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A educação como direito e dever do estado para reintegração social de pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário do Amapá

Desde o ano 2020, vivemos tempos difíceis e sombrios com o acontecimento da pandemia da Covid 19 no mundo e que ainda não acabou e continua se alastrando através das variantes, entre as quais, delta e Ômicron.


Lucidéa Melo
Doutora em Ciências da Educação

 

A Constituição Federal de 19882 em seu artigo 205, proclama que a educação, direito de todos e dever do estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

O artigo 6º fala dos direitos sociais, entre os quais a educação. A Educação está fundamentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação-LDBE- Lei nº 9.394/1996, Lei nº 13.005/2014 que estabelece o Plano Nacional de Educação. A CF/88, tornou-se fiadora do respeito à dignidade da pessoa humana, ofertando educação a todos, incluindo os privados de liberdade. A lei nº 7.210/1984 -Lei de Execução Penal, ratifica no artigo 10 a assistência ao preso e ao internado e no artigo 11, inciso IV, o dever do estado quanto a assistência educacional, isso, visando a real aplicação desse direito, independentemente do crime cometido.

Desde o ano 2020, vivemos tempos difíceis e sombrios com o acontecimento da pandemia da Covid 19 no mundo e que ainda não acabou e continua se alastrando através das variantes, entre as quais, delta e Ômicron. E, como sobreviventes que somos da pandemia, vamos seguindo a vida, ajudando no resgate da cidadania daqueles que estão em situação de cárcere.

Cada Estado da Federação se debate com seus próprios problemas e impotência na busca de soluções inovadoras visando combater a criminalidade através de projetos ressocializadores. A finalidade da reintegração social ou ressocialização, é fazer com que o egresso não volte a delinquir e a educação é um grande passo diante da incapacidade que o estado tem na trajetória da recuperação do delinquente.

Prisão custa caro para o Estado e se não for aplicado o tratamento penal adequado ao preso, quanto mais aumentar a população, maiores serão os problemas nos presídios. Se o objetivo é reintegrar socialmente o cidadão, não dá para fazer isso sem educação. A educação representa o meio ideal para que o condenado evite a reiteração no crime. Desperta os valores morais, sociais, humanos que transformam qualquer indivíduo por mais hediondo que tenha sido seu delito.

Conhecer de perto uma política pública de educação penitenciária, só convivendo cotidianamente dentro de uma escola prisional. Os professores que aceitaram trabalhar com pessoas privadas de liberdade, aceitaram também desafiar a essência e a consciência de sua missão, que é o de levar conhecimento e resgatar a autoestima dessas pessoas. O caminho é difícil, mas deve ser percorrido. E que o caminho funcione, como disse Galeano, “que o horizonte funcione como uma utopia, para que não nos deixe parar de caminhar”.

A sociedade como um todo muito vem discutindo a respeito da pena de prisão no sistema penitenciário. De nada adianta a nossa sociedade ser gigante do jeito que é, se não compreender o papel relevante das políticas públicas, principalmente a de educação no sistema penitenciário brasileiro.

Por reintegração, há de se ter aquela condição de retorno ao meio social daquele que cometeu um crime, pois tendo praticado uma infração, foi temporariamente afastado do convívio comum.

A batalha diária de todo corpo docente e coordenação pedagógica de uma escola prisional, é no sentido de proporcionar uma nova oportunidade de vida aos privados de liberdade. O grande desafio, consiste em levar a cultura escolar para àqueles que só conhecem a cultura prisional.

É preciso, e insisto, que passemos a levar a essência da educação prisional para todos os rincões desse país, porque isso é muito importante na luta diária para reintegrar aqueles que querem ser reintegrados e voltar ao seio da sociedade como um novo homem, uma nova mulher.

É importante que a sociedade brasileira tenha dimensão do quanto a luta é árdua, do quanto temos que escalar, o quanto a escalada é íngreme, mas ao final sempre conseguimos atingir o ápice da escalada, vendo nossos alunos interessados em adquirir conhecimentos, mudar os rumos da vida. Isso talvez para alguns, servirá apenas como remição de pena, enquanto para outros, uma continuidade de uma verdadeira mudança de vida pós cárcere.

Em um país, como o Brasil, segundo dados de 2019 do Sistema de Informações e Estatística do Departamento Penitenciário Nacional, (INFOPEN/DEPEN)3, ocupa o 3º lugar de maior população carcerária do mundo, com exatos 773.151 mil presos, a educação possibilitará oportunidades de crescimento pessoal e profissional. E, o único caminho para esse acontecimento na vida dessas pessoas, seria pela educação.

No Estado do Amapá, conforme dados atualizados fornecido pelo Policial Penal, Victor Hugo Brito, Chefe da Unidade de Assistência Educacional e Profissionalizante do IAPEN, até o dia 24 de janeiro de 2022, há 2.427 pessoas presas, sendo 2.342 homens e 85 mulheres nos diversos regimes de cumprimento de pena. No IAPEN são ofertadas atividades educacionais e profissionalizantes visando a remição de pena, que por ora, encontram-se suspensas por causa do surto de covid e gripe na Penitenciária Masculina.

