos, desafiadores da justiça, são reduzidos a nada. O ímpio pode ter toda a riqueza que quiser, ilusão de segurança e proteção, mas sem Deus é perdido.

Toda a sua maquinação perversa contra o justo é destruída por Deus, refúgio dele. O salmo se apresenta, não obstante a revelação da força do ímpio, com uma grandeenergia de otimismo. Nos mostra como Deus é e não é indiferente à nossa história, mas se faz presente ativamente. E se faz presente do jeito Dele e não a partir da nossa maneira de pensar e agir. Ele restabelece a justiça para valorizar a obra como um todo da criação. Qual a lição de tudo isso? O fiel, o justo, deve sempre confiar e aguardar para compartilhar as opções de Deus para fazer justiça. Somente assim seremos capazes de louvar e agradecer o nosso Deus entre nós.

Piedade de mim, ó Deus!

Toda vez que rezo este salmo, eu me apaixono na busca do meu Deus. Sinto-me em sintonia com Ele como um filho com o pai que se sente acolhido e protegido. Este amor que acolhe e protege se revela força e coragem para interpretar corretamente a nossa vivência humana, a nossa condição de fraternidade. Interessante ver como as nossas certezas de vida surgem dessa nossa condição de humildade e não das arrogâncias dos poderes que o mundo nos oferece. Somos sedentos de vida e este salmo 50 das Sagradas Escrituras nos ajuda a encontrá-la.

“Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade. E conforme a imensidade de vossa misericórdia, apagai a minha iniquidade. Lavai-me totalmente de minha falta, e purificai-me de meu pecado. Eu reconheço a minha iniquidade, diante de mim está sempre o meu pecado.

Só contra vós pequei, o que é mau fiz diante de vós. Vossa sentença assim se manifesta justa, e reto o vosso julgamento. Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado.

Não obstante, amais a sinceridade de coração. Infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de mim.

Aspergi-me com um ramo de hissope e ficarei puro. Lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve.

Fazei-me ouvir uma palavra de gozo e de alegria, para que exultem os ossos que triturastes.

Dos meus pecados desviai os olhos, e minhas culpas todas apagai. Ó meu Deus, criai em mim um coração puro, e renovai-me o espírito de firmeza. De vossa face não me rejeiteis, e nem me priveis de vosso Santo Espírito.Restituí-me a alegria da salvação, e sustentai-me com uma vontade generosa. Então aos maus ensinarei vossos caminhos, e voltarão a vós os pecadores.

Deus, ó Deus, meu salvador, livrai-me da pena desse sangue derramado, e a vossa misericórdia a minha língua exaltará. Senhor, abri meus lábios, a fim de que minha boca anuncie vossos louvores.Vós não vos aplacais com sacrifícios rituais; e se eu vos ofertasse um sacrifício, não o aceitaríeis.

Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar. Senhor, pela vossa bondade, tratai Sião com benevolência, reconstruí os muros de Jerusalém. Então aceitareis os sacrifícios prescritos, as oferendas e os holocaustos; e sobre vosso altar vítimas vos serão oferecidas.”

Este salmo é uma oração do rei Davi que se arrependeu pela sua conduta adúltera e homicida. Isto aconteceu quando o profeta Natã denunciou Davi por ter conspirado a morte de Urias para ficar com a mulher dele (2 Samuel 11-12). Isto desagradou seriamente Deus e como resposta Davi pediu perdão. Esse perdão revela a ameaça e tristeza do pecado. É interessante ver também como a confissão do pecado abre para a justiça de Deus que purifica o ser humano, resgata a criatura para não ser escrava do seu pecado.Esse testemunho de Davi nos ajuda a compreender o quanto é importante reconhecermos os nossos pecados e invocar o perdão de Deus. Continuando com a leitura do salmo, se vê por essa declaração, ‘eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado’, o famoso texto do pecado original em que se reconhece os limites radicais da criatura humana. E a confissão das culpas se reconhece como Deus é o autor da nossa vida. O ser humano depende Dele para poder resgatar constantemente a verdadeira vida da corrupção que lhe está na sua frente.Nesse sentindo, Davi pede a Deus que recri um coração novo, isto é, uma vida nova, para vivificar a sua vida. De modo que oSenhor não só perdoa, mas plasma de novo o pecador, dando-lhe uma nova consciência e uma fé pura para praticar o verdadeiro culto. A Bíblia toda marca a forte presença do pecado que é contrastada pela esperança do perdão. Se tem pecado também existe a graça do perdão. O Papa Francisco assim se expressou a respeito, na missa em Santa Marta no dia 23.01.2015: “O Deus que perdoa: o nosso Deus perdoa, reconcilia, renova a aliança e perdoa. Mas ‘como perdoa Deus? Antes de tudo, Deus perdoa sempre! Nunca se cansa de perdoar. Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Mas ele nunca se cansa de perdoar’. A ponto que ‘quando Pedro pergunta a Jesus: quantas vezes devo perdoar, sete vezes?’, a resposta que recebe é eloquente: ‘Não sete vezes mas setenta vezes sete’. Ou seja, ‘sempre’, porque é precisamente assim que Deus perdoa: sempre. Por conseguinte, se viveste uma vida com tantos pecados, tantas coisas más, mas no fim, um pouco arrependido, pedes perdão, ele perdoa-te imediatamente. Ele perdoa sempre. É preciso apenas arrepender-se e pedir perdão: nada mais! Não se deve pagar nada! Cristo pagou por nós e perdoa sempre, e não há pecado que ele não perdoe”.