A Escola estadual São José, localizada no interior do IAPEN, trabalha com educação de Jovens e Adultos-EJA, através da metodologia adotada por Paulo Freire porque trata-se de um teórico que vem do chão da escola. E para trabalhar esse público diferenciado é necessário entrar no universo deles, ver o que faz parte da vida daquelas pessoas para que a educação seja significativa, e isso acontece através do dialogismo abordado por Paulo Freire. Paulo Freire dizia que a educação transforma pessoas e as pessoas que transformam a sociedade e, é nisso que o corpo docente acredita.

Na Escola Estadual São José, segundo dados da Secretaria escolar atualmente estão matriculados 301 alunos, sendo 250 homens e 51 mulheres. A escola funciona em um prédio cedido pelo IAPEN e mantida pela Secretaria de Estado da Educação SEED/NEJA. Os homens estudam no conhecido “Cadeião” que nada mais é do que a penitenciária masculina enquanto que as mulheres estudam no anexo da Escola São José no interior da Penitenciária feminina (COPEF).

A escola trabalha de forma integrada com a Unidade de Assistência Educacional e Profissionalizante do IAPEN, assim como, com a Vara de Execuções Penais/TJAP, considerando o objetivo de promover a reeducação e a reintegração do homem preso, observando-se os preceitos contidos no artigo 11, inciso IV da Lei nº7.210/84 e Portaria nº009/2005-VEP, na qual diz: “Para efeito de cálculo do período de remição, fica estabelecido que a cada 18 (dezoito) horas/aulas corresponderão a 01 (um) dia de pena remido”. Há outros projetos ressocializadores, como o artesanato, danças, teatro, confecção de móveis, mas os presos preferem ir à escola. Os alunos, são unanimes em afirmar que “O estudo é mais importante do que qualquer projeto de ressocialização”, segundo eles,” a educação liberta os maus pensamentos.”

Desde o começo da pandemia, as aulas presenciais nas penitenciárias masculina e feminina ficaram suspensas. Os professores tiveram que inovar, se reinventar no método de dar aula, pois não podiam fazer on-line porque não havia acesso à internet, além da falta de estrutura.

A forma que coordenação pedagógica e professores encontraram de ensinar remotamente pulando os obstáculos foi através de apostilas, ensino mediado por material impresso. Atualmente, a escola está ofertando o ensino híbrido com a presença do professor. O professor funciona não só como mediador do conhecimento, mas também como aquela pessoa que motiva, que impulsiona e resgata a identidade humana dessas pessoas.

Um dos festejados projetos, é o Projeto Remição de Pena pela Leitura, estabelecido pela Resolução nº44, de 16 de novembro de 2013 do Conselho Nacional de Justiça4, oportuniza ao privado de liberdade, a diminuição de 4 (quatro) dias de pena com a leitura de uma obra literária, científica ou filosófica, de acordo com o nível de escolaridade do detento. O limite é de 12 obras ao ano, ou seja, 48 dias de remição para leitura a cada doze meses, ao final, o aluno elabora um resumo crítico, o qual é avaliado por uma comissão nomeada para acompanhar o projeto e enviá-lo à Vara de Execuções Penais. A Portaria nº001/2019-VEP/TJAP, disciplina a remição pela leitura no âmbito do sistema prisional para os regimes fechados, semiaberto e aberto da Comarca de Macapá, Estado do Amapá.

Considerando que a maioria das pessoas privadas de liberdade estavam e estão há muito tempo sem realizar leituras, fazer resenhas, resumos etc., e, pensando nisso, o Conselho Nacional de Justiça, resolveu flexibilizar mais ainda, a remição de pena pela leitura nos presídios, através de uma Resolução, a Resolução de nº 391, de 10 de maio de 2021 que estabelece procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade.

Como forma de motivar os alunos, em dezembro de 2021, a coordenação pedagógica e professores da escola apresentaram o projeto “cantata natalina da EESJ”, através do coral composto pelos alunos das penitenciárias masculina e feminina. Esse coral foi devidamente ensaiado por um professor da escola e também pelo regente da banda do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Amapá. Os alunos(as) fizerem uma belíssima apresentação. Importante ressaltar que o Tribunal de Justiça do Amapá-TJAP emprestou as roupas oficial de seu coral para o coral dos alunos-reclusos.

Há no estado do Amapá, vários trabalhos de pesquisa, nos quais, alunos e exalunos-reclusos, relatam agradecimentos à Escola São José afirmando que a escola é o único lugar da prisão que se aprende coisas boas, pois tem professores interessados em repassar conhecimentos. Finalizam que não voltariam mais para o mundo do crime, assim como, seria benéfico também para a sociedade, porque a escola resgatou neles a dignidade e o desejo de mudança.

Por fim, a educação penitenciária formal e a qualificação para o trabalho, são as maneiras mais eficazes de reintegrar pessoas privadas de liberdade, oportunizando-os escolhas mais conscientes e transformadoras.


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