Não se esqueçam de deus

Um dia desses uma pessoa me confiou: “Não é fácil fazer uma experiência de Deus na vida hoje, mas é muito fácil fazer uma experiência de vida sem Deus!” Que verdade! Hoje parece que uma opção de vida segura é se preocupar exclusivamente no visível, no que aparece, sem se preocupar com o que vai além disso. O imediatismo material não deixa lugar para transcender a nossa realidade. Poderíamos dizer que é uma pobreza ‘horizontal’. E essa pobreza exalta as limitações humanas e reduz as perspectivas de aspirações infinitas. Para melhor compreendermos isso, eu proponho a leitura do salmo 49, das Sagradas Escrituras:

“Falou o Senhor Deus e convocou toda a terra, desde o levante até o poente.

Do alto de Sião, ideal de beleza, Deus refulgiu: nosso Deus vem vindo e não se calará. Um fogo abrasador o precede; ao seu redor, furiosa tempestade.

Do alto ele convoca os céus e a terra para julgar seu povo: Reuni os meus fiéis, que selaram comigo aliança pelo sacrifício.

E os céus proclamam sua justiça, porque é o próprio Deus quem vai julgar.

Escutai, ó meu povo, que eu vou falar: Israel, vou testemunhar contra ti. Deus, o teu Deus, sou eu.

Não te repreendo pelos teus sacrifícios, pois teus holocaustos estão sempre diante de mim.

Não preciso do novilho do teu estábulo nem dos cabritos de teus apriscos, pois minhas são todas as feras das matas; há milhares de animais nos meus montes.

Conheço todos os pássaros do céu, e tudo o que se move nos campos.

Se tivesse fome, não precisava dizer-te, porque minha é a terra e tudo o que ela contém.

Porventura preciso comer carne de touros, ou beber sangue de cabrito?…

Oferece, antes, a Deus um sacrifício de louvor e cumpre teus votos para com o Altíssimo.

Invoca-me nos dias de tribulação, e eu te livrarei e me darás glória.

Ao pecador, porém, Deus diz: Por que recitas os meus mandamentos, e tens na boca as palavras da minha aliança? Tu que aborreces meus ensinamentos e rejeitas minhas palavras?

Se vês um ladrão, te ajuntas a ele, e com adúlteros te associas.

Dás plena licença à tua boca para o mal e tua língua trama fraudes.

Tu te assentas para falar contra teu irmão, cobres de calúnias o filho de tua própria mãe.

Eis o que fazes, e eu hei de me calar? Pensas que eu sou igual a ti? Não, mas vou te repreender e te lançar em rosto os teus pecados.

Compreendei bem isto, vós que vos esqueceis de Deus: não suceda que eu vos arrebate e não haja quem vos salve.

Honra-me quem oferece um sacrifício de louvor; ao que procede retamente, a este eu mostrarei a salvação de Deus.”

O que o salmo focaliza, em síntese, fazer o culto, uma liturgia sem um compromisso sério na vida cotidiana, encarnada na realidade do dia-dia torna-se uma magia ou uma farsa. Mais ainda, a religião ritual sem a fé autêntica vivida é hipocrisia, falsa. Diz o salmo que o único culto que Deus gosta é o puro louvor que nasce da consciência e da vida das pessoas e se manifestam pelas próprias condutas. Portanto, não somente culto, mas culto e vida honesta e justa. Deus opõe sete tipos de delitos, furto, adultério, língua, boca, julgamentos, calúnia, que a hipocrisia acredita eliminar simplesmente com as ofertas rituais e não com grande compromisso com a justiça.

Assim nós podemos dizer hoje: uma liturgia desencarnada, que não se compromete com uma vida de justiça, não pode louvar a Deus. Sem o sinal vivo da vida, da fidelidade, da justiça a liturgia não é mais expressão de uma salvação superior, mas fica um simples ato cultual, burocrático sagrado, um belo rito teatral. Assim sendo, o autor desse salmo contesta, em um certo sentido, essa alienação religiosa e faz uma veemente declaração em favor da fé enraizada na vida.

Uma fé compromissada e bem concreta, uma fé também que se estende ao social que, porém, é contemplativa. O Santo Padre papa Francisco, em um seu pronunciamento feito pela ocasião dos 50 anos da missa celebrada em língua italiana (07.03.2015), falou a respeito do culto litúrgico: “É um chamamento ao culto autêntico, à correspondência entre liturgia e vida; um apelo que vale para todas as épocas e até mesmo hoje para nós. Aquela correspondência entre liturgia e vida. A liturgia não é uma coisa estranha, lá muito longe, distante, e enquanto se celebra eu penso em muitas outras coisas, ou rezo o Terço. Não, não. Existe uma correspondência entre a celebração litúrgica que depois eu levo na minha vida, e sobre isto deve-se ir ainda mais longe, deve-se fazer ainda um longo caminho”